domingo, 23 de agosto de 2015

Sobre os desafios políticos de Dilma Rousseff

Por Rita Almeida

Eu participei ativamente da chegada do Lula à presidência, militando na política de 1989 a 2003, e fiz muitos amigos nessa jornada. Mas, já no primeiro ano do governo, assisti a desfiliação de muitos dos meus companheiros de militância dos partidos que faziam a base do governo. A justificativa era que Lula e o PT tinham renegado as bandeiras da esquerda e se aliado com aqueles que deveria repudiar.

Eu concordo com Deleuze quando ele diz que não existe governo de esquerda. No máximo, diria ele, teremos um governo sensibilizado com as causas da esquerda.

Ser de esquerda sempre supõe questionar e romper com o que está instituído, porque é uma proposta de visão de mundo para além: além do próprio umbigo, além de hoje ou amanhã ou além das necessidades imediatas. Só que assumir um governo pressupõe a peleja de ter que lidar com o pragmatismo necessário ao trabalho cotidiano. Ao governar podemos sustentar um olhar além, mas, não podemos deixar de olhar hoje e amanhã. E o problema é que olhar para hoje e amanhã pode significar algo muito diverso do que se pretendia quando se olhava para além. Então, esse é o desarranjo no qual os partidos de esquerda se metem quando assumem o poder – aqui ou em qualquer lugar do mundo. E é preciso ter maturidade política para entender o significa tal mudança de posição, para que ela não se torne uma armadilha ou uma maldição.


Política e laço social

Para fazermos qualquer tipo de laço social precisamos entrar numa rede discursiva, sendo assim, a política também é uma tentativa de fazer laço social. Algumas posições discursivas têm como objetivo exercer comando sobre outros. Outras se dispõem a questionar e mover tais posições de comando do seu lugar. Um bom exemplo seria a relação dos pais com seus filhos. Os primeiros tentarão, por meio do saber ou do poder que possuem, comandar seus filhos. Já estes últimos, por sua vez, farão de tudo para demover seus pais do lugar de comando. Tem sido assim, de geração a geração.

Mas então acontece uma coisa interessante. Aquele filho rebelde e questionador quando se torna pai ou mãe, se vê tomando com seus filhos, medidas e atitudes semelhantes as que ele questionou um dia de seus pais. Isso significaria que ele mudou suas convicções e princípios? Não necessariamente. Às vezes, isso acontece apenas pelo fato dele ter mudado sua posição no discurso. E é importante que tal mudança aconteça. Inclusive, muitos não conseguem assumir a condição de pai e mãe exatamente por não suportarem ter que mudar de posição. Não suportam ter que ficar no lugar de comando e alvo da crítica e da queixa dos filhos.

Muitos dos meus amigos que migraram para outros partidos quando Lula ganhou a eleição – apesar de suas justificativas serem totalmente plausíveis – o fizeram simplesmente por não conseguirem fazer uma mudança discursiva. Não suportaram ficar no lugar da vidraça que leva a pedrada; só sabiam ficar no lugar daquele que joga a pedra na vidraça do outro. E temos muitos políticos assim – que são excelentes – mas que só conseguem se figurar como oposição.

Temos também o caso daquele que, ao mudar seu lugar no discurso – de querelante para comandante – encarna o poder e se fixa a ele de tal modo, que não consegue mais se mover. Torna-se um comandante duro e inflexível, que vai tentar exercer seu comando pela força (poder) ou pelo apego demasiado a regras e teorias (saber). Numa empresa, temos o exemplo do encarregado mais questionador e que se torna o mais rigoroso dos chefes, quando colocado na posição de gerente.

Enfim, a metáfora do filme Senhor dos Anéis é perfeita para explicar o que eu estou tentando dizer. São poucos os que sabem usar o anel do poder. Muitos não suportam a pressão de usá-lo e outros ficam seduzidos e inebriados demais com seu uso. Ou seja, fazer bom uso da condição de comando seria ter coragem suficiente para usar o anel quando necessário, mas também saber abrir mão dele. É saber da responsabilidade que implica estar com o anel e da humildade de entender que não se pode tê-lo todo o tempo ou usar dele para fazer o que bem entender.

A política é a arte de fazer bom uso do anel. É a arte de fazer uso dos vários discursos para governar. O bom político é aquele que não se fixa em uma determinada posição discursiva. Sabe quando chamar a liderança para si e quando delega-la. Sabe que tomar uma decisão implica em responsabilizar-se e saber sobre ela, mas, sobretudo, em negociar, ceder poder, escutar o saber do outro, recuar de suas próprias certezas e convicções, ainda que temporariamente, ainda que a contragosto. Quem acha que um bom governante é aquele que vai fazer tudo o que disse que iria fazer na época da eleição não entendeu nada de política. Bom político é aquele que conseguirá negociar o que prometeu da melhor maneira possível. Na política é necessário compreender profundamente a metáfora: “vão-se os anéis, ficam os dedos”.

É por isso que a boa governança não se faz apenas com bons administradores. Bons administradores podem ser inteligentes, corretos e muito bem intencionados. Podem saber muito sobre teorias e técnicas de gestão, podem ter condições de assumir posições de liderança e comando, mas se não souberem fazer política, sofrerão amargamente.


Uma crise política

Engana-se quem acredita que a crise que vivemos atualmente no Brasil é econômica. Aqui dentro, nossa crise é eminentemente política, mas, tem servido de combustível para alimentar uma crise econômica que é mundial. Não tenho motivo nenhum para duvidar da capacidade administrativa, da dedicação ao trabalho, da boa intenção e da integridade moral e ética da presidenta Dilma, mas tem faltado a ela uma coisa fundamental para o cargo que assumiu: habilidade política.

Em seu segundo mandato, Dilma conseguiu o feito improvável de desagradar os que estavam a seu favor e os que estavam contra, os que estavam à sua direita e os que estavam à sua esquerda. Economicamente falando, tomou as diretrizes que seu oponente nas eleições disse que tomaria (desagradando grande parte de seu eleitorado) sem, no entanto, conseguir receber os aplausos daqueles que derrotou nas urnas. Por que isso foi possível? Porque o maior desafio de um governante não está, exatamente, no sucesso das decisões que vai tomar, mas, sobretudo em quantas pessoas, instituições, partidos, redes, organizações, coletivos, instâncias e movimentos ele conquistará para fazer com que sua decisão tenha sucesso. Na política, o sucesso nunca vem antes, vem depois. Na política, o sucesso não está no ato em si, é diretamente proporcional ao tamanho da força que se aglutinou a ele. Todo ato político, para ter sucesso, precisa ser o ato de muitos. É por isso que o pior que pode acontecer a um político é o seu isolamento.


A histeria quer impeachment

Um dos reflexos da inabilidade política de Dilma é a histeria generalizada que ganhou as redes sociais, as conversas do dia a dia, as sacadas da classe média e as ruas. Tal histeria – não se enganem – não é resultado das denuncias de corrupção e da tão falada crise, afinal, já vivemos dias muito piores nos dois aspectos (quem não sabe disso não viveu aqui nos últimos 30 anos ou sofre de amnésia grave). Então, o que significa tamanha histeria? Lacan dizia que a histeria quer é “um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina e ele não governa". Traduzindo para o Brasil de hoje: a histeria quer impeachment.

Entretanto, uma das habilidades do bom governante é conseguir evitar que a posição queixosa e querelante própria dos governados se fixe num discurso histérico sintomático, imaturo e vazio. Para escapar do discurso da histeria, só resta ao mestre (foi Freud quem nos ensinou isso) esvaziar-se da sua condição de mestria. Diante deste mesmo impasse outros governantes que tivemos, simplesmente abdicaram do seu lugar, de diferentes modos. Dilma já afirmou que não irá usar desse recurso, e é bom que seja assim. É bom que tenhamos alguém com coragem para suportar e sustentar este lugar numa condição política tão adversa. Entretanto, isso por si não resolve o impasse que está posto para este governo. Ainda assim, Dilma precisa esvaziar um pouco seu lugar para que a histeria não se sinta tão impelida em desbanca-la. É assim que funciona: quanto mais o mestre se impõe e se endurece, mais a histeria aumenta na tentativa de esvaziá-lo.

Então qual a saída para Dilma? Dilma precisar esvaziar um pouco seu lugar, flexibilizar-se, permitir-se, abrir-se para o outro, admitir suas próprias limitações. Outro dia alguém sugeriu a presidenta: erotize-se, e isso foi interpretado como uma sugestão de que ela estivesse precisando de sexo. Erotizar-se não tem nada a ver com fazer sexo, erotizar-se é abrir-se ao outro, se mobilizar em direção ao outro. Erotizar-se é acreditar que o outro possa ter algo que eu não tenho. Na verdade ninguém tem essa coisa que todos procuramos, mas sempre que procuramos essa coisa juntos estamos fazendo laço, ou seja, estamos fazendo política.

Resumindo: ou Dilma aprende a fazer política (o que pode significar admitir sua inabilidade neste aspecto para buscar alguém que faça isso junto com ela) ou está fadada ao fracasso.

Há rumores de que Lula foi convidado para assumir a articulação política do governo, com o recuo de Temer desta função. Podem-se fazer mil críticas ao Lula, mas ninguém pode negar sua habilidade para fazer política. Muitos não entenderam e não entendem, mas o sucesso do governo Lula não se deu exatamente pelo acerto nas suas decisões, mas pela sua capacidade de aglutinar forças que pudessem fazer com que um projeto de Brasil possível pudesse acontecer. Obviamente que o possível na política, não é o ideal.

E retomando o início no texto, o imbróglio da esquerda é que ela mora sempre no campo do ideal. Mas o desafio da política é fazer o ideal tornar-se possível através do trabalho de ligação e aglutinação de forças numa mesma direção.


A extrema direita, a extrema esquerda e a criminalização da política

Não por acaso vemos duas forças surgindo a partir dessa nossa crise política: a extrema direita e a extrema esquerda. Vale lembrar que ambas são dois lados da mesma moeda. As duas querem acabar com a crise de liderança por meio de um pulso forte que diga: “acabou essa bagunça, agora vai ser do jeito que eu mandar”. A extrema direita quer intervenção militar e a extrema esquerda quer intervenção armada do proletariado. Em ambos os casos abrimos mão da política para fazer uso da força. Não pode dar certo!

Em alguma medida, criminalizar a política, desejar a explosão do Congresso Nacional, a morte de todos os políticos ou coisa parecida, também é flertar com a abdicação da política como modo de governar. Mas é preciso ter clareza de uma coisa. Se a saída por meio política tem sido especialmente difícil e frustrante para nós brasileiros, sem a política não há saída alguma.