terça-feira, 8 de agosto de 2017

Eu tenho que perder a mania de prestar atenção nas conversas das pessoas em fila, ainda mais se o assunto for nossa situação política atual. Mas, infelizmente, quando se trata de tal tema eu ouço mais que o Superman. Preciso entender que, quando alguém puxa assunto de política com uma pessoa aleatória numa fila qualquer, a probabilidade de falar bosta é de 99% - eu não sei se vocês concordam.

Esta semana, estava eu numa fila e meu radar se antenou involuntariamente a uma conversa desse tipo entre dois sujeitos na minha frente. Em poucos minutos aconteceu de eu comprovar minha hipótese probabilística, o cara que puxou o assunto começou a girar sua metralhadora de merda. Quando ele conseguiu juntar numa mesma frase Venezuela, Bolsonaro e corrupção eu entrei em desespero. Eu não sei quanto a vocês, mas eu não consigo não me afetar nessa hora. Até por que já concluo que se trata de um representante vivo da espécie "pato-verde-amarelo-primeiro-a-gente-tira-a-dilma" que não aprendeu nadinha com nossa tragédia dos últimos meses.

Ainda bem que ele não puxou assunto comigo, pois minha mente fértil já tinha resgatado as aulas de kung-fu com Mestre Santos e misturado aos ensinamentos de Tarantino em Kill Bill, a fim de criar uma fantasia onde eu aplicava o golpe dos cinco pontos que explode o coração, do mestre Pai Mei. Todavia, sendo eu uma mulher que crê na importância de se respeitar as leis e regras de convivência que sustentam a cultura humana, preferi recorrer ao Mestre Nietzsche e catar na bolsa meu fone de ouvido sem-fio (coisa maravilhosa, aliás) e ligar no modo aleatório do Spotify. Música sempre me salva! Coincidência ou não em poucos minutos Chico cantava lindamente em meus ouvidos:

Pai, afasta de mim esse cálice! ♪♫♬

Amém! - eu orei com Chico - Amém!

Rita Almeida
Você sabe que seu filho cresceu e você também, quando ele te faz uma pergunta importante e sua resposta é apenas um "não sei" sem nenhuma angústia.
A parte mais difícil de ser mãe, no meu entendimento, não é trocar fraldas ou perder noites de sono, não é a preocupação diária nem mesmo as broncas infindáveis. A parte mais difícil são as primeiras vezes que você se sente, realmente, desnecessária.

A mágica da maternidade está muito ligada ao tanto de narcicismo que ela nos proporciona: nos sentimos importantes ou até imprescindíveis para alguém. Sendo assim, deixar cair esse lugar é a parte mais dura nessa jornada - eu acho.

É em nome desse narcisismo que acreditamos que sempre sabemos tudo e o que é melhor para nossos filhos. É em nome desse narcisismo que os esperamos acordadas quando saem à noite, acreditando que nossa insônia teria o poder de protegê- los do mundo lá fora. É em nome desse narcisismo que teimamos em ser as magas na previsão do tempo e as bruxas das poções mágicas. E é duro admitir que não somos nada disso. É difícil a travessia de assumir que somos apenas mulheres comuns que escolheram doar uma parte de si para outro ser (o que já é incrível).

Mas muitas mulheres, uma vez que foram mães, não conseguem fazer essa travessia de volta ao feminino. Me perdoem as que enchem a boca pra dizer que os seus rebentos sempre serão os "filhinhos da mamãe", mas eu não pretendo repetir tal mantra. Chamam isso de amor incondicional, eu chamaria de aprisionamento ao narcicismo da maternidade. Narcisismo que aprisiona mães e filhos

Tenho dois filhos adultos (22 e 21) para os quais já me sinto bastante desnecessária. Com minha caçula (de 11 anos) estou tendo as primeiras experiências de queda de lugar, e, como das outras vezes, não tem sido fácil, mas pretendo seguir na mesma direção. Óbvio que eu nunca deixarei de ser a mãe deles e que vou ama-los por toda a vida, mas eu espero ser, um dia, uma mãe totalmente desnecessária; ser capaz ama-los para além do meu narcisimo. E espero, também, ter o amor deles ainda assim. Quem sabe tenho essa sorte?

Rita Almeida
Eu comprando casaco com Geovana, minha filha. Vou pegando, nos cabides da loja de departamento em que estamos, as várias opções possíveis e entregando a ela, que ali mesmo vai experimentando a fim de escolher. Num determinado momento ela diz em tom de desespero:

- Mãe, para! Para de me dar opções ok? Não dá pra escolher com tantas opções!

Percebi imediatamente o que minha filhota tinha compreendido do alto dos seus parcos onze anos: ampliar o leque de opções de escolha não ter a ver, necessariamente, com liberdade, ao contrário, pode vir acompanhado por uma limitação, uma impossibilidade angustiante.

Me lembrei, imediatamente, de um livro que li recentemente chamado: O Fim do Homem Soviético. Nele, a autora, Svetlana Aleksievitch, recolhe depoimentos de centenas de homens e mulheres que experienciaram o fim da União Soviética, com a passagem do regime comunista para o capitalista. O que mais me chamou a atenção nos depoimentos foi que, na maior parte deles, a promessa inicial de liberdade da Perestroika, foi vivida, num segundo momento, com frustração e angústia. A esmagadora maioria dos entrevistados se queixa que a liberdade que lhes foi dada com o capitalismo, não foi a que esperavam ou pela qual lutaram. O que eles esperavam como experiência de liberdade era uma ausência de medo, mas, o que tiveram, na verdade, foram apenas mais opções de mercadorias para consumirem. Um dos entrevistados de Svetlana faz um questionamento que ilustra bem isso, e que me pareceu o que minha filha marca com sua intervenção ao meu ato de entupi-la de opções. Ele pergunta: “Uma pessoa que escolhe numa loja entre cem variedades de salame é mais livre do que a pessoa que escolhe entre dez variedades?”

O livro todo de Svetlana é um primor. Recomendo muitíssimo! Porque nos faz refletir sobre o conceito de liberdade que está para nós, que nascemos e vivemos sob a cultura capitalista. Para usar os termos de Lacan, se no comando do discurso capitalista está o consumidor – é ele quem tem sempre razão – então temos que: nosso fetiche seja comprar; nossa relação privilegiada se dá com os objetos-mercadoria (mesmo que isso signifique transformar tudo, inclusive pessoas, em mercadorias); e nosso conceito de liberdade, portanto, tenha relação direta com a ampliação do acesso a tais mercadorias. Em última análise, liberdade para nós, é sinônimo de consumo e dinheiro.

E é isso, exatamente, que a maioria dos entrevistados de Svetlana denuncia, afinal, eles esperavam um outro tipo de liberdade, uma liberdade que tivesse mais relação com a cultura; com ideias e palavras. Entretanto, para o espanto e angústia de muitos, o que o capitalismo trouxe foi tão somente a ilusória liberdade para escolher mercadorias o que, no final das contas, apenas os aprisionou ao imperativo do consumo. Lendo todo o livro é possível entender o quanto o conceito de liberdade é subjetivo, e do quanto ele é, para nós, pervertido pela lógica capitalista. Mas, o mais chocante para mim foi perceber que democracia não tem, necessariamente, nenhuma relação direta com a liberdade. Badiou tem razão quando diz que a democracia que vemos hoje se tornou apenas uma mascarada, um semblante para o capitalismo contemporâneo. Nossa democracia se tornou apenas via de acesso a um maior número de possibilidades, lugares e subjetividades para serem consumidas, e que fazemos consumindo nossa possibilidade de vida. Fora do consumo não somos cidadãos, nessa democracia que inventamos.

Ao escrever este texto, quis muito, num primeiro momento, que minha criança pudesse lê-lo a ponto de compreender a importância da sua conclusão na loja de departamentos. Mas, depois percebi o tamanho da minha arrogância, afinal, ela já entendeu tudo. Ela entendeu o quanto liberdade é um conceito subjetivo, a ponto de saber que reduzir as opções de escolha pode significar se libertar da pressão de ter que escolher. Ela entendeu que o tempo que ela gasta consumindo é tempo precioso, tempo que lhe roubam de vida e daquilo que realmente importa. E, sobretudo, ela entendeu que minha função de mãe/educadora é sim, muitas vezes, poupá-la do insuportável que é não ter nenhuma referência, nenhuma limitação. Ela entendeu que limitar não é necessariamente impedir, ao contrário, pode ser também tornar possível, viabilizar, tornar suportável.

Há uma corrente de pensamento no campo da educação (formal ou não) muito em voga ultimamente, que acredita que tanto melhor é uma educação quanto maior for o número de possibilidades que ela abrir aos educandos. Trazendo o discurso capitalista para nossa reflexão, a educação funcionaria como uma espécie de prateleira de mercadorias onde o educando poderá, dentro de um número infinito de possibilidades, escolher o que quiser, incluindo sua própria categoria subjetiva. Seguindo esse raciocínio, quanto menos castradora uma educação mais satisfatória e rica ela seria. Quanto maior o número de possibilidades ofertadas, especialmente às crianças, melhor para elas.

Entretanto, curiosamente, diante de tantas opções, o que vemos são crianças cada vez mais dispersas, desatentas, distraídas e desinteressadas, muitas delas frequentando categorias psiquiátricas para nomear e medicalizar sua instabilidade emocional, sua falta de atenção e sua incapacidade para lidar com limites e frustrações. Limites que nós não damos e que esperamos que elas encontrem por si só, sem entender o quão trágico e angustiante isso pode ser para elas. Se continuarmos perseguindo tal ideal de não impor limites para nossas crianças, imaginando que isso seria sempre traumático, chegaremos a um teatro surreal onde elas nascerão e não as ensinaremos a falar nossa língua, afinal, elas poderão querer escolher uma outra língua, uma outra nacionalidade, uma outra cultura. A língua materna é um bom exemplo para o que eu estou tentando dizer: ela nos limita sim a um vocabulário e um modo de dizer específicos, mas também é ela que nos possibilita, inclusive, a aprender outra língua.
O grito de minha pequena: “Mãe, para! Para de me dar opções ok?” é o grito de muitas crianças como ela, pedindo desesperadamente que as ajudemos na sua difícil tarefa de apreender este mundo. Nesse sentido, impor limites ao que é ofertado às nossas crianças, reduzir o número de “mercadorias na prateleira” para elas, é sim, possibilitar que elas sejam capazes de escolher. A princípio, ter duas opções pode ser melhor do que ter vinte, já que vinte opções pode significar não conseguir escolher nada e mergulhar no caos e na angústia.

Mas o que eu queria mesmo dizer é que o ideal educativo de hoje, travestido de moderno, possibilitador e livre de traumas, pode ser apenas o imperativo capitalista atuando com toda a sua perversidade: Consuma! Não há limites para consumir! Que bom que tenho uma filha pra me lembrar disso, provavelmente por que ensinei a ela, meio sem saber que ensinei.

Ah! Quanto às compras dei a Geovana três opções de escolha de casaco, não ofereci outra loja pra ir, e disse a ela qual deles eu tinha gostado mais, dando a ela a possibilidade de acolher ou rejeitar a minha opinião. Ela aceitou minha opinião dessa vez, mas eu sei que é por pouco tempo (risos).

Rita Almeida
Tive a infelicidade, agora, de ver um pedaço do Fantástico (sem querer) pra ouvir um psiquiatra explicando o transtorno de personalidade borderline, a fim de justificar o porte de 130kg de entorpecente e fuzil por um branco de classe media alta, filho de desembargadora.

Segundo o psiquiatra o rapaz, com seu transtorno, seria alguém com dificuldades de tolerar a frustração e respeitar as regras e a lei.

Se fosse preto e pobre como é mesmo o nome que a gente usaria?

Bandido é o nome.
Minha meta de vida é não julgar ninguém por suas crenças e escolhas, mas algumas coisas, realmente, me fogem a compreensão. Por exemplo, o que faz uma pessoa pensar que a sobrevivência dela a um acidente de avião onde morreram todos os demais, incluindo amigos seus, foi um milagre? Ela acredita que Deus permitiu que todos morressem menos ela, porque se sente tipo um escolhido privilegiado? Alguém me ajuda a entender uma coisa dessas sem pensar que essa pessoa é alguém que precisa se achar a última bolacha do pacote ou que Deus é um sacana perverso?
(Não são perguntas retóricas, quero mesmo saber)

Rita Almeida
Eu tenho 3 filhos: 22, 20 e 10 anos. A respeito de todos eles sempre ouvi um comentário semelhante: "Nossa! Como seu filho ou filha é educado/a!" Eu realmente não sei se dizem a verdade ou se falam isso pra me agradar, mas suponho que seja verdade, porque poderiam escolher outro tipo de elogio e sempre fazem esse.

Nós (eu e o pai deles) não temos nenhuma receita para educar, cometemos muitos erros, nos sentimos culpados inúmeras vezes, e em muitas outras nos apoiávamos um no outro apenas para tomarmos juntos uma decisão, mesmo que isso significasse fazer uma burrada juntos. E fizemos muitas - eu sei - mas acho que acertamos em muitas outras.

Tentamos não ser moralistas para educá-los. Respeitar a lei e as regras de convívio social é importante, mas a moral pode ser relativizada, discutida e questionada. Sempre.

Também tentamos não fazer uso de nenhum tipo de medo externo (de Deus, do inferno, da polícia, no "velho do saco"). Se eles tivessem que ter medo que tivessem de nós: pai e mãe. E metemos medo, sim, se for preciso.

Mas tem uma coisinha que acho que foi a mais fundamental e que nunca tivemos pudor de usar. Uma palavrinha curta, simples mas importantíssima:

NÃO

Educar pressupõe dizer não muitas vezes, muito mais vezes que gostaríamos de dizer. Quem não sabe dizer não para uma criança não será capaz de educá-la.

Rita Almeida

Flamengo, meu amor!


Tenho aversão a fanatismos de qualquer espécie, “prefiro ser essa metamorfose ambulante” em quase tudo. Flamengo é o nome do fanatismo que eu me autorizo. Flamenguista é, talvez, a única coisa que eu estou certa de ser até morrer, sobre todo o resto estou em aberto. A identidade de ter um time de futebol é algo tão fundamental pra mim que acho estranho quem diz que não torce pra time nenhum. Imagino que deva ser um vazio imenso. Como assim, nenhum time de futebol pra chamar de seu? E no meu vocabulário não tem essa de trocar de time. Aliás, existem dois tipos de pessoa que eu olho com desconfiança: as que não gostam de gatos e as que são capazes de trocar de time. Pode até ser preconceito de minha parte, mas acho que quem é capaz de mudar de time é capaz de qualquer coisa.

Eu sou flamenguista de berço – herança paterna que eu não reneguei – mas aprendi a amar o Flamengo, de fato, em 1981, aos 12 anos de idade, numa época em que era extremamente fácil se apaixonar pelo time rubro-negro. A geração de 1980 a 1983 foi a mais vitoriosa do clube e das coisas mais sensacionais que o futebol brasileiro já viu. Assim, tive o privilégio de me apaixonar por futebol ao mesmo tempo em que me apaixonei por aquele Flamengo, tão belo quanto vitorioso.

A fim de reverenciar aquele elenco dos sonhos, eu poderia falar de Zico – sem duvida o maior craque rubro-negro de todos os tempos – eu poderia falar de Adílio, de Tita, de Júnior, mas vou falar daquele que plantou definitivamente meu coração no Flamengo. Vou falar de João Batista Nunes de Oliveira – o Nunes. Nunes foi o segundo homem que fez meu coração bater mais forte nessa vida. O primeiro foi Herivelton, que não era exatamente um homem, mas um garoto da escola, por quem fui apaixonada. Ele nunca soube disso, eu acho. Bastava Herivelton me pedir a borracha emprestada para eu quase botar o coração pela boca. Nessa época, sem Facebook ou WhatsApp, a gente mandava indiretas amorosas emprestando ou pedindo a borracha emprestada.

Mas voltando a falar de Nunes, foi ele quem me ensinou a amar futebol e o Flamengo. Aqueles cabelos encaracolados e balançantes, a precisão oportunista na hora de fazer o gol e aquele shortinho curto para homens que só os anos 80 conheceram, foi o que de mais sexy minha mente de garota de 12 anos pôde alcançar. Nunes era para mim o homem mais lindo do mundo, depois de Herivelton, é claro! E eu guardei na memória o lance em que o jogador me arrebatou e entregou meu coração de vez ao Flamengo e ao futebol.

Lógico que eu já estava enamorada pelo time assistindo com meu pai a campanha do Flamengo naqueles anos de 1980 e 81, mas teve o momento exato onde o arrebatamento aconteceu, e eu me lembro como se fosse hoje: Era a final do Campeonato Mundial Interclubes contra o Liverpool, Nunes recebe um lançamento preciso de Zico pela meia direita (daqueles que Zico sabia fazer como ninguém) e sai em velocidade com a bola, acertando o canto esquerdo do gol adversário. Eu nunca mais esqueci aquele gol. Não sei se gritei, se comemorei, só me lembro de estar na sala da nossa casa na época, e de um arrepio que invadiu todo o meu corpo. Naquele momento, entendi a mágica do futebol e o tipo de emoção que ele poderia me dar. Naquela fração de segundos eu entendi a beleza que era torcer pelo Flamengo.

Só digo que o que eu senti foi amor sim! Amor de puro encantamento. Amor para a eternidade. Amor fanático e cego pelo manto rubro-negro. Amor pela emoção de celebrar o gol do time que faz meu coração bater mais (des)compassado que o normal. E, sobretudo, amor pelo futebol; esse esporte lindo, mágico e encantador. Amor devotado pelos que sabem dominar a bola com os pés, mas que apenas os melhores sabem como fazer isso usando a cabeça. Ah, os inteligentes com a bola nos pés! Esses eu reverencio com minha alma.

Pra finalizar deixo aqui toda minha gratidão e uma declaração apaixonada a Nunes, meu primeiro e inesquecível amor em campo.

Vida longa ao futebol!

Flamengo, meu amor!

Rita Almeida
Orientação espacial nunca foi meu forte. Sou capaz de me perder no supermercado, entre a sessão de material de limpeza e a de bebidas; é constrangedor. Minha sorte é ter o sol em peixes pra poder botar a culpa no signo. Ter que assumir sozinha minha incapacidade para saber “de onde vim e para onde vou”, não sendo essa uma questão filosófica, seria muito frustrante.

Eu sempre achei que isso iria melhorar com a idade, que fosse algum tipo de imaturidade ou inabilidade que ao longo da vida pudesse ser treinável, mas ao contrário, a coisa vem piorando. Por outro lado, a maturidade, se não ajudou a me orientar melhor, me ajudou a não ficar tão incomodada com essa minha deficiência, afinal, ela rendeu alguns atrasos e enganos, mas, por outro lado, muitos caminhos novos e histórias pra contar.
O mais engraçado é que meu companheiro de viagem (que por convenção chamo de marido) também não é lá muito bom nesse quesito. Já nos perdemos muito em 26 anos de estrada juntos; eu, por ter um universo mental povoado e intenso demais, e ele, por necessidade de falar e socializar. E não houve tecnologia que nos livrasse de tal sintoma.

Na nossa “lua-de-mel”, pra vocês entenderem, decidimos sair “sem rumo” na Brasília 76 dele. Com pouco dinheiro e muito amor, o “sem rumo”, no nosso caso, foi levado ao pé da letra. Quase chegamos em Visconde de Mauá tentando ir a São Tomé das Letras e passamos uma tarde em Baependi acreditando estar em Caxambu. Se essa coisa desorientada transmitir por genes, nossos filhos estão ferrados, coitados. E vocês acreditam que até hoje ele espera que eu o ajude a se orientar numa viagem? Aconteceu agora, de novo. Me comove isso! É quando tenho certeza que ele me ama. Esperar o melhor de alguém no seu quesito mais débil – se isso não é amor eu não sei o que pode ser.

O fato é que nunca superamos esse problema comum. Volta e meia erramos um caminho. Aconteceu agora, de novo. Tô escrevendo esse texto por isso. Mas, apesar de não termos superado a nossa tendência para perder o rumo, paramos de culpar ou ficar bravos um com o outro quando acontece. A gente ri e inventa outro roteiro. Aconteceu agora, de novo.

Eu disse a ele que temo pela nossa velhice juntos, se assim acontecer. Mas, em seguida achei bobagem minha. Vai ser como sempre foi: vamos sempre poder escolher se ainda queremos nos perder juntos ou não, se é que vocês me entendem.

Rita Almeida

Das contingências

Eu e uma amiga, numa mesa de bar na calçada, abordadas por uma senhorinha sorridente, que diz ter nos achado lindas. Perguntou se éramos irmãs, deixou um abraço pras nossas mães e, antes de seguir seu caminho, pediu que Deus nos abençoasse. Espontaneidade, delicadeza e alguns poucos minutos, que interromperam nossa conversa, roubaram nosso sorriso e algumas palavras de gratidão.

A tal senhorinha não saiu da minha cabeça por dias, e nem entendi muito o porquê, a princípio. Só depois... É que ela me fez pensar o quanto eu amo o acaso. Tenho fé profunda naquilo que me surpreende.

Hoje, me agarro a muito poucas crenças, fui perdendo quase todas ao longo da vida. A crença é algo que nos orienta, é verdade, mas que, por outro lado, nos prende a uma verdade, assim, optei por abrir mão de quase todas. Tenho uma para conseguir levantar da cama pela manhã e tomar meu primeiro café, e algumas poucas que não me deixam desistir no meio do dia. Já pra dormir, eu não costumo usar nenhuma crença, só o cansaço, isso quando a angústia não chega primeiro.

A tal senhorinha me fez lembrar que eu creio, sobretudo, na sinceridade e espontaneidade do acaso, pois só o acaso pode ser totalmente autêntico; descolado de qualquer protocolo, arranjo, sintoma ou repetição. E quando ele vem acompanhado de beleza e delicadeza, é das coisas que, realmente, vale a pena acreditar. Eu só me levanto pela manhã porque creio que, naquele dia, o acaso vai me presentear com sua sinceridade espontânea. Creio profundamente nas contingências da vida, num evento inesperado que interromperá minha agenda, interceptará meu caminho e me fará sair da rotina ou olhar em outra direção.

Minha oração diária tem sido: Vamos lá vida! Me surpreenda! Mas vem com beleza e delicadeza, sua linda! É que eu sou frágil.

Rita Almeida
Entro eu na academia hoje cedo a fim de cumprir a árdua tarefa de lutar contra a lei da gravidade, excessivamente cruel pras mulheres com mais de 40, e Ludmilla já está lá, tocando no volume máximo:

"Cheguei! Cheguei chegando, bagunçando a zorra toda ♫♪♬"

Eu geralmente não curto muito as músicas que tocam em academia, mas a batida de Ludmila nesta manhã combinou com meu humor ("e que se dane, eu quero mais é que se exploda♪♫♬") e já me deu vontade de ir pra frente do espelho balançar a “raba” até o chão ("porque ninguém vai estragar meu diaaaa♪♫♬").

Eu tiro onda de cult e sofisticada quando o assunto é música, mas admito que minha bunda se agrada de qualquer batida que lhe faça sacolejar. Com o samba eu posso manter o rebolado num padrão elegante, mas a verdade é que este também adere fácil ao populacho: pagode, funk e até música baiana. Meu passado é temerário ao som de É o Tchan, confesso. Me julguem!

Por vezes, eu sofro quando minha bunda não acompanha minha onda de intelectual (daqui a pouco estarei atracada com Derrida), sinto culpa e constrangimento, mas fazer o quê? Ela tem vontade própria. Freud já avisava que nosso eu não é capaz de comandar totalmente nossos pensamentos e atitudes, eu acrescentaria: nem a nossa bunda. Quem sabe na Europa isso seja mais possível, mas não no Brasil.

E Ludmilla continua: "se não gosta, senta e chora. hoje eu tô a fim de incomodar♪♫♬" Como resistir?

Aliás, acho tosca essa separação que fizeram da consciência e a bunda, da alma e a bunda, da razão e a bunda, da filosofia e a bunda. Dizem que separar a alma da bunda foi coisa do cristianismo e que, quem cindiu a consciência da bunda foi Platão. Sei lá! Só acho que é dualidade demais pra ter que lidar, a vida já é difícil, porra! Respeito Freud porque ele tentou dizer que a bunda tinha a ver com tudo isso aí, e que, aliás, ela tá mais no comando do que a gente poderia imaginar. Mas tem gente que não entendeu isso até hoje, e acha que a bunda pode ficar descolada do nosso cotidiano. Lamento por esses.

Eu tenho seguido no esforço de não reprimir ou desprezar as dicas da minha “raba”, entendi que ela tem sua sabedoria e uma forma própria de comunicação com o Universo. Quando estou feliz e quero festejar, ofereço meu rebolado como gratidão. Mas quando bate a angústia, a tristeza e aflição eu me entrego a um quadradinho ("pode me olhar, apaga a luz e aumenta o som♪♫♬"), um requebrado, um remelexo, e tudo fica mais leve, mais fácil.

O rebolado é a Inteligência da bunda, eu diria, inteligência que podemos usar a nosso favor, afinal, há de se ter muito rebolado pra levar essa vida, né não? ("se não gosta, senta e chora. mas saí de casa pra causar♪♫♬"). Ou as vezes, o único jeito mesmo é "quebrar tudo".

Obrigada, Ludmilla!

Eh nois!

Rita Almeida
Só passei pra avisar que minha máquina de lavar que estava totalmente surtada (não sabia exatamente a hora de lavar, enxaguar e torcer, eu precisava programar tudo manualmente), voltou a se orientar de novo milagrosamente. Ela acabou de me agradecer por ter dado esse tempo pra ela, de não ter desistido e comprado outra máquina. Disse que já se apegou à família e à nossa rotina de quarta, sexta e sábado. Eu também agradeci a ela por ter voltado, por cuidar da nossa roupa por esses anos todos e por ter evitado que eu gastasse uma grana que não tenho agora.

Por estar um tempo "ausente" ela me perguntou das novidades e acabamos caindo no tema da política. Ela, bem humorada, me perguntou qual parte do áudio do Jucá nós estávamos e se o Aécio já tinha sido comido. Falei que o Aécio tinha sido comido sim, mas que, por algum motivo, tinha sido regurgitado. Acho que ela não entendeu bem o sentido do "regurgitado" porque disse:

- Eu entendo. Intragável aquele um. Se caísse aqui na minha cesta de lavagem eu o cuspiria fora também.

Rimos muito. Eu achei melhor deixar assim e não explicar a ela que "regurgitado" tinha o sentido de: "passaram o pano" na sujeira do fulano e fingiram que nada aconteceu. Vai que ela surta de novo! Eu amo aquela máquina!

Enfim...todo mundo merece ser poupado de muita realidade quando o tema é nossa situação política atual e nada melhor que tempo e paciência pra curar uma loucura passageira ne?

Rita Almeida

Relatos Selvagens na agência bancária


Se tem um lugar que não tem nada a ver comigo é agência bancária. Só frequento porque o capitalismo me exige. Tipo de lugar que eu já entro querendo sair. Tudo me irrita ali, especialmente aquela porta giratória que continua travando mesmo que você se sinta nua. Sempre visto minha pior cara pro guarda que libera a trava da porta, pra ver se ele sente medo e me deixa passar sem que eu precise arrancar até da restauração do dente, mas desconfio que isso provoque o efeito inverso. Sabe aquele fetiche de sacar dinheiro no caixa eletrônico? Não tenho. Minha alma é socialista nível hippie/morador de rua por opção. Por mim, ainda estaríamos fazendo escambo. Eu bem sei que teria dificuldades com isso: “Vem cá que eu escuto 30 minutos da sua história de amor por um pacote de arroz e dois de feijão.” “Toma aqui uma poesia fresquinha e me dá duas pizzas; uma marguerita e uma portuguesa.” Mas meu coração diz que seria lindo.

Então eu já entrei no banco naquele dia com meu pior humor; humor de agência bancária. E no nível master, porque precisaria ultrapassar a maldita porta giratória. Antes, fui pegar minha senha. A fila da senha é a fila pra não ficar na fila, ou pra te fazerem acreditar que você não vai ficar na fila, mas a verdade é que você vai. Naquela espera já me irritei um pouco mais ao lembrar que o governo anistiou dívidas bilionárias do Itaú, Santander e do Bradesco, e se recusou a reajustar o Bolsa Família alegando falta de recurso. E tem gente com dó de vidraça de banco em manifestação. Aff! Meu humor bateu lá no sarcasmo.

Minha vez na fila da senha. Expliquei pra mocinha que precisaria fazer uma transferência de valores pra outro banco, já que não estava conseguindo fazê-la no caixa eletrônico, como me foi prometido quando me obrigaram a trocar de banco a fim de receber meu pagamento. Eu já odiava ter um banco e estava condenada a lidar com dois. Malditos! Pensei. A mocinha, muito simpática, me deu o papelzinho com o número e me orientou para onde deveria me dirigir.

Passei pelo vestibular da porta giratória com êxito e me sentei no local indicado. Ainda bem que existe smartphone e redes sociais (aliás, só isso me impede de assumir completamente minha alma hippie). Me entreti com os memes até chegar minha vez, uns 30 minutos depois. Expliquei minha dificuldade para o rapaz que soltou um “sinto muito” para dizer que só o “meu gerente” poderia resolver meu problema. Que eu poderia pegar a senha do caixa para fazer a tal transferência e esperar o “meu gerente” voltar do almoço para resolver o restante com ele. No mesmo segundo infinitesimal em que achei o fim da picada ter um gerente de banco pra chamar de meu – tá aí uma coisa que eu dispenso totalmente – o sangue subiu. Me levantei da cadeira e soquei na mesa do atendente a bolsa que estava no meu colo. Diante das categorias, luta ou fuga, escolhi a luta.
O problema de ser metida a intelectual é que até pra fazer um barraco a gente faz citação. Perguntei, então, ao atendente:

- Você assistiu Relatos Selvagens?

Ele não respondeu. É possível que não tenha assistido o filme, mas, com certeza, já assistiu os indícios de uma mulher prestes a enlouquecer. Eu sentia meu sangue queimando os olhos. Encarei-o, aproximando meu rosto em direção a ele e continuei na toada do filme:

- Pois eu estou com o humor da noiva que descobriu a traição na noite do casamento e a disposição do engenheiro “bombinha” pra explodir essa porra toda. Ou você resolve isso pra mim agora ou vamos ter problema.

Ele não teve outra opção. Disse a senha: “vou-ver-o-que-posso-fazer” e saiu com o rabo entre as pernas. Voltou em alguns minutos com outro homem que se apresentou como o “meu gerente” - ao que parece, este voltou do almoço milagrosamente. Pensei em fazer um discurso filosófico/analítico pra dizer que àquela altura da vida não precisava de nenhum gerente, já que me interessava mais o inesperado, as contingências e surpresas da vida, mas decidi me calar e resolver logo o problema que me faria ir embora daquele lugar. “Meu gerente” me convidou, delicadamente, para outra mesa e fez tudo que eu precisava, me ofereceu até café – que eu nunca rejeito.

Confesso que, naquele dia, saí da agência bancária mais satisfeita do que entrei. Pensei que devia ter aproveitado minha ira pra gritar a plenos pulmões:

-Malditos capitalistas financeiros devoradores de gente e humanidade!!

Mas logo percebi que estes não estariam ali para ouvir. Na agência, tanto na categoria clientes quanto na de empregados, só havia trabalhadores como eu. Tive pena do rapaz que teve que se haver com meu barraco à luz de Relatos Selvagens. Da próxima vez me desculpo e faço a indicação educada do filme.

Rita Almeida

Por que as mulheres de silicone são as ideais para os homens que temem as mulheres? Ou sobre os desencontros do amor romântico nos nossos tempos

“Japoneses perdem esposas e encontram o amor em bonecas de silicone. Elas vêm com cabeça e vagina desmontáveis.” Esta manchete de uma matéria publicada no G1 ontem, 01 de julho, emenda bem com outra do El País, do último dia 20, que também trata da realidade das relações afetivas no Japão. Esta última afirma que, mesmo os jovens, evitam contato físico e preferem os relacionamentos virtuais ou com máquinas. Fala-se de uma geração que não sabe se relacionar afetivamente. Tais publicações me lembraram ainda, um documentário que assisti há algum tempo, também sobre a sociedade japonesa, chamado: O império dos sem sexo – o nome já diz muito por si mesmo.

Entretanto, penso eu, isso que se apresenta para os japoneses numa dimensão de radicalidade, é uma realidade muito presente também no ocidente atual; um crescente desencontro das relações afetivas. Se em algum momento do passado homens e mulheres tinham suas posições e funções claramente definidas e os homossexuais estavam condenados a viver nas sombras ou “dentro do armário”, tais desencontros não eram tão evidentes. Numa relação de poder totalmente demarcada pelo domínio dos homens, os mal-estares eram mais “silenciosos”, já que suportados em submissão por mulheres e homossexuais, obviamente.

Mas a chamada revolução sexual garantiu a desestabilização do poderio masculino, tanto fazendo com que as posições e funções vinculadas aos gêneros se relativizassem, quanto garantindo que mulheres e homossexuais não se mantivessem mais tão calados diante do mal-estar das relações. E se, como diria Freud, o mal-estar é elemento intrínseco e inevitável ao laço, o que aconteceu é que tal mal-estar transbordou e, hoje, aparece escancarado e atinge a todos. Assim sendo, tal desencontro comparece tanto nas relações hetero quanto nas homossexuais. Entretanto, talvez possamos dizer que nas relações heterossexuais este mal-estar se aprofunda na medida em que o sujeito “escolhe” se relacionar com o outro sexo, o diferente, e não com o semelhante.

Vejamos então que, especialmente no campo das relações heterossexuais, uma coisa se mantem e comparece nas matérias e no documentário citado: muitos homens ainda esperam por mulheres mortificadas, que não os ameace, que não os castre em sua posição de poder. Isso faz das bonecas de silicone as mulheres ideais, em especial para os homens que temem o poderio e o desejo femininos. Mulheres de plástico não demandam, não se queixam, não enlouquecem, não falam, não gozam e estão sempre disponíveis, ou seja, ocupam sem constrangimento ou incômodo a posição de objeto para eles. O fato de uma das matérias destacar, já no título, que nas bonecas do amor a cabeça e vagina são desmontáveis, diz muito sobre o tipo de mulher que esses homens procuram. A mulher ideal para o homem que se sente fragilizado diante do outro sexo é aquela que só comparece quando ele assim o desejar e do modo que ele desejar, aquela que é capaz de separar a cabeça ou o corpo da própria vagina.

Por outro lado, as mulheres reais de hoje em dia, em geral, não aceitam mais renunciar ao próprio desejo. Como resultado, temos homens infantilizados ou fóbicos para o afeto. Com muita prevalência, quanto mais nós mulheres colocamos em jogo nosso próprio desejo, mais os homens se sentem ameaçados e recuam, sendo possível numa situação extrema como na do Japão, se sentirem muito mais à vontade com mulheres de plástico. Mas afinal, como sair desse impasse sem perder nossa disposição para o romance?

Penso que a via de escape só pode acontecer pela construção conjunta e pela disposição para o encontro vindo dos dois lados. Obviamente que era muito mais fácil para o sustento de uma relação quando as mulheres se dispunham a renunciarem ao próprio desejo. Eu disse melhor para a relação, mas não para as mulheres, é claro. Hoje, com homens e mulheres numa relação de poder mais horizontalizada e com papéis e atribuições não tão definidos, há de se dedicar esforço e investimento muito maiores para que um relativo equilíbrio se estabeleça. E trata-se de uma construção diária e contínua, por vezes dispendiosa e cansativa. Mas, se não queremos apelar para a recusa do sexual, tal como tem acontecido com os japoneses num nível extremo, ou recuar dos avanços que o movimento feminista trouxe para as mulheres, como defendem alguns movimentos religiosos e/ou políticos reacionários, temos que continuar no esforço dessa construção cotidiana, que cada par fará a seu próprio modo e a cada vez.

Primeiramente, suponho que seja necessário que o casal se desarme; os dois. Talvez hoje, mais do que nunca, o verbo amar só se conjugue para os que estão desarmados. Nós mulheres sempre estivemos mais dispostas para assumir uma posição desarmada, mas agora os homens também estão sendo convidados a isso. A boa notícia é que, se o feminismo produziu, juntamente com mulheres desejantes e vívidas, homens inseguros e fóbicos para a relação, também produziu outros, especialmente os da nova geração, que entenderam que se desarmar, se livrar da necessidade de controlar e ter poder, pode ser um alívio e não uma perda. Os homens que estão se dispondo a aprender com o movimento desejante das mulheres (e eles existem sim garotas!) são homens mais leves, mais abertos, mais flexíveis e, portanto, mais livres. Percebo uma geração de homens que já chegou num mundo de mulheres ativas e atuantes, e que não se sentem perdendo ou competindo com elas, mas em parceria, construindo junto.

Nesse sentido, no meu entender, não cabe às mulheres se armarem do lado de cá. Trocar de posição com o homem não resolve a questão e não nos fará mais libertas, ao contrário. Se o feminismo pôde nos ensinar uma coisa foi que se fixar em um papel e uma posição de poder cristalizada não é interessante pra ninguém. O lugar da vítima pode ser tão aprisionador quanto o do algoz, ainda que este último, a princípio, sofra menos.
Voltando às bonecas de silicone é lamentável que o desencontro entre os sexos, que será sempre irreparável (não existe a metade da sua laranja), tenha chegado ao ponto de inventarmos um amor de prótese. Imaginamos que esse seria um último recurso para os solitários que não tiveram outra opção, tal como o personagem de Tom Hanks, no filme Naufrago, ao criar Wilson a partir de uma bola de voleibol.

Por fim, é isso: o mal-estar é inerente às nossas tentativas de laço amoroso, seja de que natureza for. Por outro lado, sem ele, a maioria de nós se sente manco, triste e solitário, as bonecas japonesas estão aí para provar isso. E como diria minha xará Rita Lee: “ai de mim que sou romântica”, então, ainda sou partidária por sofrer de amor se a outra opção é amar um ser de plástico ou mortificado no seu desejo.

Amém!

Rita Almeida
Não me cobre sensatez
Não me cobre coerência
Não sou capaz de encontrar algo do tipo
Nem mesmo em frente ao espelho

Minha sobrancelha direita
Nunca combina com a esquerda
E sempre tenho mais sinais no rosto do que gostaria

Não espere que eu creia na organização do mundo
E nas estátuas erigidas em homenagens póstumas
Se meu corpo é recortado pelo desejo
Quebrado, mal-dito

Não espere de mim complacência
Quando você supõe que eu siga a estabilidade das leis
Se meus hormônios não obedecem a lei alguma
Eu sempre me pareço mais com meu avesso
Mora em mim uma santa e uma louca

Não pense que é fácil lidar com esse caos
Encontrar a maquiagem no tom exato
E um corte de cabelo que funde um mínimo de amor próprio

Não cobre perfeição de quem já nasceu inexata
Não queira que eu mate a estranha que mora em mim
Você não me suportaria sem ela

Rita Almeida
Sobre aquele dia que tudo dá errado

Você acorda atrasada
Enfia a roupa do avesso
E se veste com os piores pensamentos

Derruba café na mesa
Quebra a xícara
E se corta recolhendo os cacos

Guarda memórias importantes no congelador
Sai de casa sem ter certeza se colocou comida pro cachorro

Toma o ônibus errado
Escolhe o humor errado
Manda mensagem errada pra pessoa errada
Tropeça três vezes no ego
Até pisar em sensações desnecessárias
Depois se atrapalha limpando o sapato
E percebe que calça meias de pares diferentes

Decide chorar debaixo dos óculos escuros
Borra todo o delineador
E ao tentar limpar o estrago
Deixa cair o espelho da bolsa, que se espatifa
Mas sente que sete anos de azar não podem ser tão ruins quanto aquele dia

Pra acabar, você esbarra com um conhecido estranho que lhe faz aquela pergunta clássica:
- Oi!! Tudo bem?
E se sente mal com a cara de tacho que ele te olha, por não entender sua resposta:
- Vou indo...e como diria Chico: "To me guardando pra quando o Carnaval chegar"

Rita Almeida
Amor não cabe num substantivo
Amor é verbo
Intransigente
Algumas histórias só podem ser contadas depois de um tempo...

Certa vez, se instalou numa pequena garagem em frente a minha casa uma Igreja Evangélica, dessas cujo Deus parece ser surdo. Os cultos eram praticamente diários e triplicavam no fim de semana, e o som insuportavelmente ruim e muito, muito alto. Eles tinham uma banda inteira com bateria, guitarra e tudo.
Inicialmente tentamos nos adaptar à nova vizinhança mas foi realmente impossível. Quem me conhece sabe do meu nível de tolerância e de cuidado para não descambar pelo preconceito, mas, apesar do meu esforço, em poucas semanas, a situação ficou insustentável.
Meu marido, que também é um cara extremamente tranquilo e sociável, tentou, tal como eu tentei, todas as conversas possíveis com o Pastor. Até ameaçou fazer amizade com o dito pra ver se ele baixava o som, mas nenhuma medida diplomática adiantou.
Em seguida, partimos para as medidas legais. Acionamos a prefeitura, que veio medir os decibéis do som e notificou o estabelecimento, orientando-os a baixa-lo, mas isso também não fez nenhum efeito. Enquanto eles buscavam o céu com aquela gritaria, nós vivíamos num inferno.
Foram meses a fio naquele tormento diário e sem solução, até que, certa vez, numa tarde de sábado meu marido perdeu de vez a paciência. Ele tentava mais uma vez dormir, depois de ter passado a noite de plantão trabalhando. Eu estava na cozinha, ouvindo Black Sabath nos fones de ouvido pra não ouvir a pregação em línguas do Pastor, quando ele entrou transtornado, aos gritos:
- Hoje eu resolvo essa porra! Vou sair e vou comprar um revólver!
Imediatamente já imaginei a tragédia inteira, incluindo eu, pelada, agachando 3 vezes na fila da cadeia para visitá-lo aos domingos. Botei meu corpo na frente para impedir que ele saísse daquele jeito e disse:
- Revolver não! Vamos pensar em outra coisa! Mas, revólver não!
Ele então emendou:
- Então eu vou comprar um som. Um som maior e mais potente que o deles.
Eu, mais aliviada aceito a proposta
- Isso! Vai lá! Pode gastar todas as nossas economias, fazer 48 prestações, mas compra o maior som que você encontrar.
Ele, então, sai enfurecido de carro. Eu ainda tinha medo que ele voltasse com uma arma em punho, mas umas 3h depois ele voltou com um som imenso já instalado no carro. Suponho que ele deva ter ameaçado alguém pra conseguir o feito com tamanha rapidez. Eu nem perguntei o preço daquela gerigonça azul que ocupava todo o porta-malas. Sim... azul.
No sábado eram dois cultos, um à tarde e outro à noite, portanto, ainda tivemos a oportunidade de botar em prática nosso plano naquele mesmo dia. Meu marido pediu ao meu filho:
- Marcelinho, me da aí um pen-drive de funk. Mas quero aqueles que falam bastante palavrão.
Olha! Vou dizer pra vocês! Tarantino tem razão: a vingança é mesmo algo muito prazeroso e poderoso. Foi uma noite de sábado maravilhosa em família. As janelas da minha casa pulavam que pareciam que iam estourar. Eu já gostava de funk pra dançar mas, depois daquela noite eu passei a respeitar o proibidão com toda minha alma.
E foi assim que se seguiram as semanas seguintes. Eles ligavam o som de lá e nós ligávamos o de cá. Fizemos isso até que eles entenderam o recado e baixaram o som, então nós suspendemos o nosso.
Meses depois, para nossa alegria, a Igreja se mudou. Soubemos que foi despejada por não pagar o aluguel. Nunca fiquei tão feliz vendo um caminhão de mudança ser enchido.
Lembrei dessa história porque esta semana vendemos o som azul. As lições que tiramos dela foram:
1. A música pode ser tão potente quanto uma arma, e com a vantagem de não infringir a lei e
nem causar uma tragédia.
2. Funk proibidão sim!
Rita Almeida