quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Temos salvação?

Por: Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista


Nasci em uma família católica praticante. Meu nome, inclusive, é resultado da devoção de meu pai por Santa Rita de Cássia. Fui educada sob preceitos religiosos, mas hoje, não me considero uma pessoa religiosa. Os dogmas religiosos me incomodam, assim como me incomoda qualquer tipo de saber dogmático que se defina como A Verdade, já que não acredito numa verdade única ou num modo único de ver e conceber o mundo. Por outro lado, não advogo em favor dos que acreditam que o discurso religioso é um discurso menor que o discurso científico ou filosófico, por exemplo. Acredito que são apenas modos diferentes de compreender o mundo e de dar respostas para as perguntas que nos inquietam, e por isso mesmo, o saber científico, ou qualquer outra forma de saber, dependendo da maneira como é tratado, também pode se tornar tão dogmático quanto o religioso.

Meu conceito de Deus, hoje, é muito mais filosófico que religioso. Penso que a angústia provocada pela nossa incapacidade de acessar o real da existência nos impele a recorrer a Deus ou a religião, afinal, é mesmo difícil suportar a ideia de “não saber”. Ou seja, Deus existe sim, penso eu, porque precisamos Dele. Se eu rezo? Sim, às vezes. Mas, hoje, muito mais para reafirmar a força de um desejo do que por acreditar que um Ser Superior vai me dar o que preciso ou me salvar de alguma intempérie.

Creio ter resumido nesses dois parágrafos minha visão metafísica da existência. Mas mesmo não professando uma religião específica, me interesso pelo tema. Penso na religião como uma das muitas formas de manifestação da cultura humana e quando serve para reduzir a angústia e a dor de existir e, sobretudo, para promover a vida, o amor, a solidariedade o respeito pelo outro e pela natureza, pode ser muito útil e saudável para a humanidade. Muitas religiões foram e são capazes de revolucionar positivamente o modo de pensar de uma sociedade. O Cristianismo, por exemplo, provocou uma revolução quando pregou o “amai-vos uns aos outros” no lugar do “dente por dente, olho por olho” do Antigo Testamento. A luta pacífica de Gandhi contra a opressão Inglesa é outro exemplo de ética religiosa que reformulou positivamente os paradigmas de uma sociedade. Algumas teses religiosas me agradam. Gosto, por exemplo, da ideia dos Santos inventada pelo Catolicismo. Os Santos nos fazem pensar que pessoas comuns, limitadas, imperfeitas, humanas ou pecadoras – como dizem os cristãos – também são capazes de atos extraordinários, nobres e heroicos. Também me interesso pelas religiões re-encarnacionistas, mas as que acreditam – como o Budismo – que o espírito pode encarnar também em animais e outros seres vivos. Agrada-me a ideia de pensar que a espécie humana não é a única a ter alma e, portanto, tão importante como as demais formas de existência. Religiões que possuem entidades femininas também me agradam. O Judaísmo e o Cristianismo são religiões extremamente patriarcais. Dentre as religiões cristãs, apenas o catolicismo, a meu ver, tenta incluir a mulher, ainda que muito timidamente, através da divinização de Maria, a mãe de Jesus, e na figura das Santas, o que acho interessante.

Resumindo, defendo o discurso religioso apenas quando ele serve como agente transformador de uma sociedade, melhorando-a, potencializando suas virtudes, inventado e promovendo princípios éticos que nos ajudem a viver melhor em comunidade. Um bom exemplo é a chamada Teologia da Libertação, movimento religioso genuinamente latino-americano, nascido dentro do catolicismo, cujo expoente brasileiro é o frei Leonardo Boff, e que promove um cristianismo em favor dos excluídos e contra todas as formas de injustiça e opressão. Movimento que, aliás, foi lamentavelmente abafado pelo Vaticano.

Por outro lado, há um tema que muito me incomoda no discurso religioso que é o dA Salvação, especialmente, da maneira como tem sido tratado nas religiões cristãs mais fundamentalistas. A ideia dA Salvação como uma conquista individual é, no meu entendimento, a pior forma de individualismo que pode existir e, associada ao discurso capitalista, produz uma moral ou ética existencial degradada, excludente e perversa. Segundo tal preceito o mundo ficaria dividido entre os que "estão salvos" e os que "não estão salvos", cabendo aos que foram agraciados com a salvação, ou seja, os “donos da verdade”, convencerem os demais a partilhar desta mesma verdade. E infelizmente, as formas de persuasão para aceitar tal verdade podem ser as mais degradadas e degradantes. Uma delas é o convencimento pela produção do medo (do Diabo, do Inferno ou de outro tipo de castigo divino). Além da estratégia do medo, também muito usada para sustentar outras formas de poder, fica implícita (ou explicita) em muitas religiões, a ideia de que a aceitação de certa verdade religiosa está diretamente relacionada com o que se está disposto a investir financeiramente na instituição que, supostamente, a representa. É como se O Paraíso estivesse com seus ingressos à venda em vários locais, sendo que, cada um deles propagandeia sobre a veracidade do seu ingresso e a falsidade do ingresso do outro.

No bairro onde moro é muito comum sermos abordados por religiosos em missão de evangelização, como dizem, e sempre me interesso em conversar com eles, obviamente, que tentando abalar suas certezas. Um dia desses, para meu desespero, ou desespero da missionária, o tema abordado foi A Salvação. Ela me garantiu que estava salva e me perguntou se eu também não gostaria de alcançar essa benesse. Perguntei a ela o que eu deveria fazer para tal e ela, notadamente satisfeita com a minha pergunta, tratou de traduzir para mim um sem número de citações bíblicas que falavam da necessidade de que eu aceitasse A Palavra de Deus. Depois de algum tempo escutando-a fiz o meu papel de advogada do diabo e perguntei: “Você está salva porque aceitou A Palavra de Deus ou aceitou A Palavra de Deus somente para ser salva?”. Ela gaguejou, titubeou e não respondeu. Espero tê-la feito pensar...

Estamos hoje diante da ameaça real de aniquilação da vida na Terra pelo esgotamento dos seus recursos naturais, resultado do nosso modo de vida individualista, imediatista e consumista. E então eu me pergunto? De que vale a salvação individual de uma alma post mortem se não garantirmos a salvação do nosso Planeta em vida? E fazendo uso do discurso religioso, se a Terra e toda a Natureza que ela guarda foram criadas por Deus, estaria Ele satisfeito com o propósito de que cada um salve a si mesmo ainda que não salvemos Sua Criação como um todo? Penso eu que o discurso ecológico genuíno (e não aquele travestido de ecológico só para nos fazer consumir mais, dessa vez, os produtos ecologicamente corretos) que busca novos paradigmas éticos e morais que garantam a salvação do nosso planeta e seus habitantes, inaugura uma ética diferente e que muito me agrada: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.

A tragédia que se anuncia nesse novo mundo que nos espera – ou que já se faz presente – nos faz pensar que o conceito religioso de salvação individual precisa ser superado, para dar lugar a uma nova ética na qual o fundamento primeiro seja a coletividade, e não apenas de humanos, mas, de todas as espécies viventes. Enfim, o que quero dizer é que nenhum projeto de salvação individual me interessa, porque não me faz uma pessoa melhor e porque também não será capaz de inventar um mundo melhor, menos individualista e mais solidário.