quinta-feira, 30 de abril de 2009

Porque todos amam Susan Boyle?

Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida


A personagem da semana certamente foi Susan Boyle. Uma mulher de meia idade e sem nenhum atributo que atenda ao nosso padrão de beleza atual, que apareceu na TV vestida com um modelito estranho e sem graça e ganhou o mundo. Em termos mais chulos diríamos que Susan é uma mulher feia, matuta e desengonçada, uma das concorrentes a se apresentar em um programa de calouros inglês há duas semanas. Inicialmente, Susan é vista com desprezo e ironia pelos jurados e pela platéia, mas bastaram os primeiros 10 segundos de sua performance como cantora para ser ovacionada. Desde então, Susan se tornou um fenômeno. Sua apresentação foi uma das mais acessadas na internet nas últimas semanas e virou notícia em inúmeros jornais e emissoras de TV, aqui e em todo o mundo. Um site brasileiro mantinha em sua página inicial a seguinte pergunta: “Porque todos amam Susan Boyle?” É difícil responder a esta pergunta e talvez não haja apenas uma resposta, mas a surpresa e o desconcerto que Susan nos provoca, seguramente estão entre as explicações a respeito dessa questão. Uma das juradas do programa, antes de dar a Susan o seu “sim”, afirma: “O que aconteceu aqui é um alerta para todos nós.” Sim, acredito que o “fenômeno Susan” seja um alerta para todos nós, um alerta sobre o quanto nos deixamos levar pelas aparências, diz respeito ao quanto nos avaliamos e avaliamos os outros pela imagem. Susan tem, é claro, uma voz belíssima e poderosa e sua música, cantada com a alma de uma estrela, emociona, arranca lágrimas e êxtase. Entretanto, acredito que o que mais toca as pessoas que assistiram e assistem Susan, seja a soma disso tudo que já foi dito com a total nudez dessa mulher no palco. Sim, Susan aparece nua, muito mais nua que aquelas mulheres que ficam penduradas nas bancas de jornal – meros arremedos retocados de mulher. Há muito não víamos – pelo menos na mídia – uma mulher tão nua e autêntica quanto Susan. Sem retoques, sem maquiagem, sem “banho de loja”; sem artifício algum para conquistar os jurados e a platéia através sua estampa. Susan chega nua ao palco e, sem nenhum pudor canta, mostrando ao mundo sua autêntica beleza. Acredito ser essa a grande novidade que Susan mostra e que nos faz amá-la. Talvez estejamos cansados de tanta gente com cara de estampa de revista feminina: gente retocada demais, ajeitada demais, esticada demais, arrumada demais, formatada demais e humana de menos. Mas, estando no mundo em que vivemos é de se esperar que uma das primeiras perguntas feitas a Susan depois da fama repentina seja esta: “Você mudará sua aparência?” E ela responde: “Porque deveria mudar?” Mas, dias depois a manchete é a seguinte: “Susan Boyle muda de visual após fama.” E eu penso comigo: “Que pena! Eles não entenderam nada.”

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Resposta à coluna de Ferreira Gullar na Folha de São Paulo

Prezado Ferreira Gullar
Certa vez você escreveu assim:

Traduzir-se

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte?

Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores", manicômios que ainda mantêm pessoas encarceradas por 20, 30 ou mais anos, condenadas à reclusão simplesmente pelo fato de serem doentes mentais.
Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeiçoes (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer...Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei contruiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia...Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história...então venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.

saudações antimanicomiais

Rita de Cássia de A. Almeida
Juiz de Fora/MG
trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos.