segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Por que dialogar com o fanatismo é lutar contra ele?


Por: Rita Almeida

Participei esta semana de um evento de psicanálise que discutiu o fanatismo, tema bastante relevante para o momento que vivemos, não apenas do Brasil. E algumas das questões que nortearam o evento foram: O que querem os fanáticos? O que os causa? Que tipo de laço pretendem fazer?

Inicialmente, uma questão importante é desvincular o fanatismo do discurso paranoico, a fim de não cair no engodo de considera-lo como algo próprio da estrutura psicótica. Ou seja, não se pode reduzir o fanatismo a um fenômeno estrito de um diagnóstico psi. O fanatismo não é uma loucura e tem uma estrutura própria: é burrice somada à canalhice. É burro porque aceita incondicionalmente o que lhe aparece sem questionar; sobre o fanático não opera nenhum corte, é surdo. É canalha porque vê, mas não olha; ouve, mas não escuta; encontra e reconhece, mas não quer saber sobre isso. O fanático é um cínico, que não tem nenhum compromisso com a verdade e que não se afeta pelo discurso do outro. Portanto, o fanatismo é a rejeição da filosofia e o avesso do diálogo.

O fanático possui uma fragilidade simbólica. Está a maior parte do tempo todo assujeitado a um discurso que não tem compromisso algum com algo que lhe seja singular, que lhe atravesse, que o faça deslizar de suas certezas. O fanático possui um discurso desabitado de eu – do eu inconsciente, dividido – está preso apenas a uma imagem, que é frágil e, por isso, precisa ser refeita o tempo todo. O eu do fanático se sustenta por meio de uma imagem que ele cria para si e que precisa manter incólume o tempo todo. E ele a constrói a partir de um discurso que considera o “politicamente correto” ou “moralmente correto” e no qual se mantem preso. Nesse sentido, por falta de recurso simbólico, por falta de algo que o faça deslizar de suas certezas prontas e acabadas, é que o fanático alimenta o eu paranoico (na medida em que todo eu é essencialmente paranoico).

Por outro lado, o discurso que o fanático reproduz como sendo o seu, não tem, necessariamente, nenhum compromisso com a verdade, ou seja, trata-se apenas de uma espécie de fé ou crença inabalável. Mas, não sejam ingênuos, não é apenas o discurso religioso que pode se encaixar nessa categoria discursiva. Teorias das mais diversas, dietas, gostos musicais,um time de futebol, movimentos políticos; tudo pode servir para alimentar um fanático. Basta que ele faça uso de tal discurso para obter uma resposta unívoca e definitiva para qualquer pergunta que se faça. Pois o fanático não busca um discurso para transitar no mundo, mas para lhe servir de manual de como agir e se portar. Na medida em que lhe faltam recursos para buscar um modo próprio de se arranjar no laço social, o fanático precisa seguir verdades que já estejam dadas, às quais ele precisa apenas se submeter e obedecer. O que o fanático quer é se tornar o servo ideal de uma teoria.

Depois de participar do evento citado, li um livro indicado que foi: Como curar um fanático? de Amós Oz, que recomendo muito. Oz parte do princípio que o fanatismo é uma semente que está em todos nós. É muito mais velho que todas as ideologias e religiões. É um componente intrínseco à natureza humana. A questão é apenas: alimentá-lo ou não.

Todavia, é obvio que não podemos comparar um vegano fanático com um terrorista fanático. Existem gradações de mal que cada um desses pode causar, e isso faz toda a diferença. A questão é estar atento, pois o fanatismo pode brotar a qualquer momento em nós, e é contagioso. Oz supõe ainda que o crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que o mundo tenha se tornado cada dia mais complexo. E quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples.

Com efeito, o maior problema do fanático é sua tendência ao altruísmo. Ele parece estar mais interessado em você do que nele próprio. O fanático quer, sobretudo, mudar você porque, afinal, é ele quem sabe o que é melhor pra você. Como diria Amos Oz: “Frequentemente o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo. Ele quer salvar sua alma, quer te redimir, quer te livrar do pecado, do erro, de fumar, de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares, ou te curar da bebida ou de sua preferência na hora de votar. O fanático se importa muito com você, ele está sempre pulando em seu pescoço porque te ama de verdade, ou então está em sua garganta caso demonstre ser irrecuperável. E seja qual for o caso, falando topograficamente, pular em seu pescoço e estar em sua garganta é quase o mesmo gesto. De um modo ou de outro, o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo, pela muito simples razão de que o fanático tem muito pouco de “ele mesmo”, ou nenhum “ele mesmo”.”

Mas o que causaria tal insistência de conversão? É que quando um fanático consegue converter o outro ele conquista a garantia de que seu discurso seja validado. Ao enlaçar o outro, o fanático atualiza sua própria imagem e reforça sua paixão por si. O objetivo é transformar o outro em si mesmo, para que assim, não haja nenhum corte, nenhum rompimento no laço. Assim, se apagam todas as diferenças e tudo se mantém igual. De algum modo, o que o fanático deseja é destruir o outro que insiste em se manter como outro; ou tentando transforma-lo no mesmo ou apagando-o. O fanático precisa apagar toda a diferença para que seu eu frágil se reforce entre seus iguais e assim, sobreviva.

Sobretudo, o fanático é um cínico. Afinal, ele sabe que, ainda que seu discurso não possua nenhum compromisso com a verdade, este jamais poderá ser desconstruído ou questionado, afinal, isso significaria sua própria derrocada. Se o eu singular do fanático é frágil e depende da teoria que ele abraça, desmontar tal teoria é fazê-lo experimentar sua própria morte. É por isso que o fanático não fala, ele vocifera. Vocifera porque precisa a todo custo sustentar sua teoria, mesmo que ela seja uma mentira. A outra opção seria sucumbir com ela. Mas como nos lembra Amos Oz, “o sinal indicador do fanatismo não é o volume da sua voz, mas a atitude com as vozes dos outros”, ou seja, a questão não é a altura que o sujeito vocifera, mas a sua intenção. “Conheço antitabagistas que queimariam você vivo por acender um cigarro perto deles! Conheço vegetarianos que comeriam você vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns deles meus colegas no Movimento Israelense pela Paz, que gostariam de dar um tiro na minha cabeça só porque eu defendo uma estratégia um pouco diferente de como chegar à paz com os palestinos.”

Enfim, há fanáticos por todos lados e de todos os tipos e modos. Concordo com Amos Oz que o maior embate global de nossa época é a luta universal contra todos os tipos de fanatismos, ainda que seja apenas para minimizá-los. E alguns antídotos para esta luta são, segundo este autor: o humor, a capacidade de suportar situações onde não há nenhuma certeza e a capacidade de desfrutar da diversidade. O humor é aquilo que nos faz rir de nós mesmos, ou seja, ele relativiza nosso lugar e nossas teorias, pois nos permite que olhemos para nós do modo como o outro nos vê. Quanto mais alguém é capaz de rir de si mesmo e de suas teorias, mais ele está vacinado contra o fanatismo. Outro antídoto é abrir-se para as incertezas, suportar o que está em aberto, o que não tem resposta. Viajar para além de si mesmo é também um exercício eficaz contra o fanatismo. É a capacidade de se imaginar no lugar do outro, mesmo no momento que acreditamos estar totalmente certos. É se deixar afetar pelo outro, de algum modo.

Depois de toda esta reflexão, não pude deixar de pensar no momento político atual do Brasil. De certo modo compreendi porque tem sido tão difícil sustentar o debate. É perceptível que a grande maioria se encontra aprisionada em suas certezas e crenças; não importa a verdade, não importam os fatos, não importa se o outro que está em jogo hoje pode se tornar o eu em jogo de amanhã... Nada disso importa. O que importa é que cada um se mantenha nas suas bolhas de certeza, para sustentar a própria imagem. O que importa é que tal certeza não se abale nunca, mesmo que eu saiba que estou sustentando uma farsa, já que a outra opção seria admitir estar errado e, consequentemente, ter que lidar com a morte daquilo que sou. Tal como as bolhas das redes sociais que formamos e reforçamos cada vez que bloqueamos ou excluímos quem pensa diferente de nós.

Mas, não se enganem, não querer saber para não ter que tomar nenhuma posição diante do que está acontecendo também é uma forma de assujeitamento. O fanático se assujeita a um discurso que ele toma como direção irreparável e o alienado se assujeita a ter que se submeter ao discurso que vencer, seja lá qual ele for.

Não estou pregando um relativismo moral total. É claro que não é possível transigir com genocidas, chauvinistas, terroristas e outros tipos, mas é importante ter a clareza de que eles estão por aí. E por mais paradoxal que seja, é somente na democracia que esses tipos podem ter voz e lugar. E é preciso, sim, combatê-los em seus discursos fanáticos, mas sem criar uma espécie fanatismo reverso, ainda que com as melhores intenções. Não estou dizendo que esta é uma tarefa fácil. Não é! No entanto, se os não fanáticos não se dispuserem a arejar e debater nessas arenas, estarão apenas poupando o trabalho dos fanáticos em silenciar o que diverge deles. Estarão dando a eles tudo que precisam para reforçar suas bolhas e angariar mais adeptos/servos.

Ao escrever este parágrafo me peguei pensando se eu mesma não estou aqui a alimentar o germe do fanatismo, me assegurando da certeza de não ser uma fanática. Mas a dúvida já me deu um consolo, e rir do meu mal-estar com o parágrafo me aliviou mais um pouco, mas não o suficiente, confesso.

Por fim, o que sustento aqui é que mantenhamos uma arena de debate possível. E uma que suporte a ideia de que o laço sempre esta pronto para se desfazer, mas pode ser refeito logo adiante e desfeito novamente. E é saudável e desejável que seja assim. Um laço não pode pretender capturar o outro para sempre, porque o outro também quer estar em outra parte e de outro modo diferente do que eu penso ou quero.

Na fragilidade do laço mora todo mal-estar do mundo, mas também toda a possibilidade daquilo que no senso comum chamamos amor. Que é a capacidade de enlaçar o outro sem prende-lo, ou seja, suportando a sua alteridade e mais ainda, dialogando com ela.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Desculpe o transtorno, mas preciso falar sobre feminismo.


por Rita Almeida

Logo que eu comecei a publicar meus escritos no blog, uma amiga me disse: “Caraca! Você perdeu a inibição de escrever...” Na hora não entendi muito o que ela disse, mas isso ficou ecoando em mim muito tempo e fui entendendo aos poucos. Hoje essa frase me veio de novo aos ouvidos antes de escrever este texto, e por causa dela eu decidi que tinha que escrevê-lo. Vou explicar...

Já faz bastante tempo que quero dizer algo sobre feminismo. Vários textos já chegaram até mim (os textos baixam no meu HD mental vindos de algum lugar e depois eu transcrevo), mas eu jamais tive coragem de botá-los no papel, digo, no notebook. Hoje me dei conta que ficava inibida em escrevê-los. E me chamou a atenção o fato de não ter inibição de escrever sobre nenhum assunto, mas ficar inibida de escrever sobre feminismo. Fui investigar minha inibição e percebi que meu medo, todas às vezes, foi de levar fogo amigo, ou seja, ser atacada pelas próprias mulheres, sobretudo pelo que chamamos de movimento feminista.

Hoje novamente baixou no meu HD um texto inspirado na repercussão da comentadíssima coluna do Duvivier: "Desculpe o transtorno, preciso falar da Clarice". Novamente a inibição iria me segurar, mas, foi ela mesma que me mostrou que eu deveria escrevê-lo para, quem sabe, contribuir para arejar nosso feminismo de cada dia. Pra começo de conversa quero me declarar feminista, e responder essa pergunta aqui: Isso me impede de escorregar no machismo às vezes? Não! Ponto. Dito isso, prosseguimos...

Eu, particularmente, achei lindo o texto de Duvivier pra Clarice. Não sei sobre o romance deles (e não me interessa saber), não faço ideia de como Clarice leu esse texto (e não tenho como saber) e não me dispus a fazer inferências sobre a intenção de Duvivier em usar o texto pra divulgar seu filme. Só sei que aquilo foi escrito com sangue (eu reconheço textos escritos com sangue), e textos assim sempre me comovem. Então, me emocionei sim, e achei que foi uma carta de amor lindíssima, e piegas, e brega, e sentimentalista, e apelativa, assim como devem ser todas as cartas de amor.

No entanto, a repercussão da coluna entre algumas mulheres, a partir do discurso feminista, me assustou bastante. Não vou discorrer sobre todos os argumentos aqui, porque o meu é bem simples e básico, e ele parte da minha própria experiência com o texto. Depois compartilha-lo comecei a ler os comentários e textos de algumas mulheres alertando sobre o machismo contido nas entrelinhas do mesmo e comecei a me sentir envergonhada, oprimida e com uma espécie de arrependimento de ter gostado, e isso me deixou muito angustiada.

No meu entendimento, o feminismo se trata, basicamente, de libertar a nós mulheres do machismo e todas as formas de opressão, ou seja, nos desinibir de algum modo. Então meu argumento é simples: se vamos partir para um discurso feminista que também oprime e inibe as mulheres; que me inibe de escrever, que me inibe de gostar de um texto porque ele tem ou teria uma mensagem machista subliminar, que me faz ter vergonha da minha posição subjetiva, então, a meu ver, precisamos, pelo menos, pensar sobre o feminismo que queremos.

O machismo está dado, está pronto. E o melhor do feminismo, eu penso, é que ele está sendo inventado, está em processo de construção e não podemos, de modo algum, construir o feminismo sob as bases da mesma opressão da qual queremos nos libertar, vomitando regras de como é ser uma mulher feminista ou não-machista. Então, eu entendi o seguinte sobre tudo isso: Não há nenhum problema em achar o texto do Duvivier lindo e tornar o autor seu crush por algumas horas (foi o meu caso), não há o menor problema em não gostar do texto por achá-lo machista ou piegas, e não há problema não ter nenhuma opinião sobre o texto. No entanto, há problema sim, quando alguém decide, em nome de um discurso, no caso o feminista, te fazer se envergonhar do que pensa ou sente. Há problema sim quando tal discurso, em nome de algum purismo (pra não dizer fundamentalismo) te faz ficar inibida de se posicionar, de escrever, mesmo que nesta escrita contenha o próprio machismo que você quer negar.

Nós não somos unívocos. Desde Freud sabemos que não somos uma coisa só; temos um eu que é nossa máscara para estar em sociedade e um outro estranho que nos atravessa sem que tenhamos o controle. Então, Duvivier é feminista e machista sim! Eu sou feminista e machista. Nós todas e todos somos, de algum modo, feministas e machistas. Isso é um fato! Mas não libertaremos ou empoderaremos as mulheres inventando outras regras e normas às quais devam se submeter, ou inventando outras formas de opressão, mesmo que elas sejam de outras mulheres, mesmo que elas se digam autorizadas pelo discurso feminista.

Jacques Lacan afirmou, certa vez, que Copérnico não fez nenhuma revolução, já que apenas mudou o que estava no centro: tirou a terra para colocar o sol, e que isso não mudou em nada nossa concepção de mundo. A novidade de Copérnico ainda manteve um significado central a partir do qual todo o resto gira em torno, mantendo nosso mundo, tal como antes, perfeitamente esférico, disse Lacan. E disse ainda: A verdadeira subversão seria poder substituir o “isso gira, por um isso cai”, ou seja, considerar o significante como contingente e não como uma categoria fixa, provocando assim uma queda, um corte, que permitiria que o movimento discursivo se faça de outra maneira, sem que se reproduza apenas o “girar em torno de”.

Nos queixamos de uma sociedade falocêntrica, que gira em torno do falo masculino, mas não haverá nenhuma revolução se apenas inventarmos outra coisa pra botar no centro, pra servir de eixo, pra ditar novas normas, ainda que neste centro esteja a mulher. Assim sendo, no meu entendimento, o verdadeiro feminismo é aquele que diante do falo e suas verdades e regras prontas, apresentará a fenda, a rachadura, o furo, o buraco; as verdadeiras representantes do nosso sexo, aquelas que podem desconstruir verdades, desinventar semblantes e trazer alguma leveza a este mundo.

Por fim, não quero me sentir intimidada por nenhum falo, mas também não quero me sentir intimidada por nenhuma boceta (me perdoem, mas não encontrei uma palavra mais potente que esta). Quero que o poder da mulher seja verbo e não substantivo. Quero uma revolução que rache e desmonte este mundo e não que simplesmente invente outra coisa pra botar no centro dele.

Para encerrar peço socorro a Adélia Prado: “...ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou”

Por um feminismo desdobrável!


quinta-feira, 1 de setembro de 2016

DILMAR é oposto de TEMER

A partir de ontem (29/08/2016), quando você se sentir com uma força e uma coragem imensa, que sua dignidade for tanta que lhe permita olhar no olho de quem quer que seja pra dizer de suas verdades sem TEMER você poderá dizer:
Hoje eu to tão Dilma!
Sugiro incluir duas novas palavra no dicionário
Dilma: adj feminino
Atributo dos que tem coragem e força descomunais; altivez, dignidade, disposição incansável para lutar.
Ex: Ela estava tão dilma que foi impossível não acompanha-la na sua luta.
Dilmar: verbo da primeira conjugação
Lutar, se fazer escutar, enfrentar, aturar, suportar, aguentar, falar sem medo, se defender incansavelmente de uma acusação.
(Pop) Não fazer mi mi mi
DILMAR é oposto de TEMER
Ex: Precisaremos dilmar muito nos próximos meses para vencer os momentos difíceis e estão por vir.
(Compartilhem até chegar nas pessoas que escrevem dicionarios)

Humanizar a política

A palavra humanização anda um tanto desgastada. Vou dar a ela uma significação que me ocorreu para tentar dizer do que pretendo. Humanizar é sempre pensar alguma coisa tendo como ponto de partida os mais frágeis. Para dar um exemplo, humanizar o trânsito seria pensar a partir de pedestres e bicicletas e não dos automóveis, como normalmente se pensa. Humanizar, portanto, não é tarefa simples, é um desafio ético e político que vai na contramão do senso comum.
Humanizar a educação é pensa-la a partir dos que tem dificuldades de aprender e dos historicamente alijados de seus espaços; como negros e indígenas.
Humanizar a saúde é pensa-la a partir dos que tem a saúde mais frágil; como idosos e doentes graves.
Humanizar a cidade é toma-la a partir dos que estão à sua margem; como os moradores de rua e os doentes mentais.
Humanizar o campo é toma-lo a partir de seus habitantes mais vulneráveis; como os sem-terra e trabalhadores rurais.
Humanizar a sociedade é organiza-la a partir dos que usufruem menos de seus benefícios; como os mais pobres e excluídos.
Humanizar a segurança pública é estruturá-la a partir das maiores vítimas da violência; como os jovens, negros, mulheres e pobres.
Humanizar as leis é cria-las a partir dos que mais precisam dela para se protegerem; como mulheres, negros, gays e trabalhadores.
Humanizar a arquitetura é estrutura-la a partir dos que tem maior dificuldade de acessibilidade; como cadeirantes, deficientes físicos e idosos.
Humanizar é, portanto, estabelecer um pacto civilizatório de convivência que possa criar um mundo menos injusto e que acolha o maior número de pessoas possível. E isso vai muito além de caridade ou solidariedade. Trata-se de um compromisso ético de pensar o mundo a partir do outro, mas não de um outro que é igual a mim, mas de um outro que, pela sua fragilidade e desproporção de oportunidade, é radicalmente diferente de mim.
Humanizar é cuidar desse outro que eu naturalmente desprezaria. Não movido por piedade ou espírito cristão, mas por uma razão muito simples: quando conseguimos cuidar dos mais difíceis de serem cuidados, promovemos um lugar melhor para todos. Se tenho uma sociedade acolhedora para os que têm mais dificuldade, os demais serão naturalmente acolhidos. Por outro lado, qualquer política que faça opção apenas pelos mais fáceis de cuidar, promoverá excluídos, rejeitados e injustiçados.
A política que eu desejo, defendo e partilho é essa política para a humanização. É a política que consegue fazer com que nós enxerguemos o mundo para além dos nossos próprios interesses e vaidades. É a política que sustenta um pacto civilizatório simples: ou lutamos por uma cidade que seja boa para a grande maioria (a maior possível), ou ela não será boa para ninguém.
Em geral, nós mulheres confundimos amor com palavra
Então
Se você ama uma mulher
Dê a ela palavras:
Faladas
Escritas
Sussurradas
Cantadas
Inventadas

Somos culpadas por criar brigas desnecessárias
Mas é que palavras brigadas também servem
Se a outra opção é o silêncio
É que suportamos quase tudo
Menos o vazio
É que nosso inferno não é o conflito
É o nada
Quer matar o amor de uma mulher?
Deixe de falar com ela

Mulheres confundem amor com palavra
Mulheres confundem palavra com amor
Somos culpadas por acreditar que amor e palavra são a mesma coisa
Mesmo não sendo
Mas é que são...

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Eu ando me vestindo de horizontes
De incêndios sem trégua
De espaços intermitentes
De restos de ontem
Me vestindo com as cores da fome
De manhãs com cheiro de livro novo
Com a melancolia do inverno
E a insanidade da juventude

Eu ando me despindo das moradas cinzentas
E da certeza do espelho
Das mentiras que me satisfazem
Me despindo das regras expostas nos quadros de aviso
Das viagens que eu nunca farei
Das margens sem música
E das músicas feitas com a mesmice

Eu ando colhendo vazios
Espasmos
Silêncios
Feridas de repetição
Alegrias febris
Ilusões sem esperança
Verdades ardidas

Por fim
Eu tenho esperado por primaveras
Por sorte
Bagagens leves
Batalhas amenas
E lembranças que eu não queira esquecer

Rita Almeida

sábado, 23 de julho de 2016

Entre a nostalgia e o apocalipse: os aprisionamentos imaginários que nos fazem recusar o real presente no mundo virtual


Eu não sou afeita ao saudosismo. Não sou das que, nas conversas cotidianas, fica advogando do discurso do quanto “na minha época era melhor”. Até porque sempre penso que minha época é agora, pelo simples fato de que não posso viver em outra. Esse saudosismo impregnado nos discursos que vemos por aí também carrega um outro que me incomoda na mesma medida. Se o passado era muito melhor, ao futuro só cabe a catástrofe. Repetimos assim, a trajetória presente no drama bíblico: no passado temos o Paraíso, no futuro, o Apocalipse.

É muito comum, por exemplo, ouvir a minha geração dizer o quanto a própria infância foi melhor que a dos filhos. Obviamente que nada vai me demover da ideia de que minha infância regada a brincadeiras de rua – pique-esconde, futebol com trave de chinelo, fogueira na beira da calçada nas noites frias, captura de tanajuras em outubro, pera-uva-maçã-salada-mista, carrinho de rolemã morro abaixo, bicicleta sem freio e com garupa – foi insuperável, mas apenas porque foi a minha experiência de infância. Tenho certeza que a experiência dos meus filhos com a infância – já com a presença do computador, dos vídeo-games, da internet, do DVD – também será insuperável. Não ficará devendo nenhuma à minha.

Penso que essa sensação nostálgica de que o passado abriga uma vida melhor e mais feliz é tão somente uma prisão imaginária, que sempre carrega consigo uma outra: a de que ao futuro só cabe temer e esperar o pior.

Freud dizia que nossa existência é marcada pelo mal-estar, ou seja, nosso desarranjo com a existência é algo inevitável, já que é inerente à condição humana. Nossa relação com o mundo e, sobretudo com os outros, é profundamente marcada por essa dimensão trágica, não há como fugir disso. Sempre foi assim e sempre será assim. Isso quer dizer que o passado também abrigava seus mal-estares. Talvez seja apenas o distanciamento de tal passado que nos permita idealizá-lo a ponto de acha-lo mais colorido do que realmente deve ter sido. O futuro também terá seus próprios mal-estares, que ainda não conhecemos e talvez, por isso, nos assombrem tanto. Sobrevivemos aos mal-estares do passado então, podemos tranquilamente romantiza-los, o que não é possível fazer com mal-estares que nem mesmo conhecemos.

Mas minha proposta aqui é interrogar essas duas prisões imaginárias partido de um texto de Walter Moser - professor de literatura comparada da Universidade de Montreal - chamado Spaizet, que achei bastante potente. A proposta do texto é a de que estaríamos vivendo o tempo do Spatzeit; um momento de declínio, de perda de energia, de decadência, de saturação da Modernidade. Sabemos que a Modernidade desbanca o homem de suas certezas teológicas e é responsável por instaurar três grandes feridas narcísicas na humanidade: com Copérnico o homem não é mais o centro do universo, com Darwin o homem não é mais o centro da criação e com Freud o homem não é o senhor do seu próprio Eu. No entanto, se por um lado a Modernidade arrancou o homem do seu lugar de obra divina a ser resgatada pela salvação transcendente, por outro lado, prometeu a mesma salvação, desta vez por meio da ciência e das utopias de um Estado ideal.

Mas afinal essas promessas de salvação oferecidas pela Modernidade também não foram cumpridas. E diante da sensação de decadência dos ideais modernos vivemos entre duas possibilidades: uma nostálgica de que o passado era maravilhoso e promissor ou uma melancólica que pressente uma catástrofe iminente no futuro. Moser nos convida, entretanto, a tomar consciência de Spatzeit, ou seja, compreender a particularidade desse momento de esgotamento, de morte de uma era que levará ao surgimento de outra. Apenas tal consciência nos resgataria da paralisia trazida pelas prisões imaginárias no passado e futuro.

Creio que aqueles que não se prendem a essas duas prisões imaginárias conseguem fazer um uso mais potente e criativo do presente, e das possibilidades e instrumentos que este oferece. Isso nos faz mais abertos e preparados para as mudanças, as novidades, as inovações tecnológicas e científicas e também para as contingências que se apresentam. Mais preparados, inclusive, para enfrentar tais novidades de maneira ética e responsável.

Eu sou uma entusiasta das tecnologias digitais. Elas estão fundamentalmente presentes na minha vida e me abriram um mundo de possibilidades, especialmente no campo intelectual, que é o que me interessa. Eu sou uma devoradora de leitura e música. Já há muitos anos que eu desenvolvi um hábito de ler sobre tudo (qualquer assunto) e ouvir todos os tipos de música. Mesmo tendo meus estilos ou temas de preferencia eu sempre me abro à leitura de um tema ou ideia completamente nova ou até discordante da minha, e à escuta de músicas da maior diversidade possível. Acredito que este hábito mantém minha mente aberta e facilita minha produção intelectual. Antes da internet este era um ritual difícil de manter. Eu precisava recorrer às bibliotecas e ir para as lojas de venda de CD para escutar músicas no fone de ouvido, já que não podia adquirir todas as que gostaria de escutar. Hoje com a facilidade de acessar a internet do celular eu consigo fazer este ritual antes mesmo de me levantar da cama. Acordo cedo para fazer o que eu chamo de minha “ginástica intelectual”: acesso as redes sociais, leio sites de noticia, atualmente leio algo endereçado ao meu tema de doutorado e ouço pelo menos uma música que nunca tenha ouvido. Além da comodidade que a tecnologia me deu, a diversidade de possibilidades é de uma riqueza infinita. Me comove o tanto que posso alcançar em tão pouco tempo, com tanta facilidade e com um custo baixíssimo. Não consigo compreender quem não se encante com isso.

Entretanto, é muito comum, por exemplo, a tendência em simplesmente demonizar as tecnologias digitais (o computador, a internet, as redes sociais o celular e seus infinitos aplicativos). Nessa direção, qualquer discurso que venha servir de crítica ao modo de uso de tais instrumentos vem sempre na direção do “seria melhor se isso não existisse” ou “era melhor quando isso não existia”. Aprisionados na nostalgia do passado e temerosos diante da ideia do apocalipse, acreditamos que podemos criticar, criar linhas de fuga ou resistência negando ou fugindo da realidade que está posta.

Por isso, não defendo uma ideia que muito se propaga hoje de que a internet, as redes sociais e os celulares nos tornaram piores em nossas relações. É claro que tais espaços criaram novas formas de interação social e, portanto, novos mal-estares, mas são apenas mal-estares diferentes dos anteriores – nem melhores, nem piores. Se por um lado há uma queixa de estaríamos privilegiando as relações virtuais, por outro lado, este mesmo espaço virtual nos abriu possibilidades de relação e interação inimagináveis numa outra época. A mesma rede que pode nos afastar de muitos pode nos aproximar de muitos outros, ou seja, o que continua valendo é o nosso desejo de se aproximar ou se afastar de alguém.

Penso que as tecnologias e o mundo virtual são apenas instrumentos que ora vão nos causar facilidades e bem-estar, ora impedimentos e mal-estar, assim como tudo. Minha vida dentro da Matrix pode me aprisionar e embotar, mas também pode abrir um espaço de relação muito mais amplo e facilitado. No meu caso, por causa da importância da escrita e da criação deste blog, já tive a oportunidade de conhecer e interagir com blogueiros, jornalistas e escritores de diversas partes, sendo que alguns deles eu admirava na condição de fã. Tal espaço me rendeu amizades e interações riquíssimas que vieram até de outros países, viabilizou a publicação dos meus textos em outros espaços, me redeu entrevistas, parcerias, propostas de trabalho ou simplesmente bate-papos incríveis que jamais teriam sido possíveis sem a mediação das redes.

E sim! Sou uma adepta das redes sociais. Eu tenho amigos virtuais que nunca vi pessoalmente, mas que estão mais presentes na minha vida do que muitas pessoas que convivem diariamente comigo. Vejo gente que se acha na vanguarda por rejeitar as relações virtuais. Eu prefiro tirar delas proveito para ampliar meu mundo intelectual e afetivo, me manter informada, estimular minha capacidade crítica, ampliar minha possibilidade de escuta para outras verdades diferentes da minha. As redes sociais alimentam essa minha sede de ver e pensar sobre o mundo e escrever. Estou sempre aberta a conhecer pessoas novas, ideias novas, músicas novas, culturas novas e descobri que, já que não posso sair viajando pelo mundo sempre que quiser, posso fazer isso do meu PC ou do meu celular. Como isso pode ser ruim?

É claro que o universo virtual já me rendeu muitos mal-estares, desentendidos, desencontros, dúvidas morais e/ou éticas, mas eles são apenas um pouco diferentes daqueles que eu enfrento no chamado mundo real. Talvez a novidade torne tais mal-estares mais difíceis de manejar e enfrentar, mas uma coisa é fato, só aprenderemos a lidar bem com tais mal-estares nos colocando corajosamente diante deles, nunca rejeitando-os ou negando-os.

Trazendo novamente a psicanálise e o professor Moser para a nossa conversa, aceitar Spatzeit é aceitar a morte: nossa limitação, nossa castração. Aceitar a morte de modos de ser e de pensar que, por algum tempo, nos deram algumas certezas e nos mantiveram confortáveis. Aceitar o Spatzeit é aceitar o real, evitando ficar aprisionado nas idealizações, tanto do passado quanto do futuro. Nesse sentido, o universo virtual já é um espaço completamente real para o mundo de hoje. Assumir esse real pode ser também ressignificá-lo, reinventá-lo, revolucioná-lo ou simplesmente utilizá-lo em favor de novos modos de estar no mundo. Mas só podemos fazê-lo ocupando tal espaço. Não é possível revolucionar a Matrix estando apenas do lado de fora dela, é necessário estar dentro e fora, como bem relata o filme.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Madrugada

A madrugada, quando engolida por silêncios
É a morada dos fantasmas
E a dispensa onde guardamos nossos medos
É lá onde o tempo corre demasiadamente lento
E até as minúsculas formigas são capazes de fazer barulho

Pra quem dorme, o sono alimenta
Para os insones, a fome aperta
Fome de entender
Fome de lembrar
Fome de esquecer

A madrugada silenciosa é para os fortes
Ou para os poetas
As palavras chegam sem que a gente precise abrir a janela
Ou acender a luz

Na madrugada,
As dores ganham o dobro do peso
E a angústia - que também não dorme
Nos atravessa com sua lança

É na madrugada que entendemos
Que a vida, afinal, é uma experiência solitária
Pois os que nos acompanham nessa jornada
Também precisam enfrentar suas próprias madrugadas
Do seu próprio modo

Na madrugada,
É cada um com seu silêncio particular
E cada um com seu barulho peculiar

Só o amor nos salva da barbárie

Bem... eu não me considero uma pessoa religiosa, mas isso não me impede de acreditar que só o amor nos salva, não em direção um outro mundo, nos salva da barbárie deste mundo mesmo, e que pode estar logo ali adiante.

Nesta sexta-feira acredito que muitos devam estar mobilizados pela causa da paixão de Cristo, portanto, quero aproveitar para sugerir uma coisa que acho importante nesses tempos de redes sociais. Cuidado ao divulgarem fotos e relatos sobre pessoas que supostamente cometeram algum crime. Por mais que a história pareça verossímil e que você pense que está fazendo um bem alertando as pessoas ou ajudando na busca e condenação de um criminoso, esta não é uma atitude sensata.

Primeiramente nunca sabemos se tais postagens condizem com a verdade e não sabemos quem iniciou a corrente e seus motivos. Toda história tem inúmeras interpretações e a interpretação que você vê nesses casos conta apenas uma versão da história. E pode até mesmo ser uma invenção de alguém para denegrir ou prejudicar uma pessoa inocente. Já pensaram nisso?

E ainda que seja tudo verdade, precisamos estar avisados que o tribunal das Redes e do Whatsaap é cruel e desumano. Qualquer pessoa que tenha cometido um crime, por pior que ele seja, tem direito a julgamento digno, punição proporcional, além de amplo direito de defesa. Já o tribunal das Redes é assustador. Acusa, julga, condena e pune num único post. É irracional e passional. Portanto, o máximo que você pode conseguir divulgando coisas deste tipo é incitar um linchamento: moral ou físico, que pode acontecer inclusive com uma pessoa que não tem nada a ver com a história, só por parecer com o acusado (já vimos histórias deste tipo por aqui).

Pela tradição Cristã, sábado de aleluia é dia de linchar o Judas. Um Judas que reeditamos todos os anos para expiar nosso ódio, nosso desejo de vingança e nossa sede de fazer justiça com as próprias mãos. Mas não esqueçamos que na sexta-feira da paixão o que Jesus sofreu foi também um linchamento. Seus supostos crimes foram colocados à público na praça e os cidadãos de bem da ocasião decidiram que ele era culpado e deveria ser humilhado e espancado até a morte.

No sábado linchamos Judas tentando colocar nele a culpa pelo linchamento de Jesus Cristo, mas na verdade, essa é apenas uma tentativa de negar a verdade: Jesus foi morto pelo coletivo dos cidadãos de bem de seu tempo, que decidiram pela pressa e pela passionalidade de achar um culpado a ser condenado.

Passaram-se mais de 2000 anos e ainda não aprendemos a lição. Ainda achamos que faremos a diferença nesse mundo jejuando na quaresma, comendo peixe na sexta-feira santa e indo à Igreja no domingo de Páscoa.

Como disse, não sou religiosa, mas o que entendi sobre o legado de Jesus Cristo resume-se em uma aforia simples: "ame o teu próximo". E se ele precisou passar por tanta coisa para deixar apenas essa singela mensagem é porque se trata de uma missão extremamente difícil. Sim, é muito difícil amar o próximo, quase impossível, daí o valor e a nobreza deste ato.

Par - tido

Em tempos de criminalização e judicialização da política, talvez seja importante resgatar o sentido da palavra Partido. Partido é o que não é inteiro, assim sendo, um Partido não tem como propósito unificar ou reunir todas as ideias, interesses e propostas. Cada partido representa apenas uma parte dos interesses que transitam na política, e é assim que deve ser. Nesse sentido, essa coisa de "meu Partido é o Brasil" ou "meu Partido é a constituição" é um discurso vazio, que só serve para alienar e enganar, pois supõe que não existam diferentes interesses e posições numa Nação. Esse discurso que se pretende unificado não cabe numa democracia, porque supõe que exista uma forma unificada de pensar e conseqüentemente, uma unica forma de agir.

Acreditar que exista uma unica forma de pensar e agir é fascismo. A riqueza da democracia é exatamente essa: vários Partidos, que são várias partes com suas diferentes concepções e interesses tentando conversar e negociar. Tais negociações podem chegar ou não a um consenso, e não há nenhum problema quando não se chega a um, afinal, as vezes os interesses em jogo são antagônicos. Mas a política é a arte de manter o diálogo aberto mesmo quando as partes são muito diferentes.

Portanto, a ideia de que nós devêssemos nos juntar numa única bandeira para conduzir a crise da política atual parece muito bonita e palatável, mas é pura bobagem. A mesma bobagem que é uma política sustentada na criação de um inimigo comum. Tenho escutado: "não sou de nenhum partido, só quero acabar com a corrupção". Ter a corrupção como inimigo único também é um discurso totalmente vazio para a politica. Até porque, você conhece alguém a favor da corrupção? Então, o desafio que temos pela frente é grande e difícil e se prezamos pela nossa democracia, precisamos aprender que não haverá um discurso único nesse caminho, mas sim discursos partidos, incompletos e imperfeitos. Da muito mais trabalho negociar com essas diferenças, mas é o único modo democrático de faze-lo.

As vezes, também sonhamos com uma receita pronta, um super-herói (Moro, Joaquim Barbosa, Chapolin Colorado), um salvador ( Lula, Aécio, Bolsonaro, Jesus) ou a intervenção de um outro de fora (militar , alienígena, dos EUA) que resolva tudo pra nós. Isso deveria ser uma solução pensada só pelas crianças, a vida adulta requer de nós trabalho e coragem para construir nossas próprias saídas.

Enfim, nesse momento que vive o Brasil é urgente e fundamental tomar partido. Sem esquecer que qualquer partido que você tome, este sera o reflexo de apenas uma parte do contexto, será apenas uma parte da verdade. Melhor dizendo, nenhum Partido está com todas as verdades, está apenas com a verdade que você escolheu defender. Outra coisa importante é entender que aquele que possui interesses diferentes do seu tomará outro tipo de partido e se tornará seu interlocutor político e não seu inimigo.

Vamos ao trabalho, então! E que cada um tome sua parte!

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Declaração

por Rita Almeida

Com toda essa movimentação com a política nacional das últimas semanas, eu estava até esquecendo de fazer minha declaração para o Imposto de Renda. Então, lá vai...

Declaro, primeiramente, Imposto de Renda, que lhe quero bem. Sim, é verdade! Eu gosto de você, assim como o seu pai Imposto e toda a sua família, porque acho que vocês são fundamentais para o funcionamento de qualquer sociedade nos dias de hoje. Então, como conceito, como ideia, eu curto e torço por vocês. Mas o problema é que, aqui no Brasil, vocês agem de uma forma muito injusta, e isso, às vezes me faz ter sentimentos ambíguos. Vou explicar...

Recentemente eu li um livro: O Capital no Século XXI de Thomas Piketty, que me fez compreender melhor a importância de vocês. Compreendi com tal leitura, que a arrecadação justa de impostos é uma das melhores maneiras de reduzir as desigualdades. Que o desenvolvimento de um Estado fiscal e social é fundamental para o futuro do planeta. O objetivo seria melhor dividir a riqueza já existente, na medida em que chegamos num limite ecológico que nos impossibilita fazer a riqueza crescer mais. A aquisição deste Estado fiscal e social (capaz de oferecer a seus cidadãos um aporte mínimo de saúde e educação públicas, além de um sistema eficiente de previdência) é o que, segundo as pesquisas do autor, tem atuado minimizando os efeitos da desigualdade para os mais desprotegidos socialmente.

Também, fiquei sabendo, por exemplo, que seus primos Europeus mantêm um índice de arrecadação pública da ordem de 45 a 50% da renda nacional, chegando a uma arrecadação de 55% na Suécia. E segundo Piketty, esses são percentuais mínimos aceitáveis para a promoção de razoável bem estar social da população. No Brasil, segundo os dados que colhi no site do Jusbrasil, num texto do jurista e professor Luiz Flávio Gomes, cerca de 36% do nosso PIB são destinados a família de vocês. Mas o problema é que vocês são injustos, cobram mais de quem tem menos, pervertendo assim, o que seria a vossa missão primeira, que é distribuir renda.

Veja só o que vocês fazem por aqui: “quem ganha até um salário mínimo (R$ 724 reais) tem carga tributária real de 37%, contra 23% com salário de R$ 6 mil reais e 17% com salário de 22 mil reais”. “Os tributos sobre rendas e ganhos patrimoniais, no Brasil, são metade (19%) do cobrado nas nações desenvolvidas (38%), segundo dados da OCDE.” Já “no item impostos sobre mercadorias, serviços e bens o Brasil (45%) está muito acima da média da OCDE (29%).” (GOMES, 2014, site Jusbrasil)

Resumindo, vocês sobrecarregam o imposto sobre o consumo e privilegiam a renda e ganhos patrimoniais, uma regressividade, que pune os mais pobres e alivia os mais ricos. Eu sei que vocês herdaram essas regras de seus antepassados não republicanos e escravocratas, mas já está na hora reverem isso não?

Outra coisa que aprendi lá com dados citados no Jusbrasil, é que, ao contrario do que a gente ouve nas conversas de esquina, o Brasil não ostenta uma das maiores alíquotas do imposto de renda do mundo. Enquanto vocês arrecadam no máximo 27,5% por aqui, seus parentes estrangeiros arrecadam, só para exemplificar, 40% no Chile, 43% na China, 50% no Japão, 55,9% nos EUA e 57% na Suécia.
Com esses dados só pude concluir que vocês não arrecadam muito, só arrecadam mal (cobrando mais que quem tem menos) e ainda usam mal o que arrecadam para cumprir a missão de vocês que seria reduzir a desigualdade. Pesquisei lá no site do Jusbrasil: “A distribuição para reduzir a desigualdade no Brasil é de 3,6%, comparando-se com União Europeia (32,6%), Reino Unido (34,6%), Finlândia (34,7%), Alemanha (34,9%), Suécia (35,6%) e Dinamarca (40,8%).” E ainda há quem reclame quando se usa o que vocês arrecadam para financiar programas de distribuição de renda como o Bolsa Família! Aff!

Uma curiosidade sobre seus primos americanos, os quais todo mundo enche a boca para falar. Eles chegam a arrecadar a 55,9% de imposto de renda, detendo um nível de arrecadação fiscal geral da ordem de 30% bem mais baixo que o Europeu, é verdade. Mas é importante lembrar que lá o sistema de saúde e a educação superior – em geral, os mais caros para o Estado – são eminentemente privados, então, não fazem tanta vantagem assim.
Outro problema por aqui, nós sabemos, é que muito do que vocês arrecadam, vazam pelo ralo da corrupção. Aí muita gente, equivocadamente, culpa vocês por isso e querem jogar fora a criança com a água da bacia, ou seja, se os impostos são desviados então vamos acabar ou reduzir os impostos. Isso é o mesmo que propor como cura para uma doença cardíaca a extração do coração. Tolice ou cinismo!

Mas, por outro lado, é interessante que ninguém fala da corrupção quando ela serve para que se possa sonegar aquilo que seria devido à família de vocês. Segundo dados que colhi numa reportagem da BBC Brasil, a nossa sonegação e evasão fiscal anuais – que, também soube, fica atrás dos EUA – é quase 5x maior do que o orçamento de 2015 para a saúde, por exemplo.

Piketty também desnuda essa questão da sonegação e da evasão fiscal, que ele considera um problema mundial e gravíssimo. Todos sabemos que uma das coisas que determina a saúde financeira de um país é a quantidade de dinheiro que entra nele para se transformar em riqueza. A princípio, a dinâmica simplificada seria a seguinte: teríamos os países ricos que têm mais entrada do que saída de riqueza e os países pobres, num caminho inverso, que têm mais saída de riqueza do que entrada. Nesse sentido, nossa grande preocupação seria que os países ricos terminem por possuir cada dia mais os países pobres. No entanto, Piketty revela um dado assombroso e que, segundo ele, tem se agravado cada vez mais nos últimos anos. Ele afirma que todos os países, em menor ou maior escala, apresentam balanço negativo, ou seja, todos estão perdendo riqueza. Como essa tese é financeiramente impossível, ele sugere, ironicamente, que seja Marte quem esteja adquirindo a riqueza perdida por todos os países do nosso planeta.

Mas obviamente que não é Marte quem está recebendo esta riqueza que se estima ser de 10% a 30% do PIB mundial. Os paraísos fiscais são os destinatários dessa riqueza que os entes privados estão sorrateiramente deixando de repassar a família de vocês, minando grande parcela da vossa capacidade em distribuir a riqueza produzida. É o que estamos assistindo com o mais recente vazamento de dados sobre paraísos fiscais, o chamado Panamá Papers. Li uma excelente reportagem sobre o caso no El País.

Obviamente que, entre os corruptos e sonegadores que aparecem nessa lista, então apenas os de alta classe e poderio. Ao usarem esse subterfúgio, ricos e poderosos justificam, cinicamente, que o recurso da sonegação e da evasão só são utilizados porque eles precisam proteger o patrimônio das garras maléficas de vocês e seus familiares. São aqueles que, perversamente, se acham no direito de se colocarem acima de um pacto social coletivo, que vocês representariam. Pacto social coletivo que, sem dúvida, aqui no Brasil, vocês precisam aprimorar muito para representar melhor.

Para finalizar, Piketty fala uma coisa bonita sobre vocês que vou transcrever aqui: “O imposto não é uma questão apenas técnica, mas eminentemente política e filosófica, e sem dúvida a mais importante de todas. Sem impostos a sociedade não pode ter um destino comum e a ação coletiva é impossível”.

Então vai assim minha declaração 2015/2016: E gosto e defendo vocês, mas, por favor, melhorem! E rápido.

Fontes:

Jusbrasil http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121933009/quem-paga-menos-impostos-no-brasil

BBCBrasil http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150415_brasil_zelotes_evade_fd

El Pais http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/03/politica/1459714116_802121.html

Pikket, Thomas. O Capital no Século XXI Ed, Intrínseca LTDA, 2013.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A estratégia dos condomínios para lidar com o mal-estar das cidades O que a psicanálise poderia dizer sobre isso?

por Rita Almeida

Sou uma aficionada pela série americana The Walking Dead, que é uma adaptação para a TV da obra homônima dos quadrinhos, criada por Robert Kirkman e desenhada por Tony Moore. Para quem não acompanha, a série, que está na sua 7ª temporada, narra a história de um grupo de pessoas que tenta sobreviver após um apocalipse zumbi. Todavia, a luta cotidiana pela sobrevivência e as cenas de suspense ou terror são apenas pano de fundo para o que é mais interessante na série: o desenrolar de como os sobreviventes vão tentando lidar com o mal-estar que está colocado – no caso, a ameaça zumbi – e que implicações éticas isso desencadeia.

Freud dirá que o mal-estar é constitutivo da cultura humana, ou seja, uma vez que ingressamos no mundo da linguagem, perdemos o paraíso, ou melhor dizendo, o mundo não pode ser para nós aquilo que é em si, será sempre aquilo que representamos, que desejamos ou que imaginamos. Nesse sentido, nossa relação com o mundo e com os outros é sempre de insatisfação, de mal-estar, não importa como estes se apresentem. Mas a questão que sempre intrigou Freud e sua psicanálise foi: O que fazer com este mal-estar para o qual não há cura?

No cenário apocalíptico de The Walking Dead o mal-estar está muito bem circunscrito e definido. O mal-estar são os zumbis, muito facilmente identificáveis por suas roupas maltrapilhas, seus corpos cadavéricos e seus andares claudicantes, e resolver o mal-estar também é algo relativamente simples: atirar, esmagar ou furar seus crânios. Talvez isso explique o grande sucesso da série no mundo todo, o fato de experimentarmos com ela relativo conforto, já que, de certa forma, a vida dos sobreviventes da ficção é muito mais simples que a do nosso mundo real, pois, ao contrário de nós, eles já têm identificados tanto o mal-estar quanto a solução para ele.

Mas o que me aparece genial na série é que, à medida que as temporadas vão avançando, fica cada vez mais evidente que os zumbis não são o maior problema. Para o grupo de sobreviventes que protagoniza a série, mesmo num mundo infestado por zumbis a ameaça mais cruel e perversa vem de outros viventes. É a maneira como alguns grupos e indivíduos vão lidar com o mal-estar instalado que se torna a maior ameaça.

Nesse sentido, as questões éticas discutidas na série são muito interessantes, afinal, diante do caos e da necessidade de sobreviver chega-se a um limite: aquele que vai definir quais viventes vão se manter dentro do espectro ético que definimos como humanos. E exatamente aí se evidencia o conflito trabalhado na obra, porque enquanto os zumbis – os mortos-vivos – são facilmente identificáveis e elimináveis, os vivos-mortos não, o que faz desses últimos mais temíveis e perigosos. Os vivos-mortos são aqueles que mesmo estando entre os sobreviventes, estão mortos, de certa forma, mortos para uma ética compartilhada que caracterizaria aquilo que chamamos de humanidade. Os vivos-mortos são aqueles que não se tornaram zumbis, mas mesmo assim perderam grande parte de sua humanidade.

Isso nos faz pensar que a humanidade, aquilo que nos enlaça a uma comunidade, não é algo dado a nós junto com a existência. Enquanto o João de Barro nasce João de Barro e será João de Barro até o fim, nós não nascemos humanos. Tampouco a humanidade está garantida depois de conquistada, porque não é um dado biológico, é uma construção no campo do simbólico e, como tal, pode se perder. A humanidade não é algo natural para os seres humanos.

Mas quero tratar aqui é do modo como os diferentes grupos lidam com o mal-estar instalado a partir do apocalipse zumbi. Certos grupos ultrapassam alguns limites éticos compartilhados, mas mantém outros, alguns criam novos códigos de conduta próprios, há os que tentam preservar tais limites éticos, e outros, ainda, os perdem significativamente, vivem quase como animais.

A partir da 5ª temporada dois desses grupos vão se cruzar. Ambos optaram por manter preservados os limites éticos humanos, mas cada um de uma maneira diferente. O grupo que protagoniza a série, liderado pelo ex-policial Rick, eventualmente se protege em algum tipo de espaço circunscrito, quando isso é possível e necessário, mas também está sempre se movimentando, buscando novos caminhos e enfrentando “o mundo lá fora”, aquele que está infestado de zumbis. Já o outro grupo, que aparece no final da 5ª temporada, criou no meio do caos uma cidade completamente murada, Alexandria. Em Alexandria tudo deve funcionar como funcionava antes dos zumbis. Trata-se de uma espécie de oásis. O recurso utilizado pela comunidade de Alexandria para lidar com a realidade é evita-la ao máximo, criando uma redoma para si.

É impossível não comparar Alexandria com os condomínios fechados, tão comuns nas cidades brasileiras, especialmente nos centros maiores. Os condomínios surgem também nessa tentativa de criar uma redoma de proteção contra a realidade violenta e insegura. Mas o que podemos dizer sobre esse modo de lidar com a realidade, à luz da psicanálise?

Voltemos a The Walking Dead. Há um momento em que o grupo liderado por Rick encontra a comunidade de Alexandria e, de certa forma, é acolhido por ela. A partir disso, fica evidente a diferença entre o modo de lidar com a realidade de cada um dos grupos. Enquanto o primeiro grupo lida com a realidade de modo a enfrenta-la e se relacionar com ela, o segundo prefere criar uma espécie de mundo paralelo, que faz de tudo para rejeitar e negar a realidade. Para retratar tal diferença, citarei um diálogo muito interessante entre Rick e o marido da líder de Alexandria, o arquiteto Reg, responsável pelo projeto do muro em torno da cidade. No diálogo, Rick elogia Reg, afirmando que ele fez um belíssimo trabalho em seu projeto de cercar a comunidade. Mas Reg responde que foi Rick quem fez um trabalho incrível lá fora, liderando seu grupo para sobreviver em meio ao caos. “O que eu fiz é apenas um muro”, finaliza Reg.

No meu entendimento, Reg tem toda razão. Um muro é apenas um muro, não pode ser considerado um grande feito em se tratando de resolver nossas mazelas. Criar muros para cercar aquilo que nos causa mal-estar, não tem sido uma estratégia de sucesso ao longo da história. Fizemos isso com os loucos (em menor medida ainda fazemos), fazemos isso com os criminosos, e em nenhum dos dois casos temos tido o sucesso esperado, ao contrário.

Já com os condomínios fechados, parece que a ideia seja colocar a nós mesmos entre muros, na ilusão que poderemos deixar o mal-estar do lado de fora. Mas a psicanálise nos ensina que, se existe um modo fracassado para lidar com o real, ou mal-estar que nos assola, é aquele que sempre o evita e rejeita. Criar um mundo fictício, murado, privado dessa relação com o mundo real – ainda que este seja cruel e ameaçador – não nos tornará mais eficientes e capazes de lidar com ele, ao contrário, nos fará cada vez mais frágeis e impotentes diante do mesmo.

Voltando à série, temos a fala de Carl, filho adolescente de Rick que, em poucos dias morando em Alexandria, repara e comenta com o pai: “Eles são fracos”. O rapaz está correto. A cidade sitiada cumpre a função de proteger seus moradores, mas, por outro lado produziu humanos frágeis, débeis, incapazes de lidar com a realidade de onde Carl veio. Carl vive no apocalipse desde a infância, foi educado nele e para sobreviver a ele.

E é claro que a estratégia usada por Alexandria tem duração limitada. O apocalipse zumbi continua em marcha e numa crescente do lado de fora, e não há o que fazer quanto a isso. Por mais que se evite e rejeite o mal-estar, em algum momento ele irá atravessar os muros e invadir a realidade, e é exatamente isso que acontece na série. Por isso, a estratégia dos muros é sempre ruim, pois além de não resolver o problema, ainda debilita e fragiliza os que ficaram ali cercados. Enquanto o grupo liderado por Rick se teceu e se fortaleceu criando estratégias para lidar com a realidade zumbi, os moradores de Alexandria se alienaram em sua redoma. Sendo assim, quando a realidade chegar, e obviamente que ela chegará para todos, nós sabemos exatamente quem terá mais condições de lidar com ela.

Todavia, assim tem sido a estratégia que temos utilizado para lidar com o mal-estar das grandes cidades, especialmente no que toca à violência. Nos cercamos em condomínios, certos de estarmos seguros em nosso oásis belo e feliz. Entretanto, tal ilusão tem seus dias contados, afinal, o mundo do lado de fora continua em marcha. Fechados em suas bolhas os “cidadãos de bem” acreditam estar a salvo do mundo “contaminado pelo mal”, assim, não precisam se dar ao trabalho de lutar ou intervir lá fora. A estratégia dos condomínios está produzindo pessoas cada vez mais alienadas em sua relação com o mundo, incapazes de tomar a cidade, a política e os espaços públicos como de sua responsabilidade. Sob o prisma dos condomínios o outro é sempre tomado como estranho, perigoso e ameaçador.

Mas será que não haveria outra forma de lidar com nossos mal-estares que não seja simplesmente padecendo ou nos protegendo deles? A psicanálise, com sua ética, nos convida a lidar com o mundo a partir do real. O real é aquilo que nos assola, o que não podemos significar completamente, que nos causa mal-estar porque escapa ao contorno do simbólico. Partir do real como ferramenta ética seria, portanto, não recusar e rejeitar o mal-estar, mas se deixar atravessar por ele para, a partir dele, construir caminhos e estratégias. Se o mal-estar é inevitável e permanente, nega-lo apenas nos torna frágeis e impotentes para lidar com ele.

Em The Walking Dead o grupo protagonista escolheu lidar com o real apocalíptico enfrentando-o, se movimentando, criando laços e inventando estratégias, tudo isso sem se furtar aos embates necessários. Obviamente que tais embates não se fazem sem perdas e danos, mas por outro lado, é isso exatamente que vai fortalecendo e tecendo um certo estilo do grupo para lidar com seu mundo decadente. Alexandria, por sua vez, do modo como foi idealizada, teve seus dias contados. Cumpriu, apenas por algum tempo, a função de isolar e proteger seus cidadãos entremuros, além disso, fez deles sujeitos débeis e frágeis para lidar com o mundo real.

Se a vida imita arte, como dizem, a estratégia dos condomínios igualmente fracassará, se é que já não está fracassando. E talvez já estejamos vivendo os reflexos da debilidade que eles têm produzido, quer seja, um descolamento cada vez mais frequente das pessoas da noção de cidadania. Ser cidadão, nesse ponto, é compreender que a cidade também é minha responsabilidade e só pode melhorar com a minha participação política ativa e que, além disso, ela não será boa para mim e o que me é familiar se também não for boa para muitos, inclusive para os que eu considero estranhos. Não trataremos das mazelas da nossa civilização cuidando apenas dos jardins dos nossos condomínios. Aliás, o mosquito transmissor da dengue está aí para não deixar que a gente se esqueça disso. Mas isso já é tema para um outro texto.







quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Desenterrando Dercy num programa de TV: alcançamos o limite da barbárie.

por Rita Almeida

Esta semana sofri aquele tradicional abalo na crença num mundo melhor ao ler uma reportagem sobre as gravações de Gugu Liberato para a nova temporada do seu programa na Record, e que talvez anuncie que tenhamos alcançado o limite da barbárie. Gugu fez uma visita ao túmulo de Dercy Gonçalves a fim de conferir se ela foi mesmo sepultada de pé, como era de sua vontade. Tal visita foi acompanhada e, certamente, autorizada pela filha da falecida.

Uma longa entrevista de Charles Melman à Jean-Pierre Lebrun, ambos psicanalistas, resulta no livro: O homem sem gravidade, que contribui para o incessante debate sobre o mal-estar na civilização, inaugurado por Freud. O livro trata do que Melman chama de “a nova economia psíquica”, economia na qual o que se persegue é que o gozo triunfe sobre o desejo. Explico: Benito de Paula nos avisava nos idos de 77 que “nem tudo pode ser perfeito, nem tudo pode ser bacana” já que não seria possível “assoviar e chupar cana”. Hoje rejeitamos a escolha do desejo e perseguimos o gozo sem limites, ou seja, acreditamos ser possível “assoviar e chupar cana”. No século que se anuncia, dirá Melman, não há mais impossível, vivemos a era do “ultrapassamento dos limites”.

Me sirvo da inusitada temática do Programa do Gugu para tratar aqui desse “ultrapassamento dos limites”. É importante que se diga, já de partida, que quando se fala de “ultrapassar o limite”, não se trata de evocar um discurso moralista puro e simples, como se tal ultrapassamento fosse uma espécie de subversão às regras e normas sociais. Não é essa a questão. Até porque, para subverter limites, regras e normas, é necessário partir do pressuposto que eles existem e nos servem de algum modo. Sendo assim, o que assistimos hoje não é o ultrapassamento do limite como desobediência ou subversão, mas como pulverização, como apagamento; é como se tal limite nem mesmo existisse.

Apenas uma desconsideração total de que deva haver um limite a partir do qual deixamos de ser humanos, poderia conceber um programa de TV onde se faz a exumação de um corpo/cadáver com o intuito de aplacar a curiosidade alheia e, obviamente, angariar telespectadores. E ainda mais espantoso é pensar que a própria filha da falecida concordou, vai participar e muito possivelmente recebeu algum retorno financeiro em tal empreitada.

Melman chama de “suspensão do recalque” a falta de pudor que temos hoje para desvelar o que antes mantínhamos sob um véu. Acreditávamos que nosso mal-estar era apenas fruto da repressão excessiva que a civilização impunha sobre nós e que a suspensão de tal repressão, a fim de permitir a expressão nua e crua do nosso desejo, seria a cura; nossa libertação. Entretanto, não foi o que aconteceu. Se com a psicanálise aprendemos que o mal-estar é inerente à condição humana, obviamente que novas formas de mal-estar surgiram, e o que elas têm em comum é compactuarem com esse desvelamento do gozo. Se um dia tudo estava sob o véu do recalque, hoje a ordem é exibir; nada pode ser dissimulado.

Nesse sentido, nem mesmo a morte com sua inscrição no campo do sagrado (sagrado no sentido de não estar ao alcance da nossa compreensão), é poupada desse desvelamento. Não só é permitido, mas é necessário que se abra o túmulo de uma pessoa diante das câmeras para que milhares de telespectadores satisfaçam sua curiosidade, que nem pode ser chamada de mórbida, porque se tornou banal. Dias atrás a internet também noticiou que um cadáver exposto numa praia de Florianópolis não mudou em nada a rotina dos banhistas. Tudo pode ser visto, sem o menor pudor.

As consequências da pulverização dos limites e da suspensão do recalque têm produzido essas e outras bizarrices na TV e fora dela, como temos visto, no entanto, o mais preocupante é que elas anunciam a barbárie. A barbárie, segundo Melman, consiste numa forma de relação social organizada por um poder que não é simbólico, mas real. Ou seja, na falta de um limite simbólico compartilhado, emergem formas de poder amparadas na força bruta. Diante da angústia que o esgarçamento dos limites provoca, assistimos a emergência de autoridades despóticas, que Melman chama de “fascismo voluntário”. São lideranças que se autorizam a sim mesmas a partir de uma aspiração social. Diante do desbussolamento coletivo, demanda-se alguém que venha novamente dizer o que se deve ou não fazer. Se o limite não aparece compartilhado, retorna encarnado em alguém.

Talvez isso explique o sucesso das religiões neopentecostais, cada vez mais rígidas, com limites morais muito bem claros e definidos, e o aparecimento de lideranças políticas na chamada, nova direita, que legislam em favor de uma moral coletiva que norteie a sociedade, e que tolera, inclusive, que ela possa ser alcançada por meio da força, se necessário. Também não é incomum que religião e política andem juntas e se sobreponham nessa empreitada. Especialmente no Brasil tal movimento está numa crescente.

Enfim, para novas formas de mal-estar são necessários novos modos de intervenção, e a ética que advogo nos convida a construir aquelas que evitem a barbárie e que façam laços por meio da linguagem, que é aquilo que nos humaniza. Quanto ao programa de TV citado eu desejo, sinceramente, que exista algum tipo de vida após a morte e que Dercy apareça de algum modo tecendo seu conhecido rosário de palavrões para desacatar Gugu, a filha, e quem mais esteja assistindo essa bizarrice, porque é isso exatamente que todos esses merecem. E pensando bem, só mesmo Dercy teria o vocabulário adequado para colocar em palavras tamanha babaquice. Só isso seria capaz de nos redimir dessa vez.