sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Não se educa sem traumatizar.
Psicanalista
Dedico este texto em homenagem e em gratidão à Irmã Estefânia, saudosa diretora do Colégio Santa Catarina de Juiz de Fora/MG.
Cursei o segundo grau em um tradicional colégio de freiras, de 1983 a 1985 e essa semana andei lutando com algumas lembranças daquela época. Lembrei-me especialmente de uma das freiras, a que ocupava o cargo de diretora na ocasião: Irmã Estefânia. Irmã Estefânia era o verdadeiro terror da escola, a quem temíamos e odiávamos. Nosso pior pesadelo era ser alvo de suas repreensões ou mesmo cruzar o seu caminho por algum motivo. Mas na verdade, Irmã Estefânia, era praticamente uma sombra, quase nunca a víamos, não circulava nos corredores, falava pouco e nem era acessível aos pais ou professores. Sua presença só era convocada em situações extremas.
Mergulhada nessas lembranças recordei de uma vez, a única vez na qual eu e minha turma fomos o alvo da ira e rabugice daquela mulher. Alguém da turma – que não me lembro quem – inventara uma tal de “bolinha espacial”. Uma bolinha de papel um pouco mais sofisticada, feita de papel alumínio (reutilizado para tal fim após cumprir a função de embalar um sanduíche para a merenda). O fato é que essa “bolinha espacial” era extremamente poderosa, fazia um estrago quando arremessada na cabeça de alguém (e o propósito era exatamente esse). Portanto, quem se apoderava da tal bolinha, já que todas as outras eram de papel comum, era temido e respeitado pelos demais alunos e podia experimentar, ainda que por alguns instantes, a sensação de ter o poder nas mãos e de expressar sua agressividade contra alguém que elegesse como alvo. Essa brincadeira durou várias semanas, sem grandes contratempos: ninguém reclamou de levar bolada na testa ou no olho, ninguém se sentiu vítima de nenhuma violência ou bullying (como nomeiam agora), ninguém reclamou pra nenhum professor, pro pai, pra mãe e ninguém foi encaminhado ao psicólogo ou psiquiatra. Mas, um belo dia... Alguém errou a pontaria e ao invés acertar um colega, acertou a lâmpada fluorescente da sala, que estourou e se desfez sobre nossas cabeças em mil pedaços. Um silêncio sepulcral tomou conta da sala e a frase que todos nós temíamos foi dita minutos depois: - Chamem a Irmã Estefânia!
O tempo que se passou entre essa frase e a chegada da nossa inquisidora foi um dos piores que talvez eu tenha passado até então, e certamente, por isso, jamais me esqueci. Lembro-me do medo que senti, da dor de barriga e do gosto amargo que me vinha na boca só de pensar que meus pais saberiam do ocorrido. Também me lembro da chegada triunfante de Irmã Estefânia, dos berros que ela dava e de sua feição cruel e ameaçadora. Não me lembro do castigo que com certeza nos foi imposto, me lembro apenas que recebemos uma punição coletiva, porque nos recusamos a acusar o autor da façanha. Ah! E depois, meu castigo em casa foi dobrado porque minha mãe teve que comparecer na escola, para dar explicações... Enfim diria que o episódio da “bolinha espacial” foi um trauma em minha vida.
Numa visada superficial, ou talvez numa visada atual, Irmã Estefânia seria apenas uma mulher cruel, prepotente e mandona, que exercia sua sede de poder e seu sadismo sobre pobres e inocentes adolescentes. Mas, avaliando mais profundamente, a função que ela cumpria foi fundamental para nós. Hoje entendo que Irmã Estefânia, na verdade, não era tão somente uma castradora, mas, sobretudo, uma possibilitadora. Como tínhamos uma figura definida a quem dirigir nosso ódio, nossa repulsa, nosso temor, já que podíamos elegê-la a bruxa ou o demônio que infernizaria nossas vidas – a perseguidora responsável por nossos maiores infortúnios – podíamos, por outro lado viver numa relação de harmonia e irmandade com todos os demais membros da escola, professores, funcionários e alunos. O que ficava claro sem precisar ser dito era: todos submetidos à Irmã Estefânia e todos contra a Irmã Estefânia.
Apesar de citar apenas esse exemplo me recordo de muitas outras figuras da minha infância e juventude que cumpriram função semelhante à de Irmã Estefânia. Figuras temidas, respeitadas e odiadas que invariavelmente nos traumatizavam, facilitando bastante as coisas para nós. De fato, nossos pais também ocupavam em maior ou menor medida tal função, suportavam nossa raiva e não tinham medo de nos traumatizar com suas atitudes ou palavras. Eram também castradores-possibilitadores.
Sou mãe de dois adolescentes e vejo que eles não tem tido a mesma sorte que eu tive, afinal, figuras como Irmã Estefânia não existem mais, já que ninguém mais está autorizado assumir tal função, ou melhor, ninguém mais suporta ocupar essa função. Nós, pais e mães, temos medo de despertar a rebeldia de nossos filhos, professores temem ser alvo da ira de seus alunos e assim por diante. Isso faz com que a necessidade de nossos jovens de serem traumatizados, de terem medo, de sentirem ódio ou repulsa por alguém sem precisar de nenhum fato real para tal, tenha ficado completamente prejudicada. Sim, porque avaliando melhor agora, percebo que Irmã Estefânia na verdade, não fez nada de real que merecesse nosso temor e ódio, ela apenas representava um papel, assumia uma figura simbólica traumática extremamente facilitadora.
No entanto, os manuais de educação atuais dizem que devemos ter muito cuidado para não traumatizar nossos filhos ou alunos. Manuais que nos prometem um mundo totalmente higienizado, livre de todo e qualquer mal-estar. Mas o que tais manuais se esquecem de dizer é que, em última instância, nenhuma educação é feita sem traumas, ou seja, educar é invariavelmente traumático, violento, uma forma de impor os preceitos e normas de uma sociedade a um sujeito que quer apenas e tão somente, fazer o que quer, como quer e na hora que bem entender (todos já devem ter convivido com uma criança de 3 anos). Sendo assim, não é possível educar sem traumas, sem violentar de alguma maneira o querer do outro, assim como também não é possível crescer sem se rebelar contra alguém ou alguma coisa, mostrando assim seu próprio querer.
E foi assim que Irmã Estefânia cumpriu sua função de traumatizar e violentar toda uma geração de crianças e jovens sem precisar lançar mão de artifícios cruéis de verdade, nos possibilitando ainda, que soubéssemos exatamente contra o que ou contra quem nos rebelar. Isso nos permitia um certo bussolamento, pois, nossos “algozes” estavam definidos e os preceitos também definidos, sendo que, era a partir de tais referenciais que nos rebelávamos. E para sermos rebeldes precisávamos de muito pouco, bastava quebrar por acidente a lâmpada da sala de aula. Já meus filhos precisam de muita criatividade e esperteza para serem considerados rebeldes. Dependendo do que fizerem, podem ser considerados as vítimas do episódio (o que de longe é a intenção deles), ou pior, podem ser imediatamente encaminhados para o psicólogo ou psiquiatra. O fato é que se tornou uma tarefa muito difícil ser considerado rebelde hoje em dia, o mais comum é ser considerado vítima de algum tipo de abuso físico ou psicológico, ou portador de algum transtorno psíquico, psiquiátrico ou neurológico. Curiosamente, ao desbancar Irmã Estefânia de sua função – com a justificativa de defender os direitos de crianças e jovens e de impedir que passassem por situações de possível violência e constrangimento – nossa sociedade, ao mesmo tempo, vitimizou excessivamente esses jovens, foi progressivamente, minando a potência e a capacidade deles para lidar e superar traumas e subtraindo deles a capacidade de temer e respeitar, mas também a possibilidade de odiar e de se rebelar.
Enfim, tenho percebido que crescer e adolescer tem sido muito mais difícil e penoso para meus filhos do que foi pra mim. Não costumo ser nostálgica, nem sou das que pensam que “naquele tempo” foi sempre melhor que “hoje em dia”. Também não acredito que seja possível resgatar Irmã Estefânia. Meu texto é apenas um alerta para os que acreditam que seja possível educar sem traumas. Um alerta para os pais que acham que estão facilitando as coisas para os filhos ao dizerem sempre “sim” e ao tratá-los sempre como vítimas de um mundo cruel. Um chamado aos que não dizem “não” para crianças e jovens por temerem ser chamados de castradores por não entenderem que, na verdade, a castração é, ao contrário do que se imagina, uma grande possibilitadora. O fato é que sem a ajuda de Irmã Estefânia, precisamos inventar e reinventar outras estratégias para auxiliar nossos filhos ou alunos a delimitarem esse nosso mundo e o mundo para eles. A promessa de uma vida “sem limites” nos parece bastante sedutora, nos remete à noção de liberdade, tão cara para o mundo moderno ocidental. Todavia, ter liberdade de escolha não é o mesmo que escolher tudo, e sim, conseguir dizer “não” para algumas coisas. Mas, quem não reconhece o “não”, como será capaz de dizê-lo? Sendo assim, especialmente para os jovens, uma existência “sem limites” não tem sido e jamais será vivenciada como uma benção libertadora – podem estar certos – mas sim, como uma maldição, que inviabiliza qualquer escolha desejante.
O desafio das drogas
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Publicado no Jornal O Tempo em 14/11/2009
A questão das drogas na atualidade é emblemática – especialmente quando regada pela chamada “epidemia do crack” e seus desdobramentos – e se tornou para a saúde pública um enorme desafio. Sou uma trabalhadora da rede de saúde mental do SUS e vivo cotidianamente esse desafio; minha especialidade é “botar a mão nessa massa”.
É preciso ter coragem para dizer que a questão do tratamento da compulsão pelo álcool e outras drogas é cercada de muitos fracassos, fracassos ainda maiores quando se concebe como única forma de tratamento a abstinência; de qualquer maneira e a qualquer preço. Sabemos que diante de problemas graves e de difícil solução, especialmente em situações novas, é comum que procuremos conforto em soluções que já nos são conhecidas. Assim, sustenta-se a idéia de que a internação involuntária seria a milagrosa e necessária intervenção que resolveria o problema das pessoas adoecidas pelo uso de substâncias psicoativas.
Entretanto, ao desenterrar essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais, o que conseguimos é, tão somente, oferecer respostas velhas para problemas novos. É preciso dizer que as internações involuntárias – outrora utilizadas em doses cavalares com os doentes mentais – não solucionaram o problema deles, nem de suas famílias, pelo contrário. Também é importante que se diga que uma internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses – se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa – possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde a participação da família, o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
Mas é claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem concordar com medidas extremas como essa (e às vezes concordamos). No entanto, o que nem sempre é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da suposta ‘salvadora’ e ‘milagrosa’ internação, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja da compulsão pelas drogas, e o ciclo então tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Defendemos, portanto, que a internação tradicional parece, mas não é a solução para os problemas relacionados à dependência de sustâncias. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples ou baratas, ao contrário, são muito mais complexas e exigem uma grande diversidade de investimentos, aparatos, intervenções, instâncias e estratégias. E nessa direção, muita coisa interessante e verdadeiramente inovadora está acontecendo. Nos CAPS (centros de atenção psicossocial) e nos CAPS AD (álcool e drogas) espalhados pelo país. Pelas mãos dos Redutores de Danos que oferecem cuidado para os que só tem a rua como clínica possível. Nos projetos governamentais e não governamentais que ocupam comunidades carentes para oferecer acesso à educação, esporte, lazer e cultura àqueles com poucas oportunidades de escapar do jugo das drogas.
Concluindo, aumentar a oferta de leitos para a internação e/ou facilitar o mecanismo da internação involuntária é uma resposta simplista demais, pobre demais e, sobretudo ultrapassada quando a intenção é responder de maneira eficiente a esse grave problema de saúde pública. Nosso desafio é muito maior e para enfrentá-lo toda a sociedade precisa “colocar a mão nessa massa”.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
O SUS e o desafio imposto pelas drogas
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Como já era previsível, toma a cena a emblemática questão das drogas, especialmente temperada pela chamada: “epidemia do crack” e seus desdobramentos. As políticas de saúde, por sua vez, têm sido especialmente convocadas a dar respostas para esta realidade que se tornou um enorme desafio para o SUS nas suas diretrizes e práticas de tratamento e cuidado.
O fato que ninguém discute é que o uso e o abuso de substâncias psicoativas em nossa sociedade têm tomado contornos e gerado conseqüências que vem colocando todos diante de um não-saber sobre os rumos e os caminhos a serem tomados, não-saber compartilhado por governos, instituições, políticas públicas e organizações governamentais e não-governamentais no mundo todo. Entretanto, mesmo quando admitimos que há um não-saber que atravessa este tema, é possível ainda sim sustentar alguns saberes, dos quais não podemos recuar, saberes que foram conquistados por meio de experiências e transformados em avanços nas políticas e legislações. Ou seja, mesmo que não saibamos exatamente o que fazer em determinadas situações, quando o assunto é o tratamento e o cuidado dos problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, ainda sim sabemos exatamente o que não fazer na mesma situação.
No entanto, é preciso muita coragem para admitir os fracassos e não-saberes em torno desse desafio que o SUS está enfrentando, como fez publicamente e em horário nobre o coordenador nacional da saúde mental. A posição mais confortável e digamos mais ‘pop’, no entanto, é a dos que se dizem doutores e especialistas no assunto, que do alto da pompa do seu todo-saber apresentam uma ‘inovadora’ e ‘milagrosa’ solução para o problema que se impõe: a internação involuntária.
Ao desenterrar essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais, o que tais ‘especialistas’ conseguem é tão somente oferecer respostas velhas para problemas novos. E o que eles não dizem é que as tais internações involuntárias – antes utilizadas em doses cavalares – não solucionaram o problema dos doentes mentais nem de suas famílias, ou pelo menos não daquelas que pretendiam tratar de seu ente querido e não apenas se ver livre dele. O que também não é dito é que uma internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses, se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa, possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, este sim, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
Mas é claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem concordar com medidas extremas como essa. No entanto, o que também não é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da internação ‘salvadora’ e ‘milagrosa’, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja definitivamente da compulsão pelas drogas, e o ciclo então, tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Sendo assim, o que é preciso ser ressaltado com todas as letras é que a internação involuntária não será o milagre que todos esperamos para salvar nossos filhos, pais, mães, maridos ou esposas das garras do maior 'demônio' da atualidade: as drogas. (frase para ser lida com uma dose grande de ironia)
Também é necessário que se diga que o índice de fracasso se torna muito grande quando se entende que tratar as pessoas que apresentam problemas relacionados ao uso abusivo e nocivo de álcool e outras drogas se resume apenas em promover a abstinência, e a qualquer preço. E que nenhum tratamento ou intervenção que se pretenda humanizada, respeitosa, ética e, portanto eficaz, se conquista à revelia do sujeito, passando por cima de seus desejos, escolhas e singularidades, ainda que a nosso ver, estranhas e atrapalhadas.
Em alto e bom tom é necessário avisar aos desavisados que se os especialistas decidem por desenterrar a desgastada e ineficaz internação involuntária, ou é porque desconhecem os caminhos trilhados pelas políticas de cuidado aos doentes mentais – e, neste caso, devemos duvidar de sua tão honrosa especialidade – ou os motivos são outros que desconhecemos... Ou será que são os mesmos de outrora? Só pra lembrar aos esquecidos ou avisar aos desavisados, as internações involuntárias e indiscriminadas, enriqueceram a chamada “indústria da loucura”, condenando os doentes mentais ao isolamento, ao abandono e à exclusão, tudo, é claro, em nome do ‘tratamento’ e do ‘bem’ deles. (mais ironia, por favor).
Existem alguns avanços conquistados no âmbito das políticas de saúde mental que não podem retroceder, sob nenhuma justificativa, nem mesmo pelo apelo emocionado de pais e mães. Aquilo que foi superado pela sua ineficácia e ineficiência, pela iatrogenia gerada, pela desumanidade e desrespeito a direitos mínimos de dignidade e cidadania e pelo reforçamento de estigmas e preconceitos, não pode ser novamente pensado como uma estratégia possível e plausível. Já vimos este filme antes, o roteiro é o mesmo, agora com outros atores: eram os ‘loucos’ agora os ‘drogadictos’.
Por outro lado, longe dos olhos dos doutores especialistas que sabem tudo e da mídia ávida por nos comover com a desgraça alheia, muita coisa interessante e verdadeiramente inovadora está acontecendo. Os CAPS ad: serviços que se propõem a oferecer tratamento humanizado, aberto, de caráter comunitário, vinculado a uma rede de atenção em saúde e assistência integral, com propostas de apoio familiar, exercício de cidadania e inserção social. Os redutores de danos: que estão nas ruas e esquinas, nos lugares onde ninguém ousa chegar, oferecendo seus ouvidos, seu olhar e seus cuidados para os que só tem a rua como clínica possível. Projetos governamentais e não governamentais: que ocupam comunidades carentes, sobem os morros e as favelas e lidam ‘cara a cara’ com o tráfico e a criminalidade, para oferecer acesso à educação, esporte, lazer e cultura àqueles com poucas oportunidades de escapar do jugo das drogas. E inúmeras outras experiências exitosas, desenvolvidas por entidades e instituições diversas, e que lamentavelmente não aparecerão na mídia em horário nobre, afinal, o que dá audiência e seriedade científica ao desenvolvimento do tema são os doutores especialistas em seus jalecos impecavelmente brancos, e se estão brancos é porque nunca estiveram com a “mão na massa”.
Mas nós, trabalhadores e defensores do SUS e de suas políticas, participantes e atores dessas outras experiências que dificilmente serão colocadas na mídia, nós os especialistas em botar a “mão na massa” esperamos que a sociedade entenda que a internação tradicional parece, mas não é a solução para os problemas relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples, ao contrário, são muito mais complexas e exigem uma grande diversidade de aparatos, intervenções, instâncias e estratégias.
Esperamos que o SUS e seus atores e gestores comprometidos com o fortalecimento e a defesa de uma saúde pública, gratuita e de boa qualidade, consigam enfrentar este enorme desafio com avanços e não retrocessos. Contudo, sabemos que só conseguiremos vencê-lo com muito trabalho, dedicação, esforço, enfrentamentos, estudos e discussões. E sabemos também que os doutores especialistas que sabem tudo não estarão lá para colocar a mão nessa massa.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Em tempos de religiões pervertidas
rcaalmeida@ig.com.br
É numa tentativa de dar sentido ao inexplicável, ao mistério que ronda sua experiência de estar neste mundo que o homem inventa a religião. Diante de suas limitações e atormentado pelas privações da existência mundana o homem busca o infinito: Deus. A religião seria um caminho, um modo de se encontrar e de se comunicar com Ele.
As religiões têm, portanto, a função de transcender a matéria, o imediato, a carne, a materialidade. É um modo que encontramos de nos libertarmos das exigências e limitações de nosso corpo material. Sendo assim, qualquer religião que prometa ser meio para alcançar bens materiais, que se ofereça como ponte de acesso a objetos-mercadoria ou que, pior ainda, meça a fé de alguém pelo tanto de dinheiro ou bens que ela é capaz de ofertar é, antes de tudo, uma religião pervertida.
Não há dúvidas de que o acesso a uma vida digna e minimamente confortável é um direito que convém a todos, mas isso não é função das religiões, para isso temos (ou deveríamos ter) a política. Todavia, em tempos de políticas pervertidas, explodem também religiões pervertidas. Religiões que se aproveitam da fragilidade social e da falta de perspectiva dos cidadãos, que não se sentem representados e escutados na polis, para atribuírem a Deus responsabilidades que seriam dos homens.
E nessa perversão generalizada, não faltam igrejas que vendem esperanças de dias melhores – tanto na terra quanto nos céus – transformando fé em mercadoria, degradando a noção de religiosidade e sagrado, entendendo-as como experiências que podem ser compradas e vendidas.
Na Bíblia encontramos uma passagem – relatada pelos quatro evangelistas – na qual Jesus, indignado e enfurecido, expulsa os mercadores do templo, acusa-os de transformarem uma casa de orações em um “covil de ladrões”. Se acaso Jesus visitasse hoje os templos erigidos em seu nome, certamente, teria muitos mercadores a expulsar e muitos motivos para se enfurecer. Também o ouviríamos dizer muitas vezes: “Dai a Cézar o que é de Cézar e a Deus o que é de Deus”.
sábado, 3 de outubro de 2009
O pessimista é, sobretudo, um chato.
Tenho me dado conta de que o pessimista é, sobretudo, um sujeito chato. Aquele do tipo que assiste a um jogo da seleção brasileira do seu lado e fica azarando a partida toda, só vê defeito em tudo. Se a seleção ganha, ele pode até comemorar, com algumas ressalvas é claro, mas se, por infelicidade sua, a seleção perde, haja paciência, ele não vai se cansar de repetir tudo que havia previsto com sua bola de cristal azarenta.
Com a vitória do Rio de Janeiro para sediar das olimpíadas de 2016, os pessimistas de plantão já estão dando seus palpites. Como verdadeiros cavaleiros do apocalipse, eles já anunciam as desventuras dessa investidura brasileira. Já imaginam os seqüestros, as balas perdidas e a criminalidade fazendo pano de fundo para os eventos e festividades. Também usam como argumento o fato do Rio de Janeiro ter muitas coisas mais importantes para se preocupar, não devendo estar na sua lista de prioridades um evento esportivo dessa envergadura.
Os pessimistas não percebem que uma Olimpíada pode modificar desde já a realidade de um lugar, de uma cidade e de um país. Não entendem que se o Rio precisa mudar sua realidade social, reinventar a paz e fortalecer seu tão abalado posto de “cidade maravilhosa”, então não existe motivação ou investimento melhor do que esse. Políticos, governantes, investidores, organizações e/ou instituições que viraram as costas para o Rio, apostando que abandonar o barco seria a melhor saída, agora terão que rever suas posições e fazer novamente dessa cidade a capital do país, ainda que seja a capital esportiva.
Grande parte do sucesso de Lula se deve ao fato dele fazer parte do time dos otimistas. Dos que apostam nas vitórias e nos acertos. Dos que não admitem perder o jogo antes de iniciada a partida. Pessoas de sucesso pensam assim.
Mas, lembrando novamente daquele amigo chato que assiste futebol com você, acredito que ele não se importe muito com o resultado da partida. O que ele quer mesmo é, no final das contas, te dizer aquela frase insuportável: “Eu não disse?” E o pior de tudo é que ele sempre se sentirá autorizado a utilizar tal frase, porque, mesmo que o time ganhe, ele sempre encontrará algum motivo para botar defeito, para te dizer que não foi tão perfeito assim (e como perfeito nunca será mesmo...). Na verdade o pessimista é um chato porque não está preocupado com o desdobramento das coisas; o que ele quer mesmo é ter sempre razão.
http://twitter.com/rcaalmeida
sábado, 22 de agosto de 2009
Sem limites
psicanalista
Não é novidade que é o banho da cultura que nos veste, que possibilita dar algum contorno para a nossa animalidade, para o real que se abate sobre nós. É isso que nos faz humanos, que nos permitiu colocar a palavra onde só havia ato e que, em última análise, nos protege da barbárie. Tal contorno estabelece para nós um limite, um limite que não devemos ultrapassar, sob o risco de extrapolarmos nossa própria condição de existência e de romper com aquilo que nos faz humanos.
Manter-nos nesse limite da humanidade é tão importante que mesmo em tempos de guerra, por exemplo, onde os maiores horrores são vivenciados, vários tratados internacionais vigoram com o objetivo de manter um mínimo de ética e de respeito ao ser humano. O fato é que sem nossas vestimentas culturais e simbólicas, ficamos a mercê da selvageria.
E foi isso que se viu no final da noite do último domingo. Quem acreditava já ter visto de tudo na TV, ficou estarrecido com as cenas mostradas em um reality show. A chamada “prova do estômago” exibiu cenas bizarras dos participantes comendo, dentre outras “iguarias”, ovos galados, ou seja, com um feto dentro, na tentativa de manterem suas equipes e, portanto, a si mesmos, com chances de vencer a disputa.
A selvageria à qual me refiro não é resultante do simples fato de se comer o feto cru de uma galinha. Em certas culturas, pode ser que esse tipo de alimento seja apreciado e culturalmente incorporado, entretanto, esse não é o caso. Sendo assim, vivenciada pelos participantes como um mergulho profundo na selvageria, essa experiência grotesca, violenta e de extremo mau gosto mostrada num programa de televisão, nos leva a perguntar: o que se é capaz de fazer por 500 mil reais? E a triste e lamentável conclusão que chegamos é que, em um mundo dominado pelo capital, por 500 mil reais é possível comprar e vender até mesmo a humanidade de alguns. Por esse valor ou por outros até menores, encontramos quem extrapole qualquer limite, inclusive os limites mais fundamentais; aqueles que nos fazem pertencer à raça humana.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
A Reforma Psiquiátrica Brasileira em movimento
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
rcaalmeida@ig.com.br
A estratégia que está sendo utilizada para desmerecer as Políticas de Saúde Mental defendidas pelo SUS é perversa e leviana. Temos assistido recentemente, inúmeras publicações e reportagens veiculadas pela imprensa, com a intenção clara de desqualificar os avanços da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a sua lei maior – a lei 10.216. São utilizados relatos de casos e situações de pessoas que se sentem desassistidas, não para lutar por avanços nessa política, mas sim, para fortalecer o imaginário de que tais pessoas estariam mais bem assistidas se os leitos nos hospitais psiquiátricos estivessem sendo preservados, o que não é verdade.
A história recente não nos deixa cair nesse engodo, pois a verdade é que os hospícios se transformaram em depósitos humanos e não em lugares de tratamento. A lógica do manicômio não trata, apenas "varre para debaixo do tapete". Portanto, o que vemos divulgados hoje são apenas as vicissitudes experimentadas por quem sofre de doença mental, e que se hoje podem aparecer na mídia, anteriormente ficariam exilados e silenciados por traz dos muros dos manicômios. Por outro lado, não é divulgado com o mesmo vigor, por exemplo, o fato da Reforma Psiquiátrica Brasileira ter sido recentemente convidada para servir de modelo para um programa global de saúde mental, a ser desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
É claro que ainda não chegamos onde pensamos poder chegar, precisamos avançar muito, ampliar serviços, criar novos dispositivos, abrir o hospital geral para as enfermidades mentais, ampliar assistência, mas não retroceder, acreditando que um maior número de leitos em hospitais psiquiátricos melhora a qualidade do atendimento.
Na verdade, essa não é nem uma particularidade da saúde mental, hoje sabe-se no mundo inteiro que avançar nas políticas de saúde não tem nada a ver com aumento do número de leitos hospitalares, a resposta está na prevenção, na atenção básica e nos serviços territorializados, de base comunitária. Nossa política de saúde mental atual, obviamente, tem lacunas, falhas e distorções, mas estamos caminhando na direção correta, ainda que não com a velocidade desejada.
Enfim, os hospitais psiquiátricos tiveram mais de 200 anos para se estabelecer e nos mostraram sua ineficiência, para não dizer sua desumanidade. O modelo que propomos ainda é uma criança, tem apenas 8 anos, se contamos como data de seu nascimento a lei 10.216 de 2001. Sendo assim, essa criança precisa de atenção e zelo para que possa crescer de forma a alcançar todo o seu potencial e não ser desmerecida e enfraquecida.
terça-feira, 30 de junho de 2009
Michael Jackson: inclassificável
rccalmeida@ig.com.br
Impossível definir Michael Jackson. Impossível capturá-lo em alguma definição, em alguma nomeação. Michael é o que podemos chamar de inclassificável, afinal, não foi homem e nem mulher, não foi negro e nem branco, não foi criança e nem adulto. E, considerando sua condição financeira, nem saberíamos dizer se estava rico ou pobre. Michael sabia ser um rei poderoso, mas também carregava a fragilidade do plebeu mais humilde e indefeso. Era capaz de ser doce e ácido, e nos causava sentimentos conflitantes, tais como familiaridade e estranheza, paixão e asco, raiva e piedade. Michael transitou como ninguém pela beleza e pelo horror, pela genialidade e pela debilidade, pela sanidade e pela loucura. O fato é que Michael foi único. Talvez a definição mais apropriada para ele tenha sido dada por sua amiga Liz Taylor. Ela disse que Michael não pertencia a este planeta. Sim, talvez não pertencesse mesmo a este mundo, um mundo no qual as definições e classificações são tão necessárias e importantes. E Michael sempre nos parecia assim mesmo, quando não estava nos palcos, num certo desconforto diante da existência, como se fosse um estrangeiro recém-chegado de um país distante. Mas, certamente, o planeta de Michael era o palco, somente ali ele parecia estar realmente à vontade. Um rei amado e venerado por seus súditos. Michael reinventou a música, a dança, a linguagem dos videoclipes. Michael reinventou a própria cultura, mas não pôde inventar um lugar para si mesmo, não houve tempo para isso. Dedicou toda a sua vida e genialidade àquilo que melhor sabia fazer: cantar e dançar, não sobrou energia para mais nada. Sendo assim, seria demais cobrarmos alguma normalidade ou coerência na vida de Michael, afinal ele nos deu o melhor de si, cumprindo, assim, sua missão maior. O fascínio que os grandes artistas provocam é exatamente essa capacidade de fazer com que sua obra se torne maior que eles mesmos, são sujeitos capazes de viver mais fora do que dentro de si mesmos. Assim foi Michael com sua generosidade artística.O mundo não foi mais o mesmo depois de Michael e, certamente, não será o mesmo depois de sua morte. Sua passagem por este mundo foi inusitada até mesmo quando falamos de vida e morte. Nos últimos anos, Michael esteve morto, mesmo estando vivo, e agora, morto, está mais vivo do que nunca. Nem mesmo a morte foi capaz de capturar Michael Jackson; ele está morto e está vivo...
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Reverter o abandono
rcaalmeida@ig.com.br
Semanas atrás, um jornal de Juiz de Fora circulou a notícia de que o tráfico e a marginalidade tomaram conta de uma praça central da cidade. Moradores do entorno afirmaram ter deixado de frequentar a praça por causa dos riscos e que já pensaram em mudar-se do local. Veio-me então a pergunta: será que os moradores abandonaram a praça porque a criminalidade tomou conta da mesma ou a criminalidade tomou conta da praça porque a comunidade a abandonou? A resposta mais óbvia é: os moradores abandonaram a praça porque a criminalidade tomou conta dela.
No entanto, fui tentada a considerar também a resposta contrária, ou seja, é na medida em que a comunidade abandona a praça que ela se torna vulnerável à ação da criminalidade. Seguindo esse raciocínio, fiquei pensando em várias outras situações que vivemos e nas quais o abandono faz sua marca.
Abandonamos nossas crianças e assim deixamos que aproveitadores e perversos as conduzam; abandonamos nossos jovens e permitimos que as drogas e o crime os seduzam; abandonamos o rio que corta nossa cidade e assistimos à sua rápida degradação.
Nada pode causar tanto mal quanto o abandono. Abandono é descaso, indiferença; é o nada desejar. O oposto do amor não é o ódio, como se imagina, é a indiferença, atualizada no abandono. É por isso que o casal Jolie e Pitt acerta quando decide se mudar para Nova Orleans, logo após a passagem do furacão Katrina. Acertam também os projetos sociais e ecológicos, que se valem da ocupação dos espaços abandonados pelo poder público, para reduzir as mazelas sociais e os impactos ambientais. Acerta o governo federal quando destina financiamento do PAC para ocupar as favelas do Rio de Janeiro com obras.
Por outro lado, erramos quando abandonamos a escola pública, buscando ensino de qualidade na rede privada. Erramos quando abandonamos o SUS por duvidar de sua eficiência. Será por mero acaso que nossa universidade pública é de inegável qualidade? Será por acaso que o SUS oferece atendimento de excelência em transplantes?
Voltando ao nosso tema inicial - a praça -, sugiro que a comunidade citada duvide que a solução seja abandoná-la ainda mais. Sugiro, ao contrário, que os moradores ocupem a praça. Quem sabe eles desçam dos seus prédios com suas crianças para brincar, como faziam há tempos atrás? Sugiro que façam festas comunitárias, promovam plantios nos jardins e promovam um abraço simbólico à praça. Amar e investir novamente nessa praça é a única maneira de recuperá-la.
Ampliando nossa discussão, defendo que nós ocupemos os espaços vazios e abandonados da nossa sociedade; só assim impediremos sua degradação. Cada vez que recuamos - por medo, insatisfação ou intolerância -, abrimos espaço para que tudo fique ainda pior. Mas o problema é que abandonar é muito fácil... Abandonar não nos exige esforço algum. Para abandonar é suficiente que cruzemos nossos braços; basta que não façamos nada.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
18 de maio: um dia para repensar.
escrito em maio de 2009
A história do tratamento das doenças mentais no ocidente confunde-se com uma história de abandono, exclusão, desrespeito e violência. Entendida como lugar do avesso ao homem racional, a loucura seguiu sendo compreendida como algo a ser excluído, abolido e alijado, tanto do meio social quanto para fora do próprio homem. No Brasil, essa história vem tomando novos contornos nas últimas décadas. Em 1987, num 18 de maio como hoje, instaurou-se em nosso país um movimento social importantíssimo – O Movimento Nacional de Luta Antimanicomial – que tinha como horizonte uma mudança na forma de tratar as doenças mentais e na maneira de olhar para a loucura, compreendendo-a para além de uma doença ou déficit, mas como manifestação radical de uma diferença. A bandeira desse movimento sempre foi buscar novas formas de cuidado e tratamento que conseguissem romper com o modelo tradicional.
O Movimento Nacional de Luta Antimanicomial alcançou grande força política, agregando técnicos de saúde mental, usuários e familiares, todos mobilizados pelo lema: “Por uma sociedade sem manicômios”. Os manicômios se figuravam como os representantes de um modelo excludente, desumano e discriminatório de oferecer tratamento aos doentes mentais. Instituições nas quais os pacientes, em geral, entravam para nunca mais sair. Hoje as comemorações do 18 de maio continuam a acontecer em todo Brasil. As bandeiras de agora não são as mesmas de antes, já que as mudanças propostas por esse movimento foram contempladas em lei – a lei 10.216 de 2001 – e encampadas pelo SUS. Novos dispositivos e formas de cuidado e tratamento tem sido implementados, estimulados e financiados pela Política Nacional de Saúde Mental no intuito de superar o modelo tradicional, oferecendo tratamento humanizado, aberto e com visas à inserção social.
Sendo assim, o verbo mais conjugado pelo lema deste 18 de maio continua sendo SUBSTITUIR. Substituir os muros por portas abertas; substituir a exclusão pela inclusão; substituir a perda de direitos civis e sociais pelo exercício da cidadania; substituir as longas internações por internações curtas e pontuais apenas nos momentos de crise; substituir o abandono pelo acolhimento na família e comunidade; substituir o silêncio pela palavra, pela criação e pelo trabalho; substituir a discriminação pelo respeito às diferenças; substituir o preconceito pelo entendimento; enfim, substituir o isolamento pela partilha.
Desde 1987, muita coisa mudou no âmbito do que hoje se entende por saúde mental. Mudaram-se teorias, políticas, instituições, legislações, discursos, formas de abordagem, metodologias, práticas e até mesmo construções ideológicas. Sabe-se, no entanto que em qualquer mudança de paradigma a última coisa a mudar são as mentalidades. Sendo assim, ainda mantemos em nós muitos “pensamentos manicomiais”. Não é incomum sermos tomados, por exemplo, pela fantasia de criar uma ilha isolada do mundo e o mais distante de nós possível, para a qual destinaríamos todos aqueles ou tudo aquilo que nos incomoda, nos abala, nos adoece, nos atormenta e nos tira do eixo. Um lugar geograficamente delimitado para onde destinaríamos tudo o que nos é estranho, tudo o que tememos. Ou invertendo a lógica, também pensamos em criar uma redoma segura e hermética, na qual poderemos viver seguros e despreocupados das imperfeições do mundo.
Transcendendo, portanto, o que o 18 de maio tem de importante para os progressos nas políticas de saúde mental no país, entendo que esse possa ser um momento oportuno para rever nossas mentalidades, compreendendo que a maneira mais humana e acertada, ainda que não a mais fácil, de lidarmos com as diferenças, os tormentos e os incômodos diários deva ser dialogando e convivendo com eles, para assim produzir novas formas de relação, convivência e existência.
terça-feira, 5 de maio de 2009
A família é a vilã?
Dias atrás uma revista de circulação nacional publicou uma matéria intitulada: A família é a vilã. Tal matéria tratava de discutir o tema abordado em uma novela que, segundo a revista, deixa a entender que os males ou desacertos dos filhos são resultantes da educação oferecida por seus pais. Esse é um assunto delicado, sendo fácil cair em conclusões extremadas e equivocadas. Num extremo toma-se os pais como únicos e exclusivos responsáveis pelos atos de seus filhos, num outro, entende-se que os filhos escolhem caminhos que dizem muito pouco da forma como foram educados por seus pais. A pressa em demonizar a família, no entanto, é tão equivocada quanto a pressa em absolvê-la.
É fato que existem relações familiares notoriamente desastrosas o que, muito provavelmente, não se dará sem conseqüências igualmente desastrosas, no entanto, não se pode afirmar com certeza que essa ou aquela atitude dos pais provocará esse ou aquele comportamento dos filhos. Também é bom que se saiba que nenhuma relação familiar acontece sem alguma espécie de trauma ou desencontro. Sendo assim, não existe uma maneira perfeita de educar os filhos, ou seja, isenta de traumas e, sobretudo, não existem manuais. Uma coisa, entretanto, é fundamental: criar filhos incorre numa grande responsabilidade, o que não é o mesmo que oferecer um óvulo, um espermatozóide ou um útero para gerá-los.
Para assumir a tarefa de educar um filho é necessário ter as qualidades de um bom afinador de pianos. Ele precisa amar o instrumento e a música; além disso, precisa de tempo, dedicação e paciência; precisa de ouvidos atentos e sensíveis e, também, saber que não existem dois pianos iguais. Ou seja, educar uma criança demanda muita, muita dedicação. Dedicação para amá-la, para cuidar dela, para repreendê-la, para observá-la, para escutá-la e para orientá-la, e esta função os pais não podem delegar a ninguém, nem para a escola, nem para as instituições religiosas, nem para os livros, nem para os amigos, ainda que estas e outras instâncias possam também participar do processo educativo.
Mas não podemos esquecer que apesar de toda nossa dedicação e cuidado nossos filhos farão suas escolhas, muitas delas geradoras de conflitos, desarranjos e sofrimentos. Nesse momento é muito comum que os pais batam no peito e digam: “minha culpa, minha máxima culpa”. Diante dessa situação, no entanto, é necessário que os pais tenham sensibilidade para entender que o que eles vêem como fracasso num primeiro momento, na verdade pode lhes servir como uma espécie de bússola: para orientá-los, para fazê-los reconsiderar seu modo de educar, suas prioridades, seus projetos de vida; filhos são um verdadeiro convite a mudanças. Mas, infelizmente, nem todos os pais percebem e aceitam esse convite e continuam a perpetuar-se em suas certezas e convicções. Uma coisa é certa: as escolhas dos nossos filhos dizem respeito sim, às nossas escolhas como pais, não por culpa, mas por responsabilidade.
quinta-feira, 30 de abril de 2009
Porque todos amam Susan Boyle?
A personagem da semana certamente foi Susan Boyle. Uma mulher de meia idade e sem nenhum atributo que atenda ao nosso padrão de beleza atual, que apareceu na TV vestida com um modelito estranho e sem graça e ganhou o mundo. Em termos mais chulos diríamos que Susan é uma mulher feia, matuta e desengonçada, uma das concorrentes a se apresentar em um programa de calouros inglês há duas semanas. Inicialmente, Susan é vista com desprezo e ironia pelos jurados e pela platéia, mas bastaram os primeiros 10 segundos de sua performance como cantora para ser ovacionada. Desde então, Susan se tornou um fenômeno. Sua apresentação foi uma das mais acessadas na internet nas últimas semanas e virou notícia em inúmeros jornais e emissoras de TV, aqui e em todo o mundo. Um site brasileiro mantinha em sua página inicial a seguinte pergunta: “Porque todos amam Susan Boyle?” É difícil responder a esta pergunta e talvez não haja apenas uma resposta, mas a surpresa e o desconcerto que Susan nos provoca, seguramente estão entre as explicações a respeito dessa questão. Uma das juradas do programa, antes de dar a Susan o seu “sim”, afirma: “O que aconteceu aqui é um alerta para todos nós.” Sim, acredito que o “fenômeno Susan” seja um alerta para todos nós, um alerta sobre o quanto nos deixamos levar pelas aparências, diz respeito ao quanto nos avaliamos e avaliamos os outros pela imagem. Susan tem, é claro, uma voz belíssima e poderosa e sua música, cantada com a alma de uma estrela, emociona, arranca lágrimas e êxtase. Entretanto, acredito que o que mais toca as pessoas que assistiram e assistem Susan, seja a soma disso tudo que já foi dito com a total nudez dessa mulher no palco. Sim, Susan aparece nua, muito mais nua que aquelas mulheres que ficam penduradas nas bancas de jornal – meros arremedos retocados de mulher. Há muito não víamos – pelo menos na mídia – uma mulher tão nua e autêntica quanto Susan. Sem retoques, sem maquiagem, sem “banho de loja”; sem artifício algum para conquistar os jurados e a platéia através sua estampa. Susan chega nua ao palco e, sem nenhum pudor canta, mostrando ao mundo sua autêntica beleza. Acredito ser essa a grande novidade que Susan mostra e que nos faz amá-la. Talvez estejamos cansados de tanta gente com cara de estampa de revista feminina: gente retocada demais, ajeitada demais, esticada demais, arrumada demais, formatada demais e humana de menos. Mas, estando no mundo em que vivemos é de se esperar que uma das primeiras perguntas feitas a Susan depois da fama repentina seja esta: “Você mudará sua aparência?” E ela responde: “Porque deveria mudar?” Mas, dias depois a manchete é a seguinte: “Susan Boyle muda de visual após fama.” E eu penso comigo: “Que pena! Eles não entenderam nada.”
segunda-feira, 13 de abril de 2009
Resposta à coluna de Ferreira Gullar na Folha de São Paulo
Prezado Ferreira Gullar
Certa vez você escreveu assim:
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores", manicômios que ainda mantêm pessoas encarceradas por 20, 30 ou mais anos, condenadas à reclusão simplesmente pelo fato de serem doentes mentais.
Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeiçoes (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer...Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei contruiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia...Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história...então venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.
saudações antimanicomiais
Rita de Cássia de A. Almeida
Juiz de Fora/MG
trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos.
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
Qual é a parte que nos cabe?
Ao final de cada eleição toma conta de nós uma grata sensação de dever cumprido, no entanto, é preciso que tenhamos cuidado para não confundir “dever cumprido” com “lavar as mãos”. Lavamos as mãos quando acreditamos que votar é simplesmente passar adiante a responsabilidade do cuidado de nossa cidade para os eleitos: prefeito, vice-prefeito, vereadoras e vereadores. Lavamos as mãos quando votamos no intento de escolher algumas pessoas que resolverão por nós os problemas de nossa cidade, de nossa comunidade ou, o que é ainda pior, nossos problemas pessoais. Lavamos as mãos quando nos damos o direito de “deitar em berço esplendido” e dormir até as próximas eleições, apenas esperando que “os eleitos” exerçam competente e eticamente suas funções. Lavamos as mãos quando criticamos os atos do prefeito eleito com as sábias palavras: “-Ainda bem que eu não votei nele!”, como se isso fizesse diferença.
A nossa ex-ministra do meio-ambiente Marina Silva, em entrevista coletiva após pedir demissão do cargo, disse uma coisa que me ensinou muito sobre a democracia. Ela disse que em qualquer sistema de gestão, seja ele público ou privado, é muito fácil governar “para as pessoas” ou “pelas pessoas”, o grande desafio é, no entanto, governar “com as pessoas”. Esta experiência que ela cita qualquer pai ou mãe de família conhece muito bem, afinal é muito mais fácil e rápido resolver uma situação familiar qualquer dizendo assim: “- Vai ser deste jeito, porque eu decidi assim e pronto”. O difícil é, por outro lado, reunir a família, permitir que todos sejam ouvidos e construir coletivamente uma decisão, que ainda sim, provavelmente não agradará a todos. Aprendemos com isso que um sistema democrático não pode se pretender fácil, rápido ou isento de conflitos, o que implica em concordarmos com a nossa saudosa ex-ministra: governar “com as pessoas” é difícil, dá muito trabalho. Este tem sido o desafio dos governos democráticos, desafio que se impõe não apenas para o gestor, mas especialmente, para aqueles que estarão partilhando “com o gestor” a responsabilidade, o ônus e o bônus, de cada decisão, ou seja, cada um de nós. Sendo assim, voto não é um presente que damos a alguém, é uma aliança de compromisso que nos une por quatro anos àqueles que coletivamente elegemos.
Enfim, as eleições, ao contrário do que às vezes somos tentados a considerar, não encerram nada, elas abrem o início de um novo ciclo. Sendo assim, desejo que o pensamento que nos venha, terminado mais um pleito municipal, não seja o: “Ufa! Acabou!” mas sim o: “Que bom que poderemos recomeçar!”. Recomeçar uma nova fase, uma nova gestão municipal, que não pode de maneira nenhuma ficar nas mãos do prefeito eleito e de mais uma meia dúzia de escolhidos (e cabe a nós vigiarmos para que isso não aconteça). Ninguém foi mais perfeito para descrever este momento pós-eleição do que um amigo, nas suas sabias palavras resumiu todo este artigo me mandando um e-mail assim: “Agora é hora de segurar o andor, senão o santo cai mesmo.”