sábado, 28 de setembro de 2013

Democracia não é opinião pública ou sobre as implicações éticas de curtir e compartilhar nas redes sociais.

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista real e virtual


A palavra DEMOCRACIA anda um tanto quanto desgastada. E em tempo de redes sociais então, esse desgaste tem produzido uma confusão terrível; a confusão entre democracia e opinião pública. O perigo desse tipo de confusão é o processo de simplificação e empobrecimento do discurso democrático. Nas redes sociais todos sentem necessidade de se apropriarem de uma posição política que, em geral, se resume em ser contra ou a favor, criando um terreno fértil para a banalização do maniqueísmo. Sem espaço para discussão, o aprofundamento dos temas e o debate de ideias – tão fundamentais para o fortalecimento da democracia – a “manifestação democrática” nas redes se faz num clique: curtir e compartilhar.

Obviamente que, numa sociedade democrática, é esperado e louvável que as pessoas se manifestem e opinem, todavia, é preocupante quando percebemos que tais opiniões são, muitas vezes, exploradas pelas redes sociais de maneira tendenciosa, parcial e até com certa dose de má fé, com o objetivo claro e explícito de manipular e distorcer uma informação e influenciar a tomada de posição das pessoas.

A grande febre do feicebuque, por exemplo, são as postagens com uma foto e uma frase pequena, de fácil entendimento. São postagens que se multiplicam diariamente, minuto a minuto na linha do tempo virtual, com a função precípua de seduzir os navegantes virtuais e receberem um curtir e um compartilhar (quanto mais, melhor). Tais publicações não têm a menor intenção de levar o interlocutor a pensar, a pesquisar, compreender ou questionar o tema em questão e, muitas vezes, o induzem ao erro. Além disso, produzem e reforçam a ideia de que um mero curtir e compartilhar possam ser formas efetivas e contundentes de participação democrática, quando na verdade o que elas mais fazem é influenciar a opinião pública.

Vou citar um exemplo aqui, mas poderia enumerar centenas deles. Cito esse exemplo porque se trata de um tema presente na minha vida acadêmica e profissional, e sobre o qual acredito ter certa autoridade para defender uma posição, que é técnica e política.

Meses atrás, apareceram várias publicações no feicebuque nos alertando que o governo federal pretendia fechar as APAES. Algumas chegavam a acusar diretamente a presidenta Dilma ou seu partido pelo fim dessas associações. Uma dessas publicações, a que me chamou mais atenção, trazia a foto de uma criança portadora de síndrome de down com uma pergunta: Você quer que as crianças especiais fiquem sem educação e tratamento? Se sua resposta é NÃO, então curta e compartilhe, para que o Governo Federal não feche as APAES.

A postagem em questão foi baseada no temor relacionado ao relatório do senador José Pimentel (PT-CE) referente ao Plano Nacional da Educação (PLC 103/2012), aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos. Segundo o relatório, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou superdotação deve ser universalizado na rede regular de ensino. Sendo assim, a meta é que até 2018, a escolaridade de crianças especiais seja feita integralmente e obrigatoriamente no ensino regular, reforçando a diretriz de uma política de educação que seja inclusiva, ou seja, que garanta o direito de acesso de TODAS as crianças na escola regular, sem nenhuma distinção. Fala a favor dessa proposta a promoção de uma política de educação universal, não excludente, que respeite e acolha as diversidades dos alunos. Fala a favor dessa proposta a construção de uma diretriz pedagógica que trabalhe contra noções preconceituosas e equivocadas de que a criança especial seria apenas mais um peso ou problema para escola ou educadores, quando na verdade, poderia ser - se assim permitíssemos - uma oportunidade única e rica de humanizarmos nossas escolas, torna-las mais democráticas, acessíveis, sensíveis às diferenças e tolerantes com aquilo que diverge de nós ou que nos cause estranheza.

Sendo assim, essa diretriz política, retiraria de entidades como Apaes e Pestalozzis a necessidade de oferecer uma escolarização especial que substitua a educação regular, como pode ser feito hoje em dia. Além disso, como se sabe, Apaes e Pestalozzis não são instituições públicas, mas pelo fato de hoje substituírem a escola publica para muitas crianças, fazem jus o recebimento de recursos e repasses do governo, fundamentais para a sua manutenção e sobrevivência. Obviamente que, na medida em que a escola pública assume as crianças especiais, poderá também se desobrigar do envio de recursos públicos para essas associações. Mas ainda que a federação se esquive do repasse financeiro a essas instituições – o que ainda não está definido – e que isso signifique o enfraquecimento ou até a extinção das mesmas, não se pode dizer que o governo irá fechar Apaes e Pestallozzis, simplesmente pelo fato delas serem organizações da sociedade civil, não submetidas a uma intervenção da União.

Depois desses esclarecimentos, somos capazes de enxergar com alguma crítica a postagem que eu citei sobre as Apaes. Em primeiro lugar podemos analisar melhor a pergunta que é feita, e ela é feita para seduzir emocionalmente o interlocutor, afinal, quem em sã consciência será capaz de se colocar contrário ao atendimento e escolarização de crianças especiais? Todavia, em nenhum momento é dito que a proposta não é retirar o atendimento a essas crianças, mas sim, propor um outro tipo de atendimento; teoricamente mais inclusivo, menos excludente. A segunda indução ao erro é dizer que o governo tem como proposta fechar as Apaes, quando na verdade, ele não tem nenhuma ingerência para fazê-lo.

Isso não quer dizer que todas as pessoas que leram este meu texto devem, a partir de agora, concordar com a proposta inclusiva do Plano Nacional de Educação. Muitas podem defender que deva mesmo haver escolas especiais para crianças especiais, podem argumentar que as escolas regulares não têm condições de receber alunos diferentes, que os professores não têm preparo para este tipo de trabalho, que o governo deve continuar mantendo essas instituições, sob o risco de que elas sucumbam por falta de recursos, ou podem defender que tais instituições mereçam recurso público para que possam fazer um trabalho paralelo à escolarização regular. Todas essas argumentações, e outras, podem ser usadas em defesa das Apaes, mas é importante que elas sejam sustentadas por uma discussão que realmente enriqueça o debate sobre o tema e não no parco resultado de uma curtida no feicebuque.

Por meio dessas postagens toscas e de fácil manipulação, associou-se a famosa PEC 37 à impunidade dos nossos políticos. Se manifestar contra a PEC 37 virou sinônimo de acabar com a corrupção, mesmo quando a própria OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) denunciava o falso debate sobre tal proposta, fazendo, inclusive, a defesa da mesma. PEC que, no final, diante da pressão das ruas, foi derrotada. Mais recentemente os tais “embargos infringentes” (que a maioria da população, assim como eu, não tem a menor noção do que seja) caíram na rede e foram execrados. Todo mundo se sentiu impelido a ser contra, e muitos se manifestaram de luto pelas redes sociais quando foram mantidos. Eu não tenho duvidas de que muitas dessas manifestações ocorreram porque a sobrevivência dos tais embargos ficou vinculada exclusivamente à possível absolvição dos chamados “mensaleiros”, que já foram condenados pela opinião pública mesmo sem terem sidos condenados definitivamente pela justiça.

As redes sociais são capazes dos entrelaçamentos mais incríveis e improváveis, porque superam as barreiras do tempo, do espaço, da distância, das limitações físicas e até sensoriais. Assim como esses enlaçamentos abrem possibilidades ricas e infinitas de articulação, organização, aprendizado, afetividade, mobilização, empoderamento, participação, abrem na mesma proporção uma fenda que, esvaziada de sabedoria, de crítica, de conteúdo, de sentido e/ou de ética, torna-se um espaço fecundo para abrigar o “estouro da boiada”; quando todos seguem cegamente uma direção sem questionamento, embalados pela maioria.

Entendo que seja urgente compreendermos a distância que existe entre opinião pública e debate democrático. Precisamos fortalecer as instancias de participação social, os conselhos, os partidos, as organizações civis, os movimentos sociais e de classe, se quisermos uma democracia robusta e viva. Plebiscitos, pesquisas de opinião, consultas públicas, curtidas no feicebuque têm sim sua função, mas, em geral, servem mais para polarizar e empobrecer a discussão do que para favorecer tomadas de posição maduras que realmente demonstrem a necessidade e o desejo da população.

Também é urgente que vejamos com mais responsabilidade uma atitude aparentemente inofensiva, de curtir e compartilhar uma postagem. Vejo todo dia nas redes sociais, temas importantes sendo simplificados, pessoas e instituições sofrendo linchamento público e informações sendo distorcidas ou até mesmo inventadas, e o que é pior, vejo pessoas curtindo e compartilhando tais postagens sem a menor crítica. Me assusta muito, por exemplo, quando vejo publicadas fotos de pessoas com uma frase do tipo: esta pessoa maltrata idosos ou é estupradora ou ladra ou assassina: quem encontrá-la denuncie. Será que não devemos considerar a hipótese de uma postagem dessas ser falsa ou equivocada?

É famosa uma fotografia que circula pelas redes sociais de uma mulher com uma criança no colo do lado esquerdo e uma arma na mão direita apontando para a criança. No entanto, trata-se de uma montagem. Na foto original a mulher segura um pássaro e não uma arma. Então devemos perguntar: Que tipo de consequência essa foto pode ou poderá trazer para essa mulher? E será que uma possível reparação poderá ser feita na mesma medida do estrago? São questionamentos que, no meu entendimento, precisamos fazer antes de mostrarmos nosso polegar para cima, concordando com alguma postagem e fazendo-a se multiplicar por aí, acreditando que estamos, com isso, exercitando nossa liberdade de expressão ou a veia democrática da nossa sociedade. Democracia sem ética também pode produzir distorções e barbárie. Sim, a simplicidade deste ato de clicar o polegar para cima, especialmente quando feito coletivamente, me parece, às vezes, tão bárbaro e cruel como aquele utilizado nas arenas romanas no início da era cristã, quando o povo presente era conclamado a mostrar o polegar para cima ou para baixo para absolver ou condenar os julgados. Apesar de ser uma forma que os Imperadores Romanos utilizavam para acolher a decisão da maioria, isso não me parece em nada com o que poderíamos chamar de uma decisão democrática.

Mas alguém pode argumentar ingenuamente que é exagero comparar um linchamento ou execução real de um linchamento ou execução na esfera virtual. Para mim, quem diz isso não entendeu nada do mundo virtual, ou nunca assistiu Matrix. O mundo virtual não é um mundo de mentirinha ou de fantasia. Real e virtual apesar de serem universos distintos, participam de uma mesma realidade, se entrelaçam e se influenciam o tempo todo. Assim como em Matrix, morrer no mundo virtual pode significar a morte no mundo real. Por isso, devemos exercitar mais nossa ética e nossa responsabilidade ao curtir e compartilhar no mundo virtual. E pensando bem, agora eu entendo porque Mark Zuckerberg – criador do feicebuque – não instituiu por lá o polegar para baixo. Melhor não.

Minha humilde sugestão é que a gente se preocupe, pelo menos, em se informar um pouco mais antes de curtir e compartilhar uma notícia, especialmente quando ela vier simplificada demais. Na dúvida, prefira curtir e compartilhar fotos de animais fofos. Eu prefiro as de gatinhos.

domingo, 1 de setembro de 2013

Delirar é fundamental!


Delirar é fundamental! Tão fundamental que se eu fosse uma filósofa importante mudaria a máxima cartesiana para: "Deliro, logo existo". É comum que se diga que só os loucos deliram, mas isso não é verdade. Todos nós deliramos. Quem não delira ou é pedra ou é planta. Todas as pequenas e grandes realizações humanas iniciaram com um delírio, ou seja, numa invenção da cabeça de alguém.

Quando começamos a trabalhar na saúde mental, temos muito medo do delírio. Mas depois de um tempo, entendemos que o que difere uns delírios de outros, é o simples fato de alguns deles conseguirem nos convencer de que são uma verdade possível e outros não. Ou seja, tememos o delírio quando acontece de não conseguirmos compartilhar de sua verdade. É um medo do desconhecido, apenas.

Portanto, o grande desafio enfrentado pelo delírio, ou por quem delira, é conseguir convencer outras pessoas da verdade daquele delírio. Assim também deve ter sido para Copérnico no século XV, quando afirmou que o Sol, e não a Terra, seria o centro do nosso Universo. Também foi considerado delírio quando alguns disseram ser possível tratar da loucura entre nós: sem muros, sem trancas, sem isolamento, sem exclusão. Hoje vemos que isso é totalmente possível. Isso quer dizer que um delírio é capaz de se tornar uma verdade quando, e se, tem a chance de ser compartilhado por um determinado número de pessoas; quando consegue fazer laço e lastro.

Mas ai daquele que não consegue compartilhar seu delírio! Ai daquele que não consegue fazer laço com seu delírio! Assim sendo, a missão dos novos serviços de saúde mental não manicomiais, inventados pela Reforma Psiquiátrica, tem sido, exatamente, tornar possível o delírio de muitas pessoas, aquelas que tinham seu delírio silenciado, desvalorizado e desacreditado.

E assim se resume o meu trabalho nos últimos anos: eu acredito nos delírios que ouço. Em todos eles. Porque o que aprendi nesses meus 17 anos de trabalho na saúde mental, nos vários CAPS que já trabalhei e com os inúmeros delírios que ouvi é que: não existe delírio que não possa se tornar uma verdade. Todo e qualquer delírio pode adquirir valor de verdade quando compartilhado por outras pessoas, afinal o que distingue a verdade do delírio é que a verdade é o delírio que a gente acredita e compartilha.

Então, deliremos! E botemos fé no delírio!

Rita de Cássia de A Almeida
Coordenadora do CAPS CasAberta de Lima Duarte MG
Texto em comemoração aos 10 anos do CAPS CasAberta.
30 de agosto de 2013