sábado, 23 de julho de 2016

Entre a nostalgia e o apocalipse: os aprisionamentos imaginários que nos fazem recusar o real presente no mundo virtual


Eu não sou afeita ao saudosismo. Não sou das que, nas conversas cotidianas, fica advogando do discurso do quanto “na minha época era melhor”. Até porque sempre penso que minha época é agora, pelo simples fato de que não posso viver em outra. Esse saudosismo impregnado nos discursos que vemos por aí também carrega um outro que me incomoda na mesma medida. Se o passado era muito melhor, ao futuro só cabe a catástrofe. Repetimos assim, a trajetória presente no drama bíblico: no passado temos o Paraíso, no futuro, o Apocalipse.

É muito comum, por exemplo, ouvir a minha geração dizer o quanto a própria infância foi melhor que a dos filhos. Obviamente que nada vai me demover da ideia de que minha infância regada a brincadeiras de rua – pique-esconde, futebol com trave de chinelo, fogueira na beira da calçada nas noites frias, captura de tanajuras em outubro, pera-uva-maçã-salada-mista, carrinho de rolemã morro abaixo, bicicleta sem freio e com garupa – foi insuperável, mas apenas porque foi a minha experiência de infância. Tenho certeza que a experiência dos meus filhos com a infância – já com a presença do computador, dos vídeo-games, da internet, do DVD – também será insuperável. Não ficará devendo nenhuma à minha.

Penso que essa sensação nostálgica de que o passado abriga uma vida melhor e mais feliz é tão somente uma prisão imaginária, que sempre carrega consigo uma outra: a de que ao futuro só cabe temer e esperar o pior.

Freud dizia que nossa existência é marcada pelo mal-estar, ou seja, nosso desarranjo com a existência é algo inevitável, já que é inerente à condição humana. Nossa relação com o mundo e, sobretudo com os outros, é profundamente marcada por essa dimensão trágica, não há como fugir disso. Sempre foi assim e sempre será assim. Isso quer dizer que o passado também abrigava seus mal-estares. Talvez seja apenas o distanciamento de tal passado que nos permita idealizá-lo a ponto de acha-lo mais colorido do que realmente deve ter sido. O futuro também terá seus próprios mal-estares, que ainda não conhecemos e talvez, por isso, nos assombrem tanto. Sobrevivemos aos mal-estares do passado então, podemos tranquilamente romantiza-los, o que não é possível fazer com mal-estares que nem mesmo conhecemos.

Mas minha proposta aqui é interrogar essas duas prisões imaginárias partido de um texto de Walter Moser - professor de literatura comparada da Universidade de Montreal - chamado Spaizet, que achei bastante potente. A proposta do texto é a de que estaríamos vivendo o tempo do Spatzeit; um momento de declínio, de perda de energia, de decadência, de saturação da Modernidade. Sabemos que a Modernidade desbanca o homem de suas certezas teológicas e é responsável por instaurar três grandes feridas narcísicas na humanidade: com Copérnico o homem não é mais o centro do universo, com Darwin o homem não é mais o centro da criação e com Freud o homem não é o senhor do seu próprio Eu. No entanto, se por um lado a Modernidade arrancou o homem do seu lugar de obra divina a ser resgatada pela salvação transcendente, por outro lado, prometeu a mesma salvação, desta vez por meio da ciência e das utopias de um Estado ideal.

Mas afinal essas promessas de salvação oferecidas pela Modernidade também não foram cumpridas. E diante da sensação de decadência dos ideais modernos vivemos entre duas possibilidades: uma nostálgica de que o passado era maravilhoso e promissor ou uma melancólica que pressente uma catástrofe iminente no futuro. Moser nos convida, entretanto, a tomar consciência de Spatzeit, ou seja, compreender a particularidade desse momento de esgotamento, de morte de uma era que levará ao surgimento de outra. Apenas tal consciência nos resgataria da paralisia trazida pelas prisões imaginárias no passado e futuro.

Creio que aqueles que não se prendem a essas duas prisões imaginárias conseguem fazer um uso mais potente e criativo do presente, e das possibilidades e instrumentos que este oferece. Isso nos faz mais abertos e preparados para as mudanças, as novidades, as inovações tecnológicas e científicas e também para as contingências que se apresentam. Mais preparados, inclusive, para enfrentar tais novidades de maneira ética e responsável.

Eu sou uma entusiasta das tecnologias digitais. Elas estão fundamentalmente presentes na minha vida e me abriram um mundo de possibilidades, especialmente no campo intelectual, que é o que me interessa. Eu sou uma devoradora de leitura e música. Já há muitos anos que eu desenvolvi um hábito de ler sobre tudo (qualquer assunto) e ouvir todos os tipos de música. Mesmo tendo meus estilos ou temas de preferencia eu sempre me abro à leitura de um tema ou ideia completamente nova ou até discordante da minha, e à escuta de músicas da maior diversidade possível. Acredito que este hábito mantém minha mente aberta e facilita minha produção intelectual. Antes da internet este era um ritual difícil de manter. Eu precisava recorrer às bibliotecas e ir para as lojas de venda de CD para escutar músicas no fone de ouvido, já que não podia adquirir todas as que gostaria de escutar. Hoje com a facilidade de acessar a internet do celular eu consigo fazer este ritual antes mesmo de me levantar da cama. Acordo cedo para fazer o que eu chamo de minha “ginástica intelectual”: acesso as redes sociais, leio sites de noticia, atualmente leio algo endereçado ao meu tema de doutorado e ouço pelo menos uma música que nunca tenha ouvido. Além da comodidade que a tecnologia me deu, a diversidade de possibilidades é de uma riqueza infinita. Me comove o tanto que posso alcançar em tão pouco tempo, com tanta facilidade e com um custo baixíssimo. Não consigo compreender quem não se encante com isso.

Entretanto, é muito comum, por exemplo, a tendência em simplesmente demonizar as tecnologias digitais (o computador, a internet, as redes sociais o celular e seus infinitos aplicativos). Nessa direção, qualquer discurso que venha servir de crítica ao modo de uso de tais instrumentos vem sempre na direção do “seria melhor se isso não existisse” ou “era melhor quando isso não existia”. Aprisionados na nostalgia do passado e temerosos diante da ideia do apocalipse, acreditamos que podemos criticar, criar linhas de fuga ou resistência negando ou fugindo da realidade que está posta.

Por isso, não defendo uma ideia que muito se propaga hoje de que a internet, as redes sociais e os celulares nos tornaram piores em nossas relações. É claro que tais espaços criaram novas formas de interação social e, portanto, novos mal-estares, mas são apenas mal-estares diferentes dos anteriores – nem melhores, nem piores. Se por um lado há uma queixa de estaríamos privilegiando as relações virtuais, por outro lado, este mesmo espaço virtual nos abriu possibilidades de relação e interação inimagináveis numa outra época. A mesma rede que pode nos afastar de muitos pode nos aproximar de muitos outros, ou seja, o que continua valendo é o nosso desejo de se aproximar ou se afastar de alguém.

Penso que as tecnologias e o mundo virtual são apenas instrumentos que ora vão nos causar facilidades e bem-estar, ora impedimentos e mal-estar, assim como tudo. Minha vida dentro da Matrix pode me aprisionar e embotar, mas também pode abrir um espaço de relação muito mais amplo e facilitado. No meu caso, por causa da importância da escrita e da criação deste blog, já tive a oportunidade de conhecer e interagir com blogueiros, jornalistas e escritores de diversas partes, sendo que alguns deles eu admirava na condição de fã. Tal espaço me rendeu amizades e interações riquíssimas que vieram até de outros países, viabilizou a publicação dos meus textos em outros espaços, me redeu entrevistas, parcerias, propostas de trabalho ou simplesmente bate-papos incríveis que jamais teriam sido possíveis sem a mediação das redes.

E sim! Sou uma adepta das redes sociais. Eu tenho amigos virtuais que nunca vi pessoalmente, mas que estão mais presentes na minha vida do que muitas pessoas que convivem diariamente comigo. Vejo gente que se acha na vanguarda por rejeitar as relações virtuais. Eu prefiro tirar delas proveito para ampliar meu mundo intelectual e afetivo, me manter informada, estimular minha capacidade crítica, ampliar minha possibilidade de escuta para outras verdades diferentes da minha. As redes sociais alimentam essa minha sede de ver e pensar sobre o mundo e escrever. Estou sempre aberta a conhecer pessoas novas, ideias novas, músicas novas, culturas novas e descobri que, já que não posso sair viajando pelo mundo sempre que quiser, posso fazer isso do meu PC ou do meu celular. Como isso pode ser ruim?

É claro que o universo virtual já me rendeu muitos mal-estares, desentendidos, desencontros, dúvidas morais e/ou éticas, mas eles são apenas um pouco diferentes daqueles que eu enfrento no chamado mundo real. Talvez a novidade torne tais mal-estares mais difíceis de manejar e enfrentar, mas uma coisa é fato, só aprenderemos a lidar bem com tais mal-estares nos colocando corajosamente diante deles, nunca rejeitando-os ou negando-os.

Trazendo novamente a psicanálise e o professor Moser para a nossa conversa, aceitar Spatzeit é aceitar a morte: nossa limitação, nossa castração. Aceitar a morte de modos de ser e de pensar que, por algum tempo, nos deram algumas certezas e nos mantiveram confortáveis. Aceitar o Spatzeit é aceitar o real, evitando ficar aprisionado nas idealizações, tanto do passado quanto do futuro. Nesse sentido, o universo virtual já é um espaço completamente real para o mundo de hoje. Assumir esse real pode ser também ressignificá-lo, reinventá-lo, revolucioná-lo ou simplesmente utilizá-lo em favor de novos modos de estar no mundo. Mas só podemos fazê-lo ocupando tal espaço. Não é possível revolucionar a Matrix estando apenas do lado de fora dela, é necessário estar dentro e fora, como bem relata o filme.