Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Se você espera ler alguma espécie de manual sobre como educar filhos, esqueça. O título deste artigo é apenas uma ironia, por isso está entre aspas. Afinal os manuais são mesmo como dizem: muito bonitos na teoria. Na prática, cabe a cada um construir seu próprio estilo de educar.
Nossa sociedade não tem nenhum ritual de passagem que faça a marcação da entrada do sujeito na fase adulta, o que, na minha opinião, dificulta muito as coisas. Então, somos jogados irremediavelmente nesse limbo entre a infância e a idade adulta, que aprendemos a chamar de adolescência. A adolescência fica então caracterizada como um lugar intermediário por excelência, uma espécie de purgatório que precisamos atravessar para chegarmos no “mundo adulto” (se é que isso realmente existe). Mas, se é difícil passar pela adolescência, não é menos difícil ser pai ou mãe de adolescentes.
Os bebês são encantadores, porque nos fazem sentir importantes, necessários, e mesmo fundamentais. Mesmo os pais mais desconfortáveis com a existência se rendem a poderosa sensação de encarnarem os seres mais importantes da face da terra, ao se depararem com um serzinho que depende totalmente deles. E amamentar então? Me digam as que já experimentaram... É sublime.
Já as crianças pequenas são adoráveis. Estão descobrindo o mundo, e acreditam que nós, seus pais, sabemos tudo, que temos todas as respostas. Somos seus mestres e seus heróis. Elas nos mantêm a ilusão de sermos capazes de ler pensamentos, prever o futuro ou a metereologia. Nossos beijos e abraços são tão poderosos! Capazes de fazer passar todas as dores, curar todos os males e aplacar todos os medos e aflições.
Mas aí, de repente, eles crescem...muito mais do que poderíamos imaginar, e muito mais rápido do que gostaríamos. Passam a prescindir da nossa presença, da nossa opinião e da nossa companhia. Num dia correm pra nossa cama com medo de algum sonho ruim e no outro, sem que a gente se dê conta, passam a noite sozinhos, “na balada”, passando pra nós a vez de ficar com medo.
E ficamos com medo porque nos damos conta de que não podemos mais protegê-los de tudo, como acreditávamos. Porque percebemos que nosso abraço já não tem mais o poder de antes. Ficamos inseguros porque o tradicional “mamãe está aqui” ou ”papai está aqui” não são mais suficientes. Agora eles raramente querem ouvir nossa opinião ou resposta para alguma pergunta, a menos que seja, é claro, para nos dizer o quanto estamos equivocados.
A adolescência dos filhos é, portanto, um enorme tombo narcísico para nós, os pais. Um soco na nossa prepotência. Passamos a nos sentir desimportantes, desnecessários e até mesmo descartados. E se por vezes ficamos completamente perdidos e desorientados é, principalmente, porque teimamos em admitir que eles estão apenas traçando seu próprio caminho e para isso, precisam mesmo manter uma certa distância de nós.
Seguramos os bebês no colo. Mantemos as crianças de mãos dadas. Mas os adolescentes já não querem mais andar de mãos dadas conosco, nem metaforicamente falando. Então nos resta apenas caminhar com eles mantendo uma certa distância, torcer para que as coisas se encaminhem da melhor maneira possível e esperar de braços abertos caso precisem de nós mais uma vez - e é certo que vão precisar.
Outra coisa que torna espinhosa a vida de pais de adolescentes é que eles nos mostram, e com certo gozo, onde fracassamos. E alguns dos nossos fracassos pesam muito porque percebemos que o amor que temos por nossos filhos justificam alguns erros, mas não todos. Mas não se preocupe, também educamos com nossos fracassos. Uma geração mais nova é sempre suficientemente inteligente para aprender com os erros da geração anterior. A evolução das espécies tem acontecido desta maneira há milhares e milhares de anos, apesar de, às vezes, duvidarmos desta premissa quando se trata da raça humana.
Eu já tinha perdido o hábito de rezar, mas, ultimamente, tenho apelado para este recurso a fim de não entrar em pânico. Tenho adquirido serenidade para compreender que o que posso fazer agora é dizer com toda a minha alma: “Oxalá meus filhos façam boas escolhas e sejam felizes com as escolhas que fizerem!” Sim, porque cada vez mais percebo que o que eles poderiam aprender comigo, já aprenderam. As virtudes e os valores que eu poderia passar para eles, já foram passadas. E que ninguém tenha dúvidas, foram passadas muito mais pelo que fui do que pelo que eu disse. Portanto, quem esperou seu filho chegar na adolescência para se aproximar dele o suficiente para educá-lo, sinto muito...o jeito agora é redobrar as orações. E para os que ainda têm crianças, não percam tempo, elas crescem muito, muito rápido.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
terça-feira, 13 de setembro de 2011
O Horror Capitalista
Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicanalista
Já faz algum tempo que o capitalismo é mais lucrativo nas cirandas financeiras do que na produção de bens ou serviços. Os grandes lucros do capitalismo atual não são gerados pela exploração do trabalhador, aquela denunciada por Marx, mas de um modo bem mais silencioso e eficiente: na especulação financeira.
A especulação, como o próprio nome já diz, consiste basicamente em: comprar e vender coisas que não existem por meio de apostas em negócios que também não existem, que poderão existir se muita gente apostar neles, mas que podem quebrar se muitos deixarem de apostar, mesmo sem nunca terem existido. Isso é, resumidamente, o que aconteceu na crise americana de 2008. O chamado “estouro da bolha”.
Viviane Forrester em seu livro “O Horror Econômico” de 1997 (talvez mais atual hoje do que quando foi publicado) afirma que nesta nova roupagem do capitalismo, consumir seria nosso último recurso, nossa última utilidade. Já que trabalho e produção não geram mais riqueza, seríamos apenas clientes necessários ao tão esperado “crescimento econômico”, prometido para acabar com todos os nossos males e aflições. Assim seguimos consumindo e consumindo, cumprindo religiosa e subservientemente nossa função neste sistema.
Entretanto, aumento de consumo anda sempre de mãos dadas com o aumento do endividamento e da inadimplência. Especula-se que cada lar americano, por exemplo, deva em média US$ 10.000,00, só no cartão de crédito. No Brasil entramos neste "boom" de consumo mais recentemente. O crescimento econômico da Era Lula, permitiu a entrada de 40 milhões de pessoas no mercado consumidor, e a reboque disso aumentou também o número de endividados. Sendo assim, dá pra compreender porque além de “dicas de moda”, “dicas de saúde”, “dicas de alimentação saudável” os programas de TV, de olho no endividamento e na inadimplência dos brasileiros, têm oferecido também programas e reportagens com “dicas para o consumo consciente”, que consistem, basicamente, em culpabilizar o devedor pelo seu endividamento. Esquecem de mencionar que a condição que o capitalismo atual nos impõe é mais ou menos a seguinte: consuma, consuma e consuma, porque disso depende o humor do mercado e, consequentemente, o sucesso do capitalismo (e o sucesso de todos nós). Mas, se isso que esperamos e desejamos que você faça te levar a falência ou ao desespero total, não culpe o sistema, foi apenas um erro seu. Então, sem tocar na contradição imposta pelo próprio sistema capitalista, o que vemos nesses programas são orientações para nos fazer acreditar que se nos endividamos ou nos tornamos inadimplentes é, simplesmente, porque não consumimos de maneira educada ou consciente. É o mesmo que prometer a felicidade plena para aquele que comer o maior número possível de jacas e depois responsabilizar o comedor de jacas pela indigestão causada pela sua falta de educação ou consciência para comer jacas.
Ninguém definiu melhor o capitalismo especulativo que Slavo Zizek: “é um ato de pedir emprestado ao futuro”. E na verdade é o que temos feito, entrando nessa ciranda de dívidas, empréstimos e prestações, pedindo emprestado ao futuro para vivermos felizes hoje. Afinal, como diria o slogan de um certo cartão de crédito, “a vida acontece agora”, não é mesmo? Então compramos hoje para pagar amanhã. E amanhã pagamos o que compramos ontem. Depois pegamos emprestado do amanhã para pagar o ontem e o hoje, e pegamos emprestado ao depois de amanhã para pagar o empréstimo que fizemos ontem e para comprar o que precisamos hoje. Assim nos tornamos reféns deste círculo vicioso que não pode mais parar, porque se parar chegaremos à conclusão que ontem, já estávamos quebrados.
Mas a questão é que, apesar das tais “dicas para o consumo consciente” tratarem essa “bola de neve” financeira como uma falha no sistema capitalista ou pior, como uma falha sua ou minha em lidar com o sistema, a verdade é que este é o eixo de sustentação sobre o qual gira o capitalismo; é sua característica. O endividamento para o consumo não é uma falha do sistema, é exatamente a sua força, é nessa ciranda de dívidas que o capitalismo de hoje se sustenta, se retro alimenta e se perpetua. Tanto é assim que não somos apenas nós, pessoas comuns, que entramos nessa ciranda. As grandes corporações financeiras e os grandes bancos também operam desta maneira e não é incomum que cheguem à bancarrota. Mas a diferença é que, para eles, a salvação virá; e não serão culpabilizados, mas premiados. Com a justificativa de que se quebrarem promoverão uma quebradeira geral mais danosa ainda para o restante da população, as grandes corporações são enxertadas com dinheiro dos governos; dinheiro público, obviamente. Zizek chama este tipo de intervenção de “capitalismo socialista”. Um tipo peculiar de medida “socialista”, cuja meta principal é ajudar os ricos e não os pobres. Ironicamente, socializamos o prejuízo, e é claro, com a justificativa de que é para o bem estar de todos. Socialismo que, neste caso, não é ruim, já que serve para estabilizar o capitalismo.
Não sabemos até quando o futuro será complacente com o capitalismo. Tomara que não muito mais. E espero que possamos mudar o rumo das coisas antes que seja tarde. Enquanto isso, a pergunta que não quer calar é a seguinte: se o Lehman Brothers, quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos não consegue pagar suas dívidas, porque eu ou você deveríamos conseguir?
Psicanalista
Já faz algum tempo que o capitalismo é mais lucrativo nas cirandas financeiras do que na produção de bens ou serviços. Os grandes lucros do capitalismo atual não são gerados pela exploração do trabalhador, aquela denunciada por Marx, mas de um modo bem mais silencioso e eficiente: na especulação financeira.
A especulação, como o próprio nome já diz, consiste basicamente em: comprar e vender coisas que não existem por meio de apostas em negócios que também não existem, que poderão existir se muita gente apostar neles, mas que podem quebrar se muitos deixarem de apostar, mesmo sem nunca terem existido. Isso é, resumidamente, o que aconteceu na crise americana de 2008. O chamado “estouro da bolha”.
Viviane Forrester em seu livro “O Horror Econômico” de 1997 (talvez mais atual hoje do que quando foi publicado) afirma que nesta nova roupagem do capitalismo, consumir seria nosso último recurso, nossa última utilidade. Já que trabalho e produção não geram mais riqueza, seríamos apenas clientes necessários ao tão esperado “crescimento econômico”, prometido para acabar com todos os nossos males e aflições. Assim seguimos consumindo e consumindo, cumprindo religiosa e subservientemente nossa função neste sistema.
Entretanto, aumento de consumo anda sempre de mãos dadas com o aumento do endividamento e da inadimplência. Especula-se que cada lar americano, por exemplo, deva em média US$ 10.000,00, só no cartão de crédito. No Brasil entramos neste "boom" de consumo mais recentemente. O crescimento econômico da Era Lula, permitiu a entrada de 40 milhões de pessoas no mercado consumidor, e a reboque disso aumentou também o número de endividados. Sendo assim, dá pra compreender porque além de “dicas de moda”, “dicas de saúde”, “dicas de alimentação saudável” os programas de TV, de olho no endividamento e na inadimplência dos brasileiros, têm oferecido também programas e reportagens com “dicas para o consumo consciente”, que consistem, basicamente, em culpabilizar o devedor pelo seu endividamento. Esquecem de mencionar que a condição que o capitalismo atual nos impõe é mais ou menos a seguinte: consuma, consuma e consuma, porque disso depende o humor do mercado e, consequentemente, o sucesso do capitalismo (e o sucesso de todos nós). Mas, se isso que esperamos e desejamos que você faça te levar a falência ou ao desespero total, não culpe o sistema, foi apenas um erro seu. Então, sem tocar na contradição imposta pelo próprio sistema capitalista, o que vemos nesses programas são orientações para nos fazer acreditar que se nos endividamos ou nos tornamos inadimplentes é, simplesmente, porque não consumimos de maneira educada ou consciente. É o mesmo que prometer a felicidade plena para aquele que comer o maior número possível de jacas e depois responsabilizar o comedor de jacas pela indigestão causada pela sua falta de educação ou consciência para comer jacas.
Ninguém definiu melhor o capitalismo especulativo que Slavo Zizek: “é um ato de pedir emprestado ao futuro”. E na verdade é o que temos feito, entrando nessa ciranda de dívidas, empréstimos e prestações, pedindo emprestado ao futuro para vivermos felizes hoje. Afinal, como diria o slogan de um certo cartão de crédito, “a vida acontece agora”, não é mesmo? Então compramos hoje para pagar amanhã. E amanhã pagamos o que compramos ontem. Depois pegamos emprestado do amanhã para pagar o ontem e o hoje, e pegamos emprestado ao depois de amanhã para pagar o empréstimo que fizemos ontem e para comprar o que precisamos hoje. Assim nos tornamos reféns deste círculo vicioso que não pode mais parar, porque se parar chegaremos à conclusão que ontem, já estávamos quebrados.
Mas a questão é que, apesar das tais “dicas para o consumo consciente” tratarem essa “bola de neve” financeira como uma falha no sistema capitalista ou pior, como uma falha sua ou minha em lidar com o sistema, a verdade é que este é o eixo de sustentação sobre o qual gira o capitalismo; é sua característica. O endividamento para o consumo não é uma falha do sistema, é exatamente a sua força, é nessa ciranda de dívidas que o capitalismo de hoje se sustenta, se retro alimenta e se perpetua. Tanto é assim que não somos apenas nós, pessoas comuns, que entramos nessa ciranda. As grandes corporações financeiras e os grandes bancos também operam desta maneira e não é incomum que cheguem à bancarrota. Mas a diferença é que, para eles, a salvação virá; e não serão culpabilizados, mas premiados. Com a justificativa de que se quebrarem promoverão uma quebradeira geral mais danosa ainda para o restante da população, as grandes corporações são enxertadas com dinheiro dos governos; dinheiro público, obviamente. Zizek chama este tipo de intervenção de “capitalismo socialista”. Um tipo peculiar de medida “socialista”, cuja meta principal é ajudar os ricos e não os pobres. Ironicamente, socializamos o prejuízo, e é claro, com a justificativa de que é para o bem estar de todos. Socialismo que, neste caso, não é ruim, já que serve para estabilizar o capitalismo.
Não sabemos até quando o futuro será complacente com o capitalismo. Tomara que não muito mais. E espero que possamos mudar o rumo das coisas antes que seja tarde. Enquanto isso, a pergunta que não quer calar é a seguinte: se o Lehman Brothers, quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos não consegue pagar suas dívidas, porque eu ou você deveríamos conseguir?
domingo, 28 de agosto de 2011
Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos.
por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
trabalhadora do lar e fora do lar
A década de 60 inaugurou a “queima de sutiãs” como ato simbólico da luta das mulheres contra a opressão. Décadas depois podemos dizer que nós mulheres tivemos muitos êxitos, conquistamos espaço e direitos, especialmente no espaço “fora do lar”. No entanto, dentro dos nossos lares a coisa não mudou muito, continuamos sendo oprimidas, principalmente pelo que chamamos de dupla ou até tripla jornada de trabalho. Para as que trabalham fora e não podem pagar por uma empregada (e a tendência é que este seja cada vez mais um artigo de luxo) o trabalho doméstico é uma sobrecarga que oprime e restringe as liberdades femininas. Por isso, decidi escrever um esboço do que deveria ser a Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos. Sugiro que, num ato simbólico, queimemos dessa vez, vassouras, rodos, panos de chão, palhas de aço e afins, para declarar, de uma vez por todas, que as tarefas do lar NÃO são de responsabilidade exclusiva das mulheres.
Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos
Considerações:
Considerando que historicamente o trabalho doméstico e o cuidado das crianças pequenas tem sido uma responsabilidade atribuída eminentemente às mulheres.
Considerando que a dupla e a tripla jornada de trabalho tornou-se uma realidade comum para as mulheres brasileiras, que causa sobrecarga e restringe as liberdades das mesmas.
Considerando a prevalência de uma educação machista que não valoriza ou estimula o aprendizado das tarefas domésticas e de puericultura para meninos, rapazes ou homens.
Princípios:
Existem alguns princípios básicos que regem o trabalho doméstico, fundamentais para a compreensão das diretrizes desta declaração. São eles:
Primeiro princípio: Se alguém não fez não está feito
Segundo princípio: Se alguém não limpou não está limpo
Terceiro princípio: Se alguém na guardou não está guardado
Quarto princípio: Se alguém não comprou não está disponível para consumo
Tais princípios merecem destaque porque, em geral, as pessoas que não tem o costume de se ocuparem do trabalho doméstico acreditam que ele é executado automaticamente, sem que alguém o faça. Outros tendem a pensar que o mesmo é diariamente executado por alguma entidade sobrenatural, o que declaramos não ser verdade.
Partindo de tais considerações e princípios, declaramos:
Artigo I
As tarefas do lar são de responsabilidades de todos os que nele residem; homens e mulheres sejam eles adultos ou jovens.
Parágrafo único: ao executar uma tarefa doméstica o executante NÃO está fazendo um favor para a mulher ou mulheres que ali residem.
Artigo II
Meninos e meninas, sem distinção de gênero, serão educados desde criança para executarem tarefas domésticas, além de aprenderem noções de puericultura.
Parágrafo 1°: pais, mães ou responsáveis ensinarão gradativamente tais atividades às crianças, sempre respeitando o nível de compreensão, responsabilidade e maturidade de cada idade.
Parágrafo 2°: fica declarado proibido ensinar tais tarefas de maneira diferenciada por distinção de gênero.
Artigo III
Eletrodomésticos tais como máquina de lavar roupa, forno de microondas, freezer, secadora, aspirador de pó ou outros que comprovem sua eficácia na facilitação do trabalho doméstico, passam a ser considerados gêneros de primeira necessidade para o lar.
Parágrafo único: tais produtos deverão ser alvo de investimento nas políticas a fim de possuírem preços acessíveis e garantia total de reposição imediata em caso de roubo ou defeito.
Artigo IV
Empresas públicas e privadas devem investir em tecnologias para o trabalho doméstico.
Parágrafo 1°: Deve-se estimular a produção de tecnologias que, comprovadamente, reduzam a penosidade e o tempo gasto com o trabalho doméstico, como por exemplo: tecidos que não amarrotem e não manchem; panelas que realmente não agarrem sujeira; pisos, tecidos e tapetes que absorvam a sujeira; aspiradores de pó inteligentes; brinquedos que se encaminhem automaticamente para caixa após determinado tempo em desuso; fogões, fornos e geladeiras que sejam de fato autolimpantes; e outros.
Parágrafo 2°: Deve-se investir também em tecnologias avançadas para estimular a execução dos trabalhos domésticos, como por exemplo, sistema de alarme que impeça que a TV, o computador, o microondas ou chuveiro elétrico funcionem se a pia estiver cheia de louça ou as camas estiverem desarrumadas ou o cesto de roupa suja ou varal estiverem cheios (o mesmo sistema de alarme poderá também trancar portas e janelas até que o trabalho devido seja executado).
Artigo V
Fica declarada proibida a produção de pisos e móveis que precisem ser encerados, acessórios de cozinha que precisem ser areados e tecidos que precisem ser passados a ferro.
Parágrafo único: As empresas interessadas terão 8 meses para se adequarem, a contar da publicação desta declaração.
Artigo VI
Fica instituído que o termo “totalmente branco” para qualificar os tecidos é preconceituoso e discriminatório, sendo assim, todas as tonalidades de branco serão respeitadas e aceitas igualmente, sem distinção.
Artigo VII
Toda mulher terá o direito de se desfazer (jogar no lixo), sem nenhuma culpa ou qualquer ônus, de panelas com substâncias agarradas demais ou queimadas e roupas ou sapatos sujos de barro, tinta ou graxa, sempre que ficar para ela o trabalho de limpeza dos mesmos.
Parágrafo 1°: Sugerimos que a mulher que se sinta prejudicada com a execução desse tipo de tarefa dê ao dono do objeto em questão 24 horas, não prorrogáveis, para limpar ou se livrar ele mesmo do referido objeto.
Parágrafo 2°: Caso a mulher tenha que se livrar do objeto não será de sua responsabilidade a reposição do mesmo, caso não lhe pertença. No caso de objetos da casa, todos deverão arcar com os custos.
Artigo VIII
A educação e o cuidado dos filhos também NÃO é tarefa exclusiva das mulheres ou mães.
Artigo único: Com exceção da amamentação, e por motivos óbvios, os homens poderão e deverão executar quaisquer outras tarefas concernentes aos cuidados e a educação dos bebês e crianças pequenas.
Artigo IX
O vaso sanitário passa a ser território de responsabilidade única e exclusiva do sexo masculino ou daqueles que, na residência, urinem de pé.
Parágrafo 1°: Todos os meninos passarão por um ritual de iniciação assim que adquirirem altura para urinar de pé no vaso sanitário. A partir deste ritual aprenderão a urinar dentro do vaso e também adquirirão noções básicas e avançadas de como cuidar da limpeza e desinfecção diária do mesmo.
Parágrafo 2°: O ensino e a manutenção dos rituais de cuidado com o vaso sanitário deverão ficar sob responsabilidade exclusiva dos homens; adultos ou jovens.
Parágrafo 3°: Uma mulher só poderá executar tais funções se e somente se não houver nenhum homem, adulto ou jovem, no lar.
Artigo X
Toda mulher que se sentir prejudicada pela não execução das tarefas do lar em conseqüência do desrespeito aos termos desta declaração terá o direito de:
Parágrafo 1°: reclamar, gritar ou proferir palavras de baixo calão sem culpa e sem que lhe seja imputada nenhuma pena ou sanção.
Parágrafo 2°: jogar no lixo, arremessar pela janela (guardando os devidos cuidados para evitar acidentes) ou queimar (guardadas as prerrogativas de segurança para evitar incêndio) os objetos que ficarem fora do seu lugar devido por mais de 24 horas, sem justificativa plausível e expressa.
Parágrafo 3°: se ausentar do lar por período de até 3 dias, sem que se caracterize abando do lar ou de incapaz, ou até que as tarefas sejam executadas e o fato seja oficialmente comunicado a ela por meio de telefonema, e-mail ou mensagem de celular. Se até no terceiro dia as tarefas não forem executadas cabe a mulher contratar uma diarista que assuma a execução das tarefas.
Parágrafo 4°: todas as medidas autorizadas neste artigo não devem resultar em nenhum ônus financeiro para a mulher que as executou. Reposição de objetos e pagamento de diarista, por exemplo, devem ser de responsabilidade dos demais moradores da casa que não executaram as tarefas devidas. Para os que não recebem salário o pagamento deve ser feito com mesada ou afins.
Artigo XI
Toda mulher terá o direito de se negar a fazer atividades ou favores sempre que se sentir exigida em excesso, desrespeitada no seu descanso ou sobrecarregada. Neste caso terá o direito de:
Parágrafo 1°: responder “agora NÂO”, “hoje NÂO” ou simplesmente “NÂO”, sem culpa e sem que lhe seja imputada nenhuma pena ou sanção.
Parágrafo 2°: responder “NÂO sei”, “NÂO vi”, ou “está onde você deixou”, quando interrogada sobre a localização de objetos que não lhe pertencem.
Parágrafo 3°: fingir não ter escutado, quando repetidamente lhe pedirem favores sem noção do tipo: “pegue minha toalha”, “pegue minha cueca”, “me traga um copo d’água”, “me traga uma cerveja” ou “frite um ovo pra mim”, especialmente quando não forem associados às palavras: “por favor” e “meu amor”, “mãezinha querida”, “minha rainha”, “melhor mãe do mundo”, “dona do meu coração” ou afins.
Artigo XII
Para os casos onde a dependência da mulher para executar o trabalho doméstico é grave, baseados nos princípios que norteiam esta declaração, esclarecemos:
Parágrafo 1°: Roupas e sapatos não se encaminham automaticamente para o armário, para o cesto de roupa suja ou para a máquina de lavar.
Parágrafo 2°: A água na geladeira não é fruto de geração espontânea, assim como, papel higiênico e sabonete também não nascem espontaneamente nos seus respectivos suportes.
Parágrafo 3°: Geladeira e despensa precisam ser continuamente abastecidas, por meio de idas freqüentes e rotineiras a padarias, açougues, quitandas e/ou supermercados. Alguns imaginam que ao retirarmos algum item daqueles lugares outro assume imediatamente seu lugar. Reiteramos que essa teoria não possui nenhum fundamento científico que lhe dê sustentação, portanto, não é plausível a sua defesa.
Parágrafo 4°: Apesar de defendermos este tipo de tecnologia no Artigo IV, ainda não contamos com alguma que faça com que pisos, tapetes e mobiliários absorvam imediatamente água ou sujeira.
Parágrafo 5°: Animais domésticos não conseguem se alimentar sem contar com o auxílio de um ser humano. Isso vale também para os cuidados de higiene (excetuando os gatos) e a limpeza dos seus dejetos.
Artigo XIII
Todos os artigos desta declaração têm o objetivo de reduzir a sobrecarga de trabalho imputada às mulheres, especialmente às mães de família que também trabalham fora do lar. Sendo assim, todas as sugestões encaminhadas com a finalidade de aperfeiçoar e melhorar esta declaração serão estudadas para possível inclusão no texto final.
28 de agosto de 2011.
trabalhadora do lar e fora do lar
A década de 60 inaugurou a “queima de sutiãs” como ato simbólico da luta das mulheres contra a opressão. Décadas depois podemos dizer que nós mulheres tivemos muitos êxitos, conquistamos espaço e direitos, especialmente no espaço “fora do lar”. No entanto, dentro dos nossos lares a coisa não mudou muito, continuamos sendo oprimidas, principalmente pelo que chamamos de dupla ou até tripla jornada de trabalho. Para as que trabalham fora e não podem pagar por uma empregada (e a tendência é que este seja cada vez mais um artigo de luxo) o trabalho doméstico é uma sobrecarga que oprime e restringe as liberdades femininas. Por isso, decidi escrever um esboço do que deveria ser a Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos. Sugiro que, num ato simbólico, queimemos dessa vez, vassouras, rodos, panos de chão, palhas de aço e afins, para declarar, de uma vez por todas, que as tarefas do lar NÃO são de responsabilidade exclusiva das mulheres.
Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos
Considerações:
Considerando que historicamente o trabalho doméstico e o cuidado das crianças pequenas tem sido uma responsabilidade atribuída eminentemente às mulheres.
Considerando que a dupla e a tripla jornada de trabalho tornou-se uma realidade comum para as mulheres brasileiras, que causa sobrecarga e restringe as liberdades das mesmas.
Considerando a prevalência de uma educação machista que não valoriza ou estimula o aprendizado das tarefas domésticas e de puericultura para meninos, rapazes ou homens.
Princípios:
Existem alguns princípios básicos que regem o trabalho doméstico, fundamentais para a compreensão das diretrizes desta declaração. São eles:
Primeiro princípio: Se alguém não fez não está feito
Segundo princípio: Se alguém não limpou não está limpo
Terceiro princípio: Se alguém na guardou não está guardado
Quarto princípio: Se alguém não comprou não está disponível para consumo
Tais princípios merecem destaque porque, em geral, as pessoas que não tem o costume de se ocuparem do trabalho doméstico acreditam que ele é executado automaticamente, sem que alguém o faça. Outros tendem a pensar que o mesmo é diariamente executado por alguma entidade sobrenatural, o que declaramos não ser verdade.
Partindo de tais considerações e princípios, declaramos:
Artigo I
As tarefas do lar são de responsabilidades de todos os que nele residem; homens e mulheres sejam eles adultos ou jovens.
Parágrafo único: ao executar uma tarefa doméstica o executante NÃO está fazendo um favor para a mulher ou mulheres que ali residem.
Artigo II
Meninos e meninas, sem distinção de gênero, serão educados desde criança para executarem tarefas domésticas, além de aprenderem noções de puericultura.
Parágrafo 1°: pais, mães ou responsáveis ensinarão gradativamente tais atividades às crianças, sempre respeitando o nível de compreensão, responsabilidade e maturidade de cada idade.
Parágrafo 2°: fica declarado proibido ensinar tais tarefas de maneira diferenciada por distinção de gênero.
Artigo III
Eletrodomésticos tais como máquina de lavar roupa, forno de microondas, freezer, secadora, aspirador de pó ou outros que comprovem sua eficácia na facilitação do trabalho doméstico, passam a ser considerados gêneros de primeira necessidade para o lar.
Parágrafo único: tais produtos deverão ser alvo de investimento nas políticas a fim de possuírem preços acessíveis e garantia total de reposição imediata em caso de roubo ou defeito.
Artigo IV
Empresas públicas e privadas devem investir em tecnologias para o trabalho doméstico.
Parágrafo 1°: Deve-se estimular a produção de tecnologias que, comprovadamente, reduzam a penosidade e o tempo gasto com o trabalho doméstico, como por exemplo: tecidos que não amarrotem e não manchem; panelas que realmente não agarrem sujeira; pisos, tecidos e tapetes que absorvam a sujeira; aspiradores de pó inteligentes; brinquedos que se encaminhem automaticamente para caixa após determinado tempo em desuso; fogões, fornos e geladeiras que sejam de fato autolimpantes; e outros.
Parágrafo 2°: Deve-se investir também em tecnologias avançadas para estimular a execução dos trabalhos domésticos, como por exemplo, sistema de alarme que impeça que a TV, o computador, o microondas ou chuveiro elétrico funcionem se a pia estiver cheia de louça ou as camas estiverem desarrumadas ou o cesto de roupa suja ou varal estiverem cheios (o mesmo sistema de alarme poderá também trancar portas e janelas até que o trabalho devido seja executado).
Artigo V
Fica declarada proibida a produção de pisos e móveis que precisem ser encerados, acessórios de cozinha que precisem ser areados e tecidos que precisem ser passados a ferro.
Parágrafo único: As empresas interessadas terão 8 meses para se adequarem, a contar da publicação desta declaração.
Artigo VI
Fica instituído que o termo “totalmente branco” para qualificar os tecidos é preconceituoso e discriminatório, sendo assim, todas as tonalidades de branco serão respeitadas e aceitas igualmente, sem distinção.
Artigo VII
Toda mulher terá o direito de se desfazer (jogar no lixo), sem nenhuma culpa ou qualquer ônus, de panelas com substâncias agarradas demais ou queimadas e roupas ou sapatos sujos de barro, tinta ou graxa, sempre que ficar para ela o trabalho de limpeza dos mesmos.
Parágrafo 1°: Sugerimos que a mulher que se sinta prejudicada com a execução desse tipo de tarefa dê ao dono do objeto em questão 24 horas, não prorrogáveis, para limpar ou se livrar ele mesmo do referido objeto.
Parágrafo 2°: Caso a mulher tenha que se livrar do objeto não será de sua responsabilidade a reposição do mesmo, caso não lhe pertença. No caso de objetos da casa, todos deverão arcar com os custos.
Artigo VIII
A educação e o cuidado dos filhos também NÃO é tarefa exclusiva das mulheres ou mães.
Artigo único: Com exceção da amamentação, e por motivos óbvios, os homens poderão e deverão executar quaisquer outras tarefas concernentes aos cuidados e a educação dos bebês e crianças pequenas.
Artigo IX
O vaso sanitário passa a ser território de responsabilidade única e exclusiva do sexo masculino ou daqueles que, na residência, urinem de pé.
Parágrafo 1°: Todos os meninos passarão por um ritual de iniciação assim que adquirirem altura para urinar de pé no vaso sanitário. A partir deste ritual aprenderão a urinar dentro do vaso e também adquirirão noções básicas e avançadas de como cuidar da limpeza e desinfecção diária do mesmo.
Parágrafo 2°: O ensino e a manutenção dos rituais de cuidado com o vaso sanitário deverão ficar sob responsabilidade exclusiva dos homens; adultos ou jovens.
Parágrafo 3°: Uma mulher só poderá executar tais funções se e somente se não houver nenhum homem, adulto ou jovem, no lar.
Artigo X
Toda mulher que se sentir prejudicada pela não execução das tarefas do lar em conseqüência do desrespeito aos termos desta declaração terá o direito de:
Parágrafo 1°: reclamar, gritar ou proferir palavras de baixo calão sem culpa e sem que lhe seja imputada nenhuma pena ou sanção.
Parágrafo 2°: jogar no lixo, arremessar pela janela (guardando os devidos cuidados para evitar acidentes) ou queimar (guardadas as prerrogativas de segurança para evitar incêndio) os objetos que ficarem fora do seu lugar devido por mais de 24 horas, sem justificativa plausível e expressa.
Parágrafo 3°: se ausentar do lar por período de até 3 dias, sem que se caracterize abando do lar ou de incapaz, ou até que as tarefas sejam executadas e o fato seja oficialmente comunicado a ela por meio de telefonema, e-mail ou mensagem de celular. Se até no terceiro dia as tarefas não forem executadas cabe a mulher contratar uma diarista que assuma a execução das tarefas.
Parágrafo 4°: todas as medidas autorizadas neste artigo não devem resultar em nenhum ônus financeiro para a mulher que as executou. Reposição de objetos e pagamento de diarista, por exemplo, devem ser de responsabilidade dos demais moradores da casa que não executaram as tarefas devidas. Para os que não recebem salário o pagamento deve ser feito com mesada ou afins.
Artigo XI
Toda mulher terá o direito de se negar a fazer atividades ou favores sempre que se sentir exigida em excesso, desrespeitada no seu descanso ou sobrecarregada. Neste caso terá o direito de:
Parágrafo 1°: responder “agora NÂO”, “hoje NÂO” ou simplesmente “NÂO”, sem culpa e sem que lhe seja imputada nenhuma pena ou sanção.
Parágrafo 2°: responder “NÂO sei”, “NÂO vi”, ou “está onde você deixou”, quando interrogada sobre a localização de objetos que não lhe pertencem.
Parágrafo 3°: fingir não ter escutado, quando repetidamente lhe pedirem favores sem noção do tipo: “pegue minha toalha”, “pegue minha cueca”, “me traga um copo d’água”, “me traga uma cerveja” ou “frite um ovo pra mim”, especialmente quando não forem associados às palavras: “por favor” e “meu amor”, “mãezinha querida”, “minha rainha”, “melhor mãe do mundo”, “dona do meu coração” ou afins.
Artigo XII
Para os casos onde a dependência da mulher para executar o trabalho doméstico é grave, baseados nos princípios que norteiam esta declaração, esclarecemos:
Parágrafo 1°: Roupas e sapatos não se encaminham automaticamente para o armário, para o cesto de roupa suja ou para a máquina de lavar.
Parágrafo 2°: A água na geladeira não é fruto de geração espontânea, assim como, papel higiênico e sabonete também não nascem espontaneamente nos seus respectivos suportes.
Parágrafo 3°: Geladeira e despensa precisam ser continuamente abastecidas, por meio de idas freqüentes e rotineiras a padarias, açougues, quitandas e/ou supermercados. Alguns imaginam que ao retirarmos algum item daqueles lugares outro assume imediatamente seu lugar. Reiteramos que essa teoria não possui nenhum fundamento científico que lhe dê sustentação, portanto, não é plausível a sua defesa.
Parágrafo 4°: Apesar de defendermos este tipo de tecnologia no Artigo IV, ainda não contamos com alguma que faça com que pisos, tapetes e mobiliários absorvam imediatamente água ou sujeira.
Parágrafo 5°: Animais domésticos não conseguem se alimentar sem contar com o auxílio de um ser humano. Isso vale também para os cuidados de higiene (excetuando os gatos) e a limpeza dos seus dejetos.
Artigo XIII
Todos os artigos desta declaração têm o objetivo de reduzir a sobrecarga de trabalho imputada às mulheres, especialmente às mães de família que também trabalham fora do lar. Sendo assim, todas as sugestões encaminhadas com a finalidade de aperfeiçoar e melhorar esta declaração serão estudadas para possível inclusão no texto final.
28 de agosto de 2011.
domingo, 17 de julho de 2011
O que fazer com as cracolândias?
por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
trabalhadora da rede de saúde mental do SUS
Responder a esta questão tem sido um desafio. E as respostas, em geral, têm se sustentado num discurso meramente higienista, cuja pretensão é, simplesmente, limpar certos locais do que a sociedade atual enxerga como lixo: certos usuários de droga, especialmente os de crack. A decisão de vários municípios, seja por intermédio da justiça ou por mera intervenção do poder público, tem sido a de promover a retirada das pessoas desses lugares sob as mais diversas alegações: de que estão infringindo a lei, perturbando a ordem pública ou de que precisam ser deslocadas para locais de assistência e tratamento.
Sabemos, no entanto, que a maior parte das intervenções feitas até o momento, apesar de muitas vezes travestidas dos mais dignos e decentes atos "humanos" e "cristãos", na verdade, só cumprem a função de limpar nossas cidades daquilo que a "sociedade de bem" não deseja ver; daquilo que lhe parece incômodo, inútil e sem valor.
E não é a primeira vez que esse tipo de estratégia é utilizada. Num passado não muito distante, que coincide com o início da era capitalista, loucos, bêbados, mendigos, aleijados, e todos aqueles que não serviam para movimentar a roda do sistema capitalista, que não podiam vender sua força de trabalho, foram recolhidos das ruas e encarcerados no Hospital Geral; instituição criada para esse fim. A ordem era sanear as cidades. Não estaríamos propondo a mesma coisa para as cracolândias?
Mas há uma outra pergunta desafiadora que talvez seja mais interessante que a que intitula este artigo, capaz de produzir respostas mais potentes para o fenômeno das cracolândias. Foi um amigo que me presenteou com esta reflexão: Porque exitem cracolândias? Porque não ouvimos falar de maconholândias, cocainolândias ou ecstasyitolândias?
Trata-se de uma pergunta realmente intrigante que me fez pensar, dentre outras coisas, sobre o lugar social que o crack vem ocupando no Brasil. Apesar de sabermos que o uso do crack está presente nas diversas classes sociais, é no abandono social e nas ruas que ele tem mostrado sua face mais perversa. Não há justificativa para defendermos a tese de que as cracolândias são formadas apenas pelo poder devastador e desagregador da química do crack, com se o crack fosse o único responsável pelas cracolândias. É muito mais realista pensar que um certo tipo de população já excluída pela sociedade, seja pela miséria, pelo abandono, pelo alcoolismo ou pela dependência de outras drogas, fez do crack "a sua droga", numa tentativa de remediar o próprio sofrimento, e para isso precisaram criar um lugar delimitado na pólis. As cracolândias, na verdade, são frutos de políticas preconceituosas, excludentes, moralistas e da tão anunciada "guerra contra as drogas". Enquanto continuarmos em "guerra contra as drogas", as cracolândias funcionarão como um território de refugiados, como um gueto para os excluídos.
É de Slavo Zizek a seguinte afirmação: "É bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto outros ficam com o risco". Na questão do uso de drogas isso fica muito claro. Apenas a "sociedade de bem" fica com as escolhas, mesmo que porventura arriscadas. Ela pode escolher entre vodka ou cerveja, se vai tomar remédios para dormir ou para se livrar do pânico cotidiano, se sua balada vai ser movida a "doce" ou "bala". Mas os frequentadores das cracolândias ou os que estão caminhando para ela, são exatamente os que perderam suas possibilidades de escolha e ficaram apenas com o risco.
Diante dessa realidade, o único caminho sensato para se pensar as cracolândias seria no sentido de reduzir os riscos que seus frequentadores enfrentam e possibilitar-lhes escolhas, sem esquecer que oferecer-lhes escolhas não é escolher por eles. Entretanto, sabemos que em muitos casos, a degradação subjetiva pode ter lhes prejudicado severamente a capacidade de fazer escolhas. Podemos, nesses casos, criar estratégias que nos possibilitem escolher com eles, mas jamais à revelia deles, como se tem feito. Também não devemos ofertar a essas pessoas apenas dois caminhos possíveis: com drogas ou sem drogas. É fundamental também considerar possibilidades que incluam viver - com dignidade, com todas as suas potencialidades e contradições - apesar das drogas. E sem nenhuma hipocrisia, tal como faz a maioria de nós.
psicanalista
trabalhadora da rede de saúde mental do SUS
Responder a esta questão tem sido um desafio. E as respostas, em geral, têm se sustentado num discurso meramente higienista, cuja pretensão é, simplesmente, limpar certos locais do que a sociedade atual enxerga como lixo: certos usuários de droga, especialmente os de crack. A decisão de vários municípios, seja por intermédio da justiça ou por mera intervenção do poder público, tem sido a de promover a retirada das pessoas desses lugares sob as mais diversas alegações: de que estão infringindo a lei, perturbando a ordem pública ou de que precisam ser deslocadas para locais de assistência e tratamento.
Sabemos, no entanto, que a maior parte das intervenções feitas até o momento, apesar de muitas vezes travestidas dos mais dignos e decentes atos "humanos" e "cristãos", na verdade, só cumprem a função de limpar nossas cidades daquilo que a "sociedade de bem" não deseja ver; daquilo que lhe parece incômodo, inútil e sem valor.
E não é a primeira vez que esse tipo de estratégia é utilizada. Num passado não muito distante, que coincide com o início da era capitalista, loucos, bêbados, mendigos, aleijados, e todos aqueles que não serviam para movimentar a roda do sistema capitalista, que não podiam vender sua força de trabalho, foram recolhidos das ruas e encarcerados no Hospital Geral; instituição criada para esse fim. A ordem era sanear as cidades. Não estaríamos propondo a mesma coisa para as cracolândias?
Mas há uma outra pergunta desafiadora que talvez seja mais interessante que a que intitula este artigo, capaz de produzir respostas mais potentes para o fenômeno das cracolândias. Foi um amigo que me presenteou com esta reflexão: Porque exitem cracolândias? Porque não ouvimos falar de maconholândias, cocainolândias ou ecstasyitolândias?
Trata-se de uma pergunta realmente intrigante que me fez pensar, dentre outras coisas, sobre o lugar social que o crack vem ocupando no Brasil. Apesar de sabermos que o uso do crack está presente nas diversas classes sociais, é no abandono social e nas ruas que ele tem mostrado sua face mais perversa. Não há justificativa para defendermos a tese de que as cracolândias são formadas apenas pelo poder devastador e desagregador da química do crack, com se o crack fosse o único responsável pelas cracolândias. É muito mais realista pensar que um certo tipo de população já excluída pela sociedade, seja pela miséria, pelo abandono, pelo alcoolismo ou pela dependência de outras drogas, fez do crack "a sua droga", numa tentativa de remediar o próprio sofrimento, e para isso precisaram criar um lugar delimitado na pólis. As cracolândias, na verdade, são frutos de políticas preconceituosas, excludentes, moralistas e da tão anunciada "guerra contra as drogas". Enquanto continuarmos em "guerra contra as drogas", as cracolândias funcionarão como um território de refugiados, como um gueto para os excluídos.
É de Slavo Zizek a seguinte afirmação: "É bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto outros ficam com o risco". Na questão do uso de drogas isso fica muito claro. Apenas a "sociedade de bem" fica com as escolhas, mesmo que porventura arriscadas. Ela pode escolher entre vodka ou cerveja, se vai tomar remédios para dormir ou para se livrar do pânico cotidiano, se sua balada vai ser movida a "doce" ou "bala". Mas os frequentadores das cracolândias ou os que estão caminhando para ela, são exatamente os que perderam suas possibilidades de escolha e ficaram apenas com o risco.
Diante dessa realidade, o único caminho sensato para se pensar as cracolândias seria no sentido de reduzir os riscos que seus frequentadores enfrentam e possibilitar-lhes escolhas, sem esquecer que oferecer-lhes escolhas não é escolher por eles. Entretanto, sabemos que em muitos casos, a degradação subjetiva pode ter lhes prejudicado severamente a capacidade de fazer escolhas. Podemos, nesses casos, criar estratégias que nos possibilitem escolher com eles, mas jamais à revelia deles, como se tem feito. Também não devemos ofertar a essas pessoas apenas dois caminhos possíveis: com drogas ou sem drogas. É fundamental também considerar possibilidades que incluam viver - com dignidade, com todas as suas potencialidades e contradições - apesar das drogas. E sem nenhuma hipocrisia, tal como faz a maioria de nós.
domingo, 5 de junho de 2011
Satisfação Garantida
por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Zapeando com o controle da TV, passei por um canal no qual um garoto propaganda apresentava seu produto e fazia a seguinte afirmação: “- Garantimos sua satisfação”. Num primeiro momento, achei graça da pretensão do fabricante do produto ou do idealizador da propaganda em garantir a satisfação do cliente, mas depois fiquei pensando que o ideal dessa nossa sociedade de consumo é mesmo esse: satisfação garantida. Nosso projeto de consumo é adquirir objetos, saberes ou bens que nos completem; que nos satisfaçam plenamente.
A economia marxiana se baseia na teoria da mais-valia, que diz mais ou menos o seguinte: No sistema capitalista, o trabalhador vende sua força de trabalho para o capitalista, entretanto, existe um quanto de trabalho que jamais será remunerado, ou seja, a força de trabalho despedida pelo trabalhador nunca será totalmente paga por meio do seu salário; a isso Marx chamou de mais-valia (o que ficará para sempre impagável). Estender o conceito de mais-valia na economia de nossas relações com as pessoas ou com os objetos-mercadoria é compreender que a tal satisfação garantida é algo que não se pode prometer.
Freud também dizia algo semelhante em sua teoria psicológica. Nesse caso, utilizou o conceito de impossibilidade para traduzir a economia das relações humanas. Freud afirmou certa vez que educar, governar, psicanalisar são tarefas impossíveis. O que ele quis dizer com essa afirmação é que mesmo com todos os nossos esforços e tentativas de obter pleno sucesso, ou satisfação garantida nessas tarefas, ainda sim, haverá algo que nunca ficará plenamente satisfeito; que é ineducável, ingovernável ou inanalisável.
Tanto Marx quanto Freud nos avisavam que essa idéia de satisfação garantida é um engodo. A sociedade de consumo, no entanto tenta nos vender, a todo tempo, esse engano; de que a satisfação garantida pode ser comprada e tem um preço e se ainda não a conquistamos é, tão somente, porque ainda não pudemos pagar por ela.
Assim, seguimos nesse ideal da sociedade de consumo, almejando-o em todos os campos. Exigimos satisfação garantida nas nossas relações familiares, amorosas, e sociais. Exigimos satisfação garantida em nosso trabalho e na nossa vida escolar ou de nossos filhos. Esperamos satisfação garantida até mesmo em situações de doença, separação e perda, ainda que a tal garantia de satisfação signifique assegurar alguma indenização em espécie. Seguimos acreditando que não há nada que não possa ser remendado, reparado, medicalizado, solucionado ou curado. Perdemos cada vez mais a capacidade de lidar com nossas insatisfações; tanto as pequenas e quanto as grandes.
Depois nos queixamos da incapacidade de nossas crianças e jovens em lidar com frustrações e fracassos. Estranhamos porque são violentos e impulsivos quando recebem um não. Não percebemos o quanto prometemos a eles um mundo de satisfação garantida, ou seja, que não os educamos para lidarem com seus fracassos e limitações, com as impossibilidades nossas de cada dia.
E ainda nos perguntamos: porque o uso de drogas se tornou tão problemático atualmente? Se em décadas anteriores tal comportamento tinha uma conotação revolucionária, de crítica social, hoje se tornou basicamente, um modo de responder a esse imperativo que nos governa. O uso de drogas dos nossos tempos, não é um ato rebelde, de busca de novas experiências ou transcendência psíquica, mas principalmente, uma busca desenfreada por satisfação garantida, transformando tal comportamento, não por acaso, num dos mais bem adaptados à sociedade de consumo. As drogas de hoje prometem: satisfação garantida e, além de tudo, imediata.
Mas porque será então que nunca estivemos tão insatisfeitos? Porque a promessa de satisfação garantida carrega consigo um paradoxo. Como se imagina que ela pode ser alcançada, o que é um engano, ficamos sempre com essa sensação de insatisfação, numa busca frenética por mais e mais. Consumir cada vez mais, objetos, bens, drogas ou saberes, na busca do tão sonhado ideal que garantiria plenamente nossa satisfação
Proponho que inauguremos uma nova ética, que eu chamaria de ética da satisfação contingente. Entenderíamos com essa nova ética que qualquer satisfação nunca poderá ser plenamente garantida, o que não quer dizer que ela não possa ser perseguida ou desejada, mas dessa vez com a consciência de que sempre será contingente, ou seja, duvidosa, eventual e incerta. Compreender que toda satisfação é apenas contingente, nos libertaria do mundo idealizado que perseguimos e abriria nossos olhos para aquelas satisfações que geralmente não nos contentam - imperfeitas, fugazes, às vezes estranhas – mas, dessa vez, repletas do mundo real, de possibilidades reais e, sobretudo, de pessoas reais.
psicanalista
Zapeando com o controle da TV, passei por um canal no qual um garoto propaganda apresentava seu produto e fazia a seguinte afirmação: “- Garantimos sua satisfação”. Num primeiro momento, achei graça da pretensão do fabricante do produto ou do idealizador da propaganda em garantir a satisfação do cliente, mas depois fiquei pensando que o ideal dessa nossa sociedade de consumo é mesmo esse: satisfação garantida. Nosso projeto de consumo é adquirir objetos, saberes ou bens que nos completem; que nos satisfaçam plenamente.
A economia marxiana se baseia na teoria da mais-valia, que diz mais ou menos o seguinte: No sistema capitalista, o trabalhador vende sua força de trabalho para o capitalista, entretanto, existe um quanto de trabalho que jamais será remunerado, ou seja, a força de trabalho despedida pelo trabalhador nunca será totalmente paga por meio do seu salário; a isso Marx chamou de mais-valia (o que ficará para sempre impagável). Estender o conceito de mais-valia na economia de nossas relações com as pessoas ou com os objetos-mercadoria é compreender que a tal satisfação garantida é algo que não se pode prometer.
Freud também dizia algo semelhante em sua teoria psicológica. Nesse caso, utilizou o conceito de impossibilidade para traduzir a economia das relações humanas. Freud afirmou certa vez que educar, governar, psicanalisar são tarefas impossíveis. O que ele quis dizer com essa afirmação é que mesmo com todos os nossos esforços e tentativas de obter pleno sucesso, ou satisfação garantida nessas tarefas, ainda sim, haverá algo que nunca ficará plenamente satisfeito; que é ineducável, ingovernável ou inanalisável.
Tanto Marx quanto Freud nos avisavam que essa idéia de satisfação garantida é um engodo. A sociedade de consumo, no entanto tenta nos vender, a todo tempo, esse engano; de que a satisfação garantida pode ser comprada e tem um preço e se ainda não a conquistamos é, tão somente, porque ainda não pudemos pagar por ela.
Assim, seguimos nesse ideal da sociedade de consumo, almejando-o em todos os campos. Exigimos satisfação garantida nas nossas relações familiares, amorosas, e sociais. Exigimos satisfação garantida em nosso trabalho e na nossa vida escolar ou de nossos filhos. Esperamos satisfação garantida até mesmo em situações de doença, separação e perda, ainda que a tal garantia de satisfação signifique assegurar alguma indenização em espécie. Seguimos acreditando que não há nada que não possa ser remendado, reparado, medicalizado, solucionado ou curado. Perdemos cada vez mais a capacidade de lidar com nossas insatisfações; tanto as pequenas e quanto as grandes.
Depois nos queixamos da incapacidade de nossas crianças e jovens em lidar com frustrações e fracassos. Estranhamos porque são violentos e impulsivos quando recebem um não. Não percebemos o quanto prometemos a eles um mundo de satisfação garantida, ou seja, que não os educamos para lidarem com seus fracassos e limitações, com as impossibilidades nossas de cada dia.
E ainda nos perguntamos: porque o uso de drogas se tornou tão problemático atualmente? Se em décadas anteriores tal comportamento tinha uma conotação revolucionária, de crítica social, hoje se tornou basicamente, um modo de responder a esse imperativo que nos governa. O uso de drogas dos nossos tempos, não é um ato rebelde, de busca de novas experiências ou transcendência psíquica, mas principalmente, uma busca desenfreada por satisfação garantida, transformando tal comportamento, não por acaso, num dos mais bem adaptados à sociedade de consumo. As drogas de hoje prometem: satisfação garantida e, além de tudo, imediata.
Mas porque será então que nunca estivemos tão insatisfeitos? Porque a promessa de satisfação garantida carrega consigo um paradoxo. Como se imagina que ela pode ser alcançada, o que é um engano, ficamos sempre com essa sensação de insatisfação, numa busca frenética por mais e mais. Consumir cada vez mais, objetos, bens, drogas ou saberes, na busca do tão sonhado ideal que garantiria plenamente nossa satisfação
Proponho que inauguremos uma nova ética, que eu chamaria de ética da satisfação contingente. Entenderíamos com essa nova ética que qualquer satisfação nunca poderá ser plenamente garantida, o que não quer dizer que ela não possa ser perseguida ou desejada, mas dessa vez com a consciência de que sempre será contingente, ou seja, duvidosa, eventual e incerta. Compreender que toda satisfação é apenas contingente, nos libertaria do mundo idealizado que perseguimos e abriria nossos olhos para aquelas satisfações que geralmente não nos contentam - imperfeitas, fugazes, às vezes estranhas – mas, dessa vez, repletas do mundo real, de possibilidades reais e, sobretudo, de pessoas reais.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Bullying e judicialização das relações pessoais
por Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista
Bullying é o tema do momento. A palavra é inglesa e originária da palavra bully cuja tradução é valentão. Naturalmente que valentões e valentonas sempre existiram. E acredito que todos nós pelo menos em algum momento na vida fomos vítimas de algum valentão e/ou já nos comportamos como um. Mas porque será que o bullying se tornou um problema com tanto destaque nos últimos tempos, a ponto de parecer que ele só surgiu recentemente? Não tenho respostas formuladas para esta questão, mas acredito que haja um caldeirão favorável que faz com que o bullying esteja tão em voga.
Freud dizia que a fonte de maior sofrimento para nós é resultante de nossas relações com os outros já que, inevitavelmente e invariavelmente elas produzem alguma espécie de fracasso ou mal-estar. Vivemos, no entanto, numa era onde fracassos e mal-estares são completamente abominados. Então, se não há espaço para os mal-entendidos tudo precisa ficar sempre bem-entendido e, uma das formas que encontramos para aplacar os mal-entendidos da atualidade tem sido convocar rotineiramente o discurso judiciário para mediar nossas relações. A isso chamamos judicialização das relações pessoais. Mas, o perigo de sempre recorrer a este tipo de discurso para solucionar nossos problemas interpessoais é o de nos colocarmos sempre em lugares estanques e cristalizados; ou somos as vítimas ou somos seus algozes.
Permeado por um discurso fortemente judicializado torna-se preocupante a maneira como tem sido tratada a questão do que aprendemos a chamar de bullying. A exploração do tema tem se ocupado em dar voz a um exército infindável de pessoas que afirmam sofrerem ou terem sofrido esta forma de violência e que não se cansam de reafirmarem o lugar que foi definido para elas; o de vítimas. Os algozes por sua vez são os demônios do momento, execrados em suas condutas violentas e opressoras, mas que, afinal, apenas reproduzem as relações de poder que nossa sociedade semeia e reforça.
Tenho um filho adolescente. Certa vez, quando ele contava com uns 8 anos de idade, me relatou que havia um garoto em sua sala que o intimidava constantemente, com palavras e pequenas agressões. A meu pedido, ele me apontou o garoto na saída da escola que, como eu já suspeitava, tinha o dobro seu do tamanho. Me lembro que na hora em que vi o garoto, tive ímpetos de abordá-lo e tirar satisfações ou procurar os pais dele ou ainda me reportar à direção da escola. Ao contrário do que a grande maioria das pessoas pensa, mães psicólogas ou psicanalistas não pautam suas intervenções em teorias e fórmulas científicas. Educam como a maioria dos pais, baseados em seus saberes inconscientes, ou seja, saberes não teorizáveis e que foram adquiridos ao longo da vida. Sendo assim, com meu coração apertado e sem saber se estava tomando a melhor decisão, apenas disse ao meu filho algo mais ou menos assim: – Sei que este garoto tem o dobro do seu tamanho e sei que você está com medo dele, eu também teria se estivesse no seu lugar, mas também sei que você é muito mais inteligente que ele e vai saber resolver este problema. Passaram-se os dias e meu filho não se queixou mais do valentão. Certo dia, perguntei a ele se o garoto ainda o importunava e ele me disse: - Tudo bem, mãe. Eu já resolvi. Agora somos amigos. Perguntei como isso tinha acontecido e ele me disse com simplicidade: - Eu perguntei se ele queria ser meu amigo e ele aceitou.
Obviamente que ao fazer esta intervenção com meu filho eu jamais poderia imaginar o seu desdobramento, ainda mais um tão inusitado. Minha fantasia de solução transitava entre o final do filme Karatê-kid (onde o menino franzino finalmente dá uma surra no valentão) e uma revolução coletiva dos magrelos contra os fortões, liderada pelo meu filho, é claro. Hoje eu sei que a maneira que ele encontrou para resolver sua diferença com o valentão da sala foi invenção dele, mas também sei que ela só pôde acontecer porque eu, mesmo sem saber, permiti com minha maneira de intervir, que ele deixasse de ser apenas uma vítima dessa cena para também protagonizá-la. Se eu tivesse abordado o tal valentão, por exemplo, poderia até conseguir que ele deixasse de ser o algoz do meu filho, mas este jamais deixaria de ser a vítima.
Este é o problema das intervenções baseadas no discurso judicializado, elas apenas reforçam os papéis que já foram estabelecidos, sendo assim, as mudanças só ocorrem numa provável inversão de posições – como aconteceu no caso de Casey Haynes o menino gordinho que se tornou febre na internet depois de cansar de ser saco de pancadas e revidar em seu agressor – o que não modifica em nada o produto da relação, neste caso, violência.
Não pretendo de maneira nenhuma fazer deste relato uma receita para lidar com o bullying, pois, não acredito em receitas para educar e muito menos em receitas para resolver nossos mal-estares quotidianos. Mas, creio que devemos evitar intervenções que sirvam apenas para cristalizar e reforçar as pessoas em determinados lugares, dando a falsa impressão de que estamos tratando do problema. Sendo assim, coibir e punir os agressores pode até inibi-los em determinadas situações, mas não os fará questionar suas atitudes e sua posição perante o outro. Da mesma maneira, ter piedade e proteger as vítimas, não as fará experimentar posições subjetivas mais potentes e proativas.
Meu filho me ensinou muito em nossa experiência com o tal bullying, que na época nem tinha esse nome. Aprendi que muito além de agressores e agredidos, de vítimas e algozes, esta forma de mal-estar pode produzir algo muito mais interessante e positivo: amigos. E porque não? Sem esquecer que mesmo os amigos às vezes se desentendem.
psicanalista
Bullying é o tema do momento. A palavra é inglesa e originária da palavra bully cuja tradução é valentão. Naturalmente que valentões e valentonas sempre existiram. E acredito que todos nós pelo menos em algum momento na vida fomos vítimas de algum valentão e/ou já nos comportamos como um. Mas porque será que o bullying se tornou um problema com tanto destaque nos últimos tempos, a ponto de parecer que ele só surgiu recentemente? Não tenho respostas formuladas para esta questão, mas acredito que haja um caldeirão favorável que faz com que o bullying esteja tão em voga.
Freud dizia que a fonte de maior sofrimento para nós é resultante de nossas relações com os outros já que, inevitavelmente e invariavelmente elas produzem alguma espécie de fracasso ou mal-estar. Vivemos, no entanto, numa era onde fracassos e mal-estares são completamente abominados. Então, se não há espaço para os mal-entendidos tudo precisa ficar sempre bem-entendido e, uma das formas que encontramos para aplacar os mal-entendidos da atualidade tem sido convocar rotineiramente o discurso judiciário para mediar nossas relações. A isso chamamos judicialização das relações pessoais. Mas, o perigo de sempre recorrer a este tipo de discurso para solucionar nossos problemas interpessoais é o de nos colocarmos sempre em lugares estanques e cristalizados; ou somos as vítimas ou somos seus algozes.
Permeado por um discurso fortemente judicializado torna-se preocupante a maneira como tem sido tratada a questão do que aprendemos a chamar de bullying. A exploração do tema tem se ocupado em dar voz a um exército infindável de pessoas que afirmam sofrerem ou terem sofrido esta forma de violência e que não se cansam de reafirmarem o lugar que foi definido para elas; o de vítimas. Os algozes por sua vez são os demônios do momento, execrados em suas condutas violentas e opressoras, mas que, afinal, apenas reproduzem as relações de poder que nossa sociedade semeia e reforça.
Tenho um filho adolescente. Certa vez, quando ele contava com uns 8 anos de idade, me relatou que havia um garoto em sua sala que o intimidava constantemente, com palavras e pequenas agressões. A meu pedido, ele me apontou o garoto na saída da escola que, como eu já suspeitava, tinha o dobro seu do tamanho. Me lembro que na hora em que vi o garoto, tive ímpetos de abordá-lo e tirar satisfações ou procurar os pais dele ou ainda me reportar à direção da escola. Ao contrário do que a grande maioria das pessoas pensa, mães psicólogas ou psicanalistas não pautam suas intervenções em teorias e fórmulas científicas. Educam como a maioria dos pais, baseados em seus saberes inconscientes, ou seja, saberes não teorizáveis e que foram adquiridos ao longo da vida. Sendo assim, com meu coração apertado e sem saber se estava tomando a melhor decisão, apenas disse ao meu filho algo mais ou menos assim: – Sei que este garoto tem o dobro do seu tamanho e sei que você está com medo dele, eu também teria se estivesse no seu lugar, mas também sei que você é muito mais inteligente que ele e vai saber resolver este problema. Passaram-se os dias e meu filho não se queixou mais do valentão. Certo dia, perguntei a ele se o garoto ainda o importunava e ele me disse: - Tudo bem, mãe. Eu já resolvi. Agora somos amigos. Perguntei como isso tinha acontecido e ele me disse com simplicidade: - Eu perguntei se ele queria ser meu amigo e ele aceitou.
Obviamente que ao fazer esta intervenção com meu filho eu jamais poderia imaginar o seu desdobramento, ainda mais um tão inusitado. Minha fantasia de solução transitava entre o final do filme Karatê-kid (onde o menino franzino finalmente dá uma surra no valentão) e uma revolução coletiva dos magrelos contra os fortões, liderada pelo meu filho, é claro. Hoje eu sei que a maneira que ele encontrou para resolver sua diferença com o valentão da sala foi invenção dele, mas também sei que ela só pôde acontecer porque eu, mesmo sem saber, permiti com minha maneira de intervir, que ele deixasse de ser apenas uma vítima dessa cena para também protagonizá-la. Se eu tivesse abordado o tal valentão, por exemplo, poderia até conseguir que ele deixasse de ser o algoz do meu filho, mas este jamais deixaria de ser a vítima.
Este é o problema das intervenções baseadas no discurso judicializado, elas apenas reforçam os papéis que já foram estabelecidos, sendo assim, as mudanças só ocorrem numa provável inversão de posições – como aconteceu no caso de Casey Haynes o menino gordinho que se tornou febre na internet depois de cansar de ser saco de pancadas e revidar em seu agressor – o que não modifica em nada o produto da relação, neste caso, violência.
Não pretendo de maneira nenhuma fazer deste relato uma receita para lidar com o bullying, pois, não acredito em receitas para educar e muito menos em receitas para resolver nossos mal-estares quotidianos. Mas, creio que devemos evitar intervenções que sirvam apenas para cristalizar e reforçar as pessoas em determinados lugares, dando a falsa impressão de que estamos tratando do problema. Sendo assim, coibir e punir os agressores pode até inibi-los em determinadas situações, mas não os fará questionar suas atitudes e sua posição perante o outro. Da mesma maneira, ter piedade e proteger as vítimas, não as fará experimentar posições subjetivas mais potentes e proativas.
Meu filho me ensinou muito em nossa experiência com o tal bullying, que na época nem tinha esse nome. Aprendi que muito além de agressores e agredidos, de vítimas e algozes, esta forma de mal-estar pode produzir algo muito mais interessante e positivo: amigos. E porque não? Sem esquecer que mesmo os amigos às vezes se desentendem.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
“O SUS que não se vê”
por Rita de Cássia de Araújo Almeida
trabalhadora e usuária do SUS
Este mês a Revista Radis da Fiocruz publicou excelente matéria intitulada: “O SUS que não se vê” que trata de mostrar o real tamanho e abrangência do Sistema Único de Saúde. O ensaio se baseia em dados colhidos por pesquisa do IPEA, publicados em fevereiro. Segundo tais dados cerca de 34% da população afirma nunca ter utilizado o SUS e também revelam um dado curioso: o sistema de saúde brasileiro é mais bem avaliado por aqueles que costumam utilizá-lo. Partindo de tais dados a publicação propõe algumas discussões interessantes que desmistificam equívocos e preconceitos relacionados à idéia que a maioria de nós faz do nosso sistema público de saúde.
O primeiro, e possivelmente o maior equívoco deles, é acreditar ser possível que algum brasileiro não seja usuário do SUS. O sistema faz parte do dia a dia de todos nós, mesmo que, às vezes, de maneira invisível. Utilizamos o SUS ao almoçarmos em um restaurante e ao adquirimos produtos alimentícios e medicamentos, por exemplo, pois todas as ações de vigilância sanitária são atribuições do SUS. As campanhas de vacinação para controle e erradicação de doenças, propagandas e campanhas educativas para prevenção de doenças e agravos à saúde, pesquisa e produção de medicamentos e terapêuticas, além de acesso a tratamentos de alta complexidade, especialmente aqueles que não interessam ao sistema privado, são algumas das ações do SUS que a maioria desconhece. Sendo assim, ao contrário do que se imagina, o SUS não se limita aos atendimentos oferecidos nos postos de saúde ou hospitais públicos, sua abrangência é de tal proporção que é impossível que algum brasileiro possa dizer que nunca tenha utilizado o sistema.
Quando discute o nível de satisfação dos brasileiros com o SUS a pesquisa é ainda mais reveladora: o índice de satisfação do brasileiro é maior entre os que se dizem usuários do sistema, enquanto que o percentual dos que o consideram ruim ou muito ruim é maior entre os que afirmam não fazerem uso dele. Partindo desta constatação a matéria abre uma discussão importante sobre a influência da mídia na opinião da população a respeito do SUS. A revista denuncia uma “má vontade” da grande imprensa para com o SUS, na medida em que se interessa preferencialmente por relatos e imagens de pessoas afetadas pelas falhas do sistema, ao mesmo tempo em que não atribui ao mesmo as ações que dão certo e os indicadores positivos resultantes de tais ações.
O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, invejado por outros países como os EUA, por exemplo. Tem um programa de imunização de doenças que é um sucesso, sendo o responsável pela erradicação de várias delas. O impacto do SUS na redução da mortalidade infantil é indiscutível. O Brasil tem um sistema de tratamento e prevenção de HIV/aids exemplar e é o sistema público que mais faz transplantes e hemodiálises no mundo todo, incluindo a manutenção de uma rede de doadores com excelência em tecnologia. Grande parte das intervenções de alta complexidade, especialmente aquelas que não são de interesse do sistema privado, por serem muito dispendiosas, ficam a cargo do SUS. A Farmácia Popular não beneficia apenas os que têm acesso à medicação gratuita, ao impulsionar a expansão do mercado, promove também a queda dos preços para os demais consumidores. Essas são algumas das informações positivas a respeito do SUS que são pouco divulgadas na mídia, ou quando são divulgadas não são atribuídas como ações do SUS.
A matéria defende que essa propaganda negativa do SUS se deve, em parte, por uma orientação ideológica neoliberal, cujo interesse é sustentar o discurso de que o público não funciona. Seduzida por tal discurso a classe média vem cada vez mais procurando pelos planos de saúde, acreditando que desta maneira não precisará utilizar o SUS e reforçando uma idéia que precisa perder força: a de que “o SUS é para os pobres”.
Sabe-se, no entanto, que a cobertura dos planos de saúde se dedica basicamente a consultas e exames ou tratamentos de baixo custo, ou seja, aqueles procedimentos que trazem mais lucros para as seguradoras. Os demais, por necessitarem de maior abrangência ou complexidade, e que obviamente os planos não cobrem por serem muito caros, ficam a cargo do SUS. Para se ter uma idéia, segundo o Ministério da Saúde, há uma estimativa de que cerca de 20% dos usuários de planos de saúde se utilizam dos serviços hospitalares do SUS, o que equivale a um custo que pode chegar a 1 bilhão por ano, custo que não é ressarcido ao SUS pelas seguradoras.
A idealização do SUS tem raízes numa concepção de saúde integral, solidária, humanitária, democrática e que não seja objeto das leis do mercado. Esse diferencial já seria suficiente para defendermos o SUS como patrimônio nacional, estabelecendo com ele uma noção maior de pertencimento e agregando-lhe o valor que realmente merece. Entender que “o SUS é nosso” se faz fundamental para militarmos em sua defesa, a fim de lhe garantir financiamento adequado e melhoria na qualidade de seus serviços e ações. Por isso, se lhe perguntarem se você é usuário do SUS não se envergonhe em dizer que sim. O Brasil agradece.
trabalhadora e usuária do SUS
Este mês a Revista Radis da Fiocruz publicou excelente matéria intitulada: “O SUS que não se vê” que trata de mostrar o real tamanho e abrangência do Sistema Único de Saúde. O ensaio se baseia em dados colhidos por pesquisa do IPEA, publicados em fevereiro. Segundo tais dados cerca de 34% da população afirma nunca ter utilizado o SUS e também revelam um dado curioso: o sistema de saúde brasileiro é mais bem avaliado por aqueles que costumam utilizá-lo. Partindo de tais dados a publicação propõe algumas discussões interessantes que desmistificam equívocos e preconceitos relacionados à idéia que a maioria de nós faz do nosso sistema público de saúde.
O primeiro, e possivelmente o maior equívoco deles, é acreditar ser possível que algum brasileiro não seja usuário do SUS. O sistema faz parte do dia a dia de todos nós, mesmo que, às vezes, de maneira invisível. Utilizamos o SUS ao almoçarmos em um restaurante e ao adquirimos produtos alimentícios e medicamentos, por exemplo, pois todas as ações de vigilância sanitária são atribuições do SUS. As campanhas de vacinação para controle e erradicação de doenças, propagandas e campanhas educativas para prevenção de doenças e agravos à saúde, pesquisa e produção de medicamentos e terapêuticas, além de acesso a tratamentos de alta complexidade, especialmente aqueles que não interessam ao sistema privado, são algumas das ações do SUS que a maioria desconhece. Sendo assim, ao contrário do que se imagina, o SUS não se limita aos atendimentos oferecidos nos postos de saúde ou hospitais públicos, sua abrangência é de tal proporção que é impossível que algum brasileiro possa dizer que nunca tenha utilizado o sistema.
Quando discute o nível de satisfação dos brasileiros com o SUS a pesquisa é ainda mais reveladora: o índice de satisfação do brasileiro é maior entre os que se dizem usuários do sistema, enquanto que o percentual dos que o consideram ruim ou muito ruim é maior entre os que afirmam não fazerem uso dele. Partindo desta constatação a matéria abre uma discussão importante sobre a influência da mídia na opinião da população a respeito do SUS. A revista denuncia uma “má vontade” da grande imprensa para com o SUS, na medida em que se interessa preferencialmente por relatos e imagens de pessoas afetadas pelas falhas do sistema, ao mesmo tempo em que não atribui ao mesmo as ações que dão certo e os indicadores positivos resultantes de tais ações.
O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, invejado por outros países como os EUA, por exemplo. Tem um programa de imunização de doenças que é um sucesso, sendo o responsável pela erradicação de várias delas. O impacto do SUS na redução da mortalidade infantil é indiscutível. O Brasil tem um sistema de tratamento e prevenção de HIV/aids exemplar e é o sistema público que mais faz transplantes e hemodiálises no mundo todo, incluindo a manutenção de uma rede de doadores com excelência em tecnologia. Grande parte das intervenções de alta complexidade, especialmente aquelas que não são de interesse do sistema privado, por serem muito dispendiosas, ficam a cargo do SUS. A Farmácia Popular não beneficia apenas os que têm acesso à medicação gratuita, ao impulsionar a expansão do mercado, promove também a queda dos preços para os demais consumidores. Essas são algumas das informações positivas a respeito do SUS que são pouco divulgadas na mídia, ou quando são divulgadas não são atribuídas como ações do SUS.
A matéria defende que essa propaganda negativa do SUS se deve, em parte, por uma orientação ideológica neoliberal, cujo interesse é sustentar o discurso de que o público não funciona. Seduzida por tal discurso a classe média vem cada vez mais procurando pelos planos de saúde, acreditando que desta maneira não precisará utilizar o SUS e reforçando uma idéia que precisa perder força: a de que “o SUS é para os pobres”.
Sabe-se, no entanto, que a cobertura dos planos de saúde se dedica basicamente a consultas e exames ou tratamentos de baixo custo, ou seja, aqueles procedimentos que trazem mais lucros para as seguradoras. Os demais, por necessitarem de maior abrangência ou complexidade, e que obviamente os planos não cobrem por serem muito caros, ficam a cargo do SUS. Para se ter uma idéia, segundo o Ministério da Saúde, há uma estimativa de que cerca de 20% dos usuários de planos de saúde se utilizam dos serviços hospitalares do SUS, o que equivale a um custo que pode chegar a 1 bilhão por ano, custo que não é ressarcido ao SUS pelas seguradoras.
A idealização do SUS tem raízes numa concepção de saúde integral, solidária, humanitária, democrática e que não seja objeto das leis do mercado. Esse diferencial já seria suficiente para defendermos o SUS como patrimônio nacional, estabelecendo com ele uma noção maior de pertencimento e agregando-lhe o valor que realmente merece. Entender que “o SUS é nosso” se faz fundamental para militarmos em sua defesa, a fim de lhe garantir financiamento adequado e melhoria na qualidade de seus serviços e ações. Por isso, se lhe perguntarem se você é usuário do SUS não se envergonhe em dizer que sim. O Brasil agradece.
segunda-feira, 21 de março de 2011
“Yes, we can”.
por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista e cidadã do mundo
“Yes, we can”. Este foi o lema da campanha presidencial de Barack Obama em 2009. A intenção era obvia: transmitir uma mensagem de esperança e motivação endereçada ao povo americano, mas, também não deixou de ser um recado ao mundo, uma forma de reafirmar o poderio americano depois de uma década de desgastes e crises .
Obviamente que esse lema carrega o brio e a capacidade de superação do povo americano, qualidades capazes de fortalecer e enobrecer qualquer país do mundo, e das quais ninguém duvida. E mesmo com todos os abalos políticos e econômicos sofridos nos últimos anos, os EUA ainda se mantêm como a nação mais poderosa do mundo. Enfim, todos sabemos do que podem os EUA. Entretanto, o que esperávamos com o final da Era Bush é que os Estados Unidos começassem a entender algo a respeito do que eles não podem.
Primeiramente os EUA não podem continuar acreditando, defendendo e se baseando na idéia de que o que é bom para eles é bom para outros povos ou para o mundo. Tal premissa, preconceituosa, etnocêntrica e prepotente, lamentavelmente reafirmada por Obama, impede que os Estados Unidos entendam que não podem tratar os demais países como meros coadjuvantes de uma cena onde eles são a personagem principal.
Os EUA não podem manter medidas protecionistas que resguardam seus produtos e provocam concorrência desleal no mercado mundial, prejudicando os demais países.
Os EUA não podem simplesmente desconsiderar ou desrespeitar os protocolos internacionais assinados para tentar reduzir a poluição e a devastação do meio ambiente, apenas para preservarem sua própria economia.
Os EUA não podem manter embargos econômicos, com o de Cuba, por exemplo, sob a justificativa de não concordarem com esta ou aquela concepção ou diretriz política e econômica.
Os EUA não podem desrespeitar a soberania de países independentes sob quaisquer alegações, não podem tratá-los como se fossem o quintal de sua própria casa.
Os EUA não podem mais defender e sustentar a idéia de que é possível resolver divergências ou impasses na política mundial por meio de intervenções militares. Não podem promover e sustentar guerras, especialmente sob a falsa alegação de que são em nome da liberdade, da democracia ou da paz.
Todos sabemos que os EUA e o povo americano podem muito, mas estamos especialmente interessados que eles compreendam que, ainda sim, não podem muitas coisas.
A vitória de Obama representava para o mundo a derrocada do conservadorismo de direita de Bush e o fim de uma política externa carregada e intolerância política e religiosa,arrogância e violência. Obama é, sem dúvida alguma, bem mais simpático e carismárico que Bush e tem um discurso bem mais ameno, entretanto, na prática,infelizmente, ele não tem feito muito diferente de seu antecessor. Continua preso à sua máxima de campanha que diz que sim, os americanos podem, esquecendo-se de considerar que os outros povos também podem: os libios podem, os palestinos podem, os mexicanos, os brasileiros, os cubanos,os iranianos, os russos e os coreanos também podem. Esperávamos que com Obama, os EUA deixassem de lado a idéia de que o mundo gira em torno deles, mas, parece que ainda não foi desta vez.
psicanalista e cidadã do mundo
“Yes, we can”. Este foi o lema da campanha presidencial de Barack Obama em 2009. A intenção era obvia: transmitir uma mensagem de esperança e motivação endereçada ao povo americano, mas, também não deixou de ser um recado ao mundo, uma forma de reafirmar o poderio americano depois de uma década de desgastes e crises .
Obviamente que esse lema carrega o brio e a capacidade de superação do povo americano, qualidades capazes de fortalecer e enobrecer qualquer país do mundo, e das quais ninguém duvida. E mesmo com todos os abalos políticos e econômicos sofridos nos últimos anos, os EUA ainda se mantêm como a nação mais poderosa do mundo. Enfim, todos sabemos do que podem os EUA. Entretanto, o que esperávamos com o final da Era Bush é que os Estados Unidos começassem a entender algo a respeito do que eles não podem.
Primeiramente os EUA não podem continuar acreditando, defendendo e se baseando na idéia de que o que é bom para eles é bom para outros povos ou para o mundo. Tal premissa, preconceituosa, etnocêntrica e prepotente, lamentavelmente reafirmada por Obama, impede que os Estados Unidos entendam que não podem tratar os demais países como meros coadjuvantes de uma cena onde eles são a personagem principal.
Os EUA não podem manter medidas protecionistas que resguardam seus produtos e provocam concorrência desleal no mercado mundial, prejudicando os demais países.
Os EUA não podem simplesmente desconsiderar ou desrespeitar os protocolos internacionais assinados para tentar reduzir a poluição e a devastação do meio ambiente, apenas para preservarem sua própria economia.
Os EUA não podem manter embargos econômicos, com o de Cuba, por exemplo, sob a justificativa de não concordarem com esta ou aquela concepção ou diretriz política e econômica.
Os EUA não podem desrespeitar a soberania de países independentes sob quaisquer alegações, não podem tratá-los como se fossem o quintal de sua própria casa.
Os EUA não podem mais defender e sustentar a idéia de que é possível resolver divergências ou impasses na política mundial por meio de intervenções militares. Não podem promover e sustentar guerras, especialmente sob a falsa alegação de que são em nome da liberdade, da democracia ou da paz.
Todos sabemos que os EUA e o povo americano podem muito, mas estamos especialmente interessados que eles compreendam que, ainda sim, não podem muitas coisas.
A vitória de Obama representava para o mundo a derrocada do conservadorismo de direita de Bush e o fim de uma política externa carregada e intolerância política e religiosa,arrogância e violência. Obama é, sem dúvida alguma, bem mais simpático e carismárico que Bush e tem um discurso bem mais ameno, entretanto, na prática,infelizmente, ele não tem feito muito diferente de seu antecessor. Continua preso à sua máxima de campanha que diz que sim, os americanos podem, esquecendo-se de considerar que os outros povos também podem: os libios podem, os palestinos podem, os mexicanos, os brasileiros, os cubanos,os iranianos, os russos e os coreanos também podem. Esperávamos que com Obama, os EUA deixassem de lado a idéia de que o mundo gira em torno deles, mas, parece que ainda não foi desta vez.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
O adeus de Ronaldo.
por: Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista e fã de Ronaldo
Esta semana Ronaldo – o fenômeno – discursou emocionado em entrevista que marcou o encerramento de sua brilhante carreira como jogador de futebol. Ao tentar explicar o inexplicável e o inevitável fato de ter que “pendurar as chuteiras” aos 34 anos, Ronaldo afirmou: “Meu corpo me venceu”. Dentre as muitas coisas interessantes e bonitas ditas por Ronaldo na ocasião desta entrevista, esta frase é particularmente arrebatadora. Afinal, é certo que corpo sempre nos vence; a todos nós. O corpo é o nosso limite.
Apesar disso, insistimos em viver a ilusão do corpo sem limites. Desejamos um corpo saudável, perfeito e, sobretudo, eterno. Por isso rejeitamos a dor, o sofrimento, as marcas da idade e quaisquer imperfeições ou fracassos que nos levem a constatar a mais pura das verdades: somos todos limitados. O corpo venceu Ronaldo e, em última análise sempre vence a todos nós. Não somos tão saudáveis quanto poderíamos e nem tão belos quanto desejaríamos. Padecemos de dores e imperfeições. Invariavelmente fracassamos. Envelhecemos, morremos. Ou seja, por mais que busquemos alargar o limite da nossa invencibilidade, ainda sim o corpo sempre nos vence.
Certamente, esta é uma constatação angustiante para a grande maioria nós ou mesmo insuportável para alguns. O discurso emocionado de Ronaldo é testemunha disso. Do quanto pode ser sofrido admitir e assumir fracassos, tanto aqueles impostos por nosso corpo, quanto quaisquer outros. Mas, por outro lado, somente aqueles que conseguem chegar ao ponto de assumir seus próprios limites e fracassos serão capazes de atravessá-los para alcançar a outra margem.
A Mitologia Grega descreve seus grandes heróis como aqueles que conseguiram atravessar os sofrimentos, provações e limitações impostas pela condição humana, para se transformarem. Mas, lembramos que atravessar limites não é o mesmo que evitá-los ou desconsiderá-los. Atravessar não é driblar ou mascarar. Atravessar também não é se tornar vítima de seus limites. Atravessar é constatar que o limite existe, encará-lo e prosseguir; com ele e apesar dele.
Quem escutou toda a entrevista de Ronaldo teve a oportunidade de assistir o belo testemunho de uma autêntica travessia. Em certo momento ele afirma que o que está fazendo é o anuncio de sua primeira morte, para logo em seguida dizer: “ainda quero muito”. Isso sim é atravessar um limite. É ter vontade e força para prosseguir mesmo depois de aceitá-lo.
Infelizmente, temos optado por uma vida anestesiada, medicalizada, vitimizada, “botoxizada”, turbinada, homogeneizada, sem sobressaltos ou riscos e, de preferência, livre de imperfeições e fracassos. A pílula azul que promete dar adeus ao fantasma do fracasso sexual, talvez seja o retrato da maneira como estamos lidando com nossos mal-estares. E assim seguimos, escolhendo negar nossos limites e com eles jogando fora a oportunidade de fazer a travessia própria da condição humana; limitada e imperfeita, mas ainda sim, bela e vitoriosa.
Obrigada, Ronaldo. Pelos dribles, pelos gols, pelas vitórias e especialmente, por nos revelar o que uma vida precisa pra valer a pena: “Tive muitas derrotas, infinitas vitórias e fiz muitos amigos”. Quem precisa mais que isso?
psicanalista e fã de Ronaldo
Esta semana Ronaldo – o fenômeno – discursou emocionado em entrevista que marcou o encerramento de sua brilhante carreira como jogador de futebol. Ao tentar explicar o inexplicável e o inevitável fato de ter que “pendurar as chuteiras” aos 34 anos, Ronaldo afirmou: “Meu corpo me venceu”. Dentre as muitas coisas interessantes e bonitas ditas por Ronaldo na ocasião desta entrevista, esta frase é particularmente arrebatadora. Afinal, é certo que corpo sempre nos vence; a todos nós. O corpo é o nosso limite.
Apesar disso, insistimos em viver a ilusão do corpo sem limites. Desejamos um corpo saudável, perfeito e, sobretudo, eterno. Por isso rejeitamos a dor, o sofrimento, as marcas da idade e quaisquer imperfeições ou fracassos que nos levem a constatar a mais pura das verdades: somos todos limitados. O corpo venceu Ronaldo e, em última análise sempre vence a todos nós. Não somos tão saudáveis quanto poderíamos e nem tão belos quanto desejaríamos. Padecemos de dores e imperfeições. Invariavelmente fracassamos. Envelhecemos, morremos. Ou seja, por mais que busquemos alargar o limite da nossa invencibilidade, ainda sim o corpo sempre nos vence.
Certamente, esta é uma constatação angustiante para a grande maioria nós ou mesmo insuportável para alguns. O discurso emocionado de Ronaldo é testemunha disso. Do quanto pode ser sofrido admitir e assumir fracassos, tanto aqueles impostos por nosso corpo, quanto quaisquer outros. Mas, por outro lado, somente aqueles que conseguem chegar ao ponto de assumir seus próprios limites e fracassos serão capazes de atravessá-los para alcançar a outra margem.
A Mitologia Grega descreve seus grandes heróis como aqueles que conseguiram atravessar os sofrimentos, provações e limitações impostas pela condição humana, para se transformarem. Mas, lembramos que atravessar limites não é o mesmo que evitá-los ou desconsiderá-los. Atravessar não é driblar ou mascarar. Atravessar também não é se tornar vítima de seus limites. Atravessar é constatar que o limite existe, encará-lo e prosseguir; com ele e apesar dele.
Quem escutou toda a entrevista de Ronaldo teve a oportunidade de assistir o belo testemunho de uma autêntica travessia. Em certo momento ele afirma que o que está fazendo é o anuncio de sua primeira morte, para logo em seguida dizer: “ainda quero muito”. Isso sim é atravessar um limite. É ter vontade e força para prosseguir mesmo depois de aceitá-lo.
Infelizmente, temos optado por uma vida anestesiada, medicalizada, vitimizada, “botoxizada”, turbinada, homogeneizada, sem sobressaltos ou riscos e, de preferência, livre de imperfeições e fracassos. A pílula azul que promete dar adeus ao fantasma do fracasso sexual, talvez seja o retrato da maneira como estamos lidando com nossos mal-estares. E assim seguimos, escolhendo negar nossos limites e com eles jogando fora a oportunidade de fazer a travessia própria da condição humana; limitada e imperfeita, mas ainda sim, bela e vitoriosa.
Obrigada, Ronaldo. Pelos dribles, pelos gols, pelas vitórias e especialmente, por nos revelar o que uma vida precisa pra valer a pena: “Tive muitas derrotas, infinitas vitórias e fiz muitos amigos”. Quem precisa mais que isso?
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