quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A epidemia de doenças mentais

Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.

Mas a novela Machadiana - publicada pela primeira vez em 1882 - nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.

Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud - considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas - dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.

É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.

20 comentários:

  1. Rita, excente suas reflexões sobre a questão da epidemia que está se apresentando na atualidade. Tenho a sensação de estar vivendo uma "realidade da ficção" Bacamartiana. Sou professora de psicopatologia em uma Universidade e vou levar seu texto para reflexão com os alunos.
    Abraços,
    Irma

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  2. Obrigada pelo comentário Irma. Precisamos multiplicar mesmo essas reflexões. abs Rita

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  3. Ótimo artigo, o que se vê por aí é uma rotulação sem fim, onde ninguém escapa dos Bacamartes...e isso vem acompanhado da administração de remédios que às vezes servem para evitar coisas naturais, como a dor da perda, por exemplo. Estamos criando uma sociedade de falsa felicidade. Um abço

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  4. creio sim que trata-se uma epidemia e näo apenas uma, mas as três perguntas fazem total sentido...

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  5. creio sim que trata-se uma epidemia e näo apenas uma, mas as três perguntas fazem total sentido...

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  6. Creio que näo só uma, mas as três perguntas fazem total sentido... na verdade estamos enlouquecendo.

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  7. Olá, sou Professor Osimar e leciono no nível fundamental e médio. É interessante perceber, a partir da sua reflexão, que o Estado e alguns educadores se utilizam muito esse discurso para compreender os alunos; e os dirigentes acabam esquecendo ou omitindo que a o abandono das escolas públicas (como sala super lotadas e sem espaços físicos adequados para o desenvolvimento da creatividade)leva o desinteresse das crianças e dos adolescentes para o ensino. Contudo, argumentam que a maioria dos estudantes são probemáticos. Imagine uma turma do 6º ano, com 45 alunos. Agora imagine 5 turmas ou até 8 turmas...tanto o professor e como alunos ficam estressados; com isso, constata que não é um transtorno mental que a comunidade escolar passa, mas por falta de interesse em melhorar as escolas públicas.

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  8. Olá, sou Professor Osimar e leciono no nível fundamental e médio. É interessante perceber, a partir da sua reflexão, que o Estado e alguns educadores se utilizam muito esse discurso para compreender os alunos; e os dirigentes acabam esquecendo ou omitindo que a o abandono das escolas públicas (como sala super lotadas e sem espaços físicos adequados para o desenvolvimento da creatividade)leva o desinteresse das crianças e dos adolescentes para o ensino. Contudo, argumentam que a maioria dos estudantes são probemáticos. Imagine uma turma do 6º ano, com 45 alunos. Agora imagine 5 turmas ou até 8 turmas...tanto o professor e como alunos ficam estressados; com isso, constata que não é um transtorno mental que a comunidade escolar passa, mas por falta de interesse em melhorar as escolas públicas.

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  9. EM RESUMO: TEXTO EXCELENTE. PARABENS!
    APARECIDO - CAMPINAS/SP

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  10. Esta matéria que você comentou é muito importante, seus argumentos muito contundentes. Precisamos procurar compreender mais e melhor essa realidade das doenças mentais e fazer algo de verdade.

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  11. Oi Rita,
    Bom dia!
    Este teu artigo foi postado no facebook pela irmã, que trabalha com inclusão educacional.
    Enfim, gostei do seu texto porque tem linguagem simples e apropriada à leitura de quem não é profissional da saúde mental.
    Pense que ele nos traz uma questão essencial: ouvir o grito daqueles a quem taxamos disso ou daquilo.
    Parabéns e obrigada por compartilhar. Abraços, Terezinha Souto
    www.aquiondeeumoro.wordpress.com

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  12. Obrigada por todos os comentários. Fico feliz em poder contribuir para a discussão deste que é um assunto tão importante: a banalização dos rótulos psiquiátricos

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  13. Parabéns! O mundo precisa de mais pessoas assim!

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  14. Muito bem escrito, pela clareza, objetividade e atualidade do tema. Parabéns!

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  15. Obrigada pelos comentários Iza, seja sempre bem vinda nesse espaço

    um abraço

    Rita

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  16. Acho que o mundo vive a fase da busca pela felicidade, a busca incessante em ser feliz. Mas o que é felicidade?O que é ser feliz? Acho que nem as pp pessoas sabem. Pq se queremos algo hj, esse algo pode não ter mais importância amanhã. Parece que ninguém pode viver com as suas pp angústias, como se isso fosse algo ruim, contagioso, destruidor (geração Rivotril). As angústias mt vezes nos mobilizam, nos tiram da inércia que estamos. Vc citou mt bem Freud e Clarice.
    E ressalto que, numa sociedade como a nossa, acho quase impossível alguém não adoecer. Na minha opinião, deveríamos pensar em um outro modo de vida e não nesse que está posto e deixar de classificar e medicar "distúrbios" que nada mais são que um alerta para um modo de vida que não está dando certo.

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  17. Rita,



    Sim, há a rotulação abusiva de transtornos como TDAH e outros análogos. Por outro lado, o transtorno do pânico, síndrome mais verificável em grandes metrópoles, mostra o quanto "as cidades estão em pane".

    Se o chão abre diante dos pés, numa obra do metrô que se transforma em cratera, como ocorreu há alguns anos em Sampa City, e outros tantos "acidentes" do gênero, há um momento onde o "reflexo de sobressalto" tão exercitado [por solicitação contingencial-urbana] acaba "funcionando no automático" [eis o sistema simpático em ação!], por ser um vetor a mais a somar-se a outros desafios na vida de tantos indivíduos. Há muitos outros vetores, claro, mas aqui só vou enfatizar este: a visibilidade/proximidade do caos em grandes aglomerados urbanos, por saturação, aceleração e contingências estruturais-administrativas. Algo que, nem de longe, remete aos nossos ritmos biológicos ou os respeita: os ciclos circadianos, por exemplo, responsáveis pelo sono e digestão. Quantos cidadãos das grandes metrópoles reclamam de insônia e gastrite, senão de úlceras? Não se dá o mesmo entre moradores de chácaras ou sítios, a não ser que estejam "sitiados". Claro: há ameaças rurais, em situações específicas. O caos urbano [mega-urbano] só pode ser "caos" por sua inespecificidade/abrangência.


    Há grandes cidades com um índice de até 7% de seus habitantes com síndrome do pânico. Não é pouco. [Em UTIs, encontramos índices maiores...]. Há doenças que são "sintomas sociais localizados em contingentes de indivíduos", como a histeria detectada por Freud em seu contexto histórico-social.

    Quando trabalhava em UBS e Ambulatórios de Especialidades nas periferias de Sampa City [as periferias mais "brabas" da zona sul: Grajaú, Parelheiros e adjacências - pesquise no Google], cerca de 25% das queixas de adultos apresentavam como face-sintoma [com especificidades de fundo, como a nada desprezível violência doméstica] a "ansiedade generalizada" ou o transtorno do pânico.




    Um beijo.

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