terça-feira, 8 de agosto de 2017

Eu tenho que perder a mania de prestar atenção nas conversas das pessoas em fila, ainda mais se o assunto for nossa situação política atual. Mas, infelizmente, quando se trata de tal tema eu ouço mais que o Superman. Preciso entender que, quando alguém puxa assunto de política com uma pessoa aleatória numa fila qualquer, a probabilidade de falar bosta é de 99% - eu não sei se vocês concordam.

Esta semana, estava eu numa fila e meu radar se antenou involuntariamente a uma conversa desse tipo entre dois sujeitos na minha frente. Em poucos minutos aconteceu de eu comprovar minha hipótese probabilística, o cara que puxou o assunto começou a girar sua metralhadora de merda. Quando ele conseguiu juntar numa mesma frase Venezuela, Bolsonaro e corrupção eu entrei em desespero. Eu não sei quanto a vocês, mas eu não consigo não me afetar nessa hora. Até por que já concluo que se trata de um representante vivo da espécie "pato-verde-amarelo-primeiro-a-gente-tira-a-dilma" que não aprendeu nadinha com nossa tragédia dos últimos meses.

Ainda bem que ele não puxou assunto comigo, pois minha mente fértil já tinha resgatado as aulas de kung-fu com Mestre Santos e misturado aos ensinamentos de Tarantino em Kill Bill, a fim de criar uma fantasia onde eu aplicava o golpe dos cinco pontos que explode o coração, do mestre Pai Mei. Todavia, sendo eu uma mulher que crê na importância de se respeitar as leis e regras de convivência que sustentam a cultura humana, preferi recorrer ao Mestre Nietzsche e catar na bolsa meu fone de ouvido sem-fio (coisa maravilhosa, aliás) e ligar no modo aleatório do Spotify. Música sempre me salva! Coincidência ou não em poucos minutos Chico cantava lindamente em meus ouvidos:

Pai, afasta de mim esse cálice! ♪♫♬

Amém! - eu orei com Chico - Amém!

Rita Almeida
Você sabe que seu filho cresceu e você também, quando ele te faz uma pergunta importante e sua resposta é apenas um "não sei" sem nenhuma angústia.
A parte mais difícil de ser mãe, no meu entendimento, não é trocar fraldas ou perder noites de sono, não é a preocupação diária nem mesmo as broncas infindáveis. A parte mais difícil são as primeiras vezes que você se sente, realmente, desnecessária.

A mágica da maternidade está muito ligada ao tanto de narcicismo que ela nos proporciona: nos sentimos importantes ou até imprescindíveis para alguém. Sendo assim, deixar cair esse lugar é a parte mais dura nessa jornada - eu acho.

É em nome desse narcisismo que acreditamos que sempre sabemos tudo e o que é melhor para nossos filhos. É em nome desse narcisismo que os esperamos acordadas quando saem à noite, acreditando que nossa insônia teria o poder de protegê- los do mundo lá fora. É em nome desse narcisismo que teimamos em ser as magas na previsão do tempo e as bruxas das poções mágicas. E é duro admitir que não somos nada disso. É difícil a travessia de assumir que somos apenas mulheres comuns que escolheram doar uma parte de si para outro ser (o que já é incrível).

Mas muitas mulheres, uma vez que foram mães, não conseguem fazer essa travessia de volta ao feminino. Me perdoem as que enchem a boca pra dizer que os seus rebentos sempre serão os "filhinhos da mamãe", mas eu não pretendo repetir tal mantra. Chamam isso de amor incondicional, eu chamaria de aprisionamento ao narcicismo da maternidade. Narcisismo que aprisiona mães e filhos

Tenho dois filhos adultos (22 e 21) para os quais já me sinto bastante desnecessária. Com minha caçula (de 11 anos) estou tendo as primeiras experiências de queda de lugar, e, como das outras vezes, não tem sido fácil, mas pretendo seguir na mesma direção. Óbvio que eu nunca deixarei de ser a mãe deles e que vou ama-los por toda a vida, mas eu espero ser, um dia, uma mãe totalmente desnecessária; ser capaz ama-los para além do meu narcisimo. E espero, também, ter o amor deles ainda assim. Quem sabe tenho essa sorte?

Rita Almeida
Eu comprando casaco com Geovana, minha filha. Vou pegando, nos cabides da loja de departamento em que estamos, as várias opções possíveis e entregando a ela, que ali mesmo vai experimentando a fim de escolher. Num determinado momento ela diz em tom de desespero:

- Mãe, para! Para de me dar opções ok? Não dá pra escolher com tantas opções!

Percebi imediatamente o que minha filhota tinha compreendido do alto dos seus parcos onze anos: ampliar o leque de opções de escolha não ter a ver, necessariamente, com liberdade, ao contrário, pode vir acompanhado por uma limitação, uma impossibilidade angustiante.

Me lembrei, imediatamente, de um livro que li recentemente chamado: O Fim do Homem Soviético. Nele, a autora, Svetlana Aleksievitch, recolhe depoimentos de centenas de homens e mulheres que experienciaram o fim da União Soviética, com a passagem do regime comunista para o capitalista. O que mais me chamou a atenção nos depoimentos foi que, na maior parte deles, a promessa inicial de liberdade da Perestroika, foi vivida, num segundo momento, com frustração e angústia. A esmagadora maioria dos entrevistados se queixa que a liberdade que lhes foi dada com o capitalismo, não foi a que esperavam ou pela qual lutaram. O que eles esperavam como experiência de liberdade era uma ausência de medo, mas, o que tiveram, na verdade, foram apenas mais opções de mercadorias para consumirem. Um dos entrevistados de Svetlana faz um questionamento que ilustra bem isso, e que me pareceu o que minha filha marca com sua intervenção ao meu ato de entupi-la de opções. Ele pergunta: “Uma pessoa que escolhe numa loja entre cem variedades de salame é mais livre do que a pessoa que escolhe entre dez variedades?”

O livro todo de Svetlana é um primor. Recomendo muitíssimo! Porque nos faz refletir sobre o conceito de liberdade que está para nós, que nascemos e vivemos sob a cultura capitalista. Para usar os termos de Lacan, se no comando do discurso capitalista está o consumidor – é ele quem tem sempre razão – então temos que: nosso fetiche seja comprar; nossa relação privilegiada se dá com os objetos-mercadoria (mesmo que isso signifique transformar tudo, inclusive pessoas, em mercadorias); e nosso conceito de liberdade, portanto, tenha relação direta com a ampliação do acesso a tais mercadorias. Em última análise, liberdade para nós, é sinônimo de consumo e dinheiro.

E é isso, exatamente, que a maioria dos entrevistados de Svetlana denuncia, afinal, eles esperavam um outro tipo de liberdade, uma liberdade que tivesse mais relação com a cultura; com ideias e palavras. Entretanto, para o espanto e angústia de muitos, o que o capitalismo trouxe foi tão somente a ilusória liberdade para escolher mercadorias o que, no final das contas, apenas os aprisionou ao imperativo do consumo. Lendo todo o livro é possível entender o quanto o conceito de liberdade é subjetivo, e do quanto ele é, para nós, pervertido pela lógica capitalista. Mas, o mais chocante para mim foi perceber que democracia não tem, necessariamente, nenhuma relação direta com a liberdade. Badiou tem razão quando diz que a democracia que vemos hoje se tornou apenas uma mascarada, um semblante para o capitalismo contemporâneo. Nossa democracia se tornou apenas via de acesso a um maior número de possibilidades, lugares e subjetividades para serem consumidas, e que fazemos consumindo nossa possibilidade de vida. Fora do consumo não somos cidadãos, nessa democracia que inventamos.

Ao escrever este texto, quis muito, num primeiro momento, que minha criança pudesse lê-lo a ponto de compreender a importância da sua conclusão na loja de departamentos. Mas, depois percebi o tamanho da minha arrogância, afinal, ela já entendeu tudo. Ela entendeu o quanto liberdade é um conceito subjetivo, a ponto de saber que reduzir as opções de escolha pode significar se libertar da pressão de ter que escolher. Ela entendeu que o tempo que ela gasta consumindo é tempo precioso, tempo que lhe roubam de vida e daquilo que realmente importa. E, sobretudo, ela entendeu que minha função de mãe/educadora é sim, muitas vezes, poupá-la do insuportável que é não ter nenhuma referência, nenhuma limitação. Ela entendeu que limitar não é necessariamente impedir, ao contrário, pode ser também tornar possível, viabilizar, tornar suportável.

Há uma corrente de pensamento no campo da educação (formal ou não) muito em voga ultimamente, que acredita que tanto melhor é uma educação quanto maior for o número de possibilidades que ela abrir aos educandos. Trazendo o discurso capitalista para nossa reflexão, a educação funcionaria como uma espécie de prateleira de mercadorias onde o educando poderá, dentro de um número infinito de possibilidades, escolher o que quiser, incluindo sua própria categoria subjetiva. Seguindo esse raciocínio, quanto menos castradora uma educação mais satisfatória e rica ela seria. Quanto maior o número de possibilidades ofertadas, especialmente às crianças, melhor para elas.

Entretanto, curiosamente, diante de tantas opções, o que vemos são crianças cada vez mais dispersas, desatentas, distraídas e desinteressadas, muitas delas frequentando categorias psiquiátricas para nomear e medicalizar sua instabilidade emocional, sua falta de atenção e sua incapacidade para lidar com limites e frustrações. Limites que nós não damos e que esperamos que elas encontrem por si só, sem entender o quão trágico e angustiante isso pode ser para elas. Se continuarmos perseguindo tal ideal de não impor limites para nossas crianças, imaginando que isso seria sempre traumático, chegaremos a um teatro surreal onde elas nascerão e não as ensinaremos a falar nossa língua, afinal, elas poderão querer escolher uma outra língua, uma outra nacionalidade, uma outra cultura. A língua materna é um bom exemplo para o que eu estou tentando dizer: ela nos limita sim a um vocabulário e um modo de dizer específicos, mas também é ela que nos possibilita, inclusive, a aprender outra língua.
O grito de minha pequena: “Mãe, para! Para de me dar opções ok?” é o grito de muitas crianças como ela, pedindo desesperadamente que as ajudemos na sua difícil tarefa de apreender este mundo. Nesse sentido, impor limites ao que é ofertado às nossas crianças, reduzir o número de “mercadorias na prateleira” para elas, é sim, possibilitar que elas sejam capazes de escolher. A princípio, ter duas opções pode ser melhor do que ter vinte, já que vinte opções pode significar não conseguir escolher nada e mergulhar no caos e na angústia.

Mas o que eu queria mesmo dizer é que o ideal educativo de hoje, travestido de moderno, possibilitador e livre de traumas, pode ser apenas o imperativo capitalista atuando com toda a sua perversidade: Consuma! Não há limites para consumir! Que bom que tenho uma filha pra me lembrar disso, provavelmente por que ensinei a ela, meio sem saber que ensinei.

Ah! Quanto às compras dei a Geovana três opções de escolha de casaco, não ofereci outra loja pra ir, e disse a ela qual deles eu tinha gostado mais, dando a ela a possibilidade de acolher ou rejeitar a minha opinião. Ela aceitou minha opinião dessa vez, mas eu sei que é por pouco tempo (risos).

Rita Almeida
Tive a infelicidade, agora, de ver um pedaço do Fantástico (sem querer) pra ouvir um psiquiatra explicando o transtorno de personalidade borderline, a fim de justificar o porte de 130kg de entorpecente e fuzil por um branco de classe media alta, filho de desembargadora.

Segundo o psiquiatra o rapaz, com seu transtorno, seria alguém com dificuldades de tolerar a frustração e respeitar as regras e a lei.

Se fosse preto e pobre como é mesmo o nome que a gente usaria?

Bandido é o nome.
Minha meta de vida é não julgar ninguém por suas crenças e escolhas, mas algumas coisas, realmente, me fogem a compreensão. Por exemplo, o que faz uma pessoa pensar que a sobrevivência dela a um acidente de avião onde morreram todos os demais, incluindo amigos seus, foi um milagre? Ela acredita que Deus permitiu que todos morressem menos ela, porque se sente tipo um escolhido privilegiado? Alguém me ajuda a entender uma coisa dessas sem pensar que essa pessoa é alguém que precisa se achar a última bolacha do pacote ou que Deus é um sacana perverso?
(Não são perguntas retóricas, quero mesmo saber)

Rita Almeida
Eu tenho 3 filhos: 22, 20 e 10 anos. A respeito de todos eles sempre ouvi um comentário semelhante: "Nossa! Como seu filho ou filha é educado/a!" Eu realmente não sei se dizem a verdade ou se falam isso pra me agradar, mas suponho que seja verdade, porque poderiam escolher outro tipo de elogio e sempre fazem esse.

Nós (eu e o pai deles) não temos nenhuma receita para educar, cometemos muitos erros, nos sentimos culpados inúmeras vezes, e em muitas outras nos apoiávamos um no outro apenas para tomarmos juntos uma decisão, mesmo que isso significasse fazer uma burrada juntos. E fizemos muitas - eu sei - mas acho que acertamos em muitas outras.

Tentamos não ser moralistas para educá-los. Respeitar a lei e as regras de convívio social é importante, mas a moral pode ser relativizada, discutida e questionada. Sempre.

Também tentamos não fazer uso de nenhum tipo de medo externo (de Deus, do inferno, da polícia, no "velho do saco"). Se eles tivessem que ter medo que tivessem de nós: pai e mãe. E metemos medo, sim, se for preciso.

Mas tem uma coisinha que acho que foi a mais fundamental e que nunca tivemos pudor de usar. Uma palavrinha curta, simples mas importantíssima:

NÃO

Educar pressupõe dizer não muitas vezes, muito mais vezes que gostaríamos de dizer. Quem não sabe dizer não para uma criança não será capaz de educá-la.

Rita Almeida

Flamengo, meu amor!


Tenho aversão a fanatismos de qualquer espécie, “prefiro ser essa metamorfose ambulante” em quase tudo. Flamengo é o nome do fanatismo que eu me autorizo. Flamenguista é, talvez, a única coisa que eu estou certa de ser até morrer, sobre todo o resto estou em aberto. A identidade de ter um time de futebol é algo tão fundamental pra mim que acho estranho quem diz que não torce pra time nenhum. Imagino que deva ser um vazio imenso. Como assim, nenhum time de futebol pra chamar de seu? E no meu vocabulário não tem essa de trocar de time. Aliás, existem dois tipos de pessoa que eu olho com desconfiança: as que não gostam de gatos e as que são capazes de trocar de time. Pode até ser preconceito de minha parte, mas acho que quem é capaz de mudar de time é capaz de qualquer coisa.

Eu sou flamenguista de berço – herança paterna que eu não reneguei – mas aprendi a amar o Flamengo, de fato, em 1981, aos 12 anos de idade, numa época em que era extremamente fácil se apaixonar pelo time rubro-negro. A geração de 1980 a 1983 foi a mais vitoriosa do clube e das coisas mais sensacionais que o futebol brasileiro já viu. Assim, tive o privilégio de me apaixonar por futebol ao mesmo tempo em que me apaixonei por aquele Flamengo, tão belo quanto vitorioso.

A fim de reverenciar aquele elenco dos sonhos, eu poderia falar de Zico – sem duvida o maior craque rubro-negro de todos os tempos – eu poderia falar de Adílio, de Tita, de Júnior, mas vou falar daquele que plantou definitivamente meu coração no Flamengo. Vou falar de João Batista Nunes de Oliveira – o Nunes. Nunes foi o segundo homem que fez meu coração bater mais forte nessa vida. O primeiro foi Herivelton, que não era exatamente um homem, mas um garoto da escola, por quem fui apaixonada. Ele nunca soube disso, eu acho. Bastava Herivelton me pedir a borracha emprestada para eu quase botar o coração pela boca. Nessa época, sem Facebook ou WhatsApp, a gente mandava indiretas amorosas emprestando ou pedindo a borracha emprestada.

Mas voltando a falar de Nunes, foi ele quem me ensinou a amar futebol e o Flamengo. Aqueles cabelos encaracolados e balançantes, a precisão oportunista na hora de fazer o gol e aquele shortinho curto para homens que só os anos 80 conheceram, foi o que de mais sexy minha mente de garota de 12 anos pôde alcançar. Nunes era para mim o homem mais lindo do mundo, depois de Herivelton, é claro! E eu guardei na memória o lance em que o jogador me arrebatou e entregou meu coração de vez ao Flamengo e ao futebol.

Lógico que eu já estava enamorada pelo time assistindo com meu pai a campanha do Flamengo naqueles anos de 1980 e 81, mas teve o momento exato onde o arrebatamento aconteceu, e eu me lembro como se fosse hoje: Era a final do Campeonato Mundial Interclubes contra o Liverpool, Nunes recebe um lançamento preciso de Zico pela meia direita (daqueles que Zico sabia fazer como ninguém) e sai em velocidade com a bola, acertando o canto esquerdo do gol adversário. Eu nunca mais esqueci aquele gol. Não sei se gritei, se comemorei, só me lembro de estar na sala da nossa casa na época, e de um arrepio que invadiu todo o meu corpo. Naquele momento, entendi a mágica do futebol e o tipo de emoção que ele poderia me dar. Naquela fração de segundos eu entendi a beleza que era torcer pelo Flamengo.

Só digo que o que eu senti foi amor sim! Amor de puro encantamento. Amor para a eternidade. Amor fanático e cego pelo manto rubro-negro. Amor pela emoção de celebrar o gol do time que faz meu coração bater mais (des)compassado que o normal. E, sobretudo, amor pelo futebol; esse esporte lindo, mágico e encantador. Amor devotado pelos que sabem dominar a bola com os pés, mas que apenas os melhores sabem como fazer isso usando a cabeça. Ah, os inteligentes com a bola nos pés! Esses eu reverencio com minha alma.

Pra finalizar deixo aqui toda minha gratidão e uma declaração apaixonada a Nunes, meu primeiro e inesquecível amor em campo.

Vida longa ao futebol!

Flamengo, meu amor!

Rita Almeida
Orientação espacial nunca foi meu forte. Sou capaz de me perder no supermercado, entre a sessão de material de limpeza e a de bebidas; é constrangedor. Minha sorte é ter o sol em peixes pra poder botar a culpa no signo. Ter que assumir sozinha minha incapacidade para saber “de onde vim e para onde vou”, não sendo essa uma questão filosófica, seria muito frustrante.

Eu sempre achei que isso iria melhorar com a idade, que fosse algum tipo de imaturidade ou inabilidade que ao longo da vida pudesse ser treinável, mas ao contrário, a coisa vem piorando. Por outro lado, a maturidade, se não ajudou a me orientar melhor, me ajudou a não ficar tão incomodada com essa minha deficiência, afinal, ela rendeu alguns atrasos e enganos, mas, por outro lado, muitos caminhos novos e histórias pra contar.
O mais engraçado é que meu companheiro de viagem (que por convenção chamo de marido) também não é lá muito bom nesse quesito. Já nos perdemos muito em 26 anos de estrada juntos; eu, por ter um universo mental povoado e intenso demais, e ele, por necessidade de falar e socializar. E não houve tecnologia que nos livrasse de tal sintoma.

Na nossa “lua-de-mel”, pra vocês entenderem, decidimos sair “sem rumo” na Brasília 76 dele. Com pouco dinheiro e muito amor, o “sem rumo”, no nosso caso, foi levado ao pé da letra. Quase chegamos em Visconde de Mauá tentando ir a São Tomé das Letras e passamos uma tarde em Baependi acreditando estar em Caxambu. Se essa coisa desorientada transmitir por genes, nossos filhos estão ferrados, coitados. E vocês acreditam que até hoje ele espera que eu o ajude a se orientar numa viagem? Aconteceu agora, de novo. Me comove isso! É quando tenho certeza que ele me ama. Esperar o melhor de alguém no seu quesito mais débil – se isso não é amor eu não sei o que pode ser.

O fato é que nunca superamos esse problema comum. Volta e meia erramos um caminho. Aconteceu agora, de novo. Tô escrevendo esse texto por isso. Mas, apesar de não termos superado a nossa tendência para perder o rumo, paramos de culpar ou ficar bravos um com o outro quando acontece. A gente ri e inventa outro roteiro. Aconteceu agora, de novo.

Eu disse a ele que temo pela nossa velhice juntos, se assim acontecer. Mas, em seguida achei bobagem minha. Vai ser como sempre foi: vamos sempre poder escolher se ainda queremos nos perder juntos ou não, se é que vocês me entendem.

Rita Almeida

Das contingências

Eu e uma amiga, numa mesa de bar na calçada, abordadas por uma senhorinha sorridente, que diz ter nos achado lindas. Perguntou se éramos irmãs, deixou um abraço pras nossas mães e, antes de seguir seu caminho, pediu que Deus nos abençoasse. Espontaneidade, delicadeza e alguns poucos minutos, que interromperam nossa conversa, roubaram nosso sorriso e algumas palavras de gratidão.

A tal senhorinha não saiu da minha cabeça por dias, e nem entendi muito o porquê, a princípio. Só depois... É que ela me fez pensar o quanto eu amo o acaso. Tenho fé profunda naquilo que me surpreende.

Hoje, me agarro a muito poucas crenças, fui perdendo quase todas ao longo da vida. A crença é algo que nos orienta, é verdade, mas que, por outro lado, nos prende a uma verdade, assim, optei por abrir mão de quase todas. Tenho uma para conseguir levantar da cama pela manhã e tomar meu primeiro café, e algumas poucas que não me deixam desistir no meio do dia. Já pra dormir, eu não costumo usar nenhuma crença, só o cansaço, isso quando a angústia não chega primeiro.

A tal senhorinha me fez lembrar que eu creio, sobretudo, na sinceridade e espontaneidade do acaso, pois só o acaso pode ser totalmente autêntico; descolado de qualquer protocolo, arranjo, sintoma ou repetição. E quando ele vem acompanhado de beleza e delicadeza, é das coisas que, realmente, vale a pena acreditar. Eu só me levanto pela manhã porque creio que, naquele dia, o acaso vai me presentear com sua sinceridade espontânea. Creio profundamente nas contingências da vida, num evento inesperado que interromperá minha agenda, interceptará meu caminho e me fará sair da rotina ou olhar em outra direção.

Minha oração diária tem sido: Vamos lá vida! Me surpreenda! Mas vem com beleza e delicadeza, sua linda! É que eu sou frágil.

Rita Almeida
Entro eu na academia hoje cedo a fim de cumprir a árdua tarefa de lutar contra a lei da gravidade, excessivamente cruel pras mulheres com mais de 40, e Ludmilla já está lá, tocando no volume máximo:

"Cheguei! Cheguei chegando, bagunçando a zorra toda ♫♪♬"

Eu geralmente não curto muito as músicas que tocam em academia, mas a batida de Ludmila nesta manhã combinou com meu humor ("e que se dane, eu quero mais é que se exploda♪♫♬") e já me deu vontade de ir pra frente do espelho balançar a “raba” até o chão ("porque ninguém vai estragar meu diaaaa♪♫♬").

Eu tiro onda de cult e sofisticada quando o assunto é música, mas admito que minha bunda se agrada de qualquer batida que lhe faça sacolejar. Com o samba eu posso manter o rebolado num padrão elegante, mas a verdade é que este também adere fácil ao populacho: pagode, funk e até música baiana. Meu passado é temerário ao som de É o Tchan, confesso. Me julguem!

Por vezes, eu sofro quando minha bunda não acompanha minha onda de intelectual (daqui a pouco estarei atracada com Derrida), sinto culpa e constrangimento, mas fazer o quê? Ela tem vontade própria. Freud já avisava que nosso eu não é capaz de comandar totalmente nossos pensamentos e atitudes, eu acrescentaria: nem a nossa bunda. Quem sabe na Europa isso seja mais possível, mas não no Brasil.

E Ludmilla continua: "se não gosta, senta e chora. hoje eu tô a fim de incomodar♪♫♬" Como resistir?

Aliás, acho tosca essa separação que fizeram da consciência e a bunda, da alma e a bunda, da razão e a bunda, da filosofia e a bunda. Dizem que separar a alma da bunda foi coisa do cristianismo e que, quem cindiu a consciência da bunda foi Platão. Sei lá! Só acho que é dualidade demais pra ter que lidar, a vida já é difícil, porra! Respeito Freud porque ele tentou dizer que a bunda tinha a ver com tudo isso aí, e que, aliás, ela tá mais no comando do que a gente poderia imaginar. Mas tem gente que não entendeu isso até hoje, e acha que a bunda pode ficar descolada do nosso cotidiano. Lamento por esses.

Eu tenho seguido no esforço de não reprimir ou desprezar as dicas da minha “raba”, entendi que ela tem sua sabedoria e uma forma própria de comunicação com o Universo. Quando estou feliz e quero festejar, ofereço meu rebolado como gratidão. Mas quando bate a angústia, a tristeza e aflição eu me entrego a um quadradinho ("pode me olhar, apaga a luz e aumenta o som♪♫♬"), um requebrado, um remelexo, e tudo fica mais leve, mais fácil.

O rebolado é a Inteligência da bunda, eu diria, inteligência que podemos usar a nosso favor, afinal, há de se ter muito rebolado pra levar essa vida, né não? ("se não gosta, senta e chora. mas saí de casa pra causar♪♫♬"). Ou as vezes, o único jeito mesmo é "quebrar tudo".

Obrigada, Ludmilla!

Eh nois!

Rita Almeida
Só passei pra avisar que minha máquina de lavar que estava totalmente surtada (não sabia exatamente a hora de lavar, enxaguar e torcer, eu precisava programar tudo manualmente), voltou a se orientar de novo milagrosamente. Ela acabou de me agradecer por ter dado esse tempo pra ela, de não ter desistido e comprado outra máquina. Disse que já se apegou à família e à nossa rotina de quarta, sexta e sábado. Eu também agradeci a ela por ter voltado, por cuidar da nossa roupa por esses anos todos e por ter evitado que eu gastasse uma grana que não tenho agora.

Por estar um tempo "ausente" ela me perguntou das novidades e acabamos caindo no tema da política. Ela, bem humorada, me perguntou qual parte do áudio do Jucá nós estávamos e se o Aécio já tinha sido comido. Falei que o Aécio tinha sido comido sim, mas que, por algum motivo, tinha sido regurgitado. Acho que ela não entendeu bem o sentido do "regurgitado" porque disse:

- Eu entendo. Intragável aquele um. Se caísse aqui na minha cesta de lavagem eu o cuspiria fora também.

Rimos muito. Eu achei melhor deixar assim e não explicar a ela que "regurgitado" tinha o sentido de: "passaram o pano" na sujeira do fulano e fingiram que nada aconteceu. Vai que ela surta de novo! Eu amo aquela máquina!

Enfim...todo mundo merece ser poupado de muita realidade quando o tema é nossa situação política atual e nada melhor que tempo e paciência pra curar uma loucura passageira ne?

Rita Almeida

Relatos Selvagens na agência bancária


Se tem um lugar que não tem nada a ver comigo é agência bancária. Só frequento porque o capitalismo me exige. Tipo de lugar que eu já entro querendo sair. Tudo me irrita ali, especialmente aquela porta giratória que continua travando mesmo que você se sinta nua. Sempre visto minha pior cara pro guarda que libera a trava da porta, pra ver se ele sente medo e me deixa passar sem que eu precise arrancar até da restauração do dente, mas desconfio que isso provoque o efeito inverso. Sabe aquele fetiche de sacar dinheiro no caixa eletrônico? Não tenho. Minha alma é socialista nível hippie/morador de rua por opção. Por mim, ainda estaríamos fazendo escambo. Eu bem sei que teria dificuldades com isso: “Vem cá que eu escuto 30 minutos da sua história de amor por um pacote de arroz e dois de feijão.” “Toma aqui uma poesia fresquinha e me dá duas pizzas; uma marguerita e uma portuguesa.” Mas meu coração diz que seria lindo.

Então eu já entrei no banco naquele dia com meu pior humor; humor de agência bancária. E no nível master, porque precisaria ultrapassar a maldita porta giratória. Antes, fui pegar minha senha. A fila da senha é a fila pra não ficar na fila, ou pra te fazerem acreditar que você não vai ficar na fila, mas a verdade é que você vai. Naquela espera já me irritei um pouco mais ao lembrar que o governo anistiou dívidas bilionárias do Itaú, Santander e do Bradesco, e se recusou a reajustar o Bolsa Família alegando falta de recurso. E tem gente com dó de vidraça de banco em manifestação. Aff! Meu humor bateu lá no sarcasmo.

Minha vez na fila da senha. Expliquei pra mocinha que precisaria fazer uma transferência de valores pra outro banco, já que não estava conseguindo fazê-la no caixa eletrônico, como me foi prometido quando me obrigaram a trocar de banco a fim de receber meu pagamento. Eu já odiava ter um banco e estava condenada a lidar com dois. Malditos! Pensei. A mocinha, muito simpática, me deu o papelzinho com o número e me orientou para onde deveria me dirigir.

Passei pelo vestibular da porta giratória com êxito e me sentei no local indicado. Ainda bem que existe smartphone e redes sociais (aliás, só isso me impede de assumir completamente minha alma hippie). Me entreti com os memes até chegar minha vez, uns 30 minutos depois. Expliquei minha dificuldade para o rapaz que soltou um “sinto muito” para dizer que só o “meu gerente” poderia resolver meu problema. Que eu poderia pegar a senha do caixa para fazer a tal transferência e esperar o “meu gerente” voltar do almoço para resolver o restante com ele. No mesmo segundo infinitesimal em que achei o fim da picada ter um gerente de banco pra chamar de meu – tá aí uma coisa que eu dispenso totalmente – o sangue subiu. Me levantei da cadeira e soquei na mesa do atendente a bolsa que estava no meu colo. Diante das categorias, luta ou fuga, escolhi a luta.
O problema de ser metida a intelectual é que até pra fazer um barraco a gente faz citação. Perguntei, então, ao atendente:

- Você assistiu Relatos Selvagens?

Ele não respondeu. É possível que não tenha assistido o filme, mas, com certeza, já assistiu os indícios de uma mulher prestes a enlouquecer. Eu sentia meu sangue queimando os olhos. Encarei-o, aproximando meu rosto em direção a ele e continuei na toada do filme:

- Pois eu estou com o humor da noiva que descobriu a traição na noite do casamento e a disposição do engenheiro “bombinha” pra explodir essa porra toda. Ou você resolve isso pra mim agora ou vamos ter problema.

Ele não teve outra opção. Disse a senha: “vou-ver-o-que-posso-fazer” e saiu com o rabo entre as pernas. Voltou em alguns minutos com outro homem que se apresentou como o “meu gerente” - ao que parece, este voltou do almoço milagrosamente. Pensei em fazer um discurso filosófico/analítico pra dizer que àquela altura da vida não precisava de nenhum gerente, já que me interessava mais o inesperado, as contingências e surpresas da vida, mas decidi me calar e resolver logo o problema que me faria ir embora daquele lugar. “Meu gerente” me convidou, delicadamente, para outra mesa e fez tudo que eu precisava, me ofereceu até café – que eu nunca rejeito.

Confesso que, naquele dia, saí da agência bancária mais satisfeita do que entrei. Pensei que devia ter aproveitado minha ira pra gritar a plenos pulmões:

-Malditos capitalistas financeiros devoradores de gente e humanidade!!

Mas logo percebi que estes não estariam ali para ouvir. Na agência, tanto na categoria clientes quanto na de empregados, só havia trabalhadores como eu. Tive pena do rapaz que teve que se haver com meu barraco à luz de Relatos Selvagens. Da próxima vez me desculpo e faço a indicação educada do filme.

Rita Almeida

Por que as mulheres de silicone são as ideais para os homens que temem as mulheres? Ou sobre os desencontros do amor romântico nos nossos tempos

“Japoneses perdem esposas e encontram o amor em bonecas de silicone. Elas vêm com cabeça e vagina desmontáveis.” Esta manchete de uma matéria publicada no G1 ontem, 01 de julho, emenda bem com outra do El País, do último dia 20, que também trata da realidade das relações afetivas no Japão. Esta última afirma que, mesmo os jovens, evitam contato físico e preferem os relacionamentos virtuais ou com máquinas. Fala-se de uma geração que não sabe se relacionar afetivamente. Tais publicações me lembraram ainda, um documentário que assisti há algum tempo, também sobre a sociedade japonesa, chamado: O império dos sem sexo – o nome já diz muito por si mesmo.

Entretanto, penso eu, isso que se apresenta para os japoneses numa dimensão de radicalidade, é uma realidade muito presente também no ocidente atual; um crescente desencontro das relações afetivas. Se em algum momento do passado homens e mulheres tinham suas posições e funções claramente definidas e os homossexuais estavam condenados a viver nas sombras ou “dentro do armário”, tais desencontros não eram tão evidentes. Numa relação de poder totalmente demarcada pelo domínio dos homens, os mal-estares eram mais “silenciosos”, já que suportados em submissão por mulheres e homossexuais, obviamente.

Mas a chamada revolução sexual garantiu a desestabilização do poderio masculino, tanto fazendo com que as posições e funções vinculadas aos gêneros se relativizassem, quanto garantindo que mulheres e homossexuais não se mantivessem mais tão calados diante do mal-estar das relações. E se, como diria Freud, o mal-estar é elemento intrínseco e inevitável ao laço, o que aconteceu é que tal mal-estar transbordou e, hoje, aparece escancarado e atinge a todos. Assim sendo, tal desencontro comparece tanto nas relações hetero quanto nas homossexuais. Entretanto, talvez possamos dizer que nas relações heterossexuais este mal-estar se aprofunda na medida em que o sujeito “escolhe” se relacionar com o outro sexo, o diferente, e não com o semelhante.

Vejamos então que, especialmente no campo das relações heterossexuais, uma coisa se mantem e comparece nas matérias e no documentário citado: muitos homens ainda esperam por mulheres mortificadas, que não os ameace, que não os castre em sua posição de poder. Isso faz das bonecas de silicone as mulheres ideais, em especial para os homens que temem o poderio e o desejo femininos. Mulheres de plástico não demandam, não se queixam, não enlouquecem, não falam, não gozam e estão sempre disponíveis, ou seja, ocupam sem constrangimento ou incômodo a posição de objeto para eles. O fato de uma das matérias destacar, já no título, que nas bonecas do amor a cabeça e vagina são desmontáveis, diz muito sobre o tipo de mulher que esses homens procuram. A mulher ideal para o homem que se sente fragilizado diante do outro sexo é aquela que só comparece quando ele assim o desejar e do modo que ele desejar, aquela que é capaz de separar a cabeça ou o corpo da própria vagina.

Por outro lado, as mulheres reais de hoje em dia, em geral, não aceitam mais renunciar ao próprio desejo. Como resultado, temos homens infantilizados ou fóbicos para o afeto. Com muita prevalência, quanto mais nós mulheres colocamos em jogo nosso próprio desejo, mais os homens se sentem ameaçados e recuam, sendo possível numa situação extrema como na do Japão, se sentirem muito mais à vontade com mulheres de plástico. Mas afinal, como sair desse impasse sem perder nossa disposição para o romance?

Penso que a via de escape só pode acontecer pela construção conjunta e pela disposição para o encontro vindo dos dois lados. Obviamente que era muito mais fácil para o sustento de uma relação quando as mulheres se dispunham a renunciarem ao próprio desejo. Eu disse melhor para a relação, mas não para as mulheres, é claro. Hoje, com homens e mulheres numa relação de poder mais horizontalizada e com papéis e atribuições não tão definidos, há de se dedicar esforço e investimento muito maiores para que um relativo equilíbrio se estabeleça. E trata-se de uma construção diária e contínua, por vezes dispendiosa e cansativa. Mas, se não queremos apelar para a recusa do sexual, tal como tem acontecido com os japoneses num nível extremo, ou recuar dos avanços que o movimento feminista trouxe para as mulheres, como defendem alguns movimentos religiosos e/ou políticos reacionários, temos que continuar no esforço dessa construção cotidiana, que cada par fará a seu próprio modo e a cada vez.

Primeiramente, suponho que seja necessário que o casal se desarme; os dois. Talvez hoje, mais do que nunca, o verbo amar só se conjugue para os que estão desarmados. Nós mulheres sempre estivemos mais dispostas para assumir uma posição desarmada, mas agora os homens também estão sendo convidados a isso. A boa notícia é que, se o feminismo produziu, juntamente com mulheres desejantes e vívidas, homens inseguros e fóbicos para a relação, também produziu outros, especialmente os da nova geração, que entenderam que se desarmar, se livrar da necessidade de controlar e ter poder, pode ser um alívio e não uma perda. Os homens que estão se dispondo a aprender com o movimento desejante das mulheres (e eles existem sim garotas!) são homens mais leves, mais abertos, mais flexíveis e, portanto, mais livres. Percebo uma geração de homens que já chegou num mundo de mulheres ativas e atuantes, e que não se sentem perdendo ou competindo com elas, mas em parceria, construindo junto.

Nesse sentido, no meu entender, não cabe às mulheres se armarem do lado de cá. Trocar de posição com o homem não resolve a questão e não nos fará mais libertas, ao contrário. Se o feminismo pôde nos ensinar uma coisa foi que se fixar em um papel e uma posição de poder cristalizada não é interessante pra ninguém. O lugar da vítima pode ser tão aprisionador quanto o do algoz, ainda que este último, a princípio, sofra menos.
Voltando às bonecas de silicone é lamentável que o desencontro entre os sexos, que será sempre irreparável (não existe a metade da sua laranja), tenha chegado ao ponto de inventarmos um amor de prótese. Imaginamos que esse seria um último recurso para os solitários que não tiveram outra opção, tal como o personagem de Tom Hanks, no filme Naufrago, ao criar Wilson a partir de uma bola de voleibol.

Por fim, é isso: o mal-estar é inerente às nossas tentativas de laço amoroso, seja de que natureza for. Por outro lado, sem ele, a maioria de nós se sente manco, triste e solitário, as bonecas japonesas estão aí para provar isso. E como diria minha xará Rita Lee: “ai de mim que sou romântica”, então, ainda sou partidária por sofrer de amor se a outra opção é amar um ser de plástico ou mortificado no seu desejo.

Amém!

Rita Almeida
Não me cobre sensatez
Não me cobre coerência
Não sou capaz de encontrar algo do tipo
Nem mesmo em frente ao espelho

Minha sobrancelha direita
Nunca combina com a esquerda
E sempre tenho mais sinais no rosto do que gostaria

Não espere que eu creia na organização do mundo
E nas estátuas erigidas em homenagens póstumas
Se meu corpo é recortado pelo desejo
Quebrado, mal-dito

Não espere de mim complacência
Quando você supõe que eu siga a estabilidade das leis
Se meus hormônios não obedecem a lei alguma
Eu sempre me pareço mais com meu avesso
Mora em mim uma santa e uma louca

Não pense que é fácil lidar com esse caos
Encontrar a maquiagem no tom exato
E um corte de cabelo que funde um mínimo de amor próprio

Não cobre perfeição de quem já nasceu inexata
Não queira que eu mate a estranha que mora em mim
Você não me suportaria sem ela

Rita Almeida
Sobre aquele dia que tudo dá errado

Você acorda atrasada
Enfia a roupa do avesso
E se veste com os piores pensamentos

Derruba café na mesa
Quebra a xícara
E se corta recolhendo os cacos

Guarda memórias importantes no congelador
Sai de casa sem ter certeza se colocou comida pro cachorro

Toma o ônibus errado
Escolhe o humor errado
Manda mensagem errada pra pessoa errada
Tropeça três vezes no ego
Até pisar em sensações desnecessárias
Depois se atrapalha limpando o sapato
E percebe que calça meias de pares diferentes

Decide chorar debaixo dos óculos escuros
Borra todo o delineador
E ao tentar limpar o estrago
Deixa cair o espelho da bolsa, que se espatifa
Mas sente que sete anos de azar não podem ser tão ruins quanto aquele dia

Pra acabar, você esbarra com um conhecido estranho que lhe faz aquela pergunta clássica:
- Oi!! Tudo bem?
E se sente mal com a cara de tacho que ele te olha, por não entender sua resposta:
- Vou indo...e como diria Chico: "To me guardando pra quando o Carnaval chegar"

Rita Almeida
Amor não cabe num substantivo
Amor é verbo
Intransigente
Algumas histórias só podem ser contadas depois de um tempo...

Certa vez, se instalou numa pequena garagem em frente a minha casa uma Igreja Evangélica, dessas cujo Deus parece ser surdo. Os cultos eram praticamente diários e triplicavam no fim de semana, e o som insuportavelmente ruim e muito, muito alto. Eles tinham uma banda inteira com bateria, guitarra e tudo.
Inicialmente tentamos nos adaptar à nova vizinhança mas foi realmente impossível. Quem me conhece sabe do meu nível de tolerância e de cuidado para não descambar pelo preconceito, mas, apesar do meu esforço, em poucas semanas, a situação ficou insustentável.
Meu marido, que também é um cara extremamente tranquilo e sociável, tentou, tal como eu tentei, todas as conversas possíveis com o Pastor. Até ameaçou fazer amizade com o dito pra ver se ele baixava o som, mas nenhuma medida diplomática adiantou.
Em seguida, partimos para as medidas legais. Acionamos a prefeitura, que veio medir os decibéis do som e notificou o estabelecimento, orientando-os a baixa-lo, mas isso também não fez nenhum efeito. Enquanto eles buscavam o céu com aquela gritaria, nós vivíamos num inferno.
Foram meses a fio naquele tormento diário e sem solução, até que, certa vez, numa tarde de sábado meu marido perdeu de vez a paciência. Ele tentava mais uma vez dormir, depois de ter passado a noite de plantão trabalhando. Eu estava na cozinha, ouvindo Black Sabath nos fones de ouvido pra não ouvir a pregação em línguas do Pastor, quando ele entrou transtornado, aos gritos:
- Hoje eu resolvo essa porra! Vou sair e vou comprar um revólver!
Imediatamente já imaginei a tragédia inteira, incluindo eu, pelada, agachando 3 vezes na fila da cadeia para visitá-lo aos domingos. Botei meu corpo na frente para impedir que ele saísse daquele jeito e disse:
- Revolver não! Vamos pensar em outra coisa! Mas, revólver não!
Ele então emendou:
- Então eu vou comprar um som. Um som maior e mais potente que o deles.
Eu, mais aliviada aceito a proposta
- Isso! Vai lá! Pode gastar todas as nossas economias, fazer 48 prestações, mas compra o maior som que você encontrar.
Ele, então, sai enfurecido de carro. Eu ainda tinha medo que ele voltasse com uma arma em punho, mas umas 3h depois ele voltou com um som imenso já instalado no carro. Suponho que ele deva ter ameaçado alguém pra conseguir o feito com tamanha rapidez. Eu nem perguntei o preço daquela gerigonça azul que ocupava todo o porta-malas. Sim... azul.
No sábado eram dois cultos, um à tarde e outro à noite, portanto, ainda tivemos a oportunidade de botar em prática nosso plano naquele mesmo dia. Meu marido pediu ao meu filho:
- Marcelinho, me da aí um pen-drive de funk. Mas quero aqueles que falam bastante palavrão.
Olha! Vou dizer pra vocês! Tarantino tem razão: a vingança é mesmo algo muito prazeroso e poderoso. Foi uma noite de sábado maravilhosa em família. As janelas da minha casa pulavam que pareciam que iam estourar. Eu já gostava de funk pra dançar mas, depois daquela noite eu passei a respeitar o proibidão com toda minha alma.
E foi assim que se seguiram as semanas seguintes. Eles ligavam o som de lá e nós ligávamos o de cá. Fizemos isso até que eles entenderam o recado e baixaram o som, então nós suspendemos o nosso.
Meses depois, para nossa alegria, a Igreja se mudou. Soubemos que foi despejada por não pagar o aluguel. Nunca fiquei tão feliz vendo um caminhão de mudança ser enchido.
Lembrei dessa história porque esta semana vendemos o som azul. As lições que tiramos dela foram:
1. A música pode ser tão potente quanto uma arma, e com a vantagem de não infringir a lei e
nem causar uma tragédia.
2. Funk proibidão sim!
Rita Almeida

domingo, 18 de junho de 2017

Os escândalos de corrupção e suas máscaras ou Por um feminismo que não se preste a reerguer o que está apodrecido

Por favor, amigas! Não me façam compartilhar a capa da Revista Época só porque desta vez ela publicou uma notícia que eu gostei. Pra mim esse tipo de jornalismo continua sendo lixo. Está no mesmo nível daquelas revistas que ficam dando spoiler das novelas. Esta repetição e sobreposição de denúncias, áudios, vídeos, delações e coisas do tipo, só servem para causar escândalo e nos paralisar.
Era pra ser só um post para o facebook sobre a capa da Revista Época desta semana, mas acabou virando textão...

Os escândalos de corrupção e suas máscaras ou
Por um feminismo que não se preste a reerguer o que está apodrecido

Li há poucos dias o livro: Em busca do real perdido, de Alain Badiou, que, aliás, eu recomendo muito. O autor discorre sobre a função do escândalo na atualidade – quase sempre de corrupção – que seria o de revelar à opinião pública um pedacinho do real que nos assola, mas apenas para mascará-lo. É importante, primeiramente, entender que o conceito de real do qual o autor se vale é o real lacaniano. O real como aquilo que aparece em queda do simbólico e que também nos põe em queda, ou seja, o real como aquilo que nos atravessa de modo a desmontar o semblante ou a máscara que nos organiza coletivamente. Assim sendo, só se acessa o real por meio da percepção sensível, das emoções, do espanto ou da angústia. O real sempre impacta nossos afetos.

Dito isso, Badiou traz no livro a ideia de que o escândalo tem a função de mobilizar nossos afetos, trazendo a cena um fragmento de real. No caso dos escândalos de corrupção, a função seria tratar esta última como se fosse uma exceção e não a regra. Badiou defende que tal teatralização do real nos noticiários funciona, portanto, como denegação do mesmo real. É um petisco que se dá a opinião pública para escandalizar, mas que serve apenas para nos colocar submissos àquilo que no fundo é a lei do mundo: a onipresença da corrupção. O que este fragmento de real exposto pela via do escândalo quer encobrir é que a corrupção nos nossos tempos é a regra; num mundo que transformou o capital no seu Deus, e que, portanto, determinou que todos têm seu preço.

Mas Badiou vai mais além. Ele afirma que a profusão de escândalos serve também para capturar a democracia em favor do discurso capitalista, ou seja, a forma de democracia que experimentamos hoje serve apenas como uma máscara agradável para encobrir o real nu e perverso do capitalismo globalizado. Suas palavras exatas são: “O semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara”. Badiou que perdoe a minha metáfora porca, mas é como se a democracia atual servisse apenas para nos dar esse recado: “Tá uma bosta sim! A maioria tá ferrada em detrimento do sucesso de alguns, afinal, vale se salvar explorando o outro, o Planeta tá nas últimas, mas pelo menos você tá sabendo de tudo e participando de tudo. Disso não pode reclamar, ne?”

No Brasil atual experimentamos claramente esta democracia de fachada, que nos convida a participar apenas como meros expectadores ou debatedores nas redes sociais, tal como fazem os fãs de séries de TV. Às vezes somos colocados, no máximo, como coadjuvantes, mobilizados em grandes movimentos de rua, que se transformam, sobretudo, em novos espetáculos, fotografados, televisionados e transmitidos nas redes, mas que, no final das contas, parecem servir apenas como uma espécie de catarse coletiva ou expiação de culpa por nossa real apatia e imobilidade. São movimentos que parecem apenas nos dar uma falsa noção de que estamos exercendo a democracia, quando o comando, de fato, acontece nos bastidores dos poderosos, sustentado por um cinismo compartilhado por todos. Lembrando que quem tem realmente o poder na nossa sociedade são os endinheirados e não, necessariamente, os governantes. No Brasil tal verdade ficou escancarada nos últimos meses, governantes e políticos são apenas marionetes nas mãos das grandes corporações. A democracia comandada pelo capital é uma farsa.

Eu não sei como faremos para nos tornarmos atores do nosso tempo ou como conseguiremos radicalizar a experiência da democracia, a fim de retira-la desta farsa que se tornou. Por hora, tenho, pelo menos, tentando sair da anestesia que essa sobreposição de escândalos vinha me provocando. Pois, não se iludam! Quanto mais tal encenação se presta a “revelar” corrupções tanto a esquerda quanto à direita, mais ela serve para encobrir a perversidade que o capitalismo globalizado nos fez mergulhar. Escândalos que ora agradam a uns e ora agradam a outros, são escândalos que agradam a todos, e que, no final das contas, só se prestam a nos manter passivos e imóveis.

A questão enfim é: o que fazer com este real que se revela, mas velado por essa máscara palatável travestida de democracia? Talvez desnudá-lo e escancará-lo seja a primeira medida, não se iludindo com as farsas produzidas, especialmente pela imprensa, mesmo quando a farsa nos agrada. A segunda medida demanda ação, mas, sinceramente, tenho me tornado cética com relação àquelas que temos produzido em grandes massas: passeatas, comícios, eventos de rua. Posso estar enganada, e espero sinceramente que eu esteja, mas me parecem apenas encenação, parte de um roteiro já estabelecido.

Eu não sei por que me veio em mente agora a heroína Lisbeth Salander da trilogia Millenium, escrita por Stieg Larsson e retratada em filme pelo diretor Niels Arden Oplev. Lisbeth é uma hacker que já perdeu todas as ilusões deste mundo e decide fazer sua resistência e sua revolução de forma anônima e solitária, navegando pelos meandros e interstícios da Internet. Lisbeth reconhece e admite que todos os semblantes que sustentam nosso mundo estão apodrecidos, mas, ao contrário do que a maiorias dos heróis homens fariam, ela não está disposta a recompô-los ou reordená-los. Lisbeth tem um estilo andrógino, mas é uma mulher, e só uma mulher poderia se posicionar tão radicalmente na função de deixar tombar os grandes alicerces fálicos que sustentaram este mundo até então. Sim! Lisbeth é uma heroína feminista, mas feminista da maneira mais radical e revolucionária, porque sua luta não tem um tom de queixa – ela não é vitimada e nem ressentida – mas também porque ela não se dispõe e travar batalhas fálicas que empunham armas e disputam poder. Nossa heroína trava suas batalhas nas frestas, nas falhas abertas, na miudeza, no silêncio, na solidão e, por que não, na delicadeza. Lisbeth é um maravilhoso contraponto com outra heroína que vi no cinema este fim de semana – a Mulher Maravilha – que apenas repete o modelo masculino de poderio, que exerce seu feminismo para travar as mesmas lutas fálicas que os homens vêm travando ao longo da história e recuperar os mesmos semblantes que já demonstraram não interessarem mais à civilização, se quisermos sobreviver. No finalzinho do filme, em forma de Diana, a deusa-heroína parece que irá apontar numa outra direção, mas em seguida veste de novo seu traje fálico e salta poderosa e retumbante por sobre o mundo; cena que encerra o filme.

O mundo e os semblantes que o sustentaram até então estão ruindo. Teremos o time dos cínicos que continuarão fingindo ou tentando nos provar que está tudo bem, e teremos o time dos heróis e das heroínas que, empunhando suas armas fálicas, farão de tudo para reerguer tais semblantes. Alguma coisa me diz que Lisbeth é que está certa...

Rita Almeida
Eu devia estar escrevendo tese, eu sei, mas a louca do textao aparece sem ser convidada e toma a cena. Se eu fosse espírita chamaria de psicografia, mas eu prefiro pensar que foi meu Eu Lírico que escreveu esta carta. Não é pra ninguém exatamente, mas é sobre tudo que entendi sobre o amor até então.


A última carta

Minha mania de comer macarrão gelado do dia anterior nunca combinou com o seu paladar refinado e caro. E sua lentidão matinal nunca combinou com minha disposição para ler ou escrever um livro a cada manhã. Me irritava profundamente sua capacidade de me escutar sem dizer uma palavra; me sentia uma tola e isso me enlouquecia. E eu te irritava por não conseguir me concentrar, por passar horas mudando o canal da TV - assistindo tudo e nada - e por ter a memória tão débil para as tarefas do dia a dia. Eu tinha ímpetos homicidas com sua demora em passar uma camisa e você me odiava por eu conseguir me socializar com qualquer um, em qualquer lugar.

Mas eu sei que não foi nenhum desses motivos que fez você desistir de nós. Na verdade, tenho quase certeza de que, ao contrário, era isso que nos mantinha ligados. O incômodo e a irritação que eu te causava, dizia, sobretudo, do quanto você se importava com quem eu era. Tanto que eu percebi que acabou quando você me viu comendo macarrão com ovo mexido no café da manhã e me olhou com total indiferença.

Acho que você nunca soube, mas por muito tempo eu odiei sua capacidade de organização e orientação, creio que ela evidenciava a minha estupidez para as duas coisas. E desconfio que você odiava Juliana, minha amiga, apesar de sempre negar. Suportava-a por consideração a mim e, talvez, por elegância – sua maior qualidade. Também acho que nunca gostou tanto assim da minha torta de palmito com queijo. Imagino que tenha mentido a primeira vez para me deixar feliz, e teve que manter a mentira pelos quatro anos que se seguiram.

Mas, afinal, você não foi o único que mentiu, eu admito. Ao contrario do que você sempre achou não gosto de ganhar flores, acho piegas e sem criatividade. E aquela aventura dramática que te contei quando estive em Petrópolis no nosso primeiro ano nunca aconteceu. Aquela viagem sem você foi um erro, tédio absoluto. Só não quis admitir.

Enfim, agora que você se foi, podemos nos livrar das mentiras que inventamos para ficarmos juntos. Mas quem pode nos culpar? Que casal sobreviveria se fossem ditas todas as verdades? Ah! Já que estou sendo totalmente sincera, confesso: Eu sempre soube que você nunca leu Dostoievski. Você não suportaria um capítulo – eu sei. Apaixonado demais para o seu ceticismo. Mas sempre me encantou o seu esforço em acompanhar meus assuntos infindáveis regados a Crime e Castigo, Irmãos Karamazov, O Eterno Marido, Diário do Subsolo e vinho. Você era bom em debater comigo! Suponho que lia resenhas no Google. Eu adorava aquelas noites, pelo menos até você ficar bêbado. Então...preciso te dizer mais uma coisa, você acha que fica divertido quando está bêbado, mas não. Fica insuportável!

Escancarando as mentiras que cuidamos de esconder com tanto zelo e carinho nesses anos, me veio o medo de que tudo tenha sido só uma invenção nossa. No entanto, apesar da profunda tristeza que me habita agora, e que me faz enxergar quase tudo pelo prisma da amargura e da decepção, eu sei muito bem das verdades essenciais que nunca pudemos ludibriar com uma mentira singela de ocasião. Eu sei bem o que não pudemos camuflar. Sei bem onde nossa capacidade de nos proteger um do outro fracassou e nos atravessou a ambos. Eu sei bem sobre a sua verdade que ficou enterrada em mim, talvez para sempre.

Todas as vezes que rimos juntos: era verdade. O quanto nossos corpos se entendiam: era verdade. Nossa sede por aquela música que ainda nem tínhamos ouvido: era verdade. Nossa promessa de fugir desse mundo: era verdade. Sua admiração pelo que eu escrevia: era verdade. Minha fascinação pelo seu cheiro (que eu ainda alucino): era verdade. E essa dor insuportável que eu sinto agora é a única verdade que resta, e à qual tento não me apegar.

Eu olho pela janela – a do passado – e percebo com exatidão do que minha vida esteve vazia antes de você. Eu vejo nela todas as coisas que você me trouxe e que vão continuar aqui, mesmo agora que você partiu. De fato, você não levou quase nada, nem mesmo os livros que me emprestou um dia, e que eu nunca devolvi. Tudo o que você me deu continua aqui comigo, inclusive essa saudade – seu ultimo presente – que eu espero um dia conseguir emoldurar, pregar na parede da sala e suportar ver diariamente sem sentir vontade de chorar.

Lamento profundamente que você tenha decidido ir, mas não posso pedir que fique, nem mesmo para esperar a colheita da próxima estação. E não posso por dois motivos. Primeiro porque minha noção de fidelidade não tem a ver com exclusividade ou monogamia, tem a ver com o fato de entender que ninguém deve se sentir obrigado ou coagido a estar onde não quer estar. E depois, porque tenho entendido que o amor acontece no espaço vazio que se forma entre dois, pelo menos dois. Amar sozinho é sempre amor próprio, mesmo quando se está afogado na tristeza, na culpa e na auto piedade. E amor próprio, que me perdoem as frases de autoajuda, não me interessa. Na minha idade já estou enfadada o suficiente de mim mesma, só me interesso pelo que me leva para além do ego, ainda que esse lugar seja um abismo desconhecido.

Também deixo para os tolos a lição de que no amor não vale mudar quem se é para caber no desejo do outro. Eu fui sim, durante esse tempo, a mulher que você, de algum modo desejou que eu fosse, e você também se dispôs a ser o homem que eu queria pra mim. Não fosse assim não duraríamos mais que três pores de sol. É assim que se permite ser atravessado pelo amor. Quem nunca fez isso, me desculpe, nunca amou ninguém além de si mesmo.

Dizem que a guerra é lugar para os corajosos. Eu discordo. A guerra é para os covardes, aqueles que só sobrevivem eliminando o outro, afastando o outro. O amor sim é para os corajosos. Para os que se permitem atravessar pelo outro. Nós fomos absurdamente corajosos nesses últimos anos, permitindo que esse espaço que inventamos entre nós nos modificasse a ponto de não podemos mais ser os mesmos de antes. E eu sinto orgulho da nossa coragem.

Não sei por que você se foi, mas espero que não tenha sido por medo. Prefiro pensar que nosso tempo tenha passado e que tenha sido o suficiente para o que ambos precisávamos. Prefiro pensar que você tenha apenas enxergado isso antes de mim e que eu, em breve, vá enxergar isso também. Talvez seja hora de eu, mais uma vez, ser a mulher que você precisa que eu seja, e entenda o que você já entendeu. Mas também me passa pela cabeça que você possa não estar entendendo nada, mas eu não te julgo. Nada no amor foi feito pra entender mesmo. O amor é uma espécie de aposta no futuro, eu acho, mas não um futuro muito distante. Ele mora sempre há uns poucos segundos adiante do agora. E como a gente só entende no passado, amor não foi feito pra entender.

Acho que foi isso que aconteceu, afinal. Você parou de pensar em nós dois habitando seu minuto seguinte. Talvez eu habite apenas o seu passado agora. E eu tenho tentado fazer o mesmo desde que você se foi. Parar de te considerar como parte do meu daqui a pouco e acomodá-lo com carinho no meu ontem. Mas não tem sido fácil.

Interessante que desde que você se foi eu nunca mais comi macarrão dormido e perdi totalmente o fetiche pelo controle da TV. Acho que perdeu o sentido. Desconfio que foram manias que mantive apenas pelo fato de te irritarem. Nessas bobagens é que eu tentava me manter dona das minhas vontades, quando as essenciais estavam sob sua guarda.

Tenho me esforçado muito para não me livrar de você fazendo uso da raiva. Seria bem mais fácil, eu sei, mas isso não seria digno da nossa história. Uma das muitas coisas que aprendi nessa vida é que a preciosidade do belo está no fato de que ele é algo muito raro e, portanto, merece ser preservado como um tesouro. A vida, em geral, é um acúmulo de coisas comuns, mas só as coisas raras nos fazem saber o quanto ela vale a pena. Você foi raro demais para eu estragar com minha raiva. Seria simples de fazer isso, mas também estúpido.

Não sei o que dizer para encerrar esta carta. Adeus talvez fosse o mais adequado, mas suponho que grandes e belos amores nunca se vão definitivamente. Melhor, então, seria agradecer ao Universo pelo privilégio de amar e me sentir amada mais uma vez.

Noite passada, sonhei que plantávamos tomate em algum lugar ermo desse vasto mundo. Gosto de pensar que num universo paralelo nossa plantação cresce vívida e forte.

Rita Almeida
Hoje a lua me convidou pra dançar
Me fez querer dormir na rua
E apagar todas as luzes
Inclusive as de dentro

Hoje a lua atravessou meu lado esquerdo
Do direito ela arrancou um suspiro
E uma emoção estranha
De encontro com o infinito

Hoje a lua me tirou do caminho comum
Me arrastou num pensamento vazio de palavras
Foi encantamento
Foi espasmo de felicidade

Hoje a lua me pediu um sorriso
E também sorriu pra mim
Nos entendemos numa pequena fração de segundos
O que me fez alcançar o belo
Junto da certeza da minha pequenez

Hoje a lua me fez querer a vida
Assim mesmo
Desse jeito doido e doído
Vida que a gente quebra só pra poder consertar

Hoje a lua me fez querer
Hoje a lua me fez
Hoje, a lua
A lua

Rita Almeida

terça-feira, 23 de maio de 2017

Nicolau Copérnico comprova que a Terra não é o centro do Universo, e hoje sabemos que ela é apenas um grão de areia no infinito

Charles Darwin desbanca o Ser Humano do centro da criação; somos apenas uma das milhares de espécie neste planeta

Freud avisa: “o eu não é senhor da sua casa” pois, há inconsciente, ou seja, nem nosso “Eu” somos capazes de comandar totalmente

Marx deixa bem explicadinho que a história não tem uma única versão, ela vai depender da ideologia que você professa ou da classe social a que você pertence

Einstein se encarrega de desconstruir até mesmo a noção de tempo e espaço na física, que para ele são relativos, vão depender do observador
Isso pra dizer que temos todos os instrumentos e motivos pra recolher pelo menos um pouquinho do nosso ego ao andar por aí. Mas o que esperar de gente que não se deixou atravessar nem por Copérnico?

Aliás, tem gente que parece não ter alcançado nem a teoria geocêntrica de Ptolomeu (anterior a Copérnico) e age como se o Universo girasse, não em torno da Terra, mas em torno do próprio umbigo.

Ne não?

Rita Almeida
Para o humano a maternidade, tal como a paternidade, não é um fato biológico, mas simbólico. Ou seja, nem toda mãe precisa parir, nem todo pai precisa conceber, entretanto, todo pai e toda mãe precisam adotar e todo filho precisa ser adotado.

Certa vez, minha filha caçula me ensinou isso sobre ser mãe ou ser pai. Ela devia ter uns 4 anos e chamou pelo pai. Ele respondeu perguntando, em tom de brincadeira: - Eu? Seu pai? Como é que você sabe que eu sou seu pai, menina? E ela rapidamente responde: - Por que você chegou primeiro lá no hospital quando eu nasci da minha mãe e disse pro médico: “essa aí é minha filha”.

Rimos muito na ocasião mas é exatamente disso que se trata a maternidade ou a paternidade. Mãe ou pai são aqueles que se autorizam a sê-los, que assumem para si a tarefa inicial de falar de uma outra vida. É a palavra que faz um pai e uma mãe e não os corpos envolvidos no processo.
Eu diria então que mãe e pai são aqueles que vão ocupar a função de dizerem “sim” a uma criança. Ao longo da vida todos receberemos uma infinidade de “nãos” – “nãos” importantíssimos, inclusive – mas o “sim” é o fundamento de tudo. Todo sujeito precisa de um “sim” para ingressar nesse mundo.

Uma mãe, talvez, seja esse “sim” primordial.

Feliz dia a todos e todas que se dispuseram a dizer “sim” para um outro ser.

Rita Almeida
publicado no dia das mães
É obvio que a luta que travamos hoje, ilustrada com essa cinematografia no depoimento de Lula a Moro, é de longe aquela que gostaríamos de travar. Esteticamente não é uma luta das mais belas e eticamente não é a das mais legítimas, mas é a luta que temos. É a luta possível no momento. Claro que me preocupa uma “religiosidade camuflada” presente nos atos em Curitiba e de longe gostaria de resgatar um Sebastianismo recalcado que sempre retorna, nem na figura do Lula, nem na do Moro. (Nesse caso, cada um que escolha seu Salvador). Mas me incomoda ainda mais a posição de alguns “intelectuais isentões ” que, do alto da sua arrogância e preocupação com a higiene, têm se dedicado a menosprezar a luta dos que estão no chão do campo de batalha. É fácil assistir tudo de camarote VIP, com uma taça de vinho nas mãos e MPB na vitrola, e se dedicar apontar as feiuras que aparecem. Quem não se dispõe a sujar as mãos, os pés ou a dignidade no campo de batalha devia ao menos ficar com a boca e o teclado calados. Saco cheio de gente limpinha e cheirosa! Zaratustra-Nietzsche me entenderia. Acabei de acender uma vela pra ele.

Rita Almeida
12 medos da atualidade (virtuais)

1. Fulano marcou você em uma foto
2. Correntes de Whatsapp
3. Audios de 3 mim
4. Copie e cole no seu mural
5. Deixe aqui seu amém
6. Oi sumida
7. Fulano disse que estava com você e outras 44 pessoas
8. "Mim" adiciona no face
9. Carinhas do snapchat (qualquer uma)
10. Fulano está ao vivo
11. Figurinhas de bom dia
12. Te adicionaram em mais um grupo de Whatsapp

* Só não tenho medo de textão por que eu adoro escrever um 🤗

Rita Almeida
Linchamento virtual também é linchamento.

Linchamento em nome de qualquer causa, seja ela a mais nobre, continua sendo linchamento.

Linchamento é sempre cruel, seja vindo da esquerda, da direita, de baixo ou de cima

E linchamento nunca, nunca é justificável.

Dito isso, quero ainda dizer que esse tribunal das redes me deixa muito indignada e triste, ainda mais quando ele se dispõe a atacar aqueles que estão lutando do "mesmo lado", ainda que de forma atrapalhada ou equivocada, às vezes. O chamado "fogo amigo" é infantil mas, sobretudo, um desperdício estúpido de munição quando há tantas lutas difíceis a travar.

Freud chamava essas pequenas desavenças entre iguais de "narcisismo das pequenas diferenças". É isso o que nos torna mais suscetíveis a odiar os argentinos e não os japoneses, por exemplo. Já os japoneses preferem odiar os coreanos. Curiosamente, nosso incomodo com as diferenças são tanto maiores quanto mais o outro se assemelha a nós. O outro, nesse caso, funciona como uma espécie de espelho que potencializa em seu reflexo aquilo que nos incomoda em nós. Trata-se de um outro que na verdade sou eu. E sabemos que ninguém pode ser mais cruel ao reparar uma espinha na testa do que o próprio dono da testa.

Apenas essa teoria é capaz de explicar o fato de alguns movimentos sociais e/ou de minorias, tão importantes e fundamentais para nossas bandeiras de esquerda, se ocuparem de atacar com mais veemência e contundência aqueles que se apresentam com discursos mais parecidos e mais próximos.
Nos torna capazes, por exemplo, de nos incomodarmos mais com o machismo que comparece numa carta de amor do Duvivier do que na politica defendida por Bolsonaro na Câmara dos Deputados. De nos ocuparmos em problematizar o uso de turbantes por mulheres brancas, num país que mata e encarcera sua população negra sem a menor culpa ou cerimônia. De lincharmos a professora Elika Takimoto por um post que pode até apresentar alguns equívocos na hora de defender a política de cotas, quando temos em curso uma politica educacional que caminha não apenas na direção de acabar com as cotas, mas também com o ensino público superior.

Hoje soube que a tal Reforma Trabalhista, na pauta deste governo de absurdos, resgata a possibilidade de moradia e alimentação contarem como parte do salário do trabalhador rural. Isso se parece com o modelo escravocrata, gente! Isso é bizarro! Inadmissível! Vocês tem mesmo certeza que vão gastar tempo, saliva e o tesão de vocês problematizando as espinhas na própria testa?

E lembrando: linchar não é uma estratégia aceitável sob nenhuma hipótese.

Rita Almeida
Ao longo da vida fui perdendo muitas das ilusões que tinha a respeito da liberdade. Entendo hoje que o conceito de liberdade é um tanto quanto restrito para nós, humanos, que dependemos da linguagem para significar o mundo. Falar, dizer, escrever - representar o real de algum modo - é sempre um esforço de submissão, de queda, de perda de liberdade, mas, paradoxalmente, nossa única via de libertação. A mesma linguagem que nos limita, nos possibilita. Dizer é nossa tragédia e nossa salvação.

Assim sendo, a única liberdade que hoje me interessa e me seduz é a de poder pensar e escrever da forma mais livre que conseguir; olhando para fora da minha caixinha e apartada do conforto do meu sofá. Pensar se tornou uma espécie de estilo vida e escrever meu verdadeiro ofício. A linguagem que me constitui e me castra, também se tornou o instrumento que me permite voar em liberdade.

Só me agrada o que escrevo quando não sou livre e sou livre; as duas coisas ao mesmo tempo.

Rita Almeida
Olá meninas! Tudo bem? No tutorial de hoje vocês aprenderão a ser um imbecil político que fode geral com a possibilidade de alguma saída para o seu país. Vamos lá! Acompanhem o passo a passo!

1. Primeiramente se informe apenas por meio da Rede Globo, Revista Veja e jornalões. No caso da Veja e jornalões, leia só a capa ou as manchetes expostas nas bancas, nem precisa ler a matéria toda. É perda de tempo.

2. Entenda que essa coisa de política é uma merda, só tem pilantra e safado, então mantenha distância disso. Não se meta, não discuta, não participe, não milite, não vote, ou seja, não se interesse sobre o tema porque não tem nada a ver com você. Deixe esses políticos pra lá.

3. Essa coisa de movimento social, sindical, movimentos populares ou culturais, entidades de classe, de defesa de minorias, movimentos feministas, socialistas e afins, enfim, qualquer movimento que lute por direitos da população ou de alguma parte dela são tudo a mesma merda. Não acredite na boa vontade desse povo! Não fosse esses manés nós estaríamos tranquilamente vivendo como a dois séculos atrás: trabalhando 18 horas por dia sem essas frescuras de direitos trabalhistas (ainda bem que esse governo tá cuidando dessa parte agora); nós mulheres estaríamos em casa tranquilamente cuidando dos nossos 8 filhos e vivendo sob às rédeas dos nossos maridos; quem sabe nem a escravidão estivesse acabado né? E nem existiria essa coisa de saúde pública, educação pública, segurança pública... essas coisas públicas são tudo um lixo mesmo! Melhor seria assim: quem puder pagar privado, que pague, quem não puder que se dane. Então, não dê ouvidos a esse povo!

4. Mas se ainda assim você quiser participar dos debates do facebook e das tretas com os amigos, não precisa ler, estudar, entender a história e nem se informar com fontes diversificadas, basta ler uns três posts do facebook sobre o tema. Também não precisa se preocupar com a veracidade da notícia ou a legitimidade da fonte. Lembre-se: tá na rede, é verdade. Para ajudar a formar uma opinião mais concisa veja uns vídeos e ouça uns áudios de Whatsapp de gente que você nem sabe quem é, ajuda bastante.

5. Depois disso você pode sair por ai dando sua opinião em tudo, sem medo. Não fique inibido em falar sobre um assunto que você não domina, mesmo que você esteja debatendo com alguém que estudou ou trabalha na área. Meta o loko no debate! E se vier algum sabichão querendo argumentar com você e você ficar meio sem resposta, basta chama-lo de petralha, comunista, gayzista, feminazi, ou só filho da puta mesmo, manda ele pra Cuba ou pegar o Cartão do Bolsa família, sempre funciona na hora do aperto no debate.

6. Ah! Larga de ser burro! Não são os milionários e os sanguessugas do mercado financeiro que precisam dos pobres para gerar riquezas e movimentar o mundo pra eles. Somos nós que precisamos deles para termos nossos empregos e recebermos nossas esmolas. Tão obvio isso! Aff!

7. Fique atento nas pautas da grande mídia nacional! Ela sabe o que é melhor pra você. Apesar de dizerem que em outras épocas ela sempre esteve do lado dos que estão no poder, não ligue, deve ser conversa. Por que ela faria isso? Com que interesse? Então, se ela mandar você bater panelas você bate! Se ela mandar você seguir o pato, você segue! Se ela disser que não foi Golpe, não foi. Se ela disser que manifestante é vândalo, é por que é. Se ela falar que não teve Greve Geral é verdade, não teve. Ela também sabe quem é ladrão e quem não é. Nem é preciso esperar os fatos ou a condenação na justiça pra você encontrar os vilões que você precisa pra botar a culpa de tudo e se aliviar. Escute a grande mídia! Vai na onda! Segue o fluxo!

8. É bonito você sair falando por aí que faz tudo isso pra defender sua pátria amada salve, salve. Mas que fique claro que quando você fala pátria não tá incluindo todo mundo, exatamente. Só aqueles que merecem estar do seu lado por serem como você. O resto é gentinha, merece a cadeia, o exílio, o linchamento público, a morte, sei lá... qualquer coisa que te aparte desse povo. Você é cidadão de bem não é? Então? Merece isso! E se alguém te perguntar qual foi o critério que você usou pra definir quem é cidadão de bem e quem não é manda logo ir se foder! Não precisa explicar. Tá lembrado? Você é cidadão de bem.

9. Então é isso! Se você seguir essas dicas vai se tornar um imbecil perfeito para a nossa sociedade. Vai na fé! O Brasil precisa de você!

Rita Almeida
"O Brasil tem uma das legislações trabalhistas mais paternalistas do mundo"
Sim!!!
Porque temos uma das economias mais desiguais do mundo
Porque temos um dos sistemas tributários mais injustos do mundo
Porque temos uma das classes empresariais mais sem consciência de cidadania e sensibilidade coletiva do mundo (queria falar escrota mesmo)
Porque temos uma das classes politicas mais elitistas e corruptas do mundo
Porque temos um dos povos mais despolitizados e passivos do mundo

Quanto mais desproporcionais as relações de força em uma sociedade, mais a judicialização de tais relações se faz necessária e fundamental. Ou seja, o apelo por legislações duras, e por vezes, engessadas, não é a causa dos nossos males - como querem nos fazer acreditar os defensores das reformas trabalhistas - mas sim, consequência.

É obvio que quanto menos judicializada for uma sociedade, muito mais leve, desburocratizada e, portanto, tanto mais saudável era será. Entretanto, é cruel e cínico promover isso tomando como medida primeira desproteger os mais frágeis, culpando-os pelo único recurso que ainda tem para se defenderem de uma sociedade que é tão injusta para com eles.

Se queremos relações de trabalho mais flexíveis, precisamos, antes de tudo, investir numa política que empodere e fortaleça a classe trabalhadora e numa economia que não a penalize tanto.

Todos concordamos que quanto mais uma sociedade se desburocratiza mais ela se torna acolhedora, fluida e leve, mas começar isso pelo último recurso que resta à sua parte mais vulnerável - a classe trabalhadora - é imoral. Seria como retirar o banquinho debaixo dos pés do sujeito que está com a corda no pescoço, esperando que essa ação o salve do próprio enforcamento, prometendo a ele que terá condições plenas de desatar sozinho o nó que o ameaça.

Ninguém que tenha um pingo de noção de ética cidadã pode defender uma coisa dessas

1° de maio de 2017
Dia do trabalhador

Rita Almeida
Vocês já pensaram que a imensa maioria das pessoas que falam ou escrevem "errado" o fazem por não terem tido acesso a um certo tipo ou nível de educação formal?

Eu não tenho nenhum problema com quem fala "pobrema" ou "iorgute", nem com quem escreve "derrepente" ou "concerteza". O que me preocupa, de fato, são os que têm "nível superior" e falam "bolsomito", "bandido bom é bandido morto", "feminazi", "vai pra Cuba", "tá com pena? leva pra casa", "bolsa-esmola". Esses realmente me assustam. É com esses que deveríamos nos preocupar.

Pessoas que falam/escrevem errado não são capazes de causar mal nenhum a ninguém por consequência dessa sua suposta "ignorância", apenas nos ferem por causa do nosso preconceito linguístico No entanto, a falta de sensibilidade social, política, ética e afetiva da segunda categoria de ignorantes, essa sim, pode fazer um tremendo desastre.

Rita Almeida
Eu queria um poema
Forte, intenso
Que me deixasse em êxtase
Que me calasse os sentidos
E me desse a sensação de perplexidade
E gozo
Tudo ao mesmo tempo
Me fazendo muda para sempre

Eu queria um poema
Cortante, lancinante
Tão ácido
Que fosse capaz de derreter
A caneta
E queimar meus dedos

Eu queria um poema
Insano, desbocado
Que me tornasse eternamente nua
Que pudesse me fazer dizer coisas
Que ninguém jamais tenha tido coragem de dizer
Que me permitisse ser:
Nem mulher, nem homem.
Nem viva nem, morta.

Eu queria um poema devasso
Que ninguém tivesse a ousadia
De ler mais de uma vez
Que soubesse dizer todas as verdades
E me poupasse de ser sempre
Tão ponderada
Tão civilizada
Tão previsível

Eu queria um poema
Que me rasgasse ao meio
E me fizesse entender que depois dele
Seria completamente outra
Quisera eu pudesse escrevê-lo
Em papel
Computador
Num pedaço de parede
Ou na porta de um banheiro de rodoviária
No entanto,
Apesar de desejá-lo do fundo do meu ser
Não escrevê-lo me salva a cada dia.

Rita Almeida
Quando algo se quebra
É preciso ficar atenta ao barulho
Mas não se apegar aos cacos
A vida mais triste de se viver nunca é aquela que é
Por pior que ela seja
A vida mais agoniada é sempre aquela que poderia ter sido
É a vida no futuro do pretérito
A que imaginamos ter perdido
A que lamentamos não ter experimentado
A que fracassamos sem nunca ter tentado
Nada mais angustiante do que agarrar-se as escolhas que nunca se fez
Ou ao caminho que não se trilhou
Viver no futuro do pretérito é a mais terrível das prisões
É ainda pior que viver no passado
Porque o passado, ao menos um dia foi
O futuro do pretérito nunca será
É uma vida de arrependimentos e lamentos
De amargura, de desilusão
E por algo que nem vingou
É no futuro do pretérito que guardamos nossa covardia
E justificamos o passo que nunca demos
Nele vivemos num luto constante
E sem travessia
Porque se trata de chorar sobre o cadáver de alguém que nunca nasceu
E sentir saudade de algo que nem mesmo tem um rosto
Um cheiro
Uma lembrança...
A pior das maldições

Rita Almeida

Fla x Flu com torcida única


A justificativa da decisão judicial para tamanha bizarrice é que o jogo com duas torcidas "pode ser perigoso"
Eu não sei quando é que nos tornamos essa sociedade tão pasteurizada e "leite com pêra", mas acho deprimente
É deprimente o absurdo de pensarmos na opção de esquivar das tragédias próprias da existência, evitando a própria vida
Não quer morrer no trânsito? Não saia de casa
Não quer sofrer por amor? Não ame
Não quer perder nada? Não conquiste nada
A mensagem seria mais ou menos essa
Erro dos erros! diria Nietzsche
Evitar o sofrimento e a tragédia negando a vida
Um resumo triste dessa geração que inventamos
A do merthiolate que não arde
Do café descafeinado
Que pretende viver sem dor e sem riscos
Eu não sei quanto a vocês, mas eu não estou disposta a trocar tantas fatias de vida em nome de um pedaço a mais de segurança
Não mesmo!
Como diria Guimarães Rosa
"Viver é muito perigoso"
E eu prefiro que seja assim
Especialmente se o preço a pagar for testemunhar um Fla x Flu com torcida única

terça-feira, 7 de março de 2017

Consumir: nossa última utilidade



A morte do garoto em frente a uma lanchonete da rede Habib's é de uma brutalidade sem tamanho, ainda que não tenhamos todas condições e provas para dizer que foi um assassinato (eu sempre prefiro frear o ímpeto de julgar e condenar no calor e na pressa da comoção coletiva). Entretanto, a forma de manifestação que escolhemos para lidar com essa tragédia bizarra - propagando o boicote à rede de fast-food - também me causa arrepios.


Não é que tal tipo de engajamento não seja eficaz, ao contrário. E o que me incomoda é exatamente sua eficiência. É que ela nos leva a constatação de que a cidadania que está posta hoje nos limita a condição de consumidores. Em outras palavras, a maneira mais desejável de um cidadão operar na sociedade atual é pela via do consumo, a ponto de transformar as opções: consumir, consumir isso e não aquilo, consumir aqui e não acolá ou não consumir, em formas de engajamento político. Isso, é claro, quando se trata de uma escolha e não de uma impossibilidade, afinal, o sujeito que não pode consumir é exatamente aquele que se encontra marginal nessa mesma sociedade.

Viviane Forrester já dizia há duas décadas atrás que consumir seria nosso último recurso e nossa última utilidade. Ela tinha razão.

Não sei se temos a exata noção da implicação que é tomarmos como modelo esse cidadão-consumidor, mas já notamos seus efeitos. Quando nossa cidadania não se pauta pelo laço que fazemos uns com os outros, mas sim pela ligação que fazemos ou não fazemos com as mercadorias que estão à nossa disposição, não poderíamos ter outro resultado que não uma sociedade individualista e violenta.

No final das contas, João Victor morreu porque não era um consumidor do Habib’s. Aí nós todos que somos consumidores do Habib’s (isso é uma pergunta) imaginamos que o melhor a fazer é simplesmente nos desligarmos do nosso vínculo com o Habib´s ao invés criarmos estratégias políticas que nos vinculem uns com os outros para que, coletivamente, pensemos sobre os Joãos que não podem consumir?

Sei lá! Tá tudo errado!
Eu sentada aqui assistindo minhas flores morrerem
As borboletas não têm vindo
E não sinto mais o perfume que me fazia querer revolver a terra

É uma cena triste
Mas não há mais nada que eu possa fazer...
Não é desleixo
Nem preguiça
Só não me sinto mais capaz
Pura impotência

Então apoio meu queixo entre as mãos
E aceito
Aceito vê-las murchando
Aceito o fato de que só a chuva ou o acaso poderá salvá-las
Aceito a morte
E tento ver nela alguma beleza
Mas não vejo

Para escapar da dor eu fecho os olhos
E me lembro de quando meu jardim era perfumoso e vicejante
Mas não adianta
A morte me agarra com toda a sua força

Por hora vou continuar aqui sentada
Mas no mês que vem...ou, quem sabe, depois de amanhã
Vou recolher as flores mortas
Adubar a terra
E plantar novas sementes

É que a vida insiste
É que a beleza me encanta
A resposta é não
Se te cobram o preço de sua história
Para ver as borboletas voarem

A resposta é não
Se te oferecem ilusão
Quando você entregou suas verdades

A resposta é não
Se você precisa seguir
E querem te convencer que o relógio está parado

A resposta é não
Se você tem que se tornar uma outra
Quando só precisa ser o que é
Eu estive lá onde poucos tiveram a coragem
Refiz meus sonhos todos
Me expus ao estranho
Quebrei minhas unhas
Arranhando portas que não se abriram
Atirei escolhas pela janela
E voltei a locais que deveriam ter sido esquecidos

Eu estive lá
Arrisquei tudo nos dados
Nadei sem conhecer o destino
E sem saber se teria fôlego pra voltar

Foi coragem
Eu sei
Mas essa coragem da qual me orgulho
É entalhada inteira no medo – matéria prima
Medo reinventado, costurado, transformado...

Dessa coragem eu fiz parceria
Mas não proteção
Desse medo eu fiz motivo e arte
Poderia ter feito esconderijo

Eu estive lá
E vivi coisas que rasgaram minha carne
Mas a dor me lembrou que a vida
A vida de verdade
É sim dos corajosos, mas, sobretudo
Dos que se arriscam a se entregar a ela mesmo com medo

Eu estive lá
E senti medo
Mas do medo eu fiz coragem
Do medo eu fiz caminho
E se flor se chamasse âncora?
E se a promessa morasse na certeza?
E se sonhar fosse apenas descarte?

E se começar de novo fosse servido a cada café da manhã?
E pudéssemos apagar todas as cicatrizes?
E se nossos pés tivessem vida própria?

E se o céu não fosse tão infinito?
E o desejo coubesse no bolso?
E se a vida fosse só amanhã?

E se a dor nos fosse estranha?
E o balanço do barco nos lançasse sempre ao mar?
E se escolher nunca fosse uma maldição?

E se os relógios todos parassem agora?
E o tempo tivesse dois sentidos?
E se os poemas destruíssem mais que as bombas?

E se estivéssemos flutuando no vazio?
E mãos dadas fosse nosso único amparo?
E se a morte significasse urgência?

E se amor rimasse com vento?
E partir fosse sempre encontrar?
E se as janelas nunca se fechassem?

“E se” é a linguagem dos poetas
Um lugar pra gente respirar
Enquanto a vida nos arremessa a“o que é”

sábado, 7 de janeiro de 2017

há de se cair do absurdo
de se perder no escuro
de se doer na ausência
de se encontrar na curva
porque a vida é espasmo
é contingência

há de se sujar na lama
e chorar na cama
de mergulhar na fossa
de se banhar de culpa
porque a vida é bossa,
é samba
é salsa

há de se fazer a louca
invernar sem roupa
transpor o sonho
saltar sem asas
porque a vida é pouca
e tanta
e doida

há de se inventar o passo
bordar o laço
rezar no vazio
escolher a tinta
porque a vida cabe no abraço
e é linda

há de se cuidar da ferida
de entender a partida
de se lembrar da imagem
de suportar a agonia
porque a vida é coragem
é viagem
é travessia

Rita Almeida
Eu sou as cicatrizes do meu corpo
E todas as decisões erradas que tomei
Sou as coisas que perdi pelo caminho
Os vexames que passei por ir longe demais
E as queimaduras, por ousar o fogo
Eu nunca fui aquilo que penso antes de dormir
Nem os devaneios que me assaltam na janela do ônibus
Não sou o que prometo nas viradas de ano
Ou o que planejo para a semana seguinte
Sou apenas os passos que tive coragem de dar
Mesmo os que acabaram em queda
Sou essa mancha que me cobre os dois joelhos
De quem escolheu a velocidade sem prudência
E errou na hora da curva
É que o ser não se faz com a cabeça
E sim com os pés
Não existe nenhuma garantia de ser
Quando se escolhe o futuro como tempo
E a imaginação como lugar
O ser pertence ao passado
Eu fui, é o único tempo verbal que o garante
Porque ser não é promessa
É rastro

Rita Almeida
Pouca gente sabe, mas mulher é pra ser feita com cuidado
É aos poucos que a gente vai se juntando
Como não há forma para fazer meninas,
A gente chega assim espalhada
Desengonçada
E logo se depara num desarranjo com a vaidade
Por um apego excessivo ao espelho
E ao amor do outro
Também entendemos logo que, às vezes, doer é a única coisa que se tem
Que sangrar é normal
E que é preciso sobreviver aos banheiros públicos
Ao governo dos hormônios
E à falta de sensibilidade
Mulher é pra ser feita aos pedacinhos
E a gente aprecia os bem pequenos
Especialmente os detalhes desimportantes
Tudo pode servir
Pra preencher esse buraco que carregamos
Afinal,
Aprendemos desde cedo que é preciso tapar o vazio
E só mais tarde, bem mais tarde
Entendemos que o vazio é, na verdade, o que temos de melhor
É nossa graça

Rita Almeida
Quando a vida me rasga
Eu invento de bordar com a escrita
E para esse rasgar que não cessa
Nunca paro de escrever
Minha vida tornou-se essa insistência em ornar
Em fiar alguma beleza nesse tecido roto
A escrita é agulha que faz o movimento da palavra
A palavra é linha – matéria-prima duvidosa
A escrita precisa de vida
Já a palavra, tem pacto com a morte
E só consigo escrever quando aceito essa morte
E eu aceito
Eu aceito
E aceito quantas vezes forem necessárias
Aceito cair da palavra
Aceito, porque há um abismo intransponível entre o que eu escrevo,
e o que pretendia escrever
Por isso, não espero mais quem me proteja ou me salve
Nem pretendo nenhuma eternidade
A escrita tornou-me insuficiente
Remendada
Rota
E já não desejo lutar contra isso
Só preciso de um bordado que seja bonito

Rita Almeida
Tenho pra mim que o poema nasce no centro do peito
Bem lá no fundo
É o que poderia ter virado um grito
Um vômito
Um espasmo
Ou uma mentira crônica
Mas escolheu descer e se enraizar na sola dos pés
Onde vai tomar corpo
Sim. É nos pés que um poema se encorpa
Nos pés daqueles que escolheram não calçar
E se alimentam das andanças com os pés no chão
Porque poemas se formam no interstício entre o caminhante e o caminho
Num exíguo espaço
Que quase sempre dói
Dos pés, os poemas seguem direto para a palavra
Escrita, falada ou cantada
E só depois que se tornam palavra,
Depois de saírem
Podem entrar novo pelos olhos, pelos ouvidos, pelos dedos...
Para voltarem ao peito
E lá morar
Mas um aviso:
Poemas devem circular entre o peito é os pés
Nunca devem ir para a cabeça
Pois a cabeça é o tumulo do poema
Outro aviso:
Poemas podem ficar presos no pé
Lá eles estão se fazendo
Ou ao menos deixando seus rastros pelo caminho
Todavia, nunca deixe um poema preso no peito
Nada pior que morrer no mesmo lugar em que se nasceu
Nada mais melancólico que não fazer bom uso dos próprios pés

Rita Almeida

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

De Didico a Imperador, de Imperador a Didico: a trajetória de um herói

por Rita Almeida

Adriano Leite Ribeiro – jogador de futebol – foi descoberto nas categorias de base do Flamengo, oriundo da comunidade carioca de Vila Cruzeiro, onde era conhecido como Didico. Adriano jogava na posição de centroavante. Fez sucesso por causa de sua força física e presença na área, além do chute forte com a perna esquerda; era canhoto. Aos 18, o atleta já garantia sua vaga na seleção brasileira de futebol. Aos 19 seguiu para carreira internacional na Itália, carreira que o levou ao sucesso e a riqueza e lhe concedeu o título de Imperador (em alusão ao imperador romano Adriano).

Mas a partir de 2004, após a morte do pai que acompanhava e conduzia sua carreira, o domínio do Imperador entra em declínio. A tristeza resultante de tal perda leva Adriano a recorrer ao álcool, fazendo com que sua performance como atleta fique cada vez mais prejudicada. Adriano perde seu espaço no futebol italiano e retorna ao futebol brasileiro, fazendo uma última tentativa no Flamengo, time que o lançou, também sem sucesso. Sem sucesso para que Adriano se mantivesse na carreira, obviamente, porque o jogador ainda garante um belo título nessa sua passagem pelo clube. E continuando seu caminho de retorno às origens, Didico finalmente abandona o futebol – ou é abandonado por ele – para ser acolhido novamente na comunidade de Vila Cruzeiro, onde tudo começou.

Em matéria publicada em janeiro deste ano – que, inclusive, me motivou a escrever este texto – o jornalista Cosme Rimoli do Portal R7 entrevista Adriano para tratar da sua trajetória de ascensão e queda. O título da matéria – que é quase um texto inteiro – já aponta para uma questão que incomoda o repórter, e que, na verdade, é o incômodo da maioria de nós. O título é: “A depressão e o alcoolismo fizeram a opção por Adriano. Trocou a fortuna e três Copas do Mundo para viver na favela da Vila Cruzeiro. Se diz feliz, enquanto seus parceiros sonham com um retorno ao futebol. Sonho que Adriano sabe o quanto é irreal…”

As questões que o repórter tenta responder já no título, que o assombram em toda a entrevista e que ele tenta entender/explicar são: Como alguém pode trocar o título de Imperador pelo apelido Didico? Como alguém pode abrir mão de um império na Europa para morar na favela de um país latino-americano? Como alguém pode trocar riqueza e sucesso por pobreza e ostracismo?

Mesmo que Adriano diga durante a entrevista que está feliz e na foto da matéria ele esteja com um enorme sorriso, de braços abertos tendo o morro que o viu nascer ao fundo, o repórter parece não ter ficado satisfeito, talvez por isso tenha optado por publicar a foto em preto e branco. Sendo impossível aceitar que Didico possa ter escolhido abrir mão de sua condição de Imperador, Cosme afirma em seu título que “A depressão e o alcoolismo fizeram a opção por Adriano”, ou seja, obviamente que Adriano não participou dessa escolha, foi arrastado, foi apenas vítima da depressão e do álcool. Afinal, como alguém em sã consciência pode trocar a fortuna e três Copas do Mundo para viver na favela da Vila Cruzeiro? O jornalista faz, ainda, uso do termo “Adriano se diz feliz” para falar de como o jogador se sente em sua situação atual. Nas entrelinhas dessa frase o que se lê é: ele diz que está feliz, mas eu duvido que esteja. Além disso, a primeira frase da matéria é: “A cena é chocante, triste.”

Eu não participei da matéria, eu não escutei Adriano e desconheço sua vida atual, mas, a entrevista evidencia que a morte de seu pai faz um marco nesse enredo trágico. Ao falar sobre Seu Almir, Adriano afirma que foi a pessoa que “fez quem ele era”. Depois de sua morte o Imperador se sentiu sozinho e deprimido, recorrendo ao álcool como solução, o que, para sua condição de atleta, ficou insustentável. Ou seja, pode ser que Didico nem tenha escolhido ser Imperador, que tenha sido muito mais uma escolha pelo seu pai e que depois de sua morte, ainda que por vias que nos pareçam torpes e estranhas, Adriano tenha voltado a procurar por quem ele realmente queria ser. Não pretendo fazer nenhuma especulação ou analise edípica, o que quero dizer é que não existem modelos para se sentir feliz, para encontrar paz, para viver bem. Dinheiro, sucesso e fama podem também vir como um estranhamento, com uma sensação de não pertencimento, de desajuste. Quem sabe Didico – apesar do sofrimento que certamente carrega, e que carregaria tanto em Vila Cruzeiro ou em Milão – se sinta em sua comunidade, muito mais acolhido e pertencendo a um lugar? Quem sabe não escolheu mesmo isso: voltar a ser Didico? Quem disse que ser um Imperador também não pode ser insuportável? Quem disse que as baladas da Europa são melhores que os churrascos nas lajes da favela? Quem disse? Que tipo de ideal e norma estão implícitos nessa ordem estabelecida de que o bom é ser Imperador na Europa, tudo regado a dinheiro e fama?

Em entrevista recente publicada no El País a psicanalista Elisabeth Roudinesco afirma que “Freud nos tornou heróis das nossas vidas”, ou seja, a ele coube a tarefa de trazer a novidade de que cada um deve cuidar de contar e protagonizar sua própria história”. Não por acaso, Freud utilizou das tragédias gregas e seus heróis para escrever sobre psicanálise. A tragédia de Édipo, por exemplo, é a mais famosa da teoria freudiana e serviu para ilustrar e fornecer subsídios a Freud quando este decidiu discorrer sobre a tragicidade originária da constituição do sujeito humano. Ou seja, a condição humana é essencialmente trágica. Tomamos aqui o trágico como aquilo que se refere a uma ruptura de um indivíduo com o modelo, o ideal, a ordem estabelecida pela coletividade. O herói trágico é justamente aquele que responde de modo singular, apesar das regras, normas, ordens e ideais.

Nesse sentido, Adriano é, eminentemente, um herói trágico. Aquele que faz sua própria escolha apesar dos modelos, ou pelo menos, ousa assumir as escolhas que fez, mesmo que recheadas de tropeços, sofrimentos e contrassensos. O herói trágico, ao contrário do herói dos filmes modernos, nem sempre alcança o que seria o sucesso aos olhos de todos, mas alcança o direito de traçar seu próprio caminho.

Nietzsche dirá que a história do ocidente moderno é a história da repressão do trágico, ou seja, há cada vez menos espaço para as tragédias que nos fazem humanos. Temos que ser todos ricos, bem sucedidos, perfeitos, lindos, magros, felizes, inteligentes e assim por diante. Não vemos beleza no tropeço, não enxergamos humanidade na tristeza, não gozamos com uma fossa, não aceitamos dias ruins como dias possíveis. Tudo precisa de maquiagem e filtro. É exatamente por isso que heróis como Adriano são tão necessários. Muito mais necessários que os heróis de capa que prometem salvar o mundo.

Retornando a entrevista de Adriano, há uma parte do texto em que o jornalista parece admitir que Adriano tenha feito uma escolha: “Adriano seguiu o destino que escolheu. Está fazendo exatamente o que quer. Trocou seu talento como goleador pelo direito de viver na favela. Cercado de namoradas, amigos, festas, farras, churrascos em lajes. Nem quando era um dos maiores atacantes do mundo fazia distinção entre os parceiros que pertencem ao crime dos evangélicos, dos trabalhadores. Trata todos da mesma maneira.” E porque não poderia ser mesmo uma escolha? Se tratar todos sem distinção for uma condição fundamental para Adriano, ele não poderia ser mesmo Imperador. Apenas Didico pode lhe possibilitar isso.

Assim sendo, desejo que a vida seja leve para nosso herói Didico: negro, favelado e flamenguista. Que ele possa ter a liberdade de escolher seu caminho, mas se algum caminho for traçado pelas contingências do Universo, para além do que ele possa controlar, que ele possa seguir, ainda assim, sendo capaz de narrar sua própria história. E tomara que ele encontre ouvintes melhores, porque, ao que parece, tem muitos amigos que o amam e o querem como parceiro nessa novela chamada vida.

Finalizo com as palavras que nosso herói usou certa vez numa camisa embaixo da oficial, O jogo era Vasco x Flamengo, o ano 2010: “Que Deus perdoe essas pessoas ruins”. Essas pessoas que não entenderam nada dessa vida.