quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Quando um Mestre cai.

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Assisti nesta semana ao filme A Última Estação, do diretor Michael Hoffman. Trata-se de uma ficção baseada nos últimos dias de Leon Tolstoi, grande escritor e filósofo russo do século XIX, autor de livros imortais como Guerra e Paz. Sua vida política foi intensa e influenciou de maneira importante o pensamento anarquista. Tolstoi era um pacifista, um crítico das instituições e contrário à propriedade privada.

O filme é encantador. E dentre tantas outras coisas, me fez pensar sobre o fascínio que nos causam grandes mestres e líderes, sejam eles vinculados à política, à religião, à filosofia ou à ciência, assim como nos conforta seguir, estudar e propagar suas obras, teorias e ideais que, afinal, sempre carregam algum espírito revolucionário e inovador.

Tolstoi transformou-se, no final de sua vida - como bem retrata o filme - num ídolo, num mito, num quase-deus para o povo russo e num deus para seus seguidores. Mas, como é sempre o destino de grandes mestres da humanidade, percebemos que suas ideias e ideais acabaram se tornando maiores que ele mesmo, com tamanho suficiente para atravessarem uma espécie de divisor de águas, um ponto no qual uma teoria deixa de ser um manifesto revolucionário e inovador, para se transformar para alguns em dogma, ou seja, numa Verdade com V maiúsculo (a única verdade). E nesse ponto, infelizmente, ao adquirirem estatuto Verdade, ou melhor, por adquirirem estatuto de Verdade, é que tais ideias começam a perder grande parte da sua vitalidade e potência originais.

No filme é possível perceber que as ideias de Tolstoi já atravessaram o ponto do qual estamos falando. Tanto que, em certos diálogos, o próprio Tolstoi demonstra ter mudado sua visão sobre muitas das coisas que defendia e pregava em seus livros e manifestos, no entanto, como elas já haviam se transformado em dogmas, em receitas a serem seguidas e disseminadas, não podem mais mudar. Já estão fixadas, como numa fotografia. Por isso, Tolstoi chega a ser repreendido por seus discípulos em várias situações durante o filme. São eles que dizem ao Mestre como deve agir, falar e ser. Curiosamente, tentam ensinar Tolstoi a ser Tolstoi. A cena do filme mais significativa para explicar o que estamos dizendo é a seguinte: Após ser repreendido por Vladimir Chertkov, seu maior amigo e mais fiel discípulo, por fazer algo fora dos princípios pregados pelo Movimento Tolstoiano, Tolstoi diz ao amigo: _ Você é mais tolstoiano do que eu.

Então, fiquei pensando que é mesmo lamentável quando uma teoria (filosófica, religiosa ou científica), mesmo a mais revolucionária, viva e potente, criada inicialmente para contradizer ou questionar uma outra, perca toda a sua vitalidade, por ser tratada como dogma, como a Verdade; única e imutável. Mas, quem sabe isso não seja mesmo parte de uma espécie de dialética que movimenta o mundo? E quem sabe, afinal, precisemos mesmo de mestres e, hoje, mais ainda, de teorias, dogmas e receitas que expliquem a existência e nos digam como lidar com ela? Quem sabe isso explique a multiplicação das religiões fundamentalistas e a epidemia das publicações de auto-ajuda? Quem sabe?

O que sabemos é que a vida, apesar de ser uma experiência incrível, não é necessariamente fácil. E assim sendo, manter-se à deriva o tempo todo, sem nenhum tipo de saber, mestre ou questão que nos guie de alguma forma, apesar de ser um ideal libertário de felicidade para muitos, acreditem, não é exatamente uma benção, é na verdade, uma experiência atormentadora; é a experiência da loucura. Mas, quem sabe, possamos, por outro lado, compreender que nossos mestres e suas teorias maravilhosas, apesar de necessários em certa medida, são apenas contingência? Porque, afinal, o mundo não para de girar. E quem sabe precisemos considerar o fato de que todas as verdades devam ser, necessariamente, escritas com letra minúscula?

No filme Forrest Gump temos o protagonista, imortalizado pelo ator Tom Hanks, que em certo momento da trama decide correr pelos EUA, sem paradeiro, a fim de compensar o vazio que sente. Depois de um tempo de jornada, Forrest começa, sem que ele mesmo busque por isso, agregar seguidores. São pessoas comuns que decidem correr junto dele, fazer da jornada de Forrest, também a sua própria jornada. E há uma passagem clássica no filme em que Forrest, depois de correr por mais de três anos, sendo acompanhado por dezenas de seguidores, simplesmente pára de correr. Sem dar maiores explicações, vira-se para traz e, caminhando, diz apenas que decidiu voltar para casa. O mais interessante desta cena, inesquecível, é a cara de decepção e surpresa dos seguidores de Forrest, eles se entreolham sem acreditar, parecem mergulhar no vácuo, como se não soubessem ou não tivessem mais para onde ir.

O que os seguidores de Forrest, os seguidores de Tolstoi, e todos nós seguidores de alguma espécie de Mestre precisamos saber é que, tal qual a todos nós, ele, o Mestre, também é limitado, assim como são limitadas suas ideias, ensinamentos e visões de mundo. Grandes Mestres e grandes ensinamentos são capazes sim, de servir de leme para nossa existência, e sem isso, possivelmente, mergulharíamos no caos. Vale lembrar a importância dos nossos primeiros mestres, os pais (ou quem cumpre essa função) e seus ensinamentos. Mas é possível também aprender a caminhar sozinho, em pares, ou em grupos, sem um líder para nos guiar, assim como é possível e desejável criarmos nossas próprias teorias, nossa própria obra.

Mestres não são eternos e todas as teorias, no final, mostrarão suas falhas. E para não deixar de mencionar meu mestre castrado, Freud, sempre que um líder cai, eleva-se a oportunidade de seus seguidores se unirem em irmandade, a fim de criarem seus próprios caminhos alternativos. O exemplo mais recente da queda de um mestre é, certamente, a renuncia do Papa Bento XVI. Essa deveria ser uma oportunidade para cristãos e católicos questionarem seus mestres, e uma oportunidade única para a Igreja Católica questionar a si mesma, seus dogmas, seu modelo institucional e seus lideres. No entanto, infelizmente, neste caso, temo que a solução dada seja, simplesmente, inventar outro mestre para, rapidamente, ocupar o lugar que ficou vazio.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Disque 8 para falar com João: o melhor atendente de telemarketing que eu já conheci.

(crônica)

por Rita de Cássia de Araújo Almeida

Viver é uma experiência incrível. Entretanto, existem algumas situações que realmente nos fazem duvidar da beleza da vida, dentre elas, destaco uma: falar com atendente de telemarketing. E infelizmente, para termos acesso a telefone (fixo ou celular), TV por assinatura, internet, cartão de crédito e outras mazelas da modernidade precisamos lidar com esse pesadelo, que é, tentar nos comunicar com alguém que só tem como instrumento de linguagem cerca de 23 frases prontas (fiz uma estimativa para chegar a este número).

Pelo terceiro mês consecutivo estou tendo problemas de relacionamento com minha TV por assinatura – Oi TV. Desde dezembro de 2012 que tal operadora insiste em me cobrar uma conta de abril do mesmo ano e eu, por minha vez, insisto em tentar provar que tal conta já foi paga.

No mundo de hoje, acredito, poucos tem o privilégio de nunca precisarem de um atendente de telemarketing para resolver os problemas que invariavelmente temos com as empresas e operadoras que nos prestam serviço. Quando imagino o inferno, penso que seja algo como conversar com um operador de telemarketing por toda a eternidade. Pelo menos pensava assim, até conhecer o João.

Para fazer um relato resumido da minha saga, explico que, depois ligar um zilhão de vezes para a central de atendimento, de anotar números de protocolo suficientes para numerar a quilometragem de uma viagem de ida e volta a Plutão, de falar com todos os atendentes possíveis das opções 1, 2 e 9 e apresentar sintomas corporais de quem está tendo uma crise psiquiátrica, decidi apelar para a opção 8: reclamações.

Quando apertei a opção 8, sendo obrigada a escutar pela enésima vez aquela gravação inicial enlouquecedora, meu coração palpitava na garganta, meu rosto queimava, meus olhos ardiam. Se eu fosse um desenho animado a tampa da minha cabeça estaria a pelo menos 50 centímetros acima do cérebro, com fumaça saindo pelos meus ouvidos e ventas. Estava apta a explodir, por telepatia, o cérebro de quem me atendesse, ou explodir o meu próprio cérebro – o que seria bem mais provável de acontecer – quando fui atendida, por uma voz que disse apenas:
_ Oi
Eu, já duvidando se teria ligado para o lugar correto, perguntei: _ É do setor de reclamações?
Do outro lado uma voz calma e íntima me responde: _ Sim, aqui é o João. Quem está falando?
Eu: _ É Rita.
João: _ Oi Rita, tudo bem com você?
Eu: _ Na verdade, não está nada bem, João... (E tratei de descrever, mais uma vez, o tormento que estava passando nos últimos três meses).

Só posso dizer que João foi incrível comigo! Me escutou, acolheu totalmente minha dor e meu sofrimento, acenou várias vezes com a voz que concordava com minha indignação. E por mais incrível que pareça, em nenhum momento João falou qualquer frase feita, daquelas do tipo: "a senhora poderia estar me passando o número do CPF e nome completo do titular"; "um momento que eu vou estar verificando"; "aguarde mais um momento, por favor"; "obrigado por ter aguardado"; "seu problema estará sendo encaminhado para o setor responsável"; "algo mais?"; "a OI TV agradece e tenha um bom dia". Aliás, João não disse sequer uma frase no gerúndio, o que já seria muito alentador.

João foi tão atencioso e acolhedor que, durante nossa conversa, pensei até em compartilhar com ele outros problemas de caráter pessoal, afinal, com João eu não me sentia apenas mais um número de protocolo, me sentia gente. João me fez acreditar, naquele momento, que meu problema era o mais importante, sentia como se ele fosse cuidar de maneira especial da minha situação.

Ao final da ligação, João se despediu com delicadeza e cortesia, e eu já havia recuperado a sanidade mental e o controle das minhas funções corporais. Sentia que a adrenalina circulante no meu corpo alcançava níveis estáveis, sem aquela sensação iminente de ataque ou fuga. Coloquei o telefone no gancho disposta a esperar as 24 horas de prazo que João pediu para tratar do meu caso, pois, apesar dele não ter resolvido imediatamente o problema da transmissão da TV, João resolveu o meu problema, aliviando-me da agonia e do estresse que me dominava há dias.

Eu sinceramente não sei por que os atendimentos de telemarketing são tão burocratizados. Imagino que tentam homogeneizar os procedimentos, para dar celeridade ou seriedade ao processo, mas a verdade é que são INSUPORTÁVEIS. E creio que não são insuportáveis apenas para nós clientes, suponho que também o seja para essa classe de trabalhadores. Existem muitas categorias de trabalho desumanizadas e desumanizantes, mas suponho que ser atendente de telemarketing deva estar entre as dez mais.

No meu entendimento, João deveria ser uma regra nas empresas de telemarketing, não uma exceção. Seria muito melhor para a saúde mental de todos nós. E é por isso que recomendo: para qualquer problema que lhe deixe a beira de um ataque de nervos, disque 8 e peça para falar com o João, o melhor operador de telemarketing que já conheci.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Eu preferia quando a Myriam Rios posava nua

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Já faz algum tempo que uma sensação vem me incomodando: a de que estamos passando por uma espécie de onda conservadora e moralista. Jacques Lacan, em 1969, já previa para os tempos futuros o predomínio do que ele denominava Discurso Universitário – discurso da ciência moderna, religioso-dogmático ou da burocracia – ou seja, o discurso onde tudo precisa ficar muito bem entendido e explicado, sem falhas e sem restos. Discursos onde não há lugar para os conflitos, as divergências ou os mal-entendidos.

Mergulhados nesses discursos a caretice ressurge com força, às vezes com roupagem religiosa, defendendo dogmas fundamentalistas; outras vezes travestida de ciência, explicando a condição humana como um mero conjunto de genes, órgãos e sinapses; ou, até mesmo, cumprindo os exageros da moda politicamente correta. Nesse último caso, me explico melhor aos politicamente corretos de plantão. Acredito que questionar, denunciar e desconstruir termos e linguagens que tragam conteúdos preconceituosos e discriminatórios é totalmente plausível e desejável, mas, cercear, perseguir ou criminalizar o uso desses termos é mera caretice. Mascarar, burocratizar a linguagem, não vai atuar nas nossas concepções preconceituosas.

Enfim, na ultima semana, tive a sensação de que a caretice desembarcou definitivamente entre nós, e “de mala e cuia” – como se diz aqui em Minas –, o que me deixou cheia de desânimo e preguiça intelectual. Soube que o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB) aprovou o projeto de lei, de autoria da Deputada Estadual Myriam Rios (PSD), que institui o "Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, Éticos e Espirituais" em todo o Estado. Não sei do que se trata a lei, mas só o nome me causou arrepios. Arrepios e náusea.

O perigo do discurso burocrata, dogmático ou aprisionado em teorias é que eles sempre são moralistas, ou seja, propõem um modelo universal de conduta, um modo de ser e agir que sirva para todos e que, sobretudo, nos deixe clara a divisão entre o que é certo e o que é errado. Para usar as palavras da deputada ao justificar seu projeto de lei, "sem esse tipo de valor (o defendido pela lei que ela propõe), tudo é permitido, se perde o conceito do bom e ruim, do certo e errado".

Obviamente que nem tudo deve ser permitido. Nenhuma sociedade se sustentaria sem a constituição de limites ou concessões do indivíduo em prol da coletividade. Entretanto, criar limites partindo de uma ética do bem comum é muito diferente de pretender homogeneizar a todos partindo de um modelo único. Exemplifico. Afirmar que o certo é que uma família seja constituída somente a partir da relação de um homem com uma mulher é um discurso moralista porque desconsidera a possibilidade de outras formações familiares, no entanto, abrir mão dessa verdade como universal não impede que possamos pensar a família dentro de um preceito ético de respeito mutuo entre seus membros.

Os anos 60 foram responsáveis por iniciar a desconstrução de todos os valores e verdades tradicionais. Até essa década os territórios do certo e do errado estavam muito bem delimitados. Colhemos os frutos de tal desconstrução nas décadas seguintes e agora, me parece que essas tentativas de resgate dos valores tradicionais demonstram um certo receio do caminho que seguimos. Decidimos em dado momento da história, nos desvencilhar das amarras moralistas que definiam a priori o que era certo e o que era errado, mas pagamos um preço, afinal, é muito mais simples quando já está definido onde devemos ir. Como diria Nietzsche é muito mais fácil seguir o rebanho.

Mas há quem prefira pagar o preço de escapar do moralismo, da burocracia, do dogmatismo e de quaisquer teorias que preguem uma verdade única e acabada, para transitar pelo terreno movediço da incerteza, da inconstância, da mutabilidade; das meias verdades que estão sempre em construção e desconstrução.

Esta semana, depois da aprovação do projeto de lei da Deputada Myriam Rios, as redes sociais se apressaram em divulgar fotos sensuais que ela fizera no passado, esperando com isso denunciar sua incoerência moral. Isso também pode ser considerado um discurso moralista, afinal, as pessoas podem, sim, mudar de posição e opinião ao longo da vida. Mas o que fiquei pensando a partir disso, é que na época em que Myriam Rios decidiu fazer aquelas fotos, posar nua ainda era uma forma de rebeldia feminina, um modo de desmontar valores tradicionais atribuídos à mulher (já hoje em dia, penso que há muito pouco de subversivo em posar nua)

Eu decidi pagar o preço por desconfiar dos caminhos já feitos. Obviamente que, às vezes, desejo olhar para o céu e receber uma mensagem que me diga o que fazer, também fico tentada a procurar uma teoria que explique o mundo, uma pílula que me salve de todos os sofrimentos ou medidas legais que resolvam todas as mazelas sociais. Mas por mais tentada que fique com esses terrenos firmes, no final, sempre escolho patinar pelo gelo fino. Há quem diga que tal escolha seria uma espécie de atração pelo perigo, pela subversão, pode ser, o que eu sei é que, com todo respeito pelo trabalho da Deputada Myriam Rios, eu preferia quando ela posava nua.


sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A ditadura da felicidade


Por Rita de Cássia de A. Almeida
Psicóloga/psicanalista da Rede de Saúde Mental do SUS

Há mais de 15 anos que o meu trabalho cotidiano tem sido - para resumir em algumas poucas palavras - escutar o sofrimento alheio e, por opção, atuando na saúde pública. E durante esse percurso profissional testemunhei uma mudança muito interessante na minha prática clínica. Sofremos por diversos motivos e de diferentes formas e, pela minha experiência, o motivo do sofrimento não mudou muito, no entanto, a demanda que as pessoas tem feito quando estão em sofrimento mudou significativamente.

Estudos da psicanálise atual têm tratado nossa época como a era do direito ao gozo. Ou seja, vivemos em uma época que não trata a felicidade como algo a ser construído ou conquistado, mas sim como um direito. Numa caricatura, diríamos que toda criança que nasce, especialmente no ocidente capitalista, recebe em sua certidão de nascimento um carimbo que outorga a ela o direito de ser feliz, de gozar sem restrições, sem qualquer porém.

Me lembrei agora dos versos de uma música do saudoso Tim Maia.
“Essa tal felicidade, hei de encontrar.
Mesmo se eu tiver que aguardar.
Se eu tiver que esperar.”

Nos tempos do Tim Maia a felicidade ainda era uma contingência, quase uma utopia, uma busca na qual poderíamos ou não ter sucesso. Mas hoje a coisa é bem diferente, como a felicidade passou a ser um direito de todos, acabou alcançando também o patamar de uma certa obrigação do sujeito. É como se você tivesse ganhado o direito de, sem nenhum ônus, acessar mais 90 canais de TV e dissesse não. As pessoas te perguntariam: - Como assim, você não quer mais 90 canais de TV? Entendo que essa seja a grande pergunta que permeia o discurso ocidental capitalista: - Como assim, você não é feliz?

Esse modo de entender a felicidade implicou numa mudança radical, como eu disse, no tipo de demanda que as pessoas fazem a nós, trabalhadores da saúde mental. Para os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da atenção à saúde do SUS, preciso fazer um parêntese para que compreendam melhor o que vou dizer adiante.

O sistema funciona, ou pelo menos deve funcionar, em rede. A atenção primária é a extremidade da rede mais próxima do usuário, portanto a primeira que ele procura quando apresenta qualquer problema de saúde. A atenção primária - o posto de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família – deve atender e oferecer resolutividade para a maior parte dos casos, cerca de 80% deles. O desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das especialidades médicas, mas, intervir no sujeito como um todo, tendo como diretriz a promoção e a prevenção em saúde. Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais específicos nos quais a intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar outros parceiros da rede que possam oferecer suporte e parceria. Os CAPS, modalidade de serviço que trabalho, compõem exatamente este trançado da rede, eles oferecem uma escuta especializada no campo da saúde mental. Sendo assim, quase sempre recebemos encaminhamentos e demandas dos demais parceiros da rede, em especial da atenção primária, apesar de também recebermos demanda espontânea.

Ao chegar no CAPS o sujeito passará por um dispositivo chamado: acolhimento. Como o próprio nome diz, este é o momento que o sujeito será acolhido em sua demanda, será escutado com cuidado por um ou mais profissionais do serviço, não necessariamente o médico, para que se possa, a partir de então, construir uma estratégia de intervenção. E o que temos notado nesses acolhimentos é que as pessoas simplesmente não suportam ficarem infelizes, tristes, frustradas ou enlutadas (e também não suportam ver outras pessoas nesse estado). É como se elas agregassem um plus ao próprio sofrimento, sofrem pelo que as fazem sofrer e sofrem porque estão sofrendo, como se não tivessem mais o direito de ficarem infelizes.

Somos procurados para fazer intervenção de saúde mental de alguém que está vivendo uma situação de luto ou perda, por exemplo, e quer ser medicado porque está chorando muito. Como assim? Então o sujeito perdeu um ente amado e precisa estar de bom humor para ir ao cinema depois do enterro?

Mães nos procuram com suas filhas adolescentes por chorarem trancadas no quarto depois de uma desilusão amorosa. Então a famosa “dor de cotovelo” tornou-se um grande mal a ser tratado com antidepressivos?

Certa vez, recebemos o encaminhamento de uma senhora via atenção primária, cuja queixa era insônia persistente e delírios persecutórios. Avaliando o caso com cuidado no acolhimento, entendemos que a tal senhora não dormia porque estava sendo ameaçada pelo marido há meses (ameaça real, não delírio de perseguição). Ele dizia que jogaria água fervente no seu ouvido enquanto ela estivesse dormindo. Alguém, por favor, me diga: como essa mulher poderia dormir? Não dormir, nesse caso, é sinal de saúde e não de doença.

Esses são alguns dos muitos exemplos que têm nos convocado a fazer intervenções muito peculiares, diferentes daquelas que fazíamos há alguns anos atrás. Se, num passado não muito distante, grande parte da nossa intervenção era feita no sentido de autorizar as pessoas a serem felizes, hoje, temos precisado lançar mão de intervenções que autorizem as pessoas a serem infelizes, a chorarem, a sofrerem por um fracasso, uma perda, a mergulharem numa boa “dor de cotovelo”, sem que com isso precisem ser medicadas ou enquadradas em algum diagnóstico de transtorno mental.

Muitas vezes precisamos dizer a essas pessoas que não precisam se envergonhar de chorar a morte de alguém. Que é normal não dormirmos quando estamos endividados, desempregados ou sendo ameaçados. Invariavelmente precisamos lembrar às mães que elas também já choraram uma dor de amor e que sobreviveram. Precisamos dizer que, num acesso de raiva, não é uma insanidade irreparável quebrar algumas louças e a coleção de CDs. Às vezes precisamos dizer que (quase) todo mundo já pensou em suicídio pelo menos uma vez na vida, e que a imensa maioria nunca chegou a concretizá-lo.

Por isso, a bandeira que levanto aqui é a seguinte: Se a felicidade é um direito a infelicidade é uma necessidade. Um brinde a infelicidade nossa de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade.

Então, que todos tenham um 2013 feliz, mas quando a infelicidade vier, que possamos mergulhar nela em paz...sem pudor.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Sobrenome: “Guarani Kaiowa”

"O que move um brasileiro urbano, não índio, a agregar “guarani kaiowa” ao seu nome no Twitter e no Facebook?"

Este texto é um depoimento que escrevi à convite de Eliane Brum, jornalista da Revista Época. Para construir sua coluna semanal ela solicitou que algumas pessoas respondessem as perguntas abaixo. Parte da minha resposta - que você lê agora na íntegra - foi publicada no artigo: Sobrenome: “Guarani Kaiowa”


Por que você acrescentou "guarani kaiowá" ao seu nome no twitter (e também feicibuqui?)? O que significa para um não índio como você dizer "SOU guarani kaiowá"/ se identificar como guarani kaiowá?

Decidi mudar meu nome virtual a partir de um convite de mobilização no feicebuque, e por meio do qual tomei conhecimento da carta da comunidade guarani-kaiowa enviada ao governo e a justiça do Brasil. O que mais me comoveu na carta foi quando ela diz: “Decretem nossa morte coletiva, enterrem-nos aqui” Sou uma profissional da saúde mental do SUS (psicóloga/psicanalista), lido todos os dias com o sofrimento das pessoas e não é incomum termos que lidar com essa radicalidade que é o desejo ou o ato de uma pessoa de por fim à própria vida. E isso sempre acontece quando a pessoa não enxerga nenhuma saída, nenhum caminho possível para sair do seu tormento. Quando a única saída pensada pelo sujeito é a morte é porque o seu sofrimento é muito, muito intenso, o que torna a nossa intervenção profissional extremamente difícil e delicada, além de nos colocar diante de um enorme sentimento de impotência e desimportância. Então, por me sentir sensibilizada com o sofrimento daquelas pessoas, por pensar que como profissional da saúde mental não poderia me silenciar, decidi participar da mobilização que era possível para mim naquele momento, no caso: mudar meu sobrenome. A partir desse ato, comecei a me interessar mais pelo tema, discutir e provocar o tema na minha rede de contatos da maneira que podia e, ainda, compartilhar minhas impressões também fora do campo virtual.

Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem....claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários perversos, desinteressados, egocêntricos, paranóicos, engraçados...e podemos sim, fazer manifestações e ativismo. Li durante as últimas semanas muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam “ativismo de sofá” ou “ativismo de butique”, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legitimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e assim como qualquer outra forma de laço, tem suas virtudes e também limitações e mal-entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover dentre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e “tomar corpo”.

Obviamente que nem todas as pessoas que participam desses movimentos vão tomá-lo da mesma forma, pelo mesmo motivo e com a mesma dedicação ou paixão. E nem todas essas manifestações terão o sucesso o pretendido, assim como nem todas as pessoas as compreenderão da mesma maneira. E também haverá pessoas e/ou instituições que tentarão fazer um uso torpe desse movimento. Mas, e daí? Isso não acontece também nos ativismos fora da internet?

A questão de incluir o sobrenome guarani-kaiwoá não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani-kaiwoá, nem saberia ser, obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles, sendo assim, não me sinto autorizada discursar POR eles, PARA eles ou SOBRE eles, (os guarani-kaiwoá) mas posso sim, discursar COM eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?

Por que essa mobilização da sociedade acontece agora, neste momento histórico, apesar de o genocídio se desenrolar há décadas?

Não sei te dizer o motivo pelo qual esta mobilização aconteceu agora, talvez seja porque a carta dos guarani-kaiowá tenha realmente produzido um impacto, como se ela fosse um grito tão alto que nós não pudéssemos mais fingir que não ouvimos. Isso porque acredito que toda essa mobilização surgiu a partir da divulgação da carta.

Sou militante do movimento antimanicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarréia por não terem direito as condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Nesse caso o gatilho disparador foi a divulgação do documentário “Em nome da razão” (1979) de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, MG. O que quero dizer é que em todo tipo de ativismo e movimento social pode haver este momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guarani-kaiowás, a partir da divulgação da carta.

(Nem preciso dizer que fiquei muito feliz e honrada em participar COM Eliane Brum na construção desta coluna que eu tanto admiro)

link para artigo de Eliane Brum na íntegra:

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/sobrenome-guarani-kaiowa.html