terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Adeus ao pai

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
filha de Missias Braz de Almeida

Meu pai faleceu esta semana e deixou em nós um vazio inenarrável.

Quem o conheceu sabia o cara incrível que ele era. De uma sabedoria, muitas vezes, cortante, apesar da pouquíssima instrução. E no seu ato final, quando as cortinas se fecharam eu tive mais clara ainda a dimensão de tal sabedoria. Pois só uma pessoa muito sábia é capaz de construir seu próprio epitáfio e tem serenidade para transmiti-la a outra pessoa, meses antes da sua morte, ainda que esta morte, dada a sua saúde e vitalidade, parecesse estar ainda muito distante.

Meses atrás meu pai me chamou reservadamente e me disse. “Minha filha, quando eu morrer, quero que você diga pras pessoas presentes no meu enterro que eu quero todas elas alegres e sorrindo, porque eu fui um homem muito alegre. Quero que você diga assim: aqui foi um homem muito alegre que amou muito a vida.”

Meu pai era um exímio contador de piadas e “causos” (como se diz aqui em Minas). Muitos desses “causos” e piadas ele contava repetidamente, mas a gente sempre ria do mesmo jeito, ainda que sabendo o enredo e o final. Ele sempre tinha um trejeito diferente, um personagem diferente, tinha mania de adicionar detalhes que não faziam a menor diferença ao contexto narrado, também sabia com mestria mudar o final da história, quando esquecia a original. Aprendi com meu pai que não importa a história que aconteceu, o que vale mesmo é a história que a gente conta.

Estar com meu pai era a certeza de boas risadas. Mesmo quando tudo parecia desesperador, terrível e trágico, ele sempre se lembrava de nos fazer rir. Sendo assim, no dia da despedida, ao cumprir a nobre missão que ele me deu, dizendo a todos o que ele me pediu para dizer, também fiz questão de contar uma de suas piadas, que é a seguinte:

Um bêbado chega a um velório no qual não conhece ninguém e pergunta a uma mulher que está chorando:
- Morreu de quê? E ela responde:
- Ah! Morreu como um passarinho...
O bêbado parece satisfeito com a resposta e continua mais um tempo velando o morto desconhecido. Logo chega uma pessoa e pergunta ao bêbado:
- Morreu de quê? E o bêbado responde:
- Não sei ao certo... ou foi pedrada ou falta de alpiste.

Meu pai morreu como um passarinho... Não foi pedrada, nem falta de alpiste. Na verdade, ao que parece, alguém abriu a gaiola e ele simplesmente voou, leve e alegre como sempre foi.

Algumas pessoas acreditam que sabedoria é sofisticação, complexidade e excesso, mas ao contrário, sabedoria é simplicidade. Mais sábio é aquele que consegue resumir e apreender toda a complexidade da própria vida em poucas palavras. E meu pai soube fazer isso ao me dizer seu epitáfio. E se eu pedisse a todas as pessoas que conheceram meu pai que o representasse em uma só palavra com certeza todos diriam: ALEGRIA.

Em psicanálise dizemos que o que se alcança num processo de análise é a eliminação da profusão de significantes que nos representa (e que, em geral, não ajudam, só atrapalham) para que nos reste apenas alguns poucos, os significantes que realmente são importantes. Talvez nossa existência seja apenas para isso, para termos tempo de complicar a vida e depois de descomplica-la. Felizes dos que conseguem se livrar dos excessos e resumir sua vida em poucos atos, obras e palavras. Meu pai soube fazer isso com mestria: ALEGRIA foi sua única palavra no final, sua maior obra. E pensando assim, ele só poderia morrer do jeito que morreu, sem doença, sem sofrimento, se preparando para assistir sua neta, minha filha, desfilar no carnaval de nossa cidade.

Meu pai nunca leu Nietzsche, mas sabia muito bem da força e da potência revolucionária e reveladora da alegria. Para usar o termo nietzschiano: meu pai foi pura afirmação da vida. Gostava de rir, fazer os outros rirem e dançar. Nietzsche dizia: “Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!” Meu pai não perdeu um dia sequer e nos disse todas as verdades.

Em seu leito de morte tudo que pude prometer ao meu pai é que enquanto estivéssemos de passagem nessa vida nós continuaríamos a nos reunir para relembrar e recontar suas histórias e rir, rir muito. Ele nos fez rir a vida toda e, com certeza, continuaremos a rir dele depois da sua partida.

Depois de ter dito isso no velório de meu pai, um amigo muito antigo dele me chamou e disse que queria me contar a última piada que meu pai contou para ele. Achei aquilo de uma beleza infinita e só consegui pensar que foi meu pai quem soprou aquela piada em seu ouvido. E mais uma vez pude sorrir em meio as lágrimas.

Obrigada, pai. Você fez por merecer nosso sorriso e nosso aplauso!

9 comentários:

  1. Lindo, Rita! Nem precisei conhecer o seu pai pra saber da contribuição dele pro mundo, a julgar pelos seus textos.

    Fica em paz.

    Abraços,
    Murilo

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  2. Oi Rita,
    Não sabia da morte do seu pai...Lindo e tocante seu texto.
    Que ele esteja em paz e continue com sua alegria onde estiver...Paz pra vc e família.
    bjos
    Izabela

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. querida amiga, lamento muito a morte de seu pai. Lembre-me dele segundo a imagem de muitos anos atrás,quando éramos crianças. Com certeza estará sempre por perto. Um abraço afetuoso a vc, à Dona Glória, seus irmãos. Fiquem em paz!

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  5. Sua saudade já está produzindo beleza e alegria, apesar do momento triste seu texto me fez sorrir e sorri lembrando do meu pai a quem eu também tinha e tenho grande amor e admiração. Você tb sabe contar causos e fazer rir. Filha do seu pai.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Olá Rita,
    Belo texto.
    Neste momento difícil quero compartilhar algo que escrevi num processo de elaboração da ausência do meu pai, sentimento que neste momento está a flor da pele em você... eu entendo o “vazio inenarrável”.
    SAUDADE
    Saudade é a voz interior falando de um grande amor.
    Amor que foi vivido,
    Amor que foi compartilhado,
    Amor que foi capaz de gerar cumplicidades eternas.
    Amor que dá saudade.
    Saudade que faz doer o peito só de pensar e
    lembrar a pessoa que tanto amamos
    e que não podemos mais alcançar.
    É uma imensa vontade de encontrar de novo, abraçar.
    Trocar aquele olhar que fala em silencio.
    Da saudade resta então recordar.
    Trazer a memória lembranças vivas dentro de nós de alegria.
    Saudade não é sofrer.
    Saudade é reconhecer o privilégio de um dia ter tido a oportunidade de viver este amor e agradecer.
    ----------------------
    Sentir saudade da alegria contagiante é certamente um presente.
    Deixo registrado aqui o meu abraço solidário.
    Luciméa


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  8. Oi Rita!!

    Me senti emocionada ao ler seu depoimento e não tive outra reação senão encaminhá-lo ao meu pai.
    Parabéns!!

    Janaína.

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