sábado, 24 de março de 2012

"Incêndios"

Por Rita de Cássia Araújo Almeida
Psicanalista

Ao acessar a palavra o ser humano perdeu o paraíso para sempre, ou seja, a realidade tornou-se a partir de então, inacessível. E uma das conseqüências do acesso humano à dimensão simbólica da palavra é que toda história de vida é sempre uma ficção. Sempre. Não habitamos o mundo real, habitamos a palavra. E na medida em que é uma ficção, toda história de vida pode ser recontada, até o último momento, ou até mesmo depois da morte.

“Incêndios”, filme de Denis Villeneuve, trata desse tema de maneira brilhante, tão brilhante que quase nos sufoca (talvez seja esse o motivo do título do filme)

A psicanálise se baseia exatamente nessa premissa: a de que a ficção na qual existência de um sujeito se sustenta pode ser reelaborada, redimensionada, reconstruída, reinventada, recontada, sem, obviamente jamais perder a condição de uma ficção. Mas afinal, qual o motor responsável por possibilitar que uma história possa ser recontada? Freud chamou isso de transferência. Propôs então, uma técnica onde o analista se colocaria na condição de suportar a transferência do analisando, que poderia, nessa posição, recontar a própria história. A transferência freudiana, no entanto, nada mais é que um outro nome para o amor. E o que é o amor? A melhor definição de amor para nosso propósito aqui é a de Lacan: “o amor é dar o que não se tem”. Em outras palavras, só é capaz de amar aquele que acredita que alguma coisa lhe falta, ou seja, quem acredita estar completo, pronto e acabado, é incapaz de amar.

Temos assim que o amor é profundamente revolucionário, apenas ele pode dar ao sujeito possibilidade de mudar sua própria história e a história daqueles que o cercam, porque somente por meio amor nos mantemos incompletos, no entendimento de que a nossa história de vida ainda não está pronta, acabada e definida. É somente o amor que nos abre a possibilidade de que alguma coisa ainda está por vir. Pode haver algo mais revolucionário que isso?

Voltando ao filme,“Incêndios” conta a história de uma mulher, Nawal Marwan, que tem sua história recontada com a ajuda dos filhos, Jeanne e Simon, e cujo ponto de partida é a leitura do seu testamento. Nawal Marwan é movida pelo amor, ou seja, por uma falta: a perda de um filho que passou a vida procurando. Ao viabilizar esse reencontro com o filho perdido pela mão de seus filhos, já que ela mesma está morta, nossa heroína provoca uma revolução tão intensa que é capaz de modificar não apenas a sua própria história, mas a que é contada antes dela e a que será contada depois de sua morte, por seus filhos e netos, e todas as gerações que lhe sucederem. Nawal Marwan nos faz entender que a história de uma vida não inicia com um nascimento biológico e nem termina com a morte, já estava sendo contada antes e, certamente, continuará sendo contada depois. A tragédia que o filme aborda, trata da limitação da nossa existência biológica, e ao mesmo tempo toca na dimensão da eternidade que pode ser alcançada no plano simbólico, quando o amor cria uma falta suficiente para impedir que uma história seja completada, ou seja, chegue ao seu fim.

Nawal Marwan afirma, em certo momento, que o amor foi capaz de arrebentar a corrente do ódio. O ódio ao qual ela se refere é aquele que alimenta os conflitos e guerras em sua terra natal, a Palestina, ódio no qual sua própria história está incrustada. Enquanto o ódio apenas lhe permitia repetir uma história que já havia antes dela mesma, o amor produz em Nawal Marwan um movimento libertador e revolucionário, o de que sua história não está pronta e definida, não está completa, podendo, por isso, ser modificada.

“Incêndios” nos arrebata de muitas maneiras diferentes. A partir dele entendemos que nenhuma tragédia, por mais desgraçada e vil, nunca fica impassível diante do amor. O amor é capaz de reinventar qualquer história, é capaz de sustentar até mesmo uma operação matemática que nos parece absurda; movido pelo amor 1+1 pode ser igual a 1, como nos faz concluir o filme. Enfim entendemos que a morte não é o fim de uma história, a morte chega quando o amor acaba.

Para encerrar, só me resta aplaudir este filme de pé e recomenda-lo. Mas, cuidado, para entrar nesse “Incêndio” recomendo um balão de oxigênio.

8 comentários:

  1. Adorei a frase "o amor é revolucionário!"
    Bjs.
    Teresa Cristina

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  2. Com certeza assistirei!! Amei seu comentário, arrepiei qdo li "(...) A morte não é o fim de uma história, a morte chega quando o amor acaba." Lembrei-me do meu saudoso irmão, que apesar de não estar encarnado, está muito vivo em minha casa e nossas relações familiares porque o amamos demais!!
    Bjss, Janaína Nogueira

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  3. Valeu pelos comentários Teresa e Janaína. O amor é revolucionário...
    um beijo pra vcs

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  4. "o amor cria uma falta suficiente para impedir que uma história seja completada, ou seja, chegue ao seu fim." - Esplêndida visão da possibilidade do amor... afinal, ele não é uma coisa bunitinha q insistimos em acariciar e chamá-lo d meu bem... ele, às vezes, pod ser nosso pior pesadelo para nos fazer entender a dureza da vida para, assim, compreeder q a própria vida continua depois da vitória contra a ilusão. Parabéns pela reflexão... fiquei sufocado.... rsrs

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  5. “o amor é dar o que não se tem”. Em outras palavras, só é capaz de amar aquele que acredita que alguma coisa lhe falta, ou seja, quem acredita estar completo, pronto e acabado, é incapaz de amar.
    É um prazer ler seus textos. É sempre bom aprender coisas!

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  6. Gostei muito das considerações que vc fez sobre o filme e sobre o amor,a partir dele. O filme é mesmo arrebatador! Penso no quanto esta mulher sufocou seu amor em camadas de ódio, dor, culpa, medo; e seu desejo de que o amor imperasse, "quebrar o ciclo do ódio". Ela só "se permitiu" ser enterrada quando tal coisa acontecesse, através dos filhos. Como vc escreve, "o amor é revolucionário". Sempre ! ! !

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  7. Obrigada pela companhia Alvaro e Izabela. Voltem sempre...

    abs

    Rita

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