sábado, 22 de agosto de 2009

Sem limites

Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista


Não é novidade que é o banho da cultura que nos veste, que possibilita dar algum contorno para a nossa animalidade, para o real que se abate sobre nós. É isso que nos faz humanos, que nos permitiu colocar a palavra onde só havia ato e que, em última análise, nos protege da barbárie. Tal contorno estabelece para nós um limite, um limite que não devemos ultrapassar, sob o risco de extrapolarmos nossa própria condição de existência e de romper com aquilo que nos faz humanos.

Manter-nos nesse limite da humanidade é tão importante que mesmo em tempos de guerra, por exemplo, onde os maiores horrores são vivenciados, vários tratados internacionais vigoram com o objetivo de manter um mínimo de ética e de respeito ao ser humano. O fato é que sem nossas vestimentas culturais e simbólicas, ficamos a mercê da selvageria.

E foi isso que se viu no final da noite do último domingo. Quem acreditava já ter visto de tudo na TV, ficou estarrecido com as cenas mostradas em um reality show. A chamada “prova do estômago” exibiu cenas bizarras dos participantes comendo, dentre outras “iguarias”, ovos galados, ou seja, com um feto dentro, na tentativa de manterem suas equipes e, portanto, a si mesmos, com chances de vencer a disputa.

A selvageria à qual me refiro não é resultante do simples fato de se comer o feto cru de uma galinha. Em certas culturas, pode ser que esse tipo de alimento seja apreciado e culturalmente incorporado, entretanto, esse não é o caso. Sendo assim, vivenciada pelos participantes como um mergulho profundo na selvageria, essa experiência grotesca, violenta e de extremo mau gosto mostrada num programa de televisão, nos leva a perguntar: o que se é capaz de fazer por 500 mil reais? E a triste e lamentável conclusão que chegamos é que, em um mundo dominado pelo capital, por 500 mil reais é possível comprar e vender até mesmo a humanidade de alguns. Por esse valor ou por outros até menores, encontramos quem extrapole qualquer limite, inclusive os limites mais fundamentais; aqueles que nos fazem pertencer à raça humana.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A Reforma Psiquiátrica Brasileira em movimento

Rita de Cássia de A.Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
rcaalmeida@ig.com.br


A estratégia que está sendo utilizada para desmerecer as Políticas de Saúde Mental defendidas pelo SUS é perversa e leviana. Temos assistido recentemente, inúmeras publicações e reportagens veiculadas pela imprensa, com a intenção clara de desqualificar os avanços da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a sua lei maior – a lei 10.216. São utilizados relatos de casos e situações de pessoas que se sentem desassistidas, não para lutar por avanços nessa política, mas sim, para fortalecer o imaginário de que tais pessoas estariam mais bem assistidas se os leitos nos hospitais psiquiátricos estivessem sendo preservados, o que não é verdade.

A história recente não nos deixa cair nesse engodo, pois a verdade é que os hospícios se transformaram em depósitos humanos e não em lugares de tratamento. A lógica do manicômio não trata, apenas "varre para debaixo do tapete". Portanto, o que vemos divulgados hoje são apenas as vicissitudes experimentadas por quem sofre de doença mental, e que se hoje podem aparecer na mídia, anteriormente ficariam exilados e silenciados por traz dos muros dos manicômios. Por outro lado, não é divulgado com o mesmo vigor, por exemplo, o fato da Reforma Psiquiátrica Brasileira ter sido recentemente convidada para servir de modelo para um programa global de saúde mental, a ser desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

É claro que ainda não chegamos onde pensamos poder chegar, precisamos avançar muito, ampliar serviços, criar novos dispositivos, abrir o hospital geral para as enfermidades mentais, ampliar assistência, mas não retroceder, acreditando que um maior número de leitos em hospitais psiquiátricos melhora a qualidade do atendimento.

Na verdade, essa não é nem uma particularidade da saúde mental, hoje sabe-se no mundo inteiro que avançar nas políticas de saúde não tem nada a ver com aumento do número de leitos hospitalares, a resposta está na prevenção, na atenção básica e nos serviços territorializados, de base comunitária. Nossa política de saúde mental atual, obviamente, tem lacunas, falhas e distorções, mas estamos caminhando na direção correta, ainda que não com a velocidade desejada.

Enfim, os hospitais psiquiátricos tiveram mais de 200 anos para se estabelecer e nos mostraram sua ineficiência, para não dizer sua desumanidade. O modelo que propomos ainda é uma criança, tem apenas 8 anos, se contamos como data de seu nascimento a lei 10.216 de 2001. Sendo assim, essa criança precisa de atenção e zelo para que possa crescer de forma a alcançar todo o seu potencial e não ser desmerecida e enfraquecida.