quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Mosaico

Rita de Cássia de Araújo Almeida

(Pela primeira vez estou publicando em meu blog um artigo com pretenções literárias. Ele foi publicado recentemente pela revista TRAVESSIAS e pode ser acessado também no link abaixo: http://www.unioeste.br/travessias/literaria/Rita%20PRONTO.pdf


Tornar-se mulher não é uma tarefa fácil. Trata-se de ficar aqui e ali remendando uns cacos que vamos recolhendo vida a fora, na tentativa de montar uma espécie de mosaico que,afinal, nos pareça belo e compreensível – o que é sempre difícil.

Alguns desses cacos por mim recolhidos vêm de uma história que meu pai sempre contava, segundo ele, acontecida quando ainda era menino na roça, história também contada pelo seu pai. Eu, desde menina adorava essa, dentre todas as histórias que meu pai costumava contar nos almoços de domingo. Mesmo repetidamente contada era encantadoramente trágica e cômica, e eu de tanto escuta-la, já sabia exatamente o momento de rir e me comover, entretanto, só pude compreendê-la com o passar do tempo na medida em que minha inocência foi se encolhendo. Na tarefa de me tornar mulher, essa história foi me cedendo seus cacos.

Nas palavras de meu pai tratava-se da história de dois compadres: seu Antônio e seu Joaquim; ambos casados. Seu Antônio, com Filomena – mulata ancuda, de beiço gordo e dentes de marfim – e seu Joaquim, com Madalena – descolorida, cabisbaixa e mãos calejadas da labuta na terra. Nenhum dos casais tinha filhos, apesar de já passarem dos trinta, idade em que a maioria, naquelas condições, já acumulava ao menos quatro rebentos.

Certa vez, os dois compadres, muito amigos, dividiam como de costume a mesa do único boteco da região, tomando uns goles para encerrar o dia. Era um dia normal de trabalho cansativo na lavoura – o corpo doía muito e a cabeça pensava pouco. Ambos acenderam seu pito e olhavam tranqüilos a fumaça ganhando a noite que chegava devagar, sentindo a bebida esquentando o bucho quase vazio. Depois de algum tempo, quando o juízo e o pudor se afogaram no copo de cachaça, seu Joaquim fez ao amigo uma proposta meio extraviada, que já matutava há algum tempo, mas ainda não reunira coragem e falta de vergonha para fazê-la.

Pensou numa forma de expor seu intento sem causar muito alarde, mas afinal compreendeu que não haveria uma forma amena de falar o que pretendia, era mesmo no supetão, com o risco de perder o amigo. E foi assim num supetão, entre o primeiro e o último gole da meiota, que seu Joaquim atirou à queima roupa, perguntando se era do interesse do amigo que trocassem de mulher. Seu Antônio se assustou de início, ajeitou as calças, raspou a garganta, ficou desinquieto, encheu mais um copo, depois fez certo silêncio, levantou as sobrancelhas por três vezes e enfim deu seu veredicto: topou a barganha, mas com a condição de que o compadre lhe desse em troca sua mula e o facão que sempre carregava na cintura. Seu Joaquim fez menção em esquecer o negócio, mas foi então que se lembrou das ancas da mulata e estendeu a mão ao amigo, selando o trato desabençoado.

No lugar, dia e hora combinados cada qual apareceu com sua mulher, sendo que seu Joaquim trouxe também a mula e o facão. As mulheres sem saber de nada ainda, escutaram dos maridos a revelação do destino que dali pra frente haviam de se submeter. Nenhuma delas ousou retrucar, se olharam num misto de desespero e vergonha, e se limitaram a acompanhar seus novos homens, no caminho que escolheram para elas. Todos se despediram com alguma estranheza, e rumaram para seus lares de adultério consentido.

Seu Joaquim inebriado pelas ancas da mulata, só despertou ao perceber que Filomena, naquele mesmo dia, havia deixado sua casa sem levar nada e sem deixar nada, pois que nada ali era dela. Esse ainda correu para a casa do amigo, pensando que ela tivesse voltado pra lá, mas não teve sorte, a mulata sumiu no mundo e para sempre. Apesar do desgosto, seu Joaquim manteve o trato, era homem de palavra. E este foi o único orgulho que lhe acompanhou dali para adiante; até o final. De resto, a solidão e a humilhação tomaram conta de seu coração de maneira galopante. Perdeu as duas mulheres, a mula, seu precioso facão e ainda teve de conviver com a certeza que a secura de sua antiga mulher era por culpa sua, já que, em poucos meses Madalena estava com o bucho cheio, emprenhada pelo compadre Antônio. Este último, por sua vez, fez um excelente negócio: ganhou uma mulher trabalhadeira – que deu a ele três filhos –, uma boa mula – que lhe rendeu muitas léguas de caminhada – e o facão – que ficava
pregado na parede da sala de reboco de barro, como um troféu, a despeito de sua empreitada vitoriosa. É verdade que de quando em vez, seu Antônio se entristecia vendo o compadre Joaquim se entregando a bebida e aos fins de tarde sem esperança, mas logo lhe vinha o conforto de saber que tal idéia, não havia saído de sua cachola.

Eu dizia que esta história, me fez encontrar algumas respostas, sobre o que é ser mulher... Papai me contava esta história, é claro, pela ótica dos homens nas suas disputas infindáveis, mas eu tentava vê-la pelo olhar daquelas duas mulheres. Uma, que simplesmente se submete ao destino que lhe é imposto pelos homens e outra, que deixa tudo para traz e sai em busca de seu próprio caminho. Eu sempre ficava tentando imaginar qual delas teria sido mais feliz, mas sempre era difícil tentar chegar a uma conclusão, conclusão esta que me faria decidir: Madalena ou Filomena?

E foi essa a questão que me torturou durante muito tempo. Desejaria me apegar ou me libertar? Ficar ou partir? Pensava eu que decidir por um caminho era abolir o outro. Qual nada! Hoje sei que posso escolher as duas. Foi assim que preferi Madalena e Filomena, duas mulheres maravilhosas que me ensinaram o enredo do feminino. Às vezes recorro a Madalena, que me ensina a me resignar para criar meus filhos e amar meu homem, outras vezes, Filomena me socorre não me deixando morrer sufocada, iluminando o caminho que apenas eu posso percorrer, sozinha.

Madalena e Filomena, Filomena e Madalena. Ser mulher é assim: pura plasticidade!