por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Assisti nesta semana ao filme A Última Estação, do diretor Michael Hoffman. Trata-se de uma ficção baseada nos últimos dias de Leon Tolstoi, grande escritor e filósofo russo do século XIX, autor de livros imortais como Guerra e Paz. Sua vida política foi intensa e influenciou de maneira importante o pensamento anarquista. Tolstoi era um pacifista, um crítico das instituições e contrário à propriedade privada.
O filme é encantador. E dentre tantas outras coisas, me fez pensar sobre o fascínio que nos causam grandes mestres e líderes, sejam eles vinculados à política, à religião, à filosofia ou à ciência, assim como nos conforta seguir, estudar e propagar suas obras, teorias e ideais que, afinal, sempre carregam algum espírito revolucionário e inovador.
Tolstoi transformou-se, no final de sua vida - como bem retrata o filme - num ídolo, num mito, num quase-deus para o povo russo e num deus para seus seguidores. Mas, como é sempre o destino de grandes mestres da humanidade, percebemos que suas ideias e ideais acabaram se tornando maiores que ele mesmo, com tamanho suficiente para atravessarem uma espécie de divisor de águas, um ponto no qual uma teoria deixa de ser um manifesto revolucionário e inovador, para se transformar para alguns em dogma, ou seja, numa Verdade com V maiúsculo (a única verdade). E nesse ponto, infelizmente, ao adquirirem estatuto Verdade, ou melhor, por adquirirem estatuto de Verdade, é que tais ideias começam a perder grande parte da sua vitalidade e potência originais.
No filme é possível perceber que as ideias de Tolstoi já atravessaram o ponto do qual estamos falando. Tanto que, em certos diálogos, o próprio Tolstoi demonstra ter mudado sua visão sobre muitas das coisas que defendia e pregava em seus livros e manifestos, no entanto, como elas já haviam se transformado em dogmas, em receitas a serem seguidas e disseminadas, não podem mais mudar. Já estão fixadas, como numa fotografia. Por isso, Tolstoi chega a ser repreendido por seus discípulos em várias situações durante o filme. São eles que dizem ao Mestre como deve agir, falar e ser. Curiosamente, tentam ensinar Tolstoi a ser Tolstoi. A cena do filme mais significativa para explicar o que estamos dizendo é a seguinte: Após ser repreendido por Vladimir Chertkov, seu maior amigo e mais fiel discípulo, por fazer algo fora dos princípios pregados pelo Movimento Tolstoiano, Tolstoi diz ao amigo: _ Você é mais tolstoiano do que eu.
Então, fiquei pensando que é mesmo lamentável quando uma teoria (filosófica, religiosa ou científica), mesmo a mais revolucionária, viva e potente, criada inicialmente para contradizer ou questionar uma outra, perca toda a sua vitalidade, por ser tratada como dogma, como a Verdade; única e imutável. Mas, quem sabe isso não seja mesmo parte de uma espécie de dialética que movimenta o mundo? E quem sabe, afinal, precisemos mesmo de mestres e, hoje, mais ainda, de teorias, dogmas e receitas que expliquem a existência e nos digam como lidar com ela? Quem sabe isso explique a multiplicação das religiões fundamentalistas e a epidemia das publicações de auto-ajuda? Quem sabe?
O que sabemos é que a vida, apesar de ser uma experiência incrível, não é necessariamente fácil. E assim sendo, manter-se à deriva o tempo todo, sem nenhum tipo de saber, mestre ou questão que nos guie de alguma forma, apesar de ser um ideal libertário de felicidade para muitos, acreditem, não é exatamente uma benção, é na verdade, uma experiência atormentadora; é a experiência da loucura. Mas, quem sabe, possamos, por outro lado, compreender que nossos mestres e suas teorias maravilhosas, apesar de necessários em certa medida, são apenas contingência? Porque, afinal, o mundo não para de girar. E quem sabe precisemos considerar o fato de que todas as verdades devam ser, necessariamente, escritas com letra minúscula?
No filme Forrest Gump temos o protagonista, imortalizado pelo ator Tom Hanks, que em certo momento da trama decide correr pelos EUA, sem paradeiro, a fim de compensar o vazio que sente. Depois de um tempo de jornada, Forrest começa, sem que ele mesmo busque por isso, agregar seguidores. São pessoas comuns que decidem correr junto dele, fazer da jornada de Forrest, também a sua própria jornada. E há uma passagem clássica no filme em que Forrest, depois de correr por mais de três anos, sendo acompanhado por dezenas de seguidores, simplesmente pára de correr. Sem dar maiores explicações, vira-se para traz e, caminhando, diz apenas que decidiu voltar para casa. O mais interessante desta cena, inesquecível, é a cara de decepção e surpresa dos seguidores de Forrest, eles se entreolham sem acreditar, parecem mergulhar no vácuo, como se não soubessem ou não tivessem mais para onde ir.
O que os seguidores de Forrest, os seguidores de Tolstoi, e todos nós seguidores de alguma espécie de Mestre precisamos saber é que, tal qual a todos nós, ele, o Mestre, também é limitado, assim como são limitadas suas ideias, ensinamentos e visões de mundo. Grandes Mestres e grandes ensinamentos são capazes sim, de servir de leme para nossa existência, e sem isso, possivelmente, mergulharíamos no caos. Vale lembrar a importância dos nossos primeiros mestres, os pais (ou quem cumpre essa função) e seus ensinamentos. Mas é possível também aprender a caminhar sozinho, em pares, ou em grupos, sem um líder para nos guiar, assim como é possível e desejável criarmos nossas próprias teorias, nossa própria obra.
Mestres não são eternos e todas as teorias, no final, mostrarão suas falhas. E para não deixar de mencionar meu mestre castrado, Freud, sempre que um líder cai, eleva-se a oportunidade de seus seguidores se unirem em irmandade, a fim de criarem seus próprios caminhos alternativos. O exemplo mais recente da queda de um mestre é, certamente, a renuncia do Papa Bento XVI. Essa deveria ser uma oportunidade para cristãos e católicos questionarem seus mestres, e uma oportunidade única para a Igreja Católica questionar a si mesma, seus dogmas, seu modelo institucional e seus lideres. No entanto, infelizmente, neste caso, temo que a solução dada seja, simplesmente, inventar outro mestre para, rapidamente, ocupar o lugar que ficou vazio.
Ótimo texto, Rita. Parabéns! Lendo-o me lembrei de um filme incrível que assisti há poucas semanas no cinema, chamado "O mestre", do diretor Paul Thomas Anderson (o mesmo dos magníficos Magnólia e Sangue negro). Pois bem, o filme, inspirado (mas não baseado) na história real do início da Igreja da Cientologia, conta a história de um sujeito completamente auto-destrutivo que encontra uma espécie de paz ao se aproximar de um líder religioso. A história é bem mais complexa que isso, mas uma frase que algum personagem diz em certo momento se relaciona com o que você escreveu. Questiona o personagem: "É possível viver sem um mestre?". Entendo esta frase num sentido amplo. Mestre como qualquer pessoa real ou não com quem nos identificamos e admiramos (e nas quais vemos aquilo que não temos nem somos). Talvez seja difícil seguir pela vida sem nenhum "ídolo", ninguém que nos inspire, mas concordo que uma "idolatria cega" é um tanto quanto prejudicial pois acabamos enxergando o ídolo como perfeito e infalível e, com isso, diminuímos a nós mesmos. Foi o que pensei lendo seu texto. Um abraço
ResponderExcluirPS: você mora em Juiz de fora, não é? Eu sou daí tb. Pois bem, acredito que dificilmente passará "O mestre" aí no cinema, pois ele já está quase saindo de cartaz no Brasil. Se quiser baixar o filme, via torrent, tem aqui: http://laranjapsicodelicafilmes.blogspot.com.br/2013/02/o-mestre-2012.html
Valeu o cometário Felipe!! E acho que não é mesmo possível viver completamente sem mestres, mas vale lembrar que eles são sempre castrados. E valeu a dica do filme! Vou tentar baixar. Um grande abraço e seja sempre bem-vindo.
ResponderExcluirMuito bom...
ResponderExcluirEu lembrei do Keynes, que, questionado por uma discípula por ter mudado de idéia, confrontou-a (citação aproximada): "quando estou errado, mudo de idéia. E você, faz o que?".
ResponderExcluirA cristalização de mestres-em-vida os impede, de certa forma, de continuar vivendo.
Porque viver é "fazer erros melhores amanhã", não é?
É verdade, Renata! Amei a provocação de Keynes.
ResponderExcluirobrigada a vc e Niegylla pelo comentário
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ResponderExcluirRita,
ResponderExcluirPenso em Jiddu Krishnamurti, preparado pela Sociedade Teosófica, desde a infância, para ser um mestre. Dissolve a Ordem que lhe fora criada para comandar e passa a ser um "não-mestre" seguido por uma legião enorme de "ouvintes", instigados [/intrigados] como raros discípulos o seriam por um auto-entitulado mestre.
Não há ironia na minha apresentação deste aparente paradoxo. Krishnamurti, semelhantemente a Sócrates, usa da maiêutica para desconstruir certezas-como-dogmas, ainda que, no balanço geral de suas falas [sempre em diálogos, não em "palestras"], se consiga entrever uma visão de mundo [com sabor budista, inclusive]. Talvez a quantidade de literatura que se pretendeu produzir com este homem enquanto vivo, gravando e editando seus diálogos, visasse a constituir algo como uma "escritura substitutiva" [e uma "anti-escritura", ou um "laxante para as certezas" também se presta(m) a este papel...]. De qualquer maneira, fica-me a impressão de que todo este registro [caudaloso] acaba por visar manter a reminiscência do "mestre em diálogo perpétuo", como se fosse possível conservá-lo ao alcance dos olhos, do braço e da mensuração lógica dos que pretendem "fazer/viver/ser como ele" [?!].
Saindo de um "não-mestre" do século passado para Jesus, pensemos no quanto a especulação/ficcionalização ou adendos à informação sobre este personagem [dos evangelhos apócrifos à saga Operação Cavalo de Troia, de J. J. Benitez] sempre atrairão a curiosidade [ou perscrutação] de quantos [muitos!] pretendam decifrá-lo ou conservá-lo [bem compreendido] como presença interna.
Fora do território dos que buscam certezas religiosas ou a desconstruções das mesmas [verso e reverso da mesma moeda], haverá sempre os que construirão seus "cultos laicos", de Stalin a Kim Jong-un, passando por Hitler. Sem falar nos sábios institucionalizados... ;)
Um beijo.
*auto-intitulado. [Não abro mão de alguns hífens].
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