domingo, 26 de agosto de 2012

Elucubrações sobre a morte

Por: Rita de Cássia de A. Almeida
psicanalista

Esta semana estava às voltas com os Deveres de Casa (as tarefas passadas pela escola) da minha filha caçula, que acabou de completar 6 anos. Ela, dizendo que não precisava fazê-los e eu, tentando convencê-la do contrário. Usei inúmeros argumentos para incitá-la a fazer a tarefa até que, por fim, cansada de tantos porquês, apelei para o seu senso de responsabilidade e disse: “Você precisa fazer o Dever de Casa porque ele é muito importante”. E ela sem pestanejar, numa exclamação enfática, saiu com essa: “Mãe, muito importante é não morrer!”.

Bom, obviamente que a discussão acabou ali. Que poderia eu responder diante do seu argumento? O jeito foi apelar para o velho e bom: “Você vai fazer esse dever porque eu mandei e pronto!”. Isso encerrou o assunto... Para ela, mas não para mim. Sua resposta ficou fazendo ecos na minha mente, atormentada por natureza.

Tomada por elucubrações a respeito da morte, concluí que concordo plenamente com minha filha: não há nada mais importante que não morrer. E concordo por dois motivos. Primeiro, pela afirmação em si e segundo, por uma concepção filosófica importante que a afirmação dela carrega e da qual eu também compartilho: a de que vida é uma espécie de resistência à morte. Nesse sentido, não morrer seria um ato de rebeldia, de relutância, já que a tendência natural seria morrer, retornar ao nada, à quietude, ou ao Nirvana, como acredita o principio Budista. (Freud também se valia de tal princípio).

Seguindo esta forma de pensar, a morte não é ausência de vida ou um evento trágico que interrompe o que seria uma tendência natural: viver. Ao contrário. A vida é que é uma não morte, um acontecimento, um milagre, uma explosão entre duas mortes. A morte, sim, é a tendência natural das coisas, o real que invariavelmente se abate ou se abaterá sobre tudo que vive.

Então é verdade que não há nada mais importante que não morrer. Não há nada mais importante do que defender, perdurar e fortalecer esse impulso revolucionário que faz da vida um verdadeiro milagre, quase que improvável. (A improbabilidade da vida é, inclusive, a conclusão da maioria dos cientistas que discursam sobre a teoria da criação da vida e do Universo).

Tomada por esses pensamentos me lembrei de uma conferência do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que assisti recentemente na internet, intitulada “A morte como quase acontecimento”, que trata de diferentes concepções de morte em culturas diversas. Dentre os vários temas levantados pelo antropólogo, um me chamou a atenção. Ele aponta que na visão ocidental moderna, como nos apegamos à questão da linhagem familiar, nossos inimigos se encontram fora de nossa família ou clã, podendo eles estarem mortos ou vivos.

Tal visão fica bem ilustrada na tragédia Shakespeareana – Romeu e Julieta. Nela o conflito se dá na luta entre Montecchios x Capuletos. Conflito este perpetuado por gerações e resultando em intenso ódio e inúmeras mortes. Em resumo temos: Montecchios (mortos e vivos) de um lado contra Capuletos (mortos e vivos) de outro. Eventualmente ampliamos este conceito de família ou clã para entrarmos em conflito com os outros. Nos unimos numa comunidade, num partido, numa religião ou numa nação, mas sempre teremos: mortos e vivos de um lado contra mortos e vivos de outro.

Mas este modo de pensar não é universal, segundo Eduardo Viveiros. Existem tribos indígenas que se organizam de um modo bem diferente. Numa delas os grandes inimigos são os mortos. Ainda que se trate de sua mãe, seu pai, seu filho ou seu melhor amigo, ao morrer todos eles se transformam no seu pior inimigo, inimigo a ser evitado, combatido e temido. Seria a mesma idéia que sustenta os filmes e seriados de zumbis: “todos os vivos” contra “todos os mortos”. Toda a energia social, neste caso, é canalizada para evitar a morte, ou seja, evitar que o exército dos mortos amplie e se fortaleça.

Tal concepção, pelo que compreendi, também muda toda a forma de relação social. Nessa tribo não é concebível, por exemplo, qualquer tipo de luta ou conflito entre vivos que possa resultar em risco de morte. Assassinatos, por exemplo, seriam atos impensáveis, afinal, porque alguém iria querer fortalecer o inimigo? Imagino que este raciocínio valha também para os suicídios. No caso das doenças ou atividades que envolvam risco, elas são sempre interpretadas como armadilhas dos mortos para levar os vivos para o outro lado, exigindo sempre cuidado extra dos membros da tribo. E não um cuidado individual, mas um cuidado coletivo, já que a morte de um membro torna-se um risco para todos.

Adorei pensar sob a perspectiva desta tribo e agora, depois do argumento da minha pequena sabida, tal perspectiva faz ainda mais sentido. Entendo que a grande ética que deve sustentar a existência humana seria aquela capaz de investir todos os nossos esforços - sociais, culturais ou tecnológicos - para não morrer. Mas fazendo uso do modo de pensar da tribo citada, não se trata apenas de evitar a morte individual (nisso nossa sociedade é especialista). Também não se trata de evitar a morte apenas dos nossos pares, os membros da nossa comunidade, nossos compatriotas ou aliados políticos e religiosos. A idéia central seria todos os vivos combatendo toda a espécie de morte, o que implicaria numa ética que procurasse fazer de tudo para que todos os seres vivos (humanos ou não) pudessem ter o mais plenamente possível a possibilidade de não morrer, enquanto indivíduo, enquanto corpo social, enquanto comunidade ou enquanto espécie, ainda que saibamos que se trata apenas de um adiamento, um esforço para protelar o inevitável. Não morrer e não deixar morrer - seria este o princípio maior.

Voltando à discussão filosófica levantada pela minha caçula, já disse que concordamos que não há nada mais importante que não morrer. Mas o que talvez ela não saiba, e, certamente aprenderá, comigo inclusive, é que não morrer não é o mesmo que sobreviver. Não morrer é muito mais complexo. Por isso, fazer ou não fazer o Dever de Casa, assim como fazer ou deixar de fazer tantas outras coisas, se tornam também, ao longo de nossas vidas, formas de não morrer. Um exercício cotidiano, contínuo e persistente de resistir à morte ainda que estejamos todos, invariavelmente, caminhando para ela. E se aprendermos com nossos sábios irmãos índios, entenderemos que esse exercício de não morrer só funciona se o fizermos pensando na coletividade.

(A quem possa interessar, segue o link da conferência citada: http://www.youtube.com/watch?v=Zdz8U9_8YVU )

4 comentários:

  1. Interessante elegia da vida, enquanto sobre viver. Bom.

    ResponderExcluir
  2. Interessante elegia da vida, enquanto sobre viver. Bom.

    ResponderExcluir
  3. Bacana ponto de vista prima...
    Loading... ^^

    Parabéns pelos filhos que educaram.

    Saudades imensas...
    Muita Paz,
    Saulo

    ResponderExcluir
  4. Rita,



    Não farei nenhuma digressão sobre a(s) morte(s). Apenas vou reproduzir aqui um diálogo curto que tive com miha bisavó, quando eu era criança. Minha bisa era mulher de rezar o terço e ter seus santos de devoção. Quando eu lhe perguntei: "Dindinha [o nome dela era Ester], o que vc acha da eternidade e de uma vida eterna?" Ela me respondeu, ainda que acreditasse numa vida após a morte: "Tem que ter 'alguma espécie de fim' um dia, senão vira uma coisa medonha".

    Bom, eu poderia, retrospectivamente, cogitar que, àquela altura da vida, minha bisa não poderia considerar qualquer prologamento ad aeternum "daquele modo de vida, tal como nós conhecemos" e do qual, compreensivelmente, ela já devia estar se cansando, dadas as limitações da idade.


    Eis o paradoxo da fé de minha bisa: a esperança de uma vida além desta, mas não infinita. E, hoje, eu acrescentaria: não uma vida que tivesse "a coloração do tempo linear tal como o concebemos", porque parece que, para ela [e para nós], ele [o tempo] traz, intrinsecamente, a noção de "desgaste" como "implicação necessária".





    Um beijo.

    ResponderExcluir

Deixe aqui seu comentário.