sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
A ditadura da felicidade
Por Rita de Cássia de A. Almeida
Psicóloga/psicanalista da Rede de Saúde Mental do SUS
Há mais de 15 anos que o meu trabalho cotidiano tem sido - para resumir em algumas poucas palavras - escutar o sofrimento alheio e, por opção, atuando na saúde pública. E durante esse percurso profissional testemunhei uma mudança muito interessante na minha prática clínica. Sofremos por diversos motivos e de diferentes formas e, pela minha experiência, o motivo do sofrimento não mudou muito, no entanto, a demanda que as pessoas tem feito quando estão em sofrimento mudou significativamente.
Estudos da psicanálise atual têm tratado nossa época como a era do direito ao gozo. Ou seja, vivemos em uma época que não trata a felicidade como algo a ser construído ou conquistado, mas sim como um direito. Numa caricatura, diríamos que toda criança que nasce, especialmente no ocidente capitalista, recebe em sua certidão de nascimento um carimbo que outorga a ela o direito de ser feliz, de gozar sem restrições, sem qualquer porém.
Me lembrei agora dos versos de uma música do saudoso Tim Maia.
“Essa tal felicidade, hei de encontrar.
Mesmo se eu tiver que aguardar.
Se eu tiver que esperar.”
Nos tempos do Tim Maia a felicidade ainda era uma contingência, quase uma utopia, uma busca na qual poderíamos ou não ter sucesso. Mas hoje a coisa é bem diferente, como a felicidade passou a ser um direito de todos, acabou alcançando também o patamar de uma certa obrigação do sujeito. É como se você tivesse ganhado o direito de, sem nenhum ônus, acessar mais 90 canais de TV e dissesse não. As pessoas te perguntariam: - Como assim, você não quer mais 90 canais de TV? Entendo que essa seja a grande pergunta que permeia o discurso ocidental capitalista: - Como assim, você não é feliz?
Esse modo de entender a felicidade implicou numa mudança radical, como eu disse, no tipo de demanda que as pessoas fazem a nós, trabalhadores da saúde mental. Para os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da atenção à saúde do SUS, preciso fazer um parêntese para que compreendam melhor o que vou dizer adiante.
O sistema funciona, ou pelo menos deve funcionar, em rede. A atenção primária é a extremidade da rede mais próxima do usuário, portanto a primeira que ele procura quando apresenta qualquer problema de saúde. A atenção primária - o posto de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família – deve atender e oferecer resolutividade para a maior parte dos casos, cerca de 80% deles. O desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das especialidades médicas, mas, intervir no sujeito como um todo, tendo como diretriz a promoção e a prevenção em saúde. Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais específicos nos quais a intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar outros parceiros da rede que possam oferecer suporte e parceria. Os CAPS, modalidade de serviço que trabalho, compõem exatamente este trançado da rede, eles oferecem uma escuta especializada no campo da saúde mental. Sendo assim, quase sempre recebemos encaminhamentos e demandas dos demais parceiros da rede, em especial da atenção primária, apesar de também recebermos demanda espontânea.
Ao chegar no CAPS o sujeito passará por um dispositivo chamado: acolhimento. Como o próprio nome diz, este é o momento que o sujeito será acolhido em sua demanda, será escutado com cuidado por um ou mais profissionais do serviço, não necessariamente o médico, para que se possa, a partir de então, construir uma estratégia de intervenção. E o que temos notado nesses acolhimentos é que as pessoas simplesmente não suportam ficarem infelizes, tristes, frustradas ou enlutadas (e também não suportam ver outras pessoas nesse estado). É como se elas agregassem um plus ao próprio sofrimento, sofrem pelo que as fazem sofrer e sofrem porque estão sofrendo, como se não tivessem mais o direito de ficarem infelizes.
Somos procurados para fazer intervenção de saúde mental de alguém que está vivendo uma situação de luto ou perda, por exemplo, e quer ser medicado porque está chorando muito. Como assim? Então o sujeito perdeu um ente amado e precisa estar de bom humor para ir ao cinema depois do enterro?
Mães nos procuram com suas filhas adolescentes por chorarem trancadas no quarto depois de uma desilusão amorosa. Então a famosa “dor de cotovelo” tornou-se um grande mal a ser tratado com antidepressivos?
Certa vez, recebemos o encaminhamento de uma senhora via atenção primária, cuja queixa era insônia persistente e delírios persecutórios. Avaliando o caso com cuidado no acolhimento, entendemos que a tal senhora não dormia porque estava sendo ameaçada pelo marido há meses (ameaça real, não delírio de perseguição). Ele dizia que jogaria água fervente no seu ouvido enquanto ela estivesse dormindo. Alguém, por favor, me diga: como essa mulher poderia dormir? Não dormir, nesse caso, é sinal de saúde e não de doença.
Esses são alguns dos muitos exemplos que têm nos convocado a fazer intervenções muito peculiares, diferentes daquelas que fazíamos há alguns anos atrás. Se, num passado não muito distante, grande parte da nossa intervenção era feita no sentido de autorizar as pessoas a serem felizes, hoje, temos precisado lançar mão de intervenções que autorizem as pessoas a serem infelizes, a chorarem, a sofrerem por um fracasso, uma perda, a mergulharem numa boa “dor de cotovelo”, sem que com isso precisem ser medicadas ou enquadradas em algum diagnóstico de transtorno mental.
Muitas vezes precisamos dizer a essas pessoas que não precisam se envergonhar de chorar a morte de alguém. Que é normal não dormirmos quando estamos endividados, desempregados ou sendo ameaçados. Invariavelmente precisamos lembrar às mães que elas também já choraram uma dor de amor e que sobreviveram. Precisamos dizer que, num acesso de raiva, não é uma insanidade irreparável quebrar algumas louças e a coleção de CDs. Às vezes precisamos dizer que (quase) todo mundo já pensou em suicídio pelo menos uma vez na vida, e que a imensa maioria nunca chegou a concretizá-lo.
Por isso, a bandeira que levanto aqui é a seguinte: Se a felicidade é um direito a infelicidade é uma necessidade. Um brinde a infelicidade nossa de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade.
Então, que todos tenham um 2013 feliz, mas quando a infelicidade vier, que possamos mergulhar nela em paz...sem pudor.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
Sobrenome: “Guarani Kaiowa”
"O que move um brasileiro urbano, não índio, a agregar “guarani kaiowa” ao seu nome no Twitter e no Facebook?"
Este texto é um depoimento que escrevi à convite de Eliane Brum, jornalista da Revista Época. Para construir sua coluna semanal ela solicitou que algumas pessoas respondessem as perguntas abaixo. Parte da minha resposta - que você lê agora na íntegra - foi publicada no artigo: Sobrenome: “Guarani Kaiowa”
Por que você acrescentou "guarani kaiowá" ao seu nome no twitter (e também feicibuqui?)? O que significa para um não índio como você dizer "SOU guarani kaiowá"/ se identificar como guarani kaiowá?
Decidi mudar meu nome virtual a partir de um convite de mobilização no feicebuque, e por meio do qual tomei conhecimento da carta da comunidade guarani-kaiowa enviada ao governo e a justiça do Brasil. O que mais me comoveu na carta foi quando ela diz: “Decretem nossa morte coletiva, enterrem-nos aqui” Sou uma profissional da saúde mental do SUS (psicóloga/psicanalista), lido todos os dias com o sofrimento das pessoas e não é incomum termos que lidar com essa radicalidade que é o desejo ou o ato de uma pessoa de por fim à própria vida. E isso sempre acontece quando a pessoa não enxerga nenhuma saída, nenhum caminho possível para sair do seu tormento. Quando a única saída pensada pelo sujeito é a morte é porque o seu sofrimento é muito, muito intenso, o que torna a nossa intervenção profissional extremamente difícil e delicada, além de nos colocar diante de um enorme sentimento de impotência e desimportância. Então, por me sentir sensibilizada com o sofrimento daquelas pessoas, por pensar que como profissional da saúde mental não poderia me silenciar, decidi participar da mobilização que era possível para mim naquele momento, no caso: mudar meu sobrenome. A partir desse ato, comecei a me interessar mais pelo tema, discutir e provocar o tema na minha rede de contatos da maneira que podia e, ainda, compartilhar minhas impressões também fora do campo virtual.
Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem....claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários perversos, desinteressados, egocêntricos, paranóicos, engraçados...e podemos sim, fazer manifestações e ativismo. Li durante as últimas semanas muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam “ativismo de sofá” ou “ativismo de butique”, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legitimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e assim como qualquer outra forma de laço, tem suas virtudes e também limitações e mal-entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover dentre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e “tomar corpo”.
Obviamente que nem todas as pessoas que participam desses movimentos vão tomá-lo da mesma forma, pelo mesmo motivo e com a mesma dedicação ou paixão. E nem todas essas manifestações terão o sucesso o pretendido, assim como nem todas as pessoas as compreenderão da mesma maneira. E também haverá pessoas e/ou instituições que tentarão fazer um uso torpe desse movimento. Mas, e daí? Isso não acontece também nos ativismos fora da internet?
A questão de incluir o sobrenome guarani-kaiwoá não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani-kaiwoá, nem saberia ser, obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles, sendo assim, não me sinto autorizada discursar POR eles, PARA eles ou SOBRE eles, (os guarani-kaiwoá) mas posso sim, discursar COM eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?
Por que essa mobilização da sociedade acontece agora, neste momento histórico, apesar de o genocídio se desenrolar há décadas?
Não sei te dizer o motivo pelo qual esta mobilização aconteceu agora, talvez seja porque a carta dos guarani-kaiowá tenha realmente produzido um impacto, como se ela fosse um grito tão alto que nós não pudéssemos mais fingir que não ouvimos. Isso porque acredito que toda essa mobilização surgiu a partir da divulgação da carta.
Sou militante do movimento antimanicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarréia por não terem direito as condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Nesse caso o gatilho disparador foi a divulgação do documentário “Em nome da razão” (1979) de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, MG. O que quero dizer é que em todo tipo de ativismo e movimento social pode haver este momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guarani-kaiowás, a partir da divulgação da carta.
(Nem preciso dizer que fiquei muito feliz e honrada em participar COM Eliane Brum na construção desta coluna que eu tanto admiro)
link para artigo de Eliane Brum na íntegra:
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/sobrenome-guarani-kaiowa.html
Este texto é um depoimento que escrevi à convite de Eliane Brum, jornalista da Revista Época. Para construir sua coluna semanal ela solicitou que algumas pessoas respondessem as perguntas abaixo. Parte da minha resposta - que você lê agora na íntegra - foi publicada no artigo: Sobrenome: “Guarani Kaiowa”
Por que você acrescentou "guarani kaiowá" ao seu nome no twitter (e também feicibuqui?)? O que significa para um não índio como você dizer "SOU guarani kaiowá"/ se identificar como guarani kaiowá?
Decidi mudar meu nome virtual a partir de um convite de mobilização no feicebuque, e por meio do qual tomei conhecimento da carta da comunidade guarani-kaiowa enviada ao governo e a justiça do Brasil. O que mais me comoveu na carta foi quando ela diz: “Decretem nossa morte coletiva, enterrem-nos aqui” Sou uma profissional da saúde mental do SUS (psicóloga/psicanalista), lido todos os dias com o sofrimento das pessoas e não é incomum termos que lidar com essa radicalidade que é o desejo ou o ato de uma pessoa de por fim à própria vida. E isso sempre acontece quando a pessoa não enxerga nenhuma saída, nenhum caminho possível para sair do seu tormento. Quando a única saída pensada pelo sujeito é a morte é porque o seu sofrimento é muito, muito intenso, o que torna a nossa intervenção profissional extremamente difícil e delicada, além de nos colocar diante de um enorme sentimento de impotência e desimportância. Então, por me sentir sensibilizada com o sofrimento daquelas pessoas, por pensar que como profissional da saúde mental não poderia me silenciar, decidi participar da mobilização que era possível para mim naquele momento, no caso: mudar meu sobrenome. A partir desse ato, comecei a me interessar mais pelo tema, discutir e provocar o tema na minha rede de contatos da maneira que podia e, ainda, compartilhar minhas impressões também fora do campo virtual.
Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem....claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários perversos, desinteressados, egocêntricos, paranóicos, engraçados...e podemos sim, fazer manifestações e ativismo. Li durante as últimas semanas muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam “ativismo de sofá” ou “ativismo de butique”, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legitimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e assim como qualquer outra forma de laço, tem suas virtudes e também limitações e mal-entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover dentre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e “tomar corpo”.
Obviamente que nem todas as pessoas que participam desses movimentos vão tomá-lo da mesma forma, pelo mesmo motivo e com a mesma dedicação ou paixão. E nem todas essas manifestações terão o sucesso o pretendido, assim como nem todas as pessoas as compreenderão da mesma maneira. E também haverá pessoas e/ou instituições que tentarão fazer um uso torpe desse movimento. Mas, e daí? Isso não acontece também nos ativismos fora da internet?
A questão de incluir o sobrenome guarani-kaiwoá não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani-kaiwoá, nem saberia ser, obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles, sendo assim, não me sinto autorizada discursar POR eles, PARA eles ou SOBRE eles, (os guarani-kaiwoá) mas posso sim, discursar COM eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?
Por que essa mobilização da sociedade acontece agora, neste momento histórico, apesar de o genocídio se desenrolar há décadas?
Não sei te dizer o motivo pelo qual esta mobilização aconteceu agora, talvez seja porque a carta dos guarani-kaiowá tenha realmente produzido um impacto, como se ela fosse um grito tão alto que nós não pudéssemos mais fingir que não ouvimos. Isso porque acredito que toda essa mobilização surgiu a partir da divulgação da carta.
Sou militante do movimento antimanicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarréia por não terem direito as condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Nesse caso o gatilho disparador foi a divulgação do documentário “Em nome da razão” (1979) de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, MG. O que quero dizer é que em todo tipo de ativismo e movimento social pode haver este momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guarani-kaiowás, a partir da divulgação da carta.
(Nem preciso dizer que fiquei muito feliz e honrada em participar COM Eliane Brum na construção desta coluna que eu tanto admiro)
link para artigo de Eliane Brum na íntegra:
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/sobrenome-guarani-kaiowa.html
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
A contribuição ética da psicanálise para a sociedade atual
por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Nietzche lamenta que o ocidente moderno tenha promovido a negação da natureza trágica do homem. Segundo o filósofo, a era moderna reprimiu homem trágico para dar lugar ao homem teórico: o homem centrado, senhor de si, racional e, portanto, capaz de criar um método para conhecer e controlar o mundo que o cerca. Assim se confirmaria o ideal propagado na modernidade, pela via da razão teríamos todas as respostas.
Nesse caldeirão iluminista nasce a ciência, promessa de cura para todos os nossos mal-estares, entendendo a morte, o conflito, a loucura, o fracasso, a perda, a descontinuidade, o erro, a falta, a indisciplina, e tantas outras experiências trágicas da condição humana, como estrangeiras, malditas e odiosas. E o caminho não foi diferente no nascimento da psicologia, nesse caso, a promessa seria compreender o comportamento humano e assim, nos curar daqueles comportamentos indesejados e incômodos.
Freud, no entanto, será um dos responsáveis por desbancar o ideal da psicologia científica, afirmando com sua teoria do inconsciente que, ao contrário do que o discurso cartesiano pregava, o eu não é o senhor em sua própria casa. Com essa afirmação Freud questiona a noção do homem centrado e senhor de si, e ainda, derrotando definitivamente nossas pretensões narcisistas, afirma: não há cura para o desamparo humano. Ou seja, por mais que busquemos explicações, saídas e respostas, haverá sempre um mal-estar inevitável, inexplicável e, portanto, incurável, pelo fato de nossa existência ser essencialmente frágil, castrada, desamparada. Com efeito, a tragédia, por mais que a recusemos, será sempre nossa companheira inseparável.
E se não há cura para o desamparo humano, o que fazer com ele? O que fazer com o mal-estar da existência?
Grande parte do esforço da sociedade atual tem sido no sentido de silenciar todo e qualquer mal-estar. E essa forma de lidar com o mal-estar da existência traduz, exatamente, a diferença da intervenção da psicanálise para as demais psicoterapias, por exemplo. Enquanto essas últimas pretendem fazer calar o mal-estar, a psicanálise se propõe a escutá-lo, acolhê-lo, e fazer dele matéria prima para o processo de reinvenção do sujeito. A psicanálise, nesse sentido não compactua com intervenções normativas, pasteurizadoras e medicalizadoras, o que resulta numa ética que está mais próxima do fracasso do que de um suposto ideal de perfeição a ser perseguido. Para a psicanálise é do fracasso, desse mal-estar que não cessa, é que tiramos o barro com o qual não paramos de nos construir.
Acredito que essa ética proposta por Freud seja fundamental para os dias de hoje, apesar de muitos já terem decretado a morte da psicanálise. Fundamental para fazer uma crítica a nossa atual sociedade, que tem se preocupado muito mais em silenciar nossos sintomas do que escutá-los. Sendo assim, a judicialização e a medicalização tem sido os modos mais usados para lidar com nossos sintomas ou lidar com nossos problemas relacionais. Afinal, se partimos do pressuposto que há um ideal, admitiremos também ter a receita para alcançá-los, e o que é melhor para nossa sociedade capitalista, tal receita pode ser comprada/vendida. Vejamos dois exemplos bem atuais:
Ideal = criança comportada e sem problemas de aprendizagem. Se criança não aprende e não se comporta, solução = medicalização = criança comportada e sem problemas de aprendizagem.
Ideal = sujeito que não usa drogas ilícitas (principalmente crack). Se sujeito usa drogas, especialmente crack, solução = judicialização (internação involuntária) = sujeito que não usa drogas ilícitas (principalmente crack).
Entretanto, se partirmos de uma ética onde não há modelos ou ideais a serem perseguidos ou copiados, intervenções desse tipo perdem sua força, pois o caminho ou a solução passa a ser aquele que cada um pode, deseja ou pretende construir e com a certeza de que, ainda sim, algum tipo de mal-estar estará sempre presente, já que ele nunca cessa.
Já com relação ao desamparo humano, é o discurso religioso que promete curá-lo. O conceito de Deus como um Pai poderoso e amoroso serve para aquietar essa sensação de desamparo. Precisamos acreditar, afinal, que alguém olha e cuida de nós. Talvez, sem isso, sucumbiríamos ao desespero generalizado.
Mas, a psicanálise propõe uma outra saída para o nosso desamparo. Se por um lado ele não pode ser curado, erradicado, pode ser administrado em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Finalizando, se quisermos pautar nossas intervenções na ética proposta pela psicanálise devemos fazer duas perguntas, que são fundamentais: Estamos intervindo sem nos preocupar com um ideal preestabelecido? Estamos promovendo e fortalecendo os laços sociais? Se a resposta for sim para essas duas perguntas, estamos conseguindo escapar desses dois discursos que empobrecem e enfraquecem nossa sociedade: a medicalização do sofrimento humano e a judicialização das nossas relações interpessoais.
psicanalista
Nietzche lamenta que o ocidente moderno tenha promovido a negação da natureza trágica do homem. Segundo o filósofo, a era moderna reprimiu homem trágico para dar lugar ao homem teórico: o homem centrado, senhor de si, racional e, portanto, capaz de criar um método para conhecer e controlar o mundo que o cerca. Assim se confirmaria o ideal propagado na modernidade, pela via da razão teríamos todas as respostas.
Nesse caldeirão iluminista nasce a ciência, promessa de cura para todos os nossos mal-estares, entendendo a morte, o conflito, a loucura, o fracasso, a perda, a descontinuidade, o erro, a falta, a indisciplina, e tantas outras experiências trágicas da condição humana, como estrangeiras, malditas e odiosas. E o caminho não foi diferente no nascimento da psicologia, nesse caso, a promessa seria compreender o comportamento humano e assim, nos curar daqueles comportamentos indesejados e incômodos.
Freud, no entanto, será um dos responsáveis por desbancar o ideal da psicologia científica, afirmando com sua teoria do inconsciente que, ao contrário do que o discurso cartesiano pregava, o eu não é o senhor em sua própria casa. Com essa afirmação Freud questiona a noção do homem centrado e senhor de si, e ainda, derrotando definitivamente nossas pretensões narcisistas, afirma: não há cura para o desamparo humano. Ou seja, por mais que busquemos explicações, saídas e respostas, haverá sempre um mal-estar inevitável, inexplicável e, portanto, incurável, pelo fato de nossa existência ser essencialmente frágil, castrada, desamparada. Com efeito, a tragédia, por mais que a recusemos, será sempre nossa companheira inseparável.
E se não há cura para o desamparo humano, o que fazer com ele? O que fazer com o mal-estar da existência?
Grande parte do esforço da sociedade atual tem sido no sentido de silenciar todo e qualquer mal-estar. E essa forma de lidar com o mal-estar da existência traduz, exatamente, a diferença da intervenção da psicanálise para as demais psicoterapias, por exemplo. Enquanto essas últimas pretendem fazer calar o mal-estar, a psicanálise se propõe a escutá-lo, acolhê-lo, e fazer dele matéria prima para o processo de reinvenção do sujeito. A psicanálise, nesse sentido não compactua com intervenções normativas, pasteurizadoras e medicalizadoras, o que resulta numa ética que está mais próxima do fracasso do que de um suposto ideal de perfeição a ser perseguido. Para a psicanálise é do fracasso, desse mal-estar que não cessa, é que tiramos o barro com o qual não paramos de nos construir.
Acredito que essa ética proposta por Freud seja fundamental para os dias de hoje, apesar de muitos já terem decretado a morte da psicanálise. Fundamental para fazer uma crítica a nossa atual sociedade, que tem se preocupado muito mais em silenciar nossos sintomas do que escutá-los. Sendo assim, a judicialização e a medicalização tem sido os modos mais usados para lidar com nossos sintomas ou lidar com nossos problemas relacionais. Afinal, se partimos do pressuposto que há um ideal, admitiremos também ter a receita para alcançá-los, e o que é melhor para nossa sociedade capitalista, tal receita pode ser comprada/vendida. Vejamos dois exemplos bem atuais:
Ideal = criança comportada e sem problemas de aprendizagem. Se criança não aprende e não se comporta, solução = medicalização = criança comportada e sem problemas de aprendizagem.
Ideal = sujeito que não usa drogas ilícitas (principalmente crack). Se sujeito usa drogas, especialmente crack, solução = judicialização (internação involuntária) = sujeito que não usa drogas ilícitas (principalmente crack).
Entretanto, se partirmos de uma ética onde não há modelos ou ideais a serem perseguidos ou copiados, intervenções desse tipo perdem sua força, pois o caminho ou a solução passa a ser aquele que cada um pode, deseja ou pretende construir e com a certeza de que, ainda sim, algum tipo de mal-estar estará sempre presente, já que ele nunca cessa.
Já com relação ao desamparo humano, é o discurso religioso que promete curá-lo. O conceito de Deus como um Pai poderoso e amoroso serve para aquietar essa sensação de desamparo. Precisamos acreditar, afinal, que alguém olha e cuida de nós. Talvez, sem isso, sucumbiríamos ao desespero generalizado.
Mas, a psicanálise propõe uma outra saída para o nosso desamparo. Se por um lado ele não pode ser curado, erradicado, pode ser administrado em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Finalizando, se quisermos pautar nossas intervenções na ética proposta pela psicanálise devemos fazer duas perguntas, que são fundamentais: Estamos intervindo sem nos preocupar com um ideal preestabelecido? Estamos promovendo e fortalecendo os laços sociais? Se a resposta for sim para essas duas perguntas, estamos conseguindo escapar desses dois discursos que empobrecem e enfraquecem nossa sociedade: a medicalização do sofrimento humano e a judicialização das nossas relações interpessoais.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
Temos salvação?
Por: Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista
Nasci em uma família católica praticante. Meu nome, inclusive, é resultado da devoção de meu pai por Santa Rita de Cássia. Fui educada sob preceitos religiosos, mas hoje, não me considero uma pessoa religiosa. Os dogmas religiosos me incomodam, assim como me incomoda qualquer tipo de saber dogmático que se defina como A Verdade, já que não acredito numa verdade única ou num modo único de ver e conceber o mundo. Por outro lado, não advogo em favor dos que acreditam que o discurso religioso é um discurso menor que o discurso científico ou filosófico, por exemplo. Acredito que são apenas modos diferentes de compreender o mundo e de dar respostas para as perguntas que nos inquietam, e por isso mesmo, o saber científico, ou qualquer outra forma de saber, dependendo da maneira como é tratado, também pode se tornar tão dogmático quanto o religioso.
Meu conceito de Deus, hoje, é muito mais filosófico que religioso. Penso que a angústia provocada pela nossa incapacidade de acessar o real da existência nos impele a recorrer a Deus ou a religião, afinal, é mesmo difícil suportar a ideia de “não saber”. Ou seja, Deus existe sim, penso eu, porque precisamos Dele. Se eu rezo? Sim, às vezes. Mas, hoje, muito mais para reafirmar a força de um desejo do que por acreditar que um Ser Superior vai me dar o que preciso ou me salvar de alguma intempérie.
Creio ter resumido nesses dois parágrafos minha visão metafísica da existência. Mas mesmo não professando uma religião específica, me interesso pelo tema. Penso na religião como uma das muitas formas de manifestação da cultura humana e quando serve para reduzir a angústia e a dor de existir e, sobretudo, para promover a vida, o amor, a solidariedade o respeito pelo outro e pela natureza, pode ser muito útil e saudável para a humanidade. Muitas religiões foram e são capazes de revolucionar positivamente o modo de pensar de uma sociedade. O Cristianismo, por exemplo, provocou uma revolução quando pregou o “amai-vos uns aos outros” no lugar do “dente por dente, olho por olho” do Antigo Testamento. A luta pacífica de Gandhi contra a opressão Inglesa é outro exemplo de ética religiosa que reformulou positivamente os paradigmas de uma sociedade. Algumas teses religiosas me agradam. Gosto, por exemplo, da ideia dos Santos inventada pelo Catolicismo. Os Santos nos fazem pensar que pessoas comuns, limitadas, imperfeitas, humanas ou pecadoras – como dizem os cristãos – também são capazes de atos extraordinários, nobres e heroicos. Também me interesso pelas religiões re-encarnacionistas, mas as que acreditam – como o Budismo – que o espírito pode encarnar também em animais e outros seres vivos. Agrada-me a ideia de pensar que a espécie humana não é a única a ter alma e, portanto, tão importante como as demais formas de existência. Religiões que possuem entidades femininas também me agradam. O Judaísmo e o Cristianismo são religiões extremamente patriarcais. Dentre as religiões cristãs, apenas o catolicismo, a meu ver, tenta incluir a mulher, ainda que muito timidamente, através da divinização de Maria, a mãe de Jesus, e na figura das Santas, o que acho interessante.
Resumindo, defendo o discurso religioso apenas quando ele serve como agente transformador de uma sociedade, melhorando-a, potencializando suas virtudes, inventado e promovendo princípios éticos que nos ajudem a viver melhor em comunidade. Um bom exemplo é a chamada Teologia da Libertação, movimento religioso genuinamente latino-americano, nascido dentro do catolicismo, cujo expoente brasileiro é o frei Leonardo Boff, e que promove um cristianismo em favor dos excluídos e contra todas as formas de injustiça e opressão. Movimento que, aliás, foi lamentavelmente abafado pelo Vaticano.
Por outro lado, há um tema que muito me incomoda no discurso religioso que é o dA Salvação, especialmente, da maneira como tem sido tratado nas religiões cristãs mais fundamentalistas. A ideia dA Salvação como uma conquista individual é, no meu entendimento, a pior forma de individualismo que pode existir e, associada ao discurso capitalista, produz uma moral ou ética existencial degradada, excludente e perversa. Segundo tal preceito o mundo ficaria dividido entre os que "estão salvos" e os que "não estão salvos", cabendo aos que foram agraciados com a salvação, ou seja, os “donos da verdade”, convencerem os demais a partilhar desta mesma verdade. E infelizmente, as formas de persuasão para aceitar tal verdade podem ser as mais degradadas e degradantes. Uma delas é o convencimento pela produção do medo (do Diabo, do Inferno ou de outro tipo de castigo divino). Além da estratégia do medo, também muito usada para sustentar outras formas de poder, fica implícita (ou explicita) em muitas religiões, a ideia de que a aceitação de certa verdade religiosa está diretamente relacionada com o que se está disposto a investir financeiramente na instituição que, supostamente, a representa. É como se O Paraíso estivesse com seus ingressos à venda em vários locais, sendo que, cada um deles propagandeia sobre a veracidade do seu ingresso e a falsidade do ingresso do outro.
No bairro onde moro é muito comum sermos abordados por religiosos em missão de evangelização, como dizem, e sempre me interesso em conversar com eles, obviamente, que tentando abalar suas certezas. Um dia desses, para meu desespero, ou desespero da missionária, o tema abordado foi A Salvação. Ela me garantiu que estava salva e me perguntou se eu também não gostaria de alcançar essa benesse. Perguntei a ela o que eu deveria fazer para tal e ela, notadamente satisfeita com a minha pergunta, tratou de traduzir para mim um sem número de citações bíblicas que falavam da necessidade de que eu aceitasse A Palavra de Deus. Depois de algum tempo escutando-a fiz o meu papel de advogada do diabo e perguntei: “Você está salva porque aceitou A Palavra de Deus ou aceitou A Palavra de Deus somente para ser salva?”. Ela gaguejou, titubeou e não respondeu. Espero tê-la feito pensar...
Estamos hoje diante da ameaça real de aniquilação da vida na Terra pelo esgotamento dos seus recursos naturais, resultado do nosso modo de vida individualista, imediatista e consumista. E então eu me pergunto? De que vale a salvação individual de uma alma post mortem se não garantirmos a salvação do nosso Planeta em vida? E fazendo uso do discurso religioso, se a Terra e toda a Natureza que ela guarda foram criadas por Deus, estaria Ele satisfeito com o propósito de que cada um salve a si mesmo ainda que não salvemos Sua Criação como um todo? Penso eu que o discurso ecológico genuíno (e não aquele travestido de ecológico só para nos fazer consumir mais, dessa vez, os produtos ecologicamente corretos) que busca novos paradigmas éticos e morais que garantam a salvação do nosso planeta e seus habitantes, inaugura uma ética diferente e que muito me agrada: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.
A tragédia que se anuncia nesse novo mundo que nos espera – ou que já se faz presente – nos faz pensar que o conceito religioso de salvação individual precisa ser superado, para dar lugar a uma nova ética na qual o fundamento primeiro seja a coletividade, e não apenas de humanos, mas, de todas as espécies viventes. Enfim, o que quero dizer é que nenhum projeto de salvação individual me interessa, porque não me faz uma pessoa melhor e porque também não será capaz de inventar um mundo melhor, menos individualista e mais solidário.
psicanalista
Nasci em uma família católica praticante. Meu nome, inclusive, é resultado da devoção de meu pai por Santa Rita de Cássia. Fui educada sob preceitos religiosos, mas hoje, não me considero uma pessoa religiosa. Os dogmas religiosos me incomodam, assim como me incomoda qualquer tipo de saber dogmático que se defina como A Verdade, já que não acredito numa verdade única ou num modo único de ver e conceber o mundo. Por outro lado, não advogo em favor dos que acreditam que o discurso religioso é um discurso menor que o discurso científico ou filosófico, por exemplo. Acredito que são apenas modos diferentes de compreender o mundo e de dar respostas para as perguntas que nos inquietam, e por isso mesmo, o saber científico, ou qualquer outra forma de saber, dependendo da maneira como é tratado, também pode se tornar tão dogmático quanto o religioso.
Meu conceito de Deus, hoje, é muito mais filosófico que religioso. Penso que a angústia provocada pela nossa incapacidade de acessar o real da existência nos impele a recorrer a Deus ou a religião, afinal, é mesmo difícil suportar a ideia de “não saber”. Ou seja, Deus existe sim, penso eu, porque precisamos Dele. Se eu rezo? Sim, às vezes. Mas, hoje, muito mais para reafirmar a força de um desejo do que por acreditar que um Ser Superior vai me dar o que preciso ou me salvar de alguma intempérie.
Creio ter resumido nesses dois parágrafos minha visão metafísica da existência. Mas mesmo não professando uma religião específica, me interesso pelo tema. Penso na religião como uma das muitas formas de manifestação da cultura humana e quando serve para reduzir a angústia e a dor de existir e, sobretudo, para promover a vida, o amor, a solidariedade o respeito pelo outro e pela natureza, pode ser muito útil e saudável para a humanidade. Muitas religiões foram e são capazes de revolucionar positivamente o modo de pensar de uma sociedade. O Cristianismo, por exemplo, provocou uma revolução quando pregou o “amai-vos uns aos outros” no lugar do “dente por dente, olho por olho” do Antigo Testamento. A luta pacífica de Gandhi contra a opressão Inglesa é outro exemplo de ética religiosa que reformulou positivamente os paradigmas de uma sociedade. Algumas teses religiosas me agradam. Gosto, por exemplo, da ideia dos Santos inventada pelo Catolicismo. Os Santos nos fazem pensar que pessoas comuns, limitadas, imperfeitas, humanas ou pecadoras – como dizem os cristãos – também são capazes de atos extraordinários, nobres e heroicos. Também me interesso pelas religiões re-encarnacionistas, mas as que acreditam – como o Budismo – que o espírito pode encarnar também em animais e outros seres vivos. Agrada-me a ideia de pensar que a espécie humana não é a única a ter alma e, portanto, tão importante como as demais formas de existência. Religiões que possuem entidades femininas também me agradam. O Judaísmo e o Cristianismo são religiões extremamente patriarcais. Dentre as religiões cristãs, apenas o catolicismo, a meu ver, tenta incluir a mulher, ainda que muito timidamente, através da divinização de Maria, a mãe de Jesus, e na figura das Santas, o que acho interessante.
Resumindo, defendo o discurso religioso apenas quando ele serve como agente transformador de uma sociedade, melhorando-a, potencializando suas virtudes, inventado e promovendo princípios éticos que nos ajudem a viver melhor em comunidade. Um bom exemplo é a chamada Teologia da Libertação, movimento religioso genuinamente latino-americano, nascido dentro do catolicismo, cujo expoente brasileiro é o frei Leonardo Boff, e que promove um cristianismo em favor dos excluídos e contra todas as formas de injustiça e opressão. Movimento que, aliás, foi lamentavelmente abafado pelo Vaticano.
Por outro lado, há um tema que muito me incomoda no discurso religioso que é o dA Salvação, especialmente, da maneira como tem sido tratado nas religiões cristãs mais fundamentalistas. A ideia dA Salvação como uma conquista individual é, no meu entendimento, a pior forma de individualismo que pode existir e, associada ao discurso capitalista, produz uma moral ou ética existencial degradada, excludente e perversa. Segundo tal preceito o mundo ficaria dividido entre os que "estão salvos" e os que "não estão salvos", cabendo aos que foram agraciados com a salvação, ou seja, os “donos da verdade”, convencerem os demais a partilhar desta mesma verdade. E infelizmente, as formas de persuasão para aceitar tal verdade podem ser as mais degradadas e degradantes. Uma delas é o convencimento pela produção do medo (do Diabo, do Inferno ou de outro tipo de castigo divino). Além da estratégia do medo, também muito usada para sustentar outras formas de poder, fica implícita (ou explicita) em muitas religiões, a ideia de que a aceitação de certa verdade religiosa está diretamente relacionada com o que se está disposto a investir financeiramente na instituição que, supostamente, a representa. É como se O Paraíso estivesse com seus ingressos à venda em vários locais, sendo que, cada um deles propagandeia sobre a veracidade do seu ingresso e a falsidade do ingresso do outro.
No bairro onde moro é muito comum sermos abordados por religiosos em missão de evangelização, como dizem, e sempre me interesso em conversar com eles, obviamente, que tentando abalar suas certezas. Um dia desses, para meu desespero, ou desespero da missionária, o tema abordado foi A Salvação. Ela me garantiu que estava salva e me perguntou se eu também não gostaria de alcançar essa benesse. Perguntei a ela o que eu deveria fazer para tal e ela, notadamente satisfeita com a minha pergunta, tratou de traduzir para mim um sem número de citações bíblicas que falavam da necessidade de que eu aceitasse A Palavra de Deus. Depois de algum tempo escutando-a fiz o meu papel de advogada do diabo e perguntei: “Você está salva porque aceitou A Palavra de Deus ou aceitou A Palavra de Deus somente para ser salva?”. Ela gaguejou, titubeou e não respondeu. Espero tê-la feito pensar...
Estamos hoje diante da ameaça real de aniquilação da vida na Terra pelo esgotamento dos seus recursos naturais, resultado do nosso modo de vida individualista, imediatista e consumista. E então eu me pergunto? De que vale a salvação individual de uma alma post mortem se não garantirmos a salvação do nosso Planeta em vida? E fazendo uso do discurso religioso, se a Terra e toda a Natureza que ela guarda foram criadas por Deus, estaria Ele satisfeito com o propósito de que cada um salve a si mesmo ainda que não salvemos Sua Criação como um todo? Penso eu que o discurso ecológico genuíno (e não aquele travestido de ecológico só para nos fazer consumir mais, dessa vez, os produtos ecologicamente corretos) que busca novos paradigmas éticos e morais que garantam a salvação do nosso planeta e seus habitantes, inaugura uma ética diferente e que muito me agrada: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.
A tragédia que se anuncia nesse novo mundo que nos espera – ou que já se faz presente – nos faz pensar que o conceito religioso de salvação individual precisa ser superado, para dar lugar a uma nova ética na qual o fundamento primeiro seja a coletividade, e não apenas de humanos, mas, de todas as espécies viventes. Enfim, o que quero dizer é que nenhum projeto de salvação individual me interessa, porque não me faz uma pessoa melhor e porque também não será capaz de inventar um mundo melhor, menos individualista e mais solidário.
domingo, 26 de agosto de 2012
Elucubrações sobre a morte
Por: Rita de Cássia de A. Almeida
psicanalista
Esta semana estava às voltas com os Deveres de Casa (as tarefas passadas pela escola) da minha filha caçula, que acabou de completar 6 anos. Ela, dizendo que não precisava fazê-los e eu, tentando convencê-la do contrário. Usei inúmeros argumentos para incitá-la a fazer a tarefa até que, por fim, cansada de tantos porquês, apelei para o seu senso de responsabilidade e disse: “Você precisa fazer o Dever de Casa porque ele é muito importante”. E ela sem pestanejar, numa exclamação enfática, saiu com essa: “Mãe, muito importante é não morrer!”.
Bom, obviamente que a discussão acabou ali. Que poderia eu responder diante do seu argumento? O jeito foi apelar para o velho e bom: “Você vai fazer esse dever porque eu mandei e pronto!”. Isso encerrou o assunto... Para ela, mas não para mim. Sua resposta ficou fazendo ecos na minha mente, atormentada por natureza.
Tomada por elucubrações a respeito da morte, concluí que concordo plenamente com minha filha: não há nada mais importante que não morrer. E concordo por dois motivos. Primeiro, pela afirmação em si e segundo, por uma concepção filosófica importante que a afirmação dela carrega e da qual eu também compartilho: a de que vida é uma espécie de resistência à morte. Nesse sentido, não morrer seria um ato de rebeldia, de relutância, já que a tendência natural seria morrer, retornar ao nada, à quietude, ou ao Nirvana, como acredita o principio Budista. (Freud também se valia de tal princípio).
Seguindo esta forma de pensar, a morte não é ausência de vida ou um evento trágico que interrompe o que seria uma tendência natural: viver. Ao contrário. A vida é que é uma não morte, um acontecimento, um milagre, uma explosão entre duas mortes. A morte, sim, é a tendência natural das coisas, o real que invariavelmente se abate ou se abaterá sobre tudo que vive.
Então é verdade que não há nada mais importante que não morrer. Não há nada mais importante do que defender, perdurar e fortalecer esse impulso revolucionário que faz da vida um verdadeiro milagre, quase que improvável. (A improbabilidade da vida é, inclusive, a conclusão da maioria dos cientistas que discursam sobre a teoria da criação da vida e do Universo).
Tomada por esses pensamentos me lembrei de uma conferência do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que assisti recentemente na internet, intitulada “A morte como quase acontecimento”, que trata de diferentes concepções de morte em culturas diversas. Dentre os vários temas levantados pelo antropólogo, um me chamou a atenção. Ele aponta que na visão ocidental moderna, como nos apegamos à questão da linhagem familiar, nossos inimigos se encontram fora de nossa família ou clã, podendo eles estarem mortos ou vivos.
Tal visão fica bem ilustrada na tragédia Shakespeareana – Romeu e Julieta. Nela o conflito se dá na luta entre Montecchios x Capuletos. Conflito este perpetuado por gerações e resultando em intenso ódio e inúmeras mortes. Em resumo temos: Montecchios (mortos e vivos) de um lado contra Capuletos (mortos e vivos) de outro. Eventualmente ampliamos este conceito de família ou clã para entrarmos em conflito com os outros. Nos unimos numa comunidade, num partido, numa religião ou numa nação, mas sempre teremos: mortos e vivos de um lado contra mortos e vivos de outro.
Mas este modo de pensar não é universal, segundo Eduardo Viveiros. Existem tribos indígenas que se organizam de um modo bem diferente. Numa delas os grandes inimigos são os mortos. Ainda que se trate de sua mãe, seu pai, seu filho ou seu melhor amigo, ao morrer todos eles se transformam no seu pior inimigo, inimigo a ser evitado, combatido e temido. Seria a mesma idéia que sustenta os filmes e seriados de zumbis: “todos os vivos” contra “todos os mortos”. Toda a energia social, neste caso, é canalizada para evitar a morte, ou seja, evitar que o exército dos mortos amplie e se fortaleça.
Tal concepção, pelo que compreendi, também muda toda a forma de relação social. Nessa tribo não é concebível, por exemplo, qualquer tipo de luta ou conflito entre vivos que possa resultar em risco de morte. Assassinatos, por exemplo, seriam atos impensáveis, afinal, porque alguém iria querer fortalecer o inimigo? Imagino que este raciocínio valha também para os suicídios. No caso das doenças ou atividades que envolvam risco, elas são sempre interpretadas como armadilhas dos mortos para levar os vivos para o outro lado, exigindo sempre cuidado extra dos membros da tribo. E não um cuidado individual, mas um cuidado coletivo, já que a morte de um membro torna-se um risco para todos.
Adorei pensar sob a perspectiva desta tribo e agora, depois do argumento da minha pequena sabida, tal perspectiva faz ainda mais sentido. Entendo que a grande ética que deve sustentar a existência humana seria aquela capaz de investir todos os nossos esforços - sociais, culturais ou tecnológicos - para não morrer. Mas fazendo uso do modo de pensar da tribo citada, não se trata apenas de evitar a morte individual (nisso nossa sociedade é especialista). Também não se trata de evitar a morte apenas dos nossos pares, os membros da nossa comunidade, nossos compatriotas ou aliados políticos e religiosos. A idéia central seria todos os vivos combatendo toda a espécie de morte, o que implicaria numa ética que procurasse fazer de tudo para que todos os seres vivos (humanos ou não) pudessem ter o mais plenamente possível a possibilidade de não morrer, enquanto indivíduo, enquanto corpo social, enquanto comunidade ou enquanto espécie, ainda que saibamos que se trata apenas de um adiamento, um esforço para protelar o inevitável. Não morrer e não deixar morrer - seria este o princípio maior.
Voltando à discussão filosófica levantada pela minha caçula, já disse que concordamos que não há nada mais importante que não morrer. Mas o que talvez ela não saiba, e, certamente aprenderá, comigo inclusive, é que não morrer não é o mesmo que sobreviver. Não morrer é muito mais complexo. Por isso, fazer ou não fazer o Dever de Casa, assim como fazer ou deixar de fazer tantas outras coisas, se tornam também, ao longo de nossas vidas, formas de não morrer. Um exercício cotidiano, contínuo e persistente de resistir à morte ainda que estejamos todos, invariavelmente, caminhando para ela. E se aprendermos com nossos sábios irmãos índios, entenderemos que esse exercício de não morrer só funciona se o fizermos pensando na coletividade.
(A quem possa interessar, segue o link da conferência citada: http://www.youtube.com/watch?v=Zdz8U9_8YVU )
psicanalista
Esta semana estava às voltas com os Deveres de Casa (as tarefas passadas pela escola) da minha filha caçula, que acabou de completar 6 anos. Ela, dizendo que não precisava fazê-los e eu, tentando convencê-la do contrário. Usei inúmeros argumentos para incitá-la a fazer a tarefa até que, por fim, cansada de tantos porquês, apelei para o seu senso de responsabilidade e disse: “Você precisa fazer o Dever de Casa porque ele é muito importante”. E ela sem pestanejar, numa exclamação enfática, saiu com essa: “Mãe, muito importante é não morrer!”.
Bom, obviamente que a discussão acabou ali. Que poderia eu responder diante do seu argumento? O jeito foi apelar para o velho e bom: “Você vai fazer esse dever porque eu mandei e pronto!”. Isso encerrou o assunto... Para ela, mas não para mim. Sua resposta ficou fazendo ecos na minha mente, atormentada por natureza.
Tomada por elucubrações a respeito da morte, concluí que concordo plenamente com minha filha: não há nada mais importante que não morrer. E concordo por dois motivos. Primeiro, pela afirmação em si e segundo, por uma concepção filosófica importante que a afirmação dela carrega e da qual eu também compartilho: a de que vida é uma espécie de resistência à morte. Nesse sentido, não morrer seria um ato de rebeldia, de relutância, já que a tendência natural seria morrer, retornar ao nada, à quietude, ou ao Nirvana, como acredita o principio Budista. (Freud também se valia de tal princípio).
Seguindo esta forma de pensar, a morte não é ausência de vida ou um evento trágico que interrompe o que seria uma tendência natural: viver. Ao contrário. A vida é que é uma não morte, um acontecimento, um milagre, uma explosão entre duas mortes. A morte, sim, é a tendência natural das coisas, o real que invariavelmente se abate ou se abaterá sobre tudo que vive.
Então é verdade que não há nada mais importante que não morrer. Não há nada mais importante do que defender, perdurar e fortalecer esse impulso revolucionário que faz da vida um verdadeiro milagre, quase que improvável. (A improbabilidade da vida é, inclusive, a conclusão da maioria dos cientistas que discursam sobre a teoria da criação da vida e do Universo).
Tomada por esses pensamentos me lembrei de uma conferência do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que assisti recentemente na internet, intitulada “A morte como quase acontecimento”, que trata de diferentes concepções de morte em culturas diversas. Dentre os vários temas levantados pelo antropólogo, um me chamou a atenção. Ele aponta que na visão ocidental moderna, como nos apegamos à questão da linhagem familiar, nossos inimigos se encontram fora de nossa família ou clã, podendo eles estarem mortos ou vivos.
Tal visão fica bem ilustrada na tragédia Shakespeareana – Romeu e Julieta. Nela o conflito se dá na luta entre Montecchios x Capuletos. Conflito este perpetuado por gerações e resultando em intenso ódio e inúmeras mortes. Em resumo temos: Montecchios (mortos e vivos) de um lado contra Capuletos (mortos e vivos) de outro. Eventualmente ampliamos este conceito de família ou clã para entrarmos em conflito com os outros. Nos unimos numa comunidade, num partido, numa religião ou numa nação, mas sempre teremos: mortos e vivos de um lado contra mortos e vivos de outro.
Mas este modo de pensar não é universal, segundo Eduardo Viveiros. Existem tribos indígenas que se organizam de um modo bem diferente. Numa delas os grandes inimigos são os mortos. Ainda que se trate de sua mãe, seu pai, seu filho ou seu melhor amigo, ao morrer todos eles se transformam no seu pior inimigo, inimigo a ser evitado, combatido e temido. Seria a mesma idéia que sustenta os filmes e seriados de zumbis: “todos os vivos” contra “todos os mortos”. Toda a energia social, neste caso, é canalizada para evitar a morte, ou seja, evitar que o exército dos mortos amplie e se fortaleça.
Tal concepção, pelo que compreendi, também muda toda a forma de relação social. Nessa tribo não é concebível, por exemplo, qualquer tipo de luta ou conflito entre vivos que possa resultar em risco de morte. Assassinatos, por exemplo, seriam atos impensáveis, afinal, porque alguém iria querer fortalecer o inimigo? Imagino que este raciocínio valha também para os suicídios. No caso das doenças ou atividades que envolvam risco, elas são sempre interpretadas como armadilhas dos mortos para levar os vivos para o outro lado, exigindo sempre cuidado extra dos membros da tribo. E não um cuidado individual, mas um cuidado coletivo, já que a morte de um membro torna-se um risco para todos.
Adorei pensar sob a perspectiva desta tribo e agora, depois do argumento da minha pequena sabida, tal perspectiva faz ainda mais sentido. Entendo que a grande ética que deve sustentar a existência humana seria aquela capaz de investir todos os nossos esforços - sociais, culturais ou tecnológicos - para não morrer. Mas fazendo uso do modo de pensar da tribo citada, não se trata apenas de evitar a morte individual (nisso nossa sociedade é especialista). Também não se trata de evitar a morte apenas dos nossos pares, os membros da nossa comunidade, nossos compatriotas ou aliados políticos e religiosos. A idéia central seria todos os vivos combatendo toda a espécie de morte, o que implicaria numa ética que procurasse fazer de tudo para que todos os seres vivos (humanos ou não) pudessem ter o mais plenamente possível a possibilidade de não morrer, enquanto indivíduo, enquanto corpo social, enquanto comunidade ou enquanto espécie, ainda que saibamos que se trata apenas de um adiamento, um esforço para protelar o inevitável. Não morrer e não deixar morrer - seria este o princípio maior.
Voltando à discussão filosófica levantada pela minha caçula, já disse que concordamos que não há nada mais importante que não morrer. Mas o que talvez ela não saiba, e, certamente aprenderá, comigo inclusive, é que não morrer não é o mesmo que sobreviver. Não morrer é muito mais complexo. Por isso, fazer ou não fazer o Dever de Casa, assim como fazer ou deixar de fazer tantas outras coisas, se tornam também, ao longo de nossas vidas, formas de não morrer. Um exercício cotidiano, contínuo e persistente de resistir à morte ainda que estejamos todos, invariavelmente, caminhando para ela. E se aprendermos com nossos sábios irmãos índios, entenderemos que esse exercício de não morrer só funciona se o fizermos pensando na coletividade.
(A quem possa interessar, segue o link da conferência citada: http://www.youtube.com/watch?v=Zdz8U9_8YVU )
sábado, 30 de junho de 2012
Discurso na inauguração da nova sede do CAPS CasAberta Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado"
Lima Duarte, 29 de junho e 2012
Este é um dia muito especial para todos nós aqui presentes, especialmente para os que, de alguma maneira, contribuíram para a realização deste sonho. O CAPS de Lima Duarte foi construído a muitas mãos. Participaram de sua construção não apenas aqueles que ergueram essas paredes, que lhe deram forma, textura, luz e colorido. Ele também não é fruto apenas dos seus idealizadores aqui do município de Lima Duarte. Este sonho, aqui materializado, carrega consigo uma história longa, intensa e muito bonita. História de muita luta, engajamento e trabalho árduo. História de homens e mulheres que acreditaram na utopia de um mundo melhor, mais solidário, mais igualitário e menos excludente. Portanto, cada tijolo que aqui foi erguido começou a tomar forma há muito tempo atrás, ainda na década de 70, quando as atrocidades e desumanidades cometidas nos manicômios começaram a ser questionadas e enfrentadas, dando forma a um dos maiores movimentos sociais que o Brasil já conheceu: o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial.
Engana-se quem acredita que esses tijolos são feitos apenas de barro. São tijolos feitos de fé e esperança, mas também com o sofrimento e a agonia daqueles doentes mentais e de suas famílias que não puderam partilhar da felicidade de serem tratados com zelo, carinho, respeito e humanidade. As vigas e estruturas que sustentam esta casa foram feitas com materiais inventados nos idos de 1987, na criação do primeiro CAPS do Brasil. As paredes que contornam esta casa não levam apenas água areia e cimento. Na verdade, o cimento que faz a liga dessas paredes é amor muito amor, amor que une, que aproxima, que agrega, que fortalece e que cria laços. O telhado que protege este CAPS, hoje batizado com o nome do Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado, é feito com a força, o empenho e a dedicação de todos aqueles que como ele, não mediram esforços para que a Saúde Pública do nosso país tivesse êxito. Dedicação como a de Pedro Gabriel (aqui presente) e Paulo Delgado, que tanto fizeram pela Saúde Mental brasileira e que temos a honra e o orgulho de chamarmos de filhos desta terra mineira. As cores que iluminam este que será o novo lar da Saúde Mental da nossa região foram conseguidas a partir de muito trabalho intelectual, tecidos dentro dos próprios serviços de saúde mental e nas várias instituições de ensino e pesquisa espalhados pelo Brasil. Estudos que inventaram novos conceitos, estratégias e metodologias de cuidado e tratamento. E o chão que caminharemos no dia a dia do nosso trabalho como técnico de saúde mental na nossa nova casa é um chão já trilhado por muitos outros técnicos de saúde mental que como nós fizeram dessa causa, a causa de sua vida.
Falta ainda dizer o motivo pelo qual tudo isso foi construído e idealizado. Falta mencionar os que provocaram todo esse movimento e que acabaram por nos possibilitar vivenciar este e tanto outros momentos ímpares. Alguns os chamam de loucos, outros os chamam de doentes mentais, mas na verdade trata-se apenas de homens e mulheres, que assim como todos nós, estão procurando entender esse mundo, ora encantador, ora estranho e ameaçador. Esses homens e mulheres quase sempre acreditam que participam do cotidiano do CAPS para aprender, mas o fato é que nós também aprendemos muito nesse compartilhar. Buscamos por dinheiro, beleza, sabedoria, conforto, poder, fama, prazeres, mas aprendemos com essas pessoas que nada disso tem valor se não tivermos o essencial: amor, afeto e carinho. Aprendemos com eles que sem a força do laço que nos une numa família, numa comunidade, numa rede de amigos, ou em qualquer outra forma de relação coletiva, adoecemos e enlouquecemos todos. Então toda essa obra só foi possível porque decidimos caminhar lado a lado para aprendermos uns com os outros, porque decidimos entender as diferenças como riqueza e não como impedimento para estarmos juntos, porque compreendemos que o mundo sem as loucuras nossas de cada dia ficaria mais pobre e cinza.
Mas esta obra ainda não está pronta, porque ela também carrega o anseio de tudo que ainda temos por fazer no âmbito das políticas de saúde mental, e todo desejo que temos de que o SUS, nosso valioso sistema de saúde público, continue a sustentar o sonho de promover uma saúde que não tenha preço e que não esteja à venda. Trata-se, portanto, de uma obra inacabada que a sociedade como um todo precisa manter em processo de construção.
Encerro minha fala com a contribuição de um dos nossos usuários que traduziu como ninguém qual é a função e o lugar de um CAPS no seu território de abrangência. Certa vez ao perguntar por que estava sumido ele me disse algo mais ou menos assim: “É Dra. Rita eu já vim muito aqui no CAPS, mas agora venho só de vez em quando porque estou bem. Mas eu fico tranqüilo só de saber que o CAPS continua aqui, porque se eu pirar de novo é pra cá que eu quero vir.” Então eu digo a vocês que agora, mais do que nunca, o CAPS “Geninho” está plantado aqui e se acaso alguém de vocês enlouquecer de alguma maneira, nossas portas estarão abertas para recebê-los.
Rita de Cássia de A. Almeida
Coordenadora de Saúde Mental de Lima Duarte
Coordenadora do CAPS CasAberta Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado “Geninho”
Este é um dia muito especial para todos nós aqui presentes, especialmente para os que, de alguma maneira, contribuíram para a realização deste sonho. O CAPS de Lima Duarte foi construído a muitas mãos. Participaram de sua construção não apenas aqueles que ergueram essas paredes, que lhe deram forma, textura, luz e colorido. Ele também não é fruto apenas dos seus idealizadores aqui do município de Lima Duarte. Este sonho, aqui materializado, carrega consigo uma história longa, intensa e muito bonita. História de muita luta, engajamento e trabalho árduo. História de homens e mulheres que acreditaram na utopia de um mundo melhor, mais solidário, mais igualitário e menos excludente. Portanto, cada tijolo que aqui foi erguido começou a tomar forma há muito tempo atrás, ainda na década de 70, quando as atrocidades e desumanidades cometidas nos manicômios começaram a ser questionadas e enfrentadas, dando forma a um dos maiores movimentos sociais que o Brasil já conheceu: o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial.
Engana-se quem acredita que esses tijolos são feitos apenas de barro. São tijolos feitos de fé e esperança, mas também com o sofrimento e a agonia daqueles doentes mentais e de suas famílias que não puderam partilhar da felicidade de serem tratados com zelo, carinho, respeito e humanidade. As vigas e estruturas que sustentam esta casa foram feitas com materiais inventados nos idos de 1987, na criação do primeiro CAPS do Brasil. As paredes que contornam esta casa não levam apenas água areia e cimento. Na verdade, o cimento que faz a liga dessas paredes é amor muito amor, amor que une, que aproxima, que agrega, que fortalece e que cria laços. O telhado que protege este CAPS, hoje batizado com o nome do Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado, é feito com a força, o empenho e a dedicação de todos aqueles que como ele, não mediram esforços para que a Saúde Pública do nosso país tivesse êxito. Dedicação como a de Pedro Gabriel (aqui presente) e Paulo Delgado, que tanto fizeram pela Saúde Mental brasileira e que temos a honra e o orgulho de chamarmos de filhos desta terra mineira. As cores que iluminam este que será o novo lar da Saúde Mental da nossa região foram conseguidas a partir de muito trabalho intelectual, tecidos dentro dos próprios serviços de saúde mental e nas várias instituições de ensino e pesquisa espalhados pelo Brasil. Estudos que inventaram novos conceitos, estratégias e metodologias de cuidado e tratamento. E o chão que caminharemos no dia a dia do nosso trabalho como técnico de saúde mental na nossa nova casa é um chão já trilhado por muitos outros técnicos de saúde mental que como nós fizeram dessa causa, a causa de sua vida.
Falta ainda dizer o motivo pelo qual tudo isso foi construído e idealizado. Falta mencionar os que provocaram todo esse movimento e que acabaram por nos possibilitar vivenciar este e tanto outros momentos ímpares. Alguns os chamam de loucos, outros os chamam de doentes mentais, mas na verdade trata-se apenas de homens e mulheres, que assim como todos nós, estão procurando entender esse mundo, ora encantador, ora estranho e ameaçador. Esses homens e mulheres quase sempre acreditam que participam do cotidiano do CAPS para aprender, mas o fato é que nós também aprendemos muito nesse compartilhar. Buscamos por dinheiro, beleza, sabedoria, conforto, poder, fama, prazeres, mas aprendemos com essas pessoas que nada disso tem valor se não tivermos o essencial: amor, afeto e carinho. Aprendemos com eles que sem a força do laço que nos une numa família, numa comunidade, numa rede de amigos, ou em qualquer outra forma de relação coletiva, adoecemos e enlouquecemos todos. Então toda essa obra só foi possível porque decidimos caminhar lado a lado para aprendermos uns com os outros, porque decidimos entender as diferenças como riqueza e não como impedimento para estarmos juntos, porque compreendemos que o mundo sem as loucuras nossas de cada dia ficaria mais pobre e cinza.
Mas esta obra ainda não está pronta, porque ela também carrega o anseio de tudo que ainda temos por fazer no âmbito das políticas de saúde mental, e todo desejo que temos de que o SUS, nosso valioso sistema de saúde público, continue a sustentar o sonho de promover uma saúde que não tenha preço e que não esteja à venda. Trata-se, portanto, de uma obra inacabada que a sociedade como um todo precisa manter em processo de construção.
Encerro minha fala com a contribuição de um dos nossos usuários que traduziu como ninguém qual é a função e o lugar de um CAPS no seu território de abrangência. Certa vez ao perguntar por que estava sumido ele me disse algo mais ou menos assim: “É Dra. Rita eu já vim muito aqui no CAPS, mas agora venho só de vez em quando porque estou bem. Mas eu fico tranqüilo só de saber que o CAPS continua aqui, porque se eu pirar de novo é pra cá que eu quero vir.” Então eu digo a vocês que agora, mais do que nunca, o CAPS “Geninho” está plantado aqui e se acaso alguém de vocês enlouquecer de alguma maneira, nossas portas estarão abertas para recebê-los.
Rita de Cássia de A. Almeida
Coordenadora de Saúde Mental de Lima Duarte
Coordenadora do CAPS CasAberta Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado “Geninho”
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Porque amamos os super-heróis?
Por Rita de Cássia de A Almeida
Psicanalista
Eu também adoro os super-heróis, especialmente os atormentados, os que têm dúvidas sobre os próprios poderes, os humanos o suficiente para nunca estarem totalmente certos se tais poderes são uma benção ou uma maldição.
Ultimamente têm se produzido muitos filmes protagonizados pelos clássicos heróis dos quadrinhos. Gosto particularmente, daqueles que vão além dos efeitos especiais e da eterna e manjada luta do bem contra o mal e se dedicam a nos revelar a mente atormentada do protagonista, suas fragilidades e, sobretudo, o ônus imposto pelos poderes que receberam, quase sempre, sem o direito de escolha.
A trilogia do Homem-Aranha é um bom exemplo do tipo de filme que sabe explorar muito bem esse aspecto. Demonstra a contradição vivida pelo herói, da leveza ao saltar pelos prédios da cidade para o peso da responsabilidade que lhe recai sobre os ombros: “grandes poderes, grandes responsabilidades”.
Wolverine, o herói mutante, também tem um perfil bastante interessante e bem trabalhado nos filmes da série X-Man. Sempre pouco a vontade na sua condição de herói, tem ainda uma característica peculiar: não consegue usar seus poderes sem sentir dor. É capaz de curar-se rapidamente de qualquer ferimento, mas não é imune a dor, sendo assim, todas as vezes que aciona suas garras de adamantium elas rasgam sua carne e provocam uma dor lancinante, que ele apenas aprendeu a suportar. Carregar satisfação e dor no mesmo pacote também é humano, demasiado humano. Não é incomum que aquilo que nos cause muita satisfação carregue consigo, acesso a dores insuportáveis.
Mas de todos os heróis atormentados Hulk é o meu preferido. Uma pena os últimos filmes deste herói terem explorado mais seus músculos que sua mente atribulada, quase esquizóide. Prefiro o Hulk da década de 80, estrela do seriado Incrível Hulk, de muito sucesso na época. No seriado, Dr. Bruce Banner é um médico cientista que, depois de uma superexposição aos raios gama experimenta uma transformação intensa no corpo - acompanhada de força, resistência e vigor sobre-humanos - sempre que fica com raiva. Raiva essa que nosso herói sempre tenta, mas, nunca consegue controlar. Sendo assim, os atos heróicos do monstro verde, que sempre surge após um acesso de ira, sempre são vistos por Dr. Banner como um erro, um fracasso na tentativa de controlar-se. Fracasso que ele tenta resolver se mudando de uma cidade para outra sempre que Hulk se revela, numa tentativa, também fracassada, de fugir de si mesmo. No final de todo episódio da série, repetia-se a cena de Banner pedindo carona na estrada em direção incerta, cena embalada por uma musiquinha melancólica, aliás, inesquecível.
O que torna Hulk tão especial, a meu ver, é que, diferentemente dos demais heróis, a natureza de seus poderes é involuntária, ou seja, Banner tem muito pouco ou nenhum controle sobre eles. Hulk é para Banner um outro, um estranho. Neste caso, Banner não goza do poder que lhe foi dado, ao contrário, é o poder de Hulk que goza dele, do seu corpo e da sua vida. Nada mais humano que isso, não?
É dito que somos animais racionais, o que supostamente nos possibilitaria ter o controle sobre nossos instintos, paixões e emoções, mas a verdade é que, a todo momento, somos tomados, atropelados por um outro que nossa razão é incapaz de controlar. O tal monstro verde invariavelmente rouba a cena e aí falamos ou fazemos o que não queríamos, poderíamos ou deveríamos falar ou fazer. Mas existe uma pergunta que Banner certamente se faz e que torna seu tormento ainda mais especial e interessante: sua verdade está em Hulk ou no Dr. Banner? Será ele é um Hulk reprimido por Banner ou um Banner atormentado por Hulk? Essa também é uma dúvida que sempre nos atormenta. Quando falamos ou fazemos algo que não queríamos, onde está o nosso eu? No que estava controlado pela razão ou no que conseguiu escapar dela?
O que me provocou a escrever este texto foi o filme - Os Vingadores - lançado nas últimas semanas, e que eu gostei muito, aliás. Gostei, em especial, pelo Hulk do filme, porque ficou psicologicamente mais parecido com aquele do seriado da década de 80. Dr. Banner, antes de ser convidado para compor o grupo dos Vingadores, encontra-se recluso na Índia, exercendo caridosamente a medicina, evitando assim os estresses que trazem Hulk para a superfície. Fica claro no filme que Banner só aceita se unir aos Vingadores porque lhe garantem que o interesse deles é por seu conhecimento a respeito dos raios gama, ou seja, Hulk não será necessário. Neste momento fica evidente: é Banner negando Hulk.
Mas a maior sacada do filme começa numa conversa entre Tony (o Homem de Ferro) e Dr. Banner, na qual este último, ao tratar de sua condição, se refere ao Hulk como “o outro cara”. Tony, por sua vez, ao perceber o incômodo que Hulk é para Banner, relata a este sua própria experiência de também possuir um estranho em seu corpo, no seu caso, o pequeno dispositivo eletrônico que carrega no peito e que mantém seu coração batendo. O que Tony quer mostrar a Banner é que o mesmo estranho responsável por lhe tornar uma aberração, também é o que lhe possibilitou estar vivo. O médico então conclui: - Você está dizendo que Hulk foi o quem me salvou de sucumbir aos raios gama? Tony não responde... Nem é necessário.
O filme segue e, mais tarde, como era previsível, Hulk irrompe no corpo de Dr. Banner depois que este fica perigosamente preso sob uma viga. E após dar vazão a toda a sua ira, destruindo tudo por onde passa, Hulk se retira para longe, a fim de se acalmar e permitir, então, que Banner retorne. Durante sua ausência, o filme segue e chega ao seu clímax: a aguardada luta do bem contra o mal. E é quando os demais Vingadores já se ocupam desta batalha que Banner aparece entre eles, numa motocicleta. Ao vê-lo chegar em sua frágil forma humana, o Homem de Ferro sabiamente recomenda: - Acho bom você começar a ficar com raiva. E a resposta de Banner é genial, e a meu ver, vale por todo o filme. Ele diz: - Vou te contar meu segredo, (e diz isso enquanto vai se transformando no temível monstro verde e parte com sua fúria para socar o inimigo que avança sobre todos), eu sinto raiva o tempo todo. A cena é genial, porque esta frase é iniciada por Banner e finalizada por Hulk. É possível enxergar nela nosso herói atravessando seu fantasma, se apropriando de sua raiva, aquela que vinha tentando de toda maneira negar e esconder. Vemos Banner convocando e assumindo Hulk, e Hulk raciocinando e falando como Banner. Ali não se trata mais de Banner ou Hulk, mas de uma síntese que inclui Banner e Hulk.
Freud, com seu conceito de inconsciente, nos fez compreender que, ao contrário do que tendemos a crer, o eu não é o senhor em sua própria casa. Lacan, em sua releitura de Freud, também vai tratar desta divisão do sujeito afirmando que o sujeito pensa onde não está e está onde não pensa, nos fazendo concluir que o sujeito, na verdade, está nos dois lugares. Partindo dessa premissa da psicanálise poderíamos então concluir que a verdade do meu herói preferido está em Banner e em Hulk, ou seja, ambos são importantes e necessários. A força de Banner está na ira incontrolável de Hulk e a razão de Hulk provavelmente está na inteligência racional de Banner.
Possivelmente amamos os heróis porque nos identificamos com eles. Também recebemos nossos poderes, não tão extraordinários, é bem verdade, mas igualmente perturbadores. Poderes que, às vezes, nos parecem ser nosso maior defeito, mas ao mesmo tempo os responsáveis por nossos maiores êxitos e vitórias. E como fazer se nossa mais potente força é também, nossa pior maldição? O Hulk dos Vingadores nos dá a dica.
Psicanalista
Eu também adoro os super-heróis, especialmente os atormentados, os que têm dúvidas sobre os próprios poderes, os humanos o suficiente para nunca estarem totalmente certos se tais poderes são uma benção ou uma maldição.
Ultimamente têm se produzido muitos filmes protagonizados pelos clássicos heróis dos quadrinhos. Gosto particularmente, daqueles que vão além dos efeitos especiais e da eterna e manjada luta do bem contra o mal e se dedicam a nos revelar a mente atormentada do protagonista, suas fragilidades e, sobretudo, o ônus imposto pelos poderes que receberam, quase sempre, sem o direito de escolha.
A trilogia do Homem-Aranha é um bom exemplo do tipo de filme que sabe explorar muito bem esse aspecto. Demonstra a contradição vivida pelo herói, da leveza ao saltar pelos prédios da cidade para o peso da responsabilidade que lhe recai sobre os ombros: “grandes poderes, grandes responsabilidades”.
Wolverine, o herói mutante, também tem um perfil bastante interessante e bem trabalhado nos filmes da série X-Man. Sempre pouco a vontade na sua condição de herói, tem ainda uma característica peculiar: não consegue usar seus poderes sem sentir dor. É capaz de curar-se rapidamente de qualquer ferimento, mas não é imune a dor, sendo assim, todas as vezes que aciona suas garras de adamantium elas rasgam sua carne e provocam uma dor lancinante, que ele apenas aprendeu a suportar. Carregar satisfação e dor no mesmo pacote também é humano, demasiado humano. Não é incomum que aquilo que nos cause muita satisfação carregue consigo, acesso a dores insuportáveis.
Mas de todos os heróis atormentados Hulk é o meu preferido. Uma pena os últimos filmes deste herói terem explorado mais seus músculos que sua mente atribulada, quase esquizóide. Prefiro o Hulk da década de 80, estrela do seriado Incrível Hulk, de muito sucesso na época. No seriado, Dr. Bruce Banner é um médico cientista que, depois de uma superexposição aos raios gama experimenta uma transformação intensa no corpo - acompanhada de força, resistência e vigor sobre-humanos - sempre que fica com raiva. Raiva essa que nosso herói sempre tenta, mas, nunca consegue controlar. Sendo assim, os atos heróicos do monstro verde, que sempre surge após um acesso de ira, sempre são vistos por Dr. Banner como um erro, um fracasso na tentativa de controlar-se. Fracasso que ele tenta resolver se mudando de uma cidade para outra sempre que Hulk se revela, numa tentativa, também fracassada, de fugir de si mesmo. No final de todo episódio da série, repetia-se a cena de Banner pedindo carona na estrada em direção incerta, cena embalada por uma musiquinha melancólica, aliás, inesquecível.
O que torna Hulk tão especial, a meu ver, é que, diferentemente dos demais heróis, a natureza de seus poderes é involuntária, ou seja, Banner tem muito pouco ou nenhum controle sobre eles. Hulk é para Banner um outro, um estranho. Neste caso, Banner não goza do poder que lhe foi dado, ao contrário, é o poder de Hulk que goza dele, do seu corpo e da sua vida. Nada mais humano que isso, não?
É dito que somos animais racionais, o que supostamente nos possibilitaria ter o controle sobre nossos instintos, paixões e emoções, mas a verdade é que, a todo momento, somos tomados, atropelados por um outro que nossa razão é incapaz de controlar. O tal monstro verde invariavelmente rouba a cena e aí falamos ou fazemos o que não queríamos, poderíamos ou deveríamos falar ou fazer. Mas existe uma pergunta que Banner certamente se faz e que torna seu tormento ainda mais especial e interessante: sua verdade está em Hulk ou no Dr. Banner? Será ele é um Hulk reprimido por Banner ou um Banner atormentado por Hulk? Essa também é uma dúvida que sempre nos atormenta. Quando falamos ou fazemos algo que não queríamos, onde está o nosso eu? No que estava controlado pela razão ou no que conseguiu escapar dela?
O que me provocou a escrever este texto foi o filme - Os Vingadores - lançado nas últimas semanas, e que eu gostei muito, aliás. Gostei, em especial, pelo Hulk do filme, porque ficou psicologicamente mais parecido com aquele do seriado da década de 80. Dr. Banner, antes de ser convidado para compor o grupo dos Vingadores, encontra-se recluso na Índia, exercendo caridosamente a medicina, evitando assim os estresses que trazem Hulk para a superfície. Fica claro no filme que Banner só aceita se unir aos Vingadores porque lhe garantem que o interesse deles é por seu conhecimento a respeito dos raios gama, ou seja, Hulk não será necessário. Neste momento fica evidente: é Banner negando Hulk.
Mas a maior sacada do filme começa numa conversa entre Tony (o Homem de Ferro) e Dr. Banner, na qual este último, ao tratar de sua condição, se refere ao Hulk como “o outro cara”. Tony, por sua vez, ao perceber o incômodo que Hulk é para Banner, relata a este sua própria experiência de também possuir um estranho em seu corpo, no seu caso, o pequeno dispositivo eletrônico que carrega no peito e que mantém seu coração batendo. O que Tony quer mostrar a Banner é que o mesmo estranho responsável por lhe tornar uma aberração, também é o que lhe possibilitou estar vivo. O médico então conclui: - Você está dizendo que Hulk foi o quem me salvou de sucumbir aos raios gama? Tony não responde... Nem é necessário.
O filme segue e, mais tarde, como era previsível, Hulk irrompe no corpo de Dr. Banner depois que este fica perigosamente preso sob uma viga. E após dar vazão a toda a sua ira, destruindo tudo por onde passa, Hulk se retira para longe, a fim de se acalmar e permitir, então, que Banner retorne. Durante sua ausência, o filme segue e chega ao seu clímax: a aguardada luta do bem contra o mal. E é quando os demais Vingadores já se ocupam desta batalha que Banner aparece entre eles, numa motocicleta. Ao vê-lo chegar em sua frágil forma humana, o Homem de Ferro sabiamente recomenda: - Acho bom você começar a ficar com raiva. E a resposta de Banner é genial, e a meu ver, vale por todo o filme. Ele diz: - Vou te contar meu segredo, (e diz isso enquanto vai se transformando no temível monstro verde e parte com sua fúria para socar o inimigo que avança sobre todos), eu sinto raiva o tempo todo. A cena é genial, porque esta frase é iniciada por Banner e finalizada por Hulk. É possível enxergar nela nosso herói atravessando seu fantasma, se apropriando de sua raiva, aquela que vinha tentando de toda maneira negar e esconder. Vemos Banner convocando e assumindo Hulk, e Hulk raciocinando e falando como Banner. Ali não se trata mais de Banner ou Hulk, mas de uma síntese que inclui Banner e Hulk.
Freud, com seu conceito de inconsciente, nos fez compreender que, ao contrário do que tendemos a crer, o eu não é o senhor em sua própria casa. Lacan, em sua releitura de Freud, também vai tratar desta divisão do sujeito afirmando que o sujeito pensa onde não está e está onde não pensa, nos fazendo concluir que o sujeito, na verdade, está nos dois lugares. Partindo dessa premissa da psicanálise poderíamos então concluir que a verdade do meu herói preferido está em Banner e em Hulk, ou seja, ambos são importantes e necessários. A força de Banner está na ira incontrolável de Hulk e a razão de Hulk provavelmente está na inteligência racional de Banner.
Possivelmente amamos os heróis porque nos identificamos com eles. Também recebemos nossos poderes, não tão extraordinários, é bem verdade, mas igualmente perturbadores. Poderes que, às vezes, nos parecem ser nosso maior defeito, mas ao mesmo tempo os responsáveis por nossos maiores êxitos e vitórias. E como fazer se nossa mais potente força é também, nossa pior maldição? O Hulk dos Vingadores nos dá a dica.
sábado, 7 de abril de 2012
Drogas e situação de rua: o “Consultório de Rua” como estratégia.
Por: Rita de Cássia Araújo Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental - SUS
Esta semana tive a grata satisfação de participar de uma reunião entre o Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora e a Secretaria de Assistência Social, cujo objetivo era apresentar o “Consultório de Rua”: modalidade de intervenção implantada no município há cerca de dois meses, com o propósito de ofertar ações de proteção, promoção, cuidado e prevenção em saúde para população em situação de rua.
O “Consultório de Rua” é uma experiência que surgiu no final da década de 90, em Salvador, com a finalidade de atender a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social, agravados pelo do uso ou dependência de drogas. A ideia é a de um consultório a céu aberto, itinerante, provido de equipe multiprofissional, que ofereça atendimento no contexto de vida do sujeito em situação de rua, promovendo acessibilidade a serviços de saúde e assistência, garantindo cidadania e exercício de direitos, e resgatando os laços familiares, comunitários e/ou sociais. Os princípios que norteiam tal estratégia são os mesmos do SUS – universalidade, equidade e integralidade – e outros não menos importantes: respeito ao modo de vida do sujeito, respeito aos direitos humanos e a utilização da estratégia de redução de danos.
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a eles: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado genericamente de “cracolândia”. Muitos municípios estão optando por estratégias meramente higienistas para intervir nesses espaços, sendo que elas podem ser de dois tipos: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação.
Os resultados dessas estratégias higienistas são semelhantes àqueles que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória. As intervenções baseadas no recolhimento se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde: é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma "doença" onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. No caso das drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Os “Consultórios de Rua”, por sua vez, apostam nas pontes. Pontes que acolhem ao invés de recolher e aproximam ao invés de espantar. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Mas, enfim, se estamos procurando as estratégias mais eficientes, estruturadas e duradouras não podemos recuar diante das dificuldades e fico feliz que meu município não tenha recuado. E espero, ansiosamente, que muito mais pontes como essa sejam construídas.
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental - SUS
Esta semana tive a grata satisfação de participar de uma reunião entre o Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora e a Secretaria de Assistência Social, cujo objetivo era apresentar o “Consultório de Rua”: modalidade de intervenção implantada no município há cerca de dois meses, com o propósito de ofertar ações de proteção, promoção, cuidado e prevenção em saúde para população em situação de rua.
O “Consultório de Rua” é uma experiência que surgiu no final da década de 90, em Salvador, com a finalidade de atender a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social, agravados pelo do uso ou dependência de drogas. A ideia é a de um consultório a céu aberto, itinerante, provido de equipe multiprofissional, que ofereça atendimento no contexto de vida do sujeito em situação de rua, promovendo acessibilidade a serviços de saúde e assistência, garantindo cidadania e exercício de direitos, e resgatando os laços familiares, comunitários e/ou sociais. Os princípios que norteiam tal estratégia são os mesmos do SUS – universalidade, equidade e integralidade – e outros não menos importantes: respeito ao modo de vida do sujeito, respeito aos direitos humanos e a utilização da estratégia de redução de danos.
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a eles: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado genericamente de “cracolândia”. Muitos municípios estão optando por estratégias meramente higienistas para intervir nesses espaços, sendo que elas podem ser de dois tipos: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação.
Os resultados dessas estratégias higienistas são semelhantes àqueles que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória. As intervenções baseadas no recolhimento se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde: é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma "doença" onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. No caso das drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Os “Consultórios de Rua”, por sua vez, apostam nas pontes. Pontes que acolhem ao invés de recolher e aproximam ao invés de espantar. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Mas, enfim, se estamos procurando as estratégias mais eficientes, estruturadas e duradouras não podemos recuar diante das dificuldades e fico feliz que meu município não tenha recuado. E espero, ansiosamente, que muito mais pontes como essa sejam construídas.
sábado, 24 de março de 2012
"Incêndios"
Por Rita de Cássia Araújo Almeida
Psicanalista
Ao acessar a palavra o ser humano perdeu o paraíso para sempre, ou seja, a realidade tornou-se a partir de então, inacessível. E uma das conseqüências do acesso humano à dimensão simbólica da palavra é que toda história de vida é sempre uma ficção. Sempre. Não habitamos o mundo real, habitamos a palavra. E na medida em que é uma ficção, toda história de vida pode ser recontada, até o último momento, ou até mesmo depois da morte.
“Incêndios”, filme de Denis Villeneuve, trata desse tema de maneira brilhante, tão brilhante que quase nos sufoca (talvez seja esse o motivo do título do filme)
A psicanálise se baseia exatamente nessa premissa: a de que a ficção na qual existência de um sujeito se sustenta pode ser reelaborada, redimensionada, reconstruída, reinventada, recontada, sem, obviamente jamais perder a condição de uma ficção. Mas afinal, qual o motor responsável por possibilitar que uma história possa ser recontada? Freud chamou isso de transferência. Propôs então, uma técnica onde o analista se colocaria na condição de suportar a transferência do analisando, que poderia, nessa posição, recontar a própria história. A transferência freudiana, no entanto, nada mais é que um outro nome para o amor. E o que é o amor? A melhor definição de amor para nosso propósito aqui é a de Lacan: “o amor é dar o que não se tem”. Em outras palavras, só é capaz de amar aquele que acredita que alguma coisa lhe falta, ou seja, quem acredita estar completo, pronto e acabado, é incapaz de amar.
Temos assim que o amor é profundamente revolucionário, apenas ele pode dar ao sujeito possibilidade de mudar sua própria história e a história daqueles que o cercam, porque somente por meio amor nos mantemos incompletos, no entendimento de que a nossa história de vida ainda não está pronta, acabada e definida. É somente o amor que nos abre a possibilidade de que alguma coisa ainda está por vir. Pode haver algo mais revolucionário que isso?
Voltando ao filme,“Incêndios” conta a história de uma mulher, Nawal Marwan, que tem sua história recontada com a ajuda dos filhos, Jeanne e Simon, e cujo ponto de partida é a leitura do seu testamento. Nawal Marwan é movida pelo amor, ou seja, por uma falta: a perda de um filho que passou a vida procurando. Ao viabilizar esse reencontro com o filho perdido pela mão de seus filhos, já que ela mesma está morta, nossa heroína provoca uma revolução tão intensa que é capaz de modificar não apenas a sua própria história, mas a que é contada antes dela e a que será contada depois de sua morte, por seus filhos e netos, e todas as gerações que lhe sucederem. Nawal Marwan nos faz entender que a história de uma vida não inicia com um nascimento biológico e nem termina com a morte, já estava sendo contada antes e, certamente, continuará sendo contada depois. A tragédia que o filme aborda, trata da limitação da nossa existência biológica, e ao mesmo tempo toca na dimensão da eternidade que pode ser alcançada no plano simbólico, quando o amor cria uma falta suficiente para impedir que uma história seja completada, ou seja, chegue ao seu fim.
Nawal Marwan afirma, em certo momento, que o amor foi capaz de arrebentar a corrente do ódio. O ódio ao qual ela se refere é aquele que alimenta os conflitos e guerras em sua terra natal, a Palestina, ódio no qual sua própria história está incrustada. Enquanto o ódio apenas lhe permitia repetir uma história que já havia antes dela mesma, o amor produz em Nawal Marwan um movimento libertador e revolucionário, o de que sua história não está pronta e definida, não está completa, podendo, por isso, ser modificada.
“Incêndios” nos arrebata de muitas maneiras diferentes. A partir dele entendemos que nenhuma tragédia, por mais desgraçada e vil, nunca fica impassível diante do amor. O amor é capaz de reinventar qualquer história, é capaz de sustentar até mesmo uma operação matemática que nos parece absurda; movido pelo amor 1+1 pode ser igual a 1, como nos faz concluir o filme. Enfim entendemos que a morte não é o fim de uma história, a morte chega quando o amor acaba.
Para encerrar, só me resta aplaudir este filme de pé e recomenda-lo. Mas, cuidado, para entrar nesse “Incêndio” recomendo um balão de oxigênio.
Psicanalista
Ao acessar a palavra o ser humano perdeu o paraíso para sempre, ou seja, a realidade tornou-se a partir de então, inacessível. E uma das conseqüências do acesso humano à dimensão simbólica da palavra é que toda história de vida é sempre uma ficção. Sempre. Não habitamos o mundo real, habitamos a palavra. E na medida em que é uma ficção, toda história de vida pode ser recontada, até o último momento, ou até mesmo depois da morte.
“Incêndios”, filme de Denis Villeneuve, trata desse tema de maneira brilhante, tão brilhante que quase nos sufoca (talvez seja esse o motivo do título do filme)
A psicanálise se baseia exatamente nessa premissa: a de que a ficção na qual existência de um sujeito se sustenta pode ser reelaborada, redimensionada, reconstruída, reinventada, recontada, sem, obviamente jamais perder a condição de uma ficção. Mas afinal, qual o motor responsável por possibilitar que uma história possa ser recontada? Freud chamou isso de transferência. Propôs então, uma técnica onde o analista se colocaria na condição de suportar a transferência do analisando, que poderia, nessa posição, recontar a própria história. A transferência freudiana, no entanto, nada mais é que um outro nome para o amor. E o que é o amor? A melhor definição de amor para nosso propósito aqui é a de Lacan: “o amor é dar o que não se tem”. Em outras palavras, só é capaz de amar aquele que acredita que alguma coisa lhe falta, ou seja, quem acredita estar completo, pronto e acabado, é incapaz de amar.
Temos assim que o amor é profundamente revolucionário, apenas ele pode dar ao sujeito possibilidade de mudar sua própria história e a história daqueles que o cercam, porque somente por meio amor nos mantemos incompletos, no entendimento de que a nossa história de vida ainda não está pronta, acabada e definida. É somente o amor que nos abre a possibilidade de que alguma coisa ainda está por vir. Pode haver algo mais revolucionário que isso?
Voltando ao filme,“Incêndios” conta a história de uma mulher, Nawal Marwan, que tem sua história recontada com a ajuda dos filhos, Jeanne e Simon, e cujo ponto de partida é a leitura do seu testamento. Nawal Marwan é movida pelo amor, ou seja, por uma falta: a perda de um filho que passou a vida procurando. Ao viabilizar esse reencontro com o filho perdido pela mão de seus filhos, já que ela mesma está morta, nossa heroína provoca uma revolução tão intensa que é capaz de modificar não apenas a sua própria história, mas a que é contada antes dela e a que será contada depois de sua morte, por seus filhos e netos, e todas as gerações que lhe sucederem. Nawal Marwan nos faz entender que a história de uma vida não inicia com um nascimento biológico e nem termina com a morte, já estava sendo contada antes e, certamente, continuará sendo contada depois. A tragédia que o filme aborda, trata da limitação da nossa existência biológica, e ao mesmo tempo toca na dimensão da eternidade que pode ser alcançada no plano simbólico, quando o amor cria uma falta suficiente para impedir que uma história seja completada, ou seja, chegue ao seu fim.
Nawal Marwan afirma, em certo momento, que o amor foi capaz de arrebentar a corrente do ódio. O ódio ao qual ela se refere é aquele que alimenta os conflitos e guerras em sua terra natal, a Palestina, ódio no qual sua própria história está incrustada. Enquanto o ódio apenas lhe permitia repetir uma história que já havia antes dela mesma, o amor produz em Nawal Marwan um movimento libertador e revolucionário, o de que sua história não está pronta e definida, não está completa, podendo, por isso, ser modificada.
“Incêndios” nos arrebata de muitas maneiras diferentes. A partir dele entendemos que nenhuma tragédia, por mais desgraçada e vil, nunca fica impassível diante do amor. O amor é capaz de reinventar qualquer história, é capaz de sustentar até mesmo uma operação matemática que nos parece absurda; movido pelo amor 1+1 pode ser igual a 1, como nos faz concluir o filme. Enfim entendemos que a morte não é o fim de uma história, a morte chega quando o amor acaba.
Para encerrar, só me resta aplaudir este filme de pé e recomenda-lo. Mas, cuidado, para entrar nesse “Incêndio” recomendo um balão de oxigênio.
quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
Porqué yo apoyo a Cuba.
Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicoanalista
Traducción Franco López Marín
Periodista
Texto em português: http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com/2012/02/sobre-ultimos-soldados-da-guerra-fria-e.html
”Os Últimos Soldados da Guerra Fria” de Fernando Morais es un libro extraordinario. Si no supiéramos que está siendo contado por el autor, tras un fruto de años de trabajo e investigación, podríamos considerarlo como un excelente romance de espías. Sin embargo, no se trata de ficción. La intención del autor es retratar (partiendo de evidencias, registros, documentos, noticias de diarios y relatos de los propios personajes) el escenario político mundial al final de la Guerra Fría. Siendo Cuba y Estados Unidos los protagonistas, lo que vuelve aún más cautivante la obra.
Cuenta la historia que, después de la caída de la Unión Soviética, Cuba se dedicó a estimular el turismo, como una forma de aminorar la crisis económica que se agravaba en la isla, ya que aquel país era su principal socio económico. Durante ese período, grupos anticastristas radicales de Floridad aprovecharon para promover atentados terroristas contra Cuba, con la clara intención de asustar a los turistas, debilitando el gobierno de Fidel Castro. En cinco años, fueron 127 ataques y a pesar de las decenas de reclamos oficiales enviados por Cuba al gobierno estadounidense, ninguna medida fue tomada para reprimirlos.
Fidel llegó a enviar una carta a Bill Clinton, entonces presidente, denunciando organizaciones de extrema derecha que funcionaban en territorio americano, teniendo incluso como ‘palomo mensajero’ a nada menos que Gabriel García Márquez. En esa carta, Fidel da prácticamente una profecía. Al pedir que Clinton se empeñe en abortar las acciones terroristas que estaban siendo maquinada en EE.UU. Fidel defendía que si las medidas no iban a ser tomadas, ‘cualquier país del mundo podrá ser víctima de tales actos’. Años más tarde, como sabemos, EE.UU. serían víctima de atentados terroristas. Sin el apoyo de los EE.UU. y de las organizaciones internacionales, Cuba decir tomar providencias por si misma y crea la Red Vespa: un grupo selecto de doce hombres y dos mujeres que reciben la misión de infiltrarse en algunas de las 41 organizaciones terroristas de extrema derecha en los Estados Unidos, a fin de recoger informaciones que pudiesen anticipar posibles ataques. El libro cuenta, justamente, la increíble historia de esos “soldados” enviados por Fidel a EE.UU., todos travestidos de desertores del régimen cubano.
El libro de Morais nos provoca innumerables emociones, siendo que algunas de ellas nos afectarán con mayor fuerza a nosotros, militantes o partidarios de Izquierda. Y el mayor mérito del libro es contar la historia de las relaciones entre EE.UU. y Cuba de otra perspectiva, diferente de la estadounidense que la gran mayoría acepta como única, sólo por ser considerada la versión oficial. Terminada la lectura, incluso los menos críticos o poco entendidos de política internacional, van a comprender mejor los motivos de algunas conducciones del gobierno cubano y el Bloqueo estadounidense a Cuba les parecerá aún más insano y cruel.
El libro también lanza a la luz una pregunta que intriga a muchos de nosotros: ¿por qué esa pobre y minúscula isla del Caribe, sin ningún poder en el escenario político internacional incomoda tanto al poderoso Estados Unidos?. Y que nadie venga a decir que es el interés americano por ‘la defensa de la democracia’.
Todos sabemos que ese mismo gobierno defendió y sustentó, durante mucho tiempo la cruel dictadura de Fulgencio Batista en la isla caribeña, así como lo hizo con otras dictaduras por el mundo.
Después de leer “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, mi respeto por Cuba y por la Revolución Cubana aumentó aún más. Aún con todos los errores que el Gobierno Cubano pueda haber cometido, no se puede dejar de respetar un país minúsculo, pobre y desprovisto de poder político en el escenario mundial, que aunque con toda la presión y persecución sufrida y víctima de un Bloqueo de medio siglo, haya conseguido mantener índices de desarrollo humano que provocan la envidia de cualquier país del mundo. Para quien no sabe: Cuba tiene una tasa de alfabetización 99,8% (la mayor del mundo según las Naciones Unidas), una tasa de mortalidad infantil de uno para cada 5.000.000 de nacidos (inferior a la de EE.UU) y una expectativa de vida media de 78 años (mayor que la de EE.UU). 98% de los cubanos reciben energía eléctrica y tienen acceso al agua potable y saneamiento básico, el acceso a la salud y a la educación es universal y gratuito. Si la medición del Índice de Desarrollo Humano no lleva en cuenta el PIB per cápita (producto interno bruto) (en ese caso, Cuba pierde puntuación por tener un PIB bajo), Cuba estaría entre los primeros en IDH. O sea, aún tiene el mérito de conseguir hacer más que el propio EE.UU., con mucho, mucho menos.
Después de algunos días necesarios para digerir el impacto de ese libro sobre mis convicciones, lo que puedo decir hoy es que yo apoyo inmensamente a Cuba. Soy hincha de un país que se ha mantenido como único punto de resistencia al capitalismo liberal, prácticamente hegemónico en el mundo actual.Apoyo al pueblo cubano que ha soportados con fuerza y altivez medio siglo de embate y un embargo, luchando contra un Imperio. Hincho para que Cuba continúe en la búsqueda de mejores condiciones para su pueblo, y que lo haga como siempre lo ha hecho, con su propio modo, a partir de sus convicciones e ideologías y no por la influencia de otros. Marx concebía el Comunismo como un movimiento que reacciona a los antagonismos del capitalismo y no como un modelo de sociedad ideal. Siendo así, mientras el capitalismo exista, con sus contradicciones y desigualdades, la ‘hipótesis comunista’, como dice Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma aún más: “si esa hipótesis tiene que ser abandonada, entonces no vale más la pena hacer nada en la orden de la acción colectiva. (...) Cada individuo puede cuidar de su vida y no se habla más de eso”.
Es importante aclarar que no se puede confundir ‘hipótesis comunista’ con cualquier atrocidad cometida en nombre del comunismo. También, vale recordar que innumerables atrocidades fueron cometidas a lo largo de la historia en nombre de las más nobles causas: en nombre de la paz, en nombre de Dios o Alá, en nombre de la democracia... la lista es larga.
Siendo así, no existe sociedad ideal, todas, a su modo, poseen sus virtudes y pecados. Pero, la mayor virtud de Cuba, a mi modo de ver, es aún mantener su resistencia; una “piedra en el zapato” del capitalismo mundial. Cuba cumple la misión de aún mantener viva la hipótesis de un mundo en el cual somos considerados seres humanos y no apenas consumidores, donde la naturalez sea vista como una Madre generosa y no como materia prima para ser molida en la máquina consumista (según la WWF, Cuba es el único país del mundo con desarrollo sustentable), y en el cual la noción de solidaridad no es tragada por su versión pervertida: la caridad –quien tiene más (dinero) da a quien tiene menos (los Medios no divulgan, pero después del terremoto que devastó Haití en 2008, a pesar de que las naciones más ricas del mundo prometieron misiones humanitarias monumentales, después de algunos meses, sólo continúan allá, “Médicos sin Fronteras” y la brigada de 1.200 médicos cubanos, especializada en desastres de emergencia, brigada que fue rechazada por los norteamericanos, después de del Huracán Katrina y la primera en llegar y la última en salir de Pakistán, después del terremoto de 2005).
Es por todo eso que refuerzo aqui mi apoyo por Cuba, soy hincha para que ese minúsculo y grandioso país continúe librándonos de un mundo donde el capitalismo sea la única hipótesis posible.
Psicoanalista
Traducción Franco López Marín
Periodista
Texto em português: http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com/2012/02/sobre-ultimos-soldados-da-guerra-fria-e.html
”Os Últimos Soldados da Guerra Fria” de Fernando Morais es un libro extraordinario. Si no supiéramos que está siendo contado por el autor, tras un fruto de años de trabajo e investigación, podríamos considerarlo como un excelente romance de espías. Sin embargo, no se trata de ficción. La intención del autor es retratar (partiendo de evidencias, registros, documentos, noticias de diarios y relatos de los propios personajes) el escenario político mundial al final de la Guerra Fría. Siendo Cuba y Estados Unidos los protagonistas, lo que vuelve aún más cautivante la obra.
Cuenta la historia que, después de la caída de la Unión Soviética, Cuba se dedicó a estimular el turismo, como una forma de aminorar la crisis económica que se agravaba en la isla, ya que aquel país era su principal socio económico. Durante ese período, grupos anticastristas radicales de Floridad aprovecharon para promover atentados terroristas contra Cuba, con la clara intención de asustar a los turistas, debilitando el gobierno de Fidel Castro. En cinco años, fueron 127 ataques y a pesar de las decenas de reclamos oficiales enviados por Cuba al gobierno estadounidense, ninguna medida fue tomada para reprimirlos.
Fidel llegó a enviar una carta a Bill Clinton, entonces presidente, denunciando organizaciones de extrema derecha que funcionaban en territorio americano, teniendo incluso como ‘palomo mensajero’ a nada menos que Gabriel García Márquez. En esa carta, Fidel da prácticamente una profecía. Al pedir que Clinton se empeñe en abortar las acciones terroristas que estaban siendo maquinada en EE.UU. Fidel defendía que si las medidas no iban a ser tomadas, ‘cualquier país del mundo podrá ser víctima de tales actos’. Años más tarde, como sabemos, EE.UU. serían víctima de atentados terroristas. Sin el apoyo de los EE.UU. y de las organizaciones internacionales, Cuba decir tomar providencias por si misma y crea la Red Vespa: un grupo selecto de doce hombres y dos mujeres que reciben la misión de infiltrarse en algunas de las 41 organizaciones terroristas de extrema derecha en los Estados Unidos, a fin de recoger informaciones que pudiesen anticipar posibles ataques. El libro cuenta, justamente, la increíble historia de esos “soldados” enviados por Fidel a EE.UU., todos travestidos de desertores del régimen cubano.
El libro de Morais nos provoca innumerables emociones, siendo que algunas de ellas nos afectarán con mayor fuerza a nosotros, militantes o partidarios de Izquierda. Y el mayor mérito del libro es contar la historia de las relaciones entre EE.UU. y Cuba de otra perspectiva, diferente de la estadounidense que la gran mayoría acepta como única, sólo por ser considerada la versión oficial. Terminada la lectura, incluso los menos críticos o poco entendidos de política internacional, van a comprender mejor los motivos de algunas conducciones del gobierno cubano y el Bloqueo estadounidense a Cuba les parecerá aún más insano y cruel.
El libro también lanza a la luz una pregunta que intriga a muchos de nosotros: ¿por qué esa pobre y minúscula isla del Caribe, sin ningún poder en el escenario político internacional incomoda tanto al poderoso Estados Unidos?. Y que nadie venga a decir que es el interés americano por ‘la defensa de la democracia’.
Todos sabemos que ese mismo gobierno defendió y sustentó, durante mucho tiempo la cruel dictadura de Fulgencio Batista en la isla caribeña, así como lo hizo con otras dictaduras por el mundo.
Después de leer “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, mi respeto por Cuba y por la Revolución Cubana aumentó aún más. Aún con todos los errores que el Gobierno Cubano pueda haber cometido, no se puede dejar de respetar un país minúsculo, pobre y desprovisto de poder político en el escenario mundial, que aunque con toda la presión y persecución sufrida y víctima de un Bloqueo de medio siglo, haya conseguido mantener índices de desarrollo humano que provocan la envidia de cualquier país del mundo. Para quien no sabe: Cuba tiene una tasa de alfabetización 99,8% (la mayor del mundo según las Naciones Unidas), una tasa de mortalidad infantil de uno para cada 5.000.000 de nacidos (inferior a la de EE.UU) y una expectativa de vida media de 78 años (mayor que la de EE.UU). 98% de los cubanos reciben energía eléctrica y tienen acceso al agua potable y saneamiento básico, el acceso a la salud y a la educación es universal y gratuito. Si la medición del Índice de Desarrollo Humano no lleva en cuenta el PIB per cápita (producto interno bruto) (en ese caso, Cuba pierde puntuación por tener un PIB bajo), Cuba estaría entre los primeros en IDH. O sea, aún tiene el mérito de conseguir hacer más que el propio EE.UU., con mucho, mucho menos.
Después de algunos días necesarios para digerir el impacto de ese libro sobre mis convicciones, lo que puedo decir hoy es que yo apoyo inmensamente a Cuba. Soy hincha de un país que se ha mantenido como único punto de resistencia al capitalismo liberal, prácticamente hegemónico en el mundo actual.Apoyo al pueblo cubano que ha soportados con fuerza y altivez medio siglo de embate y un embargo, luchando contra un Imperio. Hincho para que Cuba continúe en la búsqueda de mejores condiciones para su pueblo, y que lo haga como siempre lo ha hecho, con su propio modo, a partir de sus convicciones e ideologías y no por la influencia de otros. Marx concebía el Comunismo como un movimiento que reacciona a los antagonismos del capitalismo y no como un modelo de sociedad ideal. Siendo así, mientras el capitalismo exista, con sus contradicciones y desigualdades, la ‘hipótesis comunista’, como dice Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma aún más: “si esa hipótesis tiene que ser abandonada, entonces no vale más la pena hacer nada en la orden de la acción colectiva. (...) Cada individuo puede cuidar de su vida y no se habla más de eso”.
Es importante aclarar que no se puede confundir ‘hipótesis comunista’ con cualquier atrocidad cometida en nombre del comunismo. También, vale recordar que innumerables atrocidades fueron cometidas a lo largo de la historia en nombre de las más nobles causas: en nombre de la paz, en nombre de Dios o Alá, en nombre de la democracia... la lista es larga.
Siendo así, no existe sociedad ideal, todas, a su modo, poseen sus virtudes y pecados. Pero, la mayor virtud de Cuba, a mi modo de ver, es aún mantener su resistencia; una “piedra en el zapato” del capitalismo mundial. Cuba cumple la misión de aún mantener viva la hipótesis de un mundo en el cual somos considerados seres humanos y no apenas consumidores, donde la naturalez sea vista como una Madre generosa y no como materia prima para ser molida en la máquina consumista (según la WWF, Cuba es el único país del mundo con desarrollo sustentable), y en el cual la noción de solidaridad no es tragada por su versión pervertida: la caridad –quien tiene más (dinero) da a quien tiene menos (los Medios no divulgan, pero después del terremoto que devastó Haití en 2008, a pesar de que las naciones más ricas del mundo prometieron misiones humanitarias monumentales, después de algunos meses, sólo continúan allá, “Médicos sin Fronteras” y la brigada de 1.200 médicos cubanos, especializada en desastres de emergencia, brigada que fue rechazada por los norteamericanos, después de del Huracán Katrina y la primera en llegar y la última en salir de Pakistán, después del terremoto de 2005).
Es por todo eso que refuerzo aqui mi apoyo por Cuba, soy hincha para que ese minúsculo y grandioso país continúe librándonos de un mundo donde el capitalismo sea la única hipótesis posible.
domingo, 26 de fevereiro de 2012
Sobre "Os Últimos Soldados da Guerra Fria" e sobre porque eu torço por Cuba
por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Os Últimos Soldados da Guerra Fria de Fernando Morais é um livro extraordinário. Caso não soubéssemos que tudo que está sendo contado nele é fruto de anos de trabalho de campo feito pelo autor, poderíamos considerá-lo apenas um excelente romance de espionagem. Entretanto, não se trata de uma ficção. A intenção do autor é retratar (partindo de evidências, registros, documentos, notícias de jornal e relatos dos próprios personagens) o cenário político mundial no final da Guerra Fria, tendo Cuba e Estados Unidos como protagonistas, o que torna a obra ainda mais cativante.
Conta a história que, após a queda da União Soviética, Cuba se dedicou a estimular o turismo, numa tentativa de minorar a crise econômica que se agravava na ilha, já que aquele país era seu principal parceiro comercial. Durante esse período, grupos anticastristas radicais da Flórida aproveitaram para promover atentados terroristas a Cuba com a clara intenção de assustar os turistas enfraquecer o Governo de Fidel Castro. Em cinco anos foram 127 ataques e apesar das dezenas de reclamações oficiais enviados por Cuba ao Governo Americano, nenhuma medida foi tomada para reprimi-los. Fidel chega a enviar uma carta a Bill Clinton, então presidente, denunciando organizações de extrema direita que funcionavam em território americano, tendo como pombo-correio ninguém menos que Gabriel Garcia Marques. Nesta carta Fidel faz praticamente uma profecia. Ao pedir que Clinton se empenhe em abortar as ações terroristas que estão sendo maquinadas em território americano, Fidel defende que se medidas não forem tomadas, “em breve qualquer país do mundo poderá ser vítima de tais atos”. Anos mais tarde, como sabemos, os Estados Unidos seriam a vítima de atentados terroristas.
Sem o apoio dos EUA e das organizações internacionais, Cuba decide tomar providências por si e cria a Rede Vespa: um grupo seleto de doze homens e duas mulheres que recebem a missão de se infiltrarem em algumas das 41 organizações terroristas de extrema direita nos EUA, a fim de colherem informações que pudessem antecipar possíveis ataques. O livro conta, justamente, a incrível história desses “soldados” enviados por Fidel aos EUA, todos travestidos de desertores do regime cubano.
O livro de Morais nos provoca inúmeras emoções, sendo que algumas delas atingirão com mais força a nós, militantes ou partidários de esquerda. E o maior mérito do livro é contar a história das relações entre EUA e Cuba de uma outra perspectiva, diferente da americana que a grande maioria acredita ser a única versão, apenas por ser considerada a versão oficial. Terminada a leitura, mesmo os menos críticos ou pouco entendedores de política internacional, vão compreender melhor os motivos de algumas conduções do Governo Cubano, e o bloqueio americano a Cuba lhes soará ainda mais insano e cruel.
O livro também lança luz sobre uma questão que intriga a muitos de nós: porque essa pobre e minúscula ilha do caribe, sem nenhum poder no cenário político internacional incomoda tanto o poderoso EUA? E que ninguém venha me dizer que o interesse americano é pela “defesa da democracia”. Todos sabemos que esse mesmo governo defendeu e sustentou, durante muito tempo, a ditadura cruel de Fulgêncio Batista na ilha caribenha, assim como fez por outras ditaduras pelo mundo.
Depois de ler Os Últimos Soldados da Guerra Fria, meu respeito por Cuba e pela Revolução Cubana aumentou ainda mais. A despeito de todos os erros que o Governo Cubano possa ter cometido, não podemos deixar de respeitar um país minúsculo, pobre e desprovido de poder político no cenário mundial que, mesmo com toda a pressão e perseguição sofrida e vítima de um bloqueio econômico de meio século, tem conseguido manter índices de desenvolvimento humano de fazer inveja a qualquer país do mundo. Pra quem não sabe: Cuba tem uma taxa de alfabetização de 99,8% (a maior do mundo segundo as Nações Unidas), uma taxa de mortalidade infantil de um para cada 5.000.000 nascidos (inferior a do EUA) e uma expectativa de vida média de 78 anos (maior que a dos EUA). 98% dos cubanos recebem energia elétrica e tem acesso a água potável e saneamento básico, e o acesso à saúde e a educação é universalizado e gratuito. Não fosse a medição do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) levar em conta o PIB per capta (e nesse caso, Cuba perde pontuação por ter um PIB baixo), Cuba estaria entre os primeiros no IDH. Ou seja, ainda tem o mérito de conseguir fazer mais que o próprio EUA, com muito, muito menos.
Depois de alguns dias necessários para digerir o impacto desse livro sobre minhas convicções o que posso dizer hoje é que eu torço imensamente por Cuba. Torço por esse país que tem se mantido como o único ponto de resistência ao capitalismo liberal, praticamente hegemônico no mundo atual. Torço pelo povo cubano que tem suportado com força e altivez meio século de embate e embargo, lutando contra um império. Torço para que Cuba continue na sua busca por melhores condições para seu povo, e que o faça como tem feito, a seu próprio modo, a partir de suas próprias convicções e ideologias e não por influência de outrem.
Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal. Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso.”
É importante esclarecer que não se pode confundir a “hipótese comunista” com quaisquer atrocidades cometidas em nome do comunismo. Também, vale lembrar que inúmeras atrocidades têm sido cometidas ao longo da história em nome das mais nobres causas; em nome da paz, em nome de Deus ou Alá, em nome da democracia...a lista é longa.
Sendo assim, não existe sociedade ideal, todas, a seu modo, possuem suas virtudes e pecados. Mas a maior virtude de Cuba, a meu ver, é a de ainda se manter como esse ponto de resistência; uma “pedra no sapato” do capitalismo mundial. Cuba cumpre a missão de ainda manter acesa a hipótese de um mundo no qual somos considerados seres humanos e não apenas consumidores, onde a natureza seja vista como uma Mãe Generosa e não como matéria prima para ser moída na máquina consumista (segundo o último relatório do WWF Cuba é o único país do mundo com desenvolvimento sustentável), e no qual a noção de solidariedade não seja engolida pela sua versão pervertida: a caridade – quem tem mais (dinheiro) dá a quem tem menos (a mídia não divulga, mas, depois do terremoto que devastou o Haiti em 2008, apesar das nações mais ricas do mundo prometerem missões humanitárias monumentais, depois de alguns meses, só continuaram por lá os Médicos Sem Fronteiras e a brigada de 1.200 médicos cubanos, especializada em desastres e emergência, brigada que foi rejeitada pelos norteamericanos após o furacão Katrina e a primeira a chegar e última a sair do Paquistão, após o terremoto de 2005).
É por tudo isso que reforço aqui minha torcida por Cuba, torço para que esse minúsculo e grandioso país continue nos livrando de um mundo onde o capitalismo seja a única hipótese possível.
psicanalista
Os Últimos Soldados da Guerra Fria de Fernando Morais é um livro extraordinário. Caso não soubéssemos que tudo que está sendo contado nele é fruto de anos de trabalho de campo feito pelo autor, poderíamos considerá-lo apenas um excelente romance de espionagem. Entretanto, não se trata de uma ficção. A intenção do autor é retratar (partindo de evidências, registros, documentos, notícias de jornal e relatos dos próprios personagens) o cenário político mundial no final da Guerra Fria, tendo Cuba e Estados Unidos como protagonistas, o que torna a obra ainda mais cativante.
Conta a história que, após a queda da União Soviética, Cuba se dedicou a estimular o turismo, numa tentativa de minorar a crise econômica que se agravava na ilha, já que aquele país era seu principal parceiro comercial. Durante esse período, grupos anticastristas radicais da Flórida aproveitaram para promover atentados terroristas a Cuba com a clara intenção de assustar os turistas enfraquecer o Governo de Fidel Castro. Em cinco anos foram 127 ataques e apesar das dezenas de reclamações oficiais enviados por Cuba ao Governo Americano, nenhuma medida foi tomada para reprimi-los. Fidel chega a enviar uma carta a Bill Clinton, então presidente, denunciando organizações de extrema direita que funcionavam em território americano, tendo como pombo-correio ninguém menos que Gabriel Garcia Marques. Nesta carta Fidel faz praticamente uma profecia. Ao pedir que Clinton se empenhe em abortar as ações terroristas que estão sendo maquinadas em território americano, Fidel defende que se medidas não forem tomadas, “em breve qualquer país do mundo poderá ser vítima de tais atos”. Anos mais tarde, como sabemos, os Estados Unidos seriam a vítima de atentados terroristas.
Sem o apoio dos EUA e das organizações internacionais, Cuba decide tomar providências por si e cria a Rede Vespa: um grupo seleto de doze homens e duas mulheres que recebem a missão de se infiltrarem em algumas das 41 organizações terroristas de extrema direita nos EUA, a fim de colherem informações que pudessem antecipar possíveis ataques. O livro conta, justamente, a incrível história desses “soldados” enviados por Fidel aos EUA, todos travestidos de desertores do regime cubano.
O livro de Morais nos provoca inúmeras emoções, sendo que algumas delas atingirão com mais força a nós, militantes ou partidários de esquerda. E o maior mérito do livro é contar a história das relações entre EUA e Cuba de uma outra perspectiva, diferente da americana que a grande maioria acredita ser a única versão, apenas por ser considerada a versão oficial. Terminada a leitura, mesmo os menos críticos ou pouco entendedores de política internacional, vão compreender melhor os motivos de algumas conduções do Governo Cubano, e o bloqueio americano a Cuba lhes soará ainda mais insano e cruel.
O livro também lança luz sobre uma questão que intriga a muitos de nós: porque essa pobre e minúscula ilha do caribe, sem nenhum poder no cenário político internacional incomoda tanto o poderoso EUA? E que ninguém venha me dizer que o interesse americano é pela “defesa da democracia”. Todos sabemos que esse mesmo governo defendeu e sustentou, durante muito tempo, a ditadura cruel de Fulgêncio Batista na ilha caribenha, assim como fez por outras ditaduras pelo mundo.
Depois de ler Os Últimos Soldados da Guerra Fria, meu respeito por Cuba e pela Revolução Cubana aumentou ainda mais. A despeito de todos os erros que o Governo Cubano possa ter cometido, não podemos deixar de respeitar um país minúsculo, pobre e desprovido de poder político no cenário mundial que, mesmo com toda a pressão e perseguição sofrida e vítima de um bloqueio econômico de meio século, tem conseguido manter índices de desenvolvimento humano de fazer inveja a qualquer país do mundo. Pra quem não sabe: Cuba tem uma taxa de alfabetização de 99,8% (a maior do mundo segundo as Nações Unidas), uma taxa de mortalidade infantil de um para cada 5.000.000 nascidos (inferior a do EUA) e uma expectativa de vida média de 78 anos (maior que a dos EUA). 98% dos cubanos recebem energia elétrica e tem acesso a água potável e saneamento básico, e o acesso à saúde e a educação é universalizado e gratuito. Não fosse a medição do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) levar em conta o PIB per capta (e nesse caso, Cuba perde pontuação por ter um PIB baixo), Cuba estaria entre os primeiros no IDH. Ou seja, ainda tem o mérito de conseguir fazer mais que o próprio EUA, com muito, muito menos.
Depois de alguns dias necessários para digerir o impacto desse livro sobre minhas convicções o que posso dizer hoje é que eu torço imensamente por Cuba. Torço por esse país que tem se mantido como o único ponto de resistência ao capitalismo liberal, praticamente hegemônico no mundo atual. Torço pelo povo cubano que tem suportado com força e altivez meio século de embate e embargo, lutando contra um império. Torço para que Cuba continue na sua busca por melhores condições para seu povo, e que o faça como tem feito, a seu próprio modo, a partir de suas próprias convicções e ideologias e não por influência de outrem.
Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal. Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso.”
É importante esclarecer que não se pode confundir a “hipótese comunista” com quaisquer atrocidades cometidas em nome do comunismo. Também, vale lembrar que inúmeras atrocidades têm sido cometidas ao longo da história em nome das mais nobres causas; em nome da paz, em nome de Deus ou Alá, em nome da democracia...a lista é longa.
Sendo assim, não existe sociedade ideal, todas, a seu modo, possuem suas virtudes e pecados. Mas a maior virtude de Cuba, a meu ver, é a de ainda se manter como esse ponto de resistência; uma “pedra no sapato” do capitalismo mundial. Cuba cumpre a missão de ainda manter acesa a hipótese de um mundo no qual somos considerados seres humanos e não apenas consumidores, onde a natureza seja vista como uma Mãe Generosa e não como matéria prima para ser moída na máquina consumista (segundo o último relatório do WWF Cuba é o único país do mundo com desenvolvimento sustentável), e no qual a noção de solidariedade não seja engolida pela sua versão pervertida: a caridade – quem tem mais (dinheiro) dá a quem tem menos (a mídia não divulga, mas, depois do terremoto que devastou o Haiti em 2008, apesar das nações mais ricas do mundo prometerem missões humanitárias monumentais, depois de alguns meses, só continuaram por lá os Médicos Sem Fronteiras e a brigada de 1.200 médicos cubanos, especializada em desastres e emergência, brigada que foi rejeitada pelos norteamericanos após o furacão Katrina e a primeira a chegar e última a sair do Paquistão, após o terremoto de 2005).
É por tudo isso que reforço aqui minha torcida por Cuba, torço para que esse minúsculo e grandioso país continue nos livrando de um mundo onde o capitalismo seja a única hipótese possível.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
A epidemia de doenças mentais
Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?
Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?
Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.
Mas a novela Machadiana - publicada pela primeira vez em 1882 - nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.
Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud - considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas - dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.
Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.
É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.
psicanalista
Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?
Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?
Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.
Mas a novela Machadiana - publicada pela primeira vez em 1882 - nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.
Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud - considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas - dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.
Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.
É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.
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