domingo, 28 de dezembro de 2014

Sobre o Deus que precisamos para atravessarmos o milênio

por Rita Almeida

O interesse que hoje tenho por Deus é mais filosófico do que religioso. Sendo assim, entendo que o conceito que se tem de Deus não é unívoco, ele vem se modificando de acordo com o tempo e as diversas culturas e sociedades. É como se cada tempo e cada sociedade tivesse o Deus (ou os deuses) que precisasse ou desejasse.

Se tomarmos o cristianismo, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento era uma espécie de grande líder tirano e cruel, que vigiava e castigava seu povo sempre que lhe conviesse. Suas normas e regras eram rígidas e, muitas vezes, sem qualquer sentido ético, moral ou prático. O único sentido parecia ser deixar bem claro quem era o Todo Poderoso.

Já o Deus do Novo Testamento é um Deus que desceu do seu pedestal e da sua arrogância para se tornar um meio-irmão, um semelhante, que mesmo depois de morto promete ficar entre nós. Esta é exatamente a mensagem final de Jesus na Última Ceia, horas antes de ser crucificado e morto. Mas em algum momento, o Deus do cristianismo que prometeu estar entre nós passou cada vez mais a estar dentro, “habitar o coração do homem”.

Sabemos que o Deus do protestantismo, que nasce no século XV, serviu muito bem à disseminação e ao desenvolvimento do capitalismo. Ao que parece, a noção de um Deus que está dentro de cada um, tem servido muito bem à sociedade capitalista-ocidental em sua versão cada vez mais individualista e narcisista. E o Deus que produzimos neste caldeirão me parece assustador. É uma espécie de Deus-portátil, Deus-de-bolso ou um Deus-I fone; aquele que possui todos os aplicativos, conexões, contatos e arquivos que eu preciso para ser feliz.

O Deus que encontramos na sociedade capitalista-narcisista atual é um Deus que serve cada vez mais para resolver os meus problemas individuais, mesmo os mais egoístas. É um Deus capaz de atender a um pedido meu, mesmo que isso implique em sabotar o pedido de outrem. O Deus do narcisismo me permite agradecer pelo sucesso num concurso, numa seleção de trabalho ou a conquista de uma vaga na faculdade, sem questionar o fato de que isso aconteceu apenas porque alguém foi preterido. Somente o Deus do narcisismo me permite colocar aquele tradicional adesivo no carro: “Foi Deus que me deu”, mesmo quando o digno presente é mais um a poluir o ambiente já a beira do completo caos. O Deus do narcisismo é capaz de me fazer vencedor numa disputa, ainda que do outro lado esteja alguém que fracassou, como se o meu Deus fosse melhor ou mais poderoso que o dele.

Mas que tipo de Deus é este que tolera um pedido de salvação, cuidado ou proteção para apenas eu ou meus familiares e amigos mais próximos? Que tipo de Deus me permite agradecer por ter escapado viva de um acidente em que muitos outros se tornaram vítimas fatais? Que tipo de Deus me autoriza fazer um pedido de mesa farta nas festas de fim de ano, quando a miséria e a fome devasta milhões mundo afora?

O conceito de Deus que vemos hoje é tão narcisista que até quando um desejo meu não é atendido, a explicação é: “porque Deus sabe o que é melhor para mim”.

Enfim, lamentavelmente, o Deus que nos resta atualmente é aquele que atende aos apelos do Eu, o Deus- I fone. É o Deus que promete a tão sonhada felicidade individual. Um Deus que nos demanda louvores, adoração e glorificação, além de uma prova de sua devoção e fé por meio de doação financeira. Somente um Deus narcisista e egocêntrico precisaria deste tipo de devoção ou reconhecimento.

“Meu Deus!” Aí está a exclamação que usamos em nossas orações ou sempre quando o desespero bate e tudo parece perdido. Entretanto, o Deus do indivíduo não será capaz de cumprir sua missão de nos salvar, especialmente porque nosso tempo precisa urgentemente se livrar do individualismo.
No cristianismo é preciso se livrar do Deus que se ocupa das nossas misérias egoístas e individuais e resgatar o “Pai Nosso”, aquele capaz de nos ajudar a reparar as nossas mazelas coletivas. Não aquelas que estão dentro de nós, mas as que estão entre nós; a fome, as injustiças sociais, a degradação do meio ambiente, a falta de água e saneamento básico, as guerras.

É bem provável que não seja possível ou desejável um Deus único para toda a humanidade. A diversidade de culturas e religiões pelo mundo não possibilitaria isso, mas é fundamental e urgente perseguirmos a ética de um Deus para Todos, e não só para todos os seres humanos, mas para todos os seres que habitam este planeta, animados ou não.

Resumindo, se a função de Deus é nos salvar, nos libertar e nos proteger, o Deus do narcisismo, se é que realmente precisamos dele algum dia, não nos serve mais. O Deus que irá permitir à humanidade fazer sua travessia em direção ao próximo milênio precisa ser um outro Deus. Precisamos parar de orar a Deus para curar nossa unha encravada, proteger nossa prole, melhorar nossa vida financeira ou sustentar nosso amor-próprio. Nossas orações (representantes autênticas do nosso desejo) precisam se livrar do narcisismo e do egoísmo e alcançar o campo da alteridade. Caso não modifiquemos nossas orações, o abismo narcísico do EU irá nos engolir em breve.

Sendo assim, o Deus que precisamos ou que deveríamos desejar não é mais o Deus que está dentro, mas o Deus que está entre nós. O Deus que nos une, que nos enlaça, que possibilita o amor, que nos faz irmãos porque habitantes do mesmo planeta. O Deus que precisamos invocar não é o “Meu Deus”. O Deus que nos permitirá sobreviver é o "Nosso Deus", ou o "Pai Nosso" o Deus da alteridade.

O Deus que precisaremos para não sucumbirmos como espécie não poderá ser tolerante com a ideia de salvação individual, seja ela de que tipo for. O Deus que rogaremos, caso haja futuro, é aquele que exige que respeitemos o seguinte mandamento: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.

8 comentários:

  1. Confesso que não entendi. Vou ler de novo, quem sabe?
    Ulisses BH

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  2. Adorei o texto, vc simplesmente expressou todos os meus pensamentos a respeito de religião e Deus.

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  3. Li e reli esse texto um sem número de vezes. É lúcido, fascinante. Deixa entrever que o conceito de Deus está ligado ao conceito de mundo, cosmologia (vejamos a contribuição da atual astronomia, da física quântica...). A concepção de um Deus-Pai-Nosso é bastante próxima àquela da Filosofia/Teologia Latinoamericana da Libertação, com a qual me identifico bastante. Após tal texto, esse blog ganhou em mim um seguidor.

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  4. Prezada Rita Almeida, seu texto lúcido e bem escrito mobiliza os que pensam e sentem parecido. Mais Pai Nosso, menos Meu Deus. Minhas conquistas pessoais só fazem sentido se forem conquistas coletivas. Se meus filhos têm acesso a boas escolas, bons médicos, lazer, esporte e cultura, os filhos dos outros também devem ter. Só assim as crianças, os jovens, os adultos e os idosos poderão compartilhar o planeta de forma mais adequada. Isso é repartir o pão.

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  5. Muito grata pelos comentários!! sejam sempre bem vindos!!

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  6. Espera aí, me deixaeu ver se entendi: você quer que deixe de existir um deus-narcisista e seja criado um deus-miss, acho que é isso!?
    Primeiro, há uma distorção muito grande com relação ao conceito de Deus. Não existem formas diferentes de Deus, Ele não é mutável, o que muda é a maneira com que Ele se relaciona conosco. Ele muda a forma de agir conosco de acordo com nossas próprias mudanças, quando digo nossa, quero dizer a humanidade ao longo da História. Mudamos nossa percepção das coisas, nosso conhecimento de mundo, cultura, experiências.
    Depois, essa descrição de Deus do cristianismo é feita com base em quê? Na Palavra de Deus, ou, no senso comum? Acredito, pelo que li, que seja a segunda opção. Realmente o conceito de Deus tem sido distorcido durante toda à História, e tem sido utilizado para o interesse próprio, assim como, percebi nesse texto o autor se apropriando de maneira equivocada de uma idéia de Deus errônea e a utilizando para um fim pessoal. Se quisermos conhecer quem é Deus devemos procurar em Sua Palavra, em oração, em experiências que podemos perceber Sua vontade se manifestando. ´´deus`` infelizmente vêm sendo manipulado, mas Deus, O Filho de Davi, O Deus da Glória, O Eu Sou, não pode ser usado e não o é.
    O Deus que precisamos é o que temos! Não uma imagem distorcida, não uma resposta clichê, mas aquele que descobrimos num processo de vida e vida de adoração, de praticar Sua Verdade, buscar fazer não aquilo que achamos ser correto, mas o que Deus quer que façamos, porque quando acreditamos e nos entregamos à Deus não vivemos para nós mesmos, mas Cristo vive em nós. ´´ nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor. `` (Rm 8,38-39).
    Ao invés de buscarmos Deus dentro de nós mesmos busquemo-lo na Palavra (Bíblia): ´´ Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade, colocai-vos a serviço uns dos outros. Pois toda a Lei está contida numa só palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. `` (Gl 5,13-15).

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  7. Ola Janilo, sinto não ter argumentos para discutir com vc porque, como disse no inicio do meu texto, faço uma discussão filosófica sobre Deus e não religiosa. Como meu argumento não é a fé, a Bíblia ou coisa assim, não tenho como argumentar com vc. Mas fico grata pela sua visita. um abraço

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  8. Tudo bem, os debates na maioria das vezes não chegam a lugar algum mesmo! kkk
    Vi o seu texto em um blog da minha cidade, pois minha mãe compartilhou comigo. Ela concorda contigo.
    De qualquer forma, gostaria de partilhar dois vídeos com vc. Gostei muito deles quando os vi e espero que goste, são muito esclarecedores. Não defendo religião e vc vai poder perceber nos vídeos que não se trata de religião ou igreja, mas de fé em Jesus Cristo. A religião foi criada pra ligar o homem a Deus, mas foi uma criação humana. Deus enviou seu único filho (Jesus Cristo) para que através Dele pudéssemos ser salvos, Ele é o caminho, não a religião.
    Desde já agradeço a atenção e espero sinceramente que veja os vídeos e que possamos conversar a respeito quando quiser.

    https://www.youtube.com/watch?v=N5lw809gB94

    https://www.youtube.com/watch?v=pwmX2EtKCts

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