terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Sobre a tragédia do Charlie Hebdo: Humor X Fundamentalismo


Ao ingressar na linguagem o ser humano perdeu para sempre o paraíso. A linguagem como recurso simbólico - nosso instrumento para lidar com o mundo - não é capaz de alcançar o real ou a “coisa em si”, sendo assim, a verdade que alcançamos em qualquer aspecto, será sempre uma meia verdade. Isso quer dizer que no campo da linguagem, qualquer tipo de discurso que se utilize produz alguma espécie de mal-entendido. Em resumo: somos seres condenados ao mal-estar.

Mas o que cada um fará com este mal-estar é diverso e singular. Entretanto, para efeito deste ensaio vou agrupá-los em dois tipos. Há formas discursivas que assumem e acolhem o mal-estar e outras que negam ou rejeitam o mal-estar e que representam, basicamente, duas maneiras de lidar com a verdade. No primeiro grupo estão as formas discursivas que entendem que não existe uma verdade única ou A Verdade, o que existe são meias verdades, ou seja, diferentes maneiras de enxergar uma mesma coisa. No segundo grupo estão as formas discursivas que acreditam que exista um saber universal e imutável. Neste modo de lidar com a realidade acredita-se ser possível se livrar do mal-estar buscando A Verdade; uma única verdade totalizadora capaz de responder todas as questões e, consequentemente, anular todas as diferenças.

No evento ocorrido na França onde religiosos fundamentalistas atacaram o jornal Charlie Hebdo, ao que parece, em retaliação às charges de humor que estes publicavam sobre o Islamismo, temos representantes dessas duas maneiras de lidar com o mal-estar. O humor é uma forma discursiva que acolhe e assume o mal-estar. O humor não nega o mal-estar, pelo contrário, ele sobrevive do mal-estar. Sua intenção é exatamente provocar riso a partir do mal-entendido. Ao avacalhar e desmoralizar o mal-estar, o humor denuncia-o e ao mesmo tempo lhe da leveza, tornando-o acessível ou suportável.

Já o discurso religioso - especialmente no caso das religiões fundamentalistas - tem a pretensão de rejeitar o mal-estar. Acreditam que exista uma verdade totalitária e imutável - exatamente a que professam ou que acreditam - única capaz de dar conta de todo e qualquer mal-estar. A proposta neste caso é: “Aceitem a minha Verdade – a única – e se livrem do mal-estar”. E certos de que estão diante dA Verdade, esses “religiosos” por vezes se tornam capazes de quaisquer atos extremos em nome dela. Em nome desta Verdade Universal pretendem apagar as diferenças, mesmo que para isso precisem fazer uso de medidas violentas.

Jacques Lacan, psicanalista francês, chamou este modo discursivo que tenta encontrar o Todo Saber ou o Saber Universal, de Discurso Universitário. Sua intenção ao levantar tal tema em 1969, era fazer uma crítica ao que a ciência e a própria psicanálise vinham se tornando, especialmente nas Universidades: saberes dogmáticos, engessados e duros.

Sendo assim, o fundamentalismo ou dogmatismo não é privilégio das religiões, apesar de ficar mais obvio enxergar nelas este tipo de visão de mundo. Há fundamentalismos erigidos em nome da ciência e da psicanálise. Há fundamentalismos nos movimentos sociais e políticos. Há fundamentalismos no discurso ecológico e no feminista. E há fundamentalismos de esquerda e de direita.

Leonardo Pandura, no livro O Homem que Amava Cachorros, narra os últimos dias do revolucionário russo Leon Trotsky e parte do desenrolar da revolução comunista na Europa. O que mais me chamou a atenção no livro é de como os ideais da Revolução Comunista e da filosofia Marxista foram transformados num dogma burocrático, tão duro e engessado, como o de qualquer religião fundamentalista. A revolução comunista, que tem como princípio rejeitar o discurso religioso por considerá-lo reacionário, vai se tornando ela mesma, com o caminhar da revolução, um emaranhado de dogmas e burocracias que acabam por pretender o mesmo que qualquer fundamentalismo religioso pretende: perseguir uma verdade única e acabar com todas as diferenças. Trotsky, inclusive, é assassinado por este motivo.

O que quero dizer é que nenhum tipo de saber: científico, político, religioso ou filosófico, está imune ao fundamentalismo. Basta que se pretenda negar o mal-estar, perseguindo uma verdade única e acabando com as diferenças.

Voltando ao caso Charlie Hebdo, podemos até questionar o bom gosto do humor que produziam. Podemos até concluir que suas charges incitaram sim o ódio e a revolta de fundamentalistas religiosos. Mas não podemos de maneira nenhuma acreditar que, por causa disso, não deveriam ter produzido humor que produziram durante todos esses anos. Porque o humor não pode ser covarde, não pode evitar o mal-estar. E por rejeitar uma verdade que seja toda ou um único modo de enxergar o que nos cerca, o humor é sempre revolucionário. Mesmo que seja de mau gosto, mesmo que pise em minorias, mesmo que reforce estigmas, o que o humor tem a seu favor é sempre o fato rejeitar uma verdade única. O humor é capaz de aceitar o mal-estar como parte integrante da vida e das nossas relações, o que é fundamental para arejar o conjunto de verdades que vamos construindo sobre as coisas.

Isso não quer dizer que o humor esteja acima da lei, ou acima do bem e do mal. Se o humor ultrapassa limites legais estabelecidos deve responder e ser responsabilizado por isso, este é o preço que arriscam pagar por evidenciarem o mal-estar, faz parte do jogo. Mas, quando falamos do limite do humor, não é possível pensarmos que tal limite possa ser estabelecido à priori. Se burocratizarmos ou dogmatizarmos o humor, ditando normas e regras para que ele aconteça, iremos mata-lo, pois será mais um discurso cheio de verdades estabelecidas.

Os cartunistas da Charlie Hebdo, possivelmente, preferiram assumir o risco do humor que produziram. Mesmo não achando nenhuma graça de algumas charges que vi circulando por aí (quem sabe influenciada pela tragédia ocorrida) acredito que eles estavam certos em não se acovardarem diante da missão do humor: denunciar verdades únicas e imutáveis, desconstruir visões de mundo estreitas e fundamentalistas, desmontar dogmas e debochar de certezas.

Já temos gente demais vomitando certezas neste mundo. Já temos teorias, instituições, seitas, religiões, regras e livros de autoajuda suficientes para nos dizer como encontrar A Verdade, Verdade essa capaz de acabar com todo o mal-estar que não cessa de se impor sobre nós. Temos gente demais empunhando suas certezas como se fossem armas, e eles não recuam se precisarem atirar. E o humor será sempre um bom antídoto contra isso.

Eu não vou escolher um lado no caso Charlie, porque não tenho conhecimento suficiente da situação para fazê-lo. Não sei se eles foram longe demais, se ultrapassaram algum limite ético ou legal. Eu não sei como vivem as minorias islâmicas na França. E também não acho que empunhar uma caneta seja um ato inocente, e nesse caso, não havia nenhuma pretensão que fosse. Mas se eu tiver que escolher entre o fanatismo religioso ou qualquer outro tipo de fundamentalismo e o humor, eu fico com o humor. Sempre.