terça-feira, 27 de agosto de 2013

Quando as Feras Selvagens chegam...

Por Rita de Cássia de A Almeida

psicanalista e mãe de três filhos

“Deixa eu lhe dizer uma coisa. Quando somos crianças as pessoas dizem que nossa vida será feliz, que será maravilhosa e tal. Mas fique sabendo que não é assim. Então, tire isso da cabeça agora. Porque a vida pode ser um banquete, mas você poderá ser apenas uma garçonete idiota. Um dia, a comida do seu prato vai cair no chão e ninguém vai estar lá para pegá-la para você. Um dia você vai ter que se virar sozinha. Entende o que eu estou dizendo? Então, sorria garota. Sorria. Porque ninguém gosta de uma mulher que vive se lamentando.”.

Este trecho é parte do diálogo entre uma (provável) mãe e sua filha de seis anos, que compõe uma, entre muitas outras cenas belas e inesquecíveis, do filme: Indomável Sonhadora (péssima tradução para o original Beasts of the Southern Wild). A primeira vista, especialmente pra quem não assistiu ao filme, trata-se apenas de uma fala cruel, cruel demais para uma garotinha. No entanto, a avaliação a ser feita da cena não pode ser tão simples, quando vista dentro de todo o contexto narrativo.

Eu traduziria o título do filme como “As Feras Selvagens que chegam do Sul”, já que a grande questão suscitada pelo filme é aquela que persegue cotidianamente a todos nós, pais e mães: devemos proteger nossos filhos das feras selvagens ou ensiná-los a enfrentar tais feras selvagens?

O mundo idealizado pelo cineasta e no qual Hushpuppy, a garotinha que protagoniza a história, vive, é demasiadamente bruto e atroz, e as feras que ela precisa enfrentar são grandes, feias e cruéis. Os adultos dessa história sabem disso, e parecem não fazer questão de esconder tal realidade das crianças, especialmente o pai de Hushpuppy, que dedica seus últimos dias a ensinar a filha a sobreviver sozinha, já que ele é vítima de uma doença terminal e a mãe os abandonou há alguns anos.

No nosso mundo real, no entanto, sinto que cada vez menos educamos nossos filhos para lidar e enfrentar as feras selvagens que invariavelmente virão. Percebo um demasiado exagero na proteção de nossas crianças, que nos parecem cada dia mais frágeis e indefesas, incapazes de lidar com qualquer pequena frustração, com um minúsculo não, um desagrado, uma rejeição. Vejo jovens imaturos e inseguros, que enxergam uma besta fera horrenda, onde muitas vezes, existe apenas um pequeno inseto esquisito e fedorento. E para lidar com tal inseto demandam um arsenal de guerra, quando lhes bastaria apenas, tapar o nariz. Ao contrário do mundo de Hushpuppy, o nosso, acredita ser capaz de evitar todas as feras selvagens que porventura virão. Mas a tragédia que se abate sobre nós é que não podemos evitá-las completamente. E jamais poderemos.

Hushpuppy, por sua vez, apesar dos seus parcos seis anos, é capaz de encarar as feras que lhe perseguem olho no olho, e no fim, as chama de “quase amigas”. Na sua jovem sabedoria, e posto que seu pai soube cumprir devidamente a missão de educá-la para suportar as adversidades do seu mundo, Hushpuppy sabe que as feras que precisou enfrentar também se tornaram parte de quem ela é. Ela já compreendeu que as feras nos atemorizam e podem até nos devorar se não formos fortes, espertos ou sábios o suficiente, mas ela também entendeu que somente as feras, sobretudo as grande e feias, são capazes de extrair de nós, o melhor que podemos ser.

Por isso, eu lamento muito quando vejo pais e mães galgando esforços sobre-humanos para evitar que seus filhos enfrentem e encarem as feras que habitam nosso mundo. Não percebem que estão criando louças frágeis que vão se quebrar ao menor arranhão. Não compreendem que os demasiadamente frágeis, os vitimados, os higienizados, os mimados e os melindrados terão muito mais dificuldade em lidar com as feras; as que vêm do norte, do sul ou as que vêm de dentro. Vejo pais e mães que se desdobram com a pretensão de “dar tudo de bom para os filhos” ou “dar tudo aquilo que não tiveram”, por não entenderem que o grande desafio de educar talvez seja, exatamente, resistir à tentação de dar, e não dar, mesmo tendo condições de fazê-lo.

Na teoria psicanalítica de Winnicott, uma mãe deve ser suficientemente boa, ou seja, suficientemente boa para amar seu bebê e possibilitar seu desenvolvimento. Mas o que nos interessa na teoria winicotiana é que ser boa apenas o suficiente, também implica em ser necessariamente má. E assim eu descreveria os pais que sabem cumprir sua missão de educadores: suficientemente bons e necessariamente maus.

Numa leitura psicanalítica, as feras selvagens que aparecem no filme representam o real. O real é aquilo que se impõe sobre nós e sobre o qual não temos nenhum controle; é o inominável, o indecifrável, o indizível. O real, portanto, é o que nos causa desespero, espanto ou horror. A psicanálise acredita que existem inúmeras formas de lidar com o real que não seja padecendo dele, mas em todas elas é necessário que o sujeito assuma a existência do real, e também sua própria limitação diante dele. Fica paralisado diante do real quem insiste em acreditar que seja possível um mundo ou uma vida sem ele.

Talvez seja isso que a (provável) mãe de Hushpuppy tenta lhe dizer: que as feras selvagens existem e podem, sim, ser tão horrendas quanto más, mas ficar apenas lamentando o fato delas existirem não vai adiantar nada, o melhor é enfrentá-las e seguir sorrindo.



sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sobre macumbas, marchas, santos, anéis e muros e sobre a força dos símbolos

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista


Dias atrás ouvi a explicação de um militante do movimento negro - e, diga-se de passagem, uma belíssima explicação – sobre o sentido original das oferendas que as religiões afro-brasileiras utilizam em seus rituais, as que vulgarmente chamamos de macumbas. Ele explicou que, na época da escravidão, muitos negros fugiam para o mato na tentativa de se libertarem do jugo dos seus senhores e, antes de conseguirem fugir para algum Quilombo, ficavam próximos às fazendas, escondidos no meio da mata por dias e até semanas. As mulheres negras, na tentativa de auxiliar esses fugitivos a se manterem vivos até que pudessem partir definitivamente, deixavam tais oferendas pelas margens do caminho ou em locais combinados previamente (em baixo de um cruzeiro, numa encruzilhada, em baixo de uma árvore), oferendas que não eram nada mais do que comida e bebida preparadas para saciar a fome e a sede dos seus entes queridos. No entanto, para disfarçar sua atitude, diziam que os quitutes eram oferendas para os Santos ou Orixás, inventavam rituais e acendiam velas, um modo de sinalizar o local do alimento, especialmente à noite. E por meio dessa estratégia elas sabiam também, se os fugitivos já tinham seguido caminho ou se ainda estavam por ali, bastava observar no dia seguinte como estava o alimento que tinham deixado. O fato é que o que, inicialmente, foi uma estratégia de resistência dos negros escravizados, acabou sendo incorporado pelas religiões afro-brasileiras como ritual.

Eu nunca tinha ouvido essa história e achei de uma poesia infinita. Antes de tal explicação as macumbas não faziam nenhum sentido para mim, não continham nenhum significado, a não ser o de saber que eram significativas para a religião de alguns, o que sempre me impediu de ser desrespeitosa ou intolerante com elas. Mas agora, eu vejo as macumbas de um modo completamente novo. Passei a vê-las com grande respeito e até com reverência, porque agora elas me remetem à sabedoria e ao poder de invenção e resistência dos negros escravizados. As macumbas fazem todo o sentido para mim agora.

E é assim que os símbolos funcionam para nós, humanos. Objetos, palavras, cores, músicas, letras, desenhos, ou seja, qualquer coisa, acrescida de um significado cultural compartilhado, pode se tornar um símbolo para um determinado grupo de pessoas.

A psicanálise entende que o homem, uma vez atravessado pelo inconsciente – que é a linguagem ou o corpo social que se inscreve em nós à revelia de nós mesmos – nunca mais poderá ter acesso à coisa em si; a das ding, para usar o termo freudiano, ou ao real, para usar um termo lacaniano. Ou seja, para nós, seres falantes, a coisa em si nunca poderá ser apreendida, o real nunca poderá ser acessado na medida em que estará sempre configurado pelo sentido e significado que damos a ele.

Fiz essa introdução para tratar do tema que dividiu opiniões na última semana: a quebra e manipulação de imagens de santos católicos por algumas militantes da Marcha das Vadias. Chamou minha atenção a tentativa de alguns em reduzir o peso do impacto que o ato causou em muitas pessoas, buscando descolar das imagens a simbologia que lhes é inerente. O argumento utilizado era que se tratava apenas de pedaços de cerâmica e que, em um local não sacralizado – a rua – perderiam seu significado religioso. Obviamente que, dentro da perspectiva que adotamos aqui, esse argumento carece de fundamento, até porque, se as manifestantes se dispuseram a realizar aquela performance com as imagens, é exatamente por saberem o simbolismo e o sentido que elas carregam. Caso fossem pedaços de cerâmica, o ato delas também não teria sentido algum.

Quem assistiu a queda do Muro de Berlim na década de 80, não duvida do impacto simbólico que foi ver centenas de alemães quebrando aqueles tijolos, simplesmente porque, todos sabíamos que não eram apenas tijolos que estavam sendo quebrados. Foi pelo mesmo motivo que as Torres Gêmeas do World Trade Center foram escolhidas para ser alvo dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, porque eram o símbolo do poderio econômico americano. Em todo mundo, são comuns manifestações em que se queimam bandeiras, que podem ser de países, partidos ou simplesmente de times de futebol. E as mulheres também já queimaram sutiãs, num ato simbólico contra a repressão feminina. Ou seja, a destruição ou profanação de símbolos sempre foi, e é, muito utilizada para desconstruir, questionar, protestar, demonstrar insatisfação e rebeldia, podemos citar um zilhão de exemplos ao longo da história, e não há dúvidas de que tais atos cumprem sua função que também nunca é real, mas sobretudo simbólica.

Num outro sentido de desconstrução de símbolos, nesse caso de uma forma, digamos, pacífica, está a postura do Papa Francisco e que assistimos de perto, também na última semana. Sem entrar no mérito da intenção do Papa, não pretende ser destituído de sentido que o líder máximo da Igreja Católica rejeite a cadeira, o manto, o anel, os sapatos, o tapete vermelho, o carro, a segurança, e todos os aparatos que estavam associados ao status, poderio e riqueza da Igreja e do Vaticano. Por mais que possamos duvidar das reais mudanças que possam ocorrer a partir disso, não dá pra negar a força desse ato simbólico e da sua repercussão.

Sendo assim, o que pretendo dizer é que da mesma maneira que os símbolos são criados, inventados e construídos, também podem – e invariavelmente até devem – ser quebrados, desinventados e destruídos. Então, a meu ver, nossa rejeição ou indignação quando se quebra um símbolo não deveria ser moral, mas estética. Ou seja, o problema não é que se quebrem certos símbolos, mas como isso é feito e por quem.

Por exemplo, imaginemos que o Wold Trade Center não tivesse sido destruído em 2001 e que em 2008 os milhares de americanos, vítimas da chamada bolha imobiliária, que tiveram suas casas hipotecadas tomadas pelos bancos, decidissem invadir o coração financeiro daquele país, ocupá-lo e quebrá-lo, assim como fizeram os franceses na “Tomada da Bastilha” no século XVIII. Obviamente que, esteticamente, esse ato teria um sentido totalmente diverso do que teve os atentados de 11 de setembro. Nesse caso, teria o mesmo sentido estético que teve a derrubada do Muro de Berlim, este porque foi feito por alemães e aquele porque foi feito por americanos. Do mesmo modo, a recusa dos símbolos tradicionais do Papa só tem valor estético porque são feitos por ele mesmo, estética que se perderia caso tais símbolos fossem roubados ou vandalizados por manifestantes de outra religião A queima de sutiãs pelas feministas da década de 60 foi um ato político belíssimo, porque tratava-se de um apetrecho feminino, queimado por mulheres.

Resumindo, entendo que são belos, mesmo os mais violentos atos de destruição de símbolos, desde que aconteçam de dentro para fora e não pela via da intervenção de outrem. Se conseguirmos nos livrar de moralismos tolos, entenderemos a beleza da nudez das mulheres na Marcha das Vadias com seus corpos cheios de inscrições, afinal são mulheres desnudando e escrevendo em seus próprios corpos, estética que se perderia se por acaso se tratasse mulheres obrigadas por outrem a andarem pelas ruas, nuas e pintadas. Sendo assim, caso um dia os católicos desejem questionar a função dos Santos dentro da sua fé religiosa e num ato de rebeldia façam uma procissão em que imagens sejam quebradas e profanadas, teremos um outro padrão estético de violência simbólica. No entanto,a performance das ativistas com os símbolos católicos foi, para mim, um desastre estético. Tão feio quanto o desempenho teatral daquele pastor que chutou a Santa num programa de TV há alguns anos atrás. Tão feia quanto a invasão de Terreiros de Candomblé por alguns evangélicos em Olinda, no ano passado.

Então, é importante, sim, que nós quebremos e queimemos nossos próprios símbolos e com eles os paradigmas e as verdades que precisem ser superadas a fim de fazermos desse mundo um lugar melhor para vivermos. Mas profanar e destruir símbolos alheios, ainda que se cumpra uma função de rebeldia, é de um mau-gosto colossal. E no meu entendimento, todo ato político que perde sua beleza estética perde com ela, muito de sua potência revolucionária.