segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A contribuição ética da psicanálise para a sociedade atual

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Nietzche lamenta que o ocidente moderno tenha promovido a negação da natureza trágica do homem. Segundo o filósofo, a era moderna reprimiu homem trágico para dar lugar ao homem teórico: o homem centrado, senhor de si, racional e, portanto, capaz de criar um método para conhecer e controlar o mundo que o cerca. Assim se confirmaria o ideal propagado na modernidade, pela via da razão teríamos todas as respostas.

Nesse caldeirão iluminista nasce a ciência, promessa de cura para todos os nossos mal-estares, entendendo a morte, o conflito, a loucura, o fracasso, a perda, a descontinuidade, o erro, a falta, a indisciplina, e tantas outras experiências trágicas da condição humana, como estrangeiras, malditas e odiosas. E o caminho não foi diferente no nascimento da psicologia, nesse caso, a promessa seria compreender o comportamento humano e assim, nos curar daqueles comportamentos indesejados e incômodos.

Freud, no entanto, será um dos responsáveis por desbancar o ideal da psicologia científica, afirmando com sua teoria do inconsciente que, ao contrário do que o discurso cartesiano pregava, o eu não é o senhor em sua própria casa. Com essa afirmação Freud questiona a noção do homem centrado e senhor de si, e ainda, derrotando definitivamente nossas pretensões narcisistas, afirma: não há cura para o desamparo humano. Ou seja, por mais que busquemos explicações, saídas e respostas, haverá sempre um mal-estar inevitável, inexplicável e, portanto, incurável, pelo fato de nossa existência ser essencialmente frágil, castrada, desamparada. Com efeito, a tragédia, por mais que a recusemos, será sempre nossa companheira inseparável.

E se não há cura para o desamparo humano, o que fazer com ele? O que fazer com o mal-estar da existência?

Grande parte do esforço da sociedade atual tem sido no sentido de silenciar todo e qualquer mal-estar. E essa forma de lidar com o mal-estar da existência traduz, exatamente, a diferença da intervenção da psicanálise para as demais psicoterapias, por exemplo. Enquanto essas últimas pretendem fazer calar o mal-estar, a psicanálise se propõe a escutá-lo, acolhê-lo, e fazer dele matéria prima para o processo de reinvenção do sujeito. A psicanálise, nesse sentido não compactua com intervenções normativas, pasteurizadoras e medicalizadoras, o que resulta numa ética que está mais próxima do fracasso do que de um suposto ideal de perfeição a ser perseguido. Para a psicanálise é do fracasso, desse mal-estar que não cessa, é que tiramos o barro com o qual não paramos de nos construir.

Acredito que essa ética proposta por Freud seja fundamental para os dias de hoje, apesar de muitos já terem decretado a morte da psicanálise. Fundamental para fazer uma crítica a nossa atual sociedade, que tem se preocupado muito mais em silenciar nossos sintomas do que escutá-los. Sendo assim, a judicialização e a medicalização tem sido os modos mais usados para lidar com nossos sintomas ou lidar com nossos problemas relacionais. Afinal, se partimos do pressuposto que há um ideal, admitiremos também ter a receita para alcançá-los, e o que é melhor para nossa sociedade capitalista, tal receita pode ser comprada/vendida. Vejamos dois exemplos bem atuais:

Ideal = criança comportada e sem problemas de aprendizagem. Se criança não aprende e não se comporta, solução = medicalização = criança comportada e sem problemas de aprendizagem.

Ideal = sujeito que não usa drogas ilícitas (principalmente crack). Se sujeito usa drogas, especialmente crack, solução = judicialização (internação involuntária) = sujeito que não usa drogas ilícitas (principalmente crack).

Entretanto, se partirmos de uma ética onde não há modelos ou ideais a serem perseguidos ou copiados, intervenções desse tipo perdem sua força, pois o caminho ou a solução passa a ser aquele que cada um pode, deseja ou pretende construir e com a certeza de que, ainda sim, algum tipo de mal-estar estará sempre presente, já que ele nunca cessa.

Já com relação ao desamparo humano, é o discurso religioso que promete curá-lo. O conceito de Deus como um Pai poderoso e amoroso serve para aquietar essa sensação de desamparo. Precisamos acreditar, afinal, que alguém olha e cuida de nós. Talvez, sem isso, sucumbiríamos ao desespero generalizado.

Mas, a psicanálise propõe uma outra saída para o nosso desamparo. Se por um lado ele não pode ser curado, erradicado, pode ser administrado em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.

Finalizando, se quisermos pautar nossas intervenções na ética proposta pela psicanálise devemos fazer duas perguntas, que são fundamentais: Estamos intervindo sem nos preocupar com um ideal preestabelecido? Estamos promovendo e fortalecendo os laços sociais? Se a resposta for sim para essas duas perguntas, estamos conseguindo escapar desses dois discursos que empobrecem e enfraquecem nossa sociedade: a medicalização do sofrimento humano e a judicialização das nossas relações interpessoais.