quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sobre o Holocausto Brasileiro, livro de Daniela Arbex

Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicóloga/psicanalista
Trabalhadora da rede de saúde mental do SUS

Ainda estou sob o impacto do livro Holocausto Brasileiro, da premiada jornalista do Tribuna de Minas, Daniela Arbex. A realidade contada no livro não era desconhecida para mim, já que sou trabalhadora da Saúde Mental do SUS e militante do Movimento Antimanicomial há 17 anos, mas a riqueza de detalhes, com fotos e documentos e a forma sensível como Daniela tratou tamanha tragédia, me tocaram profundamente.

Há momentos da história da humanidade que todos nós preferiríamos esquecer. Momentos que nos fazem sentir vergonha de pertencer à espécie humana. Ao testemunhar através dos olhos da autora o horror imposto aos “doentes mentais” do Hospital Colônia de Barbacena no século passado, não há como não sentir revolta pela nossa espécie. Porque permitimos tanto descaso, desrespeito e horror? Como pudemos estar tão cegos para aquela realidade, e por tanto tempo?

Dizem que os índios não foram capazes de enxergar as primeiras caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil, simplesmente porque nunca tinham visto nada parecido, sendo assim não tiveram parâmetros para enxergar, mesmo podendo ver. Sendo assim, a única explicação que encontrei para compreender porque tamanha barbárie se sustentou por décadas foi exatamente essa: a de que muitas das testemunhas desse holocausto viam, mas não enxergavam. Afinal, o olhar também precisa aprender a enxergar.

Mas depois que aprendemos a enxergar, fomos capazes de gradativamente desmontar aquela realidade dantesca, apesar de lamentavelmente, alguns daqueles horrores ainda assombrarem nosso presente, aqui e acolá. Através da sua obra, a autora nos convida a enxergar essa tragédia mais uma vez e com mais profundidade, e esse aprendizado não pode ser perdido para que não cometamos os mesmos erros novamente, em outras situações e com novas vítimas. Por isso, mesmo desejando esquecer esse período sombrio da nossa história recente, é muito bom que Daniela refresque nossa memória.

Um comentário:

  1. Bom, Rita,


    Eu acho que existe um tempo para que "não enxerguemos", a partir do qual "passamos, sim,a discernir, ainda que em off" [=sem assumir o discernimento para o Outro, o mundo]. Há um momento em que os subservientes e entusiastas de Hitler, inclusive filósofos, enxergaram, sim, o que era "a Solução Final". Há um prazo para o "ver e não enxergar". Por isso, ao contrário da perspectiva de uma Hannah Arendt, por exemplo, que achava Heidegger simplesmente "tolo" por apoiar o Nazismo em seus "albores", nunca se retratando depois do "equívoco", não posso concordar com as razões que ela aventa para explanar a "tolice". Em resumo, a tese Arendtiana seria esta: a de que 1) "a obediência" [a protocolos, mais uma vez] e 2) o carreirismo ["cumprir ordens da melhor forma possível, para cumprir meu papel social"] somados à 3) "superficilidade imposta pelo coletivo", 4) "bloqueariam o pensar, impedindo ou solapando a possibilidade de julgamentos morais". Não subscrevo a tese. Considero essa "doçura tipicamente feminina" de Hannah Arendt [atrelada à manutenção de Eros por um sujeito desagradável como Heidegger, por mais de década e meia], um confortável álibi para Adolph Eichman e todos os julgados no Tribunal de Nuremberg. "Eles só cumpriam ordens, sem julgamentos morais". Foi a alegação dos próprios.

    Da mesma forma que os sujeitos que batizam leite com formol + uréia [sem acento?] + água não potável [o protocolo agendado por produtores + transportadores em empresas do Rio Grande do Sul], separam o "leite bom", o "de antes do batismo", para beberem e darem aos seus [sim, eles sabem o que fazem], o mesmo se pode dizer de outras alegadas cegueiras seletivas. Quem frauda a qualidade do leite não quer bebê-lo e dá-lo aos próprios filhos ou pais. Os julgados em Nuremberg não queriam a tortura, dor, sofrimento, fome, trabalhos forçados e câmaras de gás a que submeteram os judeus.

    Num primeiro momento, o aparecimento de Hitler, aquele baixinho histriônico, "poderia" trazer certa perplexidade [incluindo "embevecimento estuporizado"] a alguns preocupados com os prejuízos alemães pós-primeira guerra [incluindo a inflação reinante], mas não ao longo de seu curto reinado. Um recorte diacrônico da situação desmonta a falácia do "não poder enxergar". Por isso, aqui e em outros escritos meus [na minha leitura clínica, inclusive lidando com adolescentes infratores], eu foco a questão do "desvio calculado do olhar" [do "preferir não enxergar, em vez de não fazê-lo"]. Por vezes, "covardia e coragem possuem os sinais trocados", por conveniência da manutenção [=não problematização] da identidade assumida [=persona funcional, para o sujeito] e eu mostro para adolescentes infratores que "qualquer bunda-mole pode atear fogo com um galão de gasolina num posto de saúde, por exemplo, dar um tiro nas costas de alguém, ou empurrar um desafeto do andaime de um prédio em construçlão". Reconstruir o posto ou tirar a bala para que não haja dano, ou recolher o sujeito cheio de fraturas para um trabalho de cirurgias ortopédicas + fisioterapia + auxílio emocional é que são elas: exige perícia, "trampo"/dedicação, tempo. Coragem é isso.
    Eles entendem a "troca de sinais". A troca que poderia ser, lá atrás, "inadvertidamente adotada", uma vez exposta em todas as suas implicações, não pode ser mais "divertidamente mantida".





    Um beijo, amiga.

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