Assim como a maioria dos moradores dos milhares de bairros ou comunidades pobres espalhados pelas grandes e médias cidades do Brasil, eu sempre convivi com o comércio de drogas ilegais, seja na porta da minha casa, na esquina da minha rua, na rua de cima ou na rua de baixo.
Com cerca de 8 ou 9 anos, eu já sabia quem era o “traficante” do nosso bairro, aliás, todas as crianças da minha rede de amigos da rua sabiam. No meu tempo de criança, brincar na rua era uma regra sem exceção para meninas e meninos de bairros semelhantes ao meu, por isso, assistíamos diariamente e cotidianamente o movimento das drogas. Víamos quem chegava e quem saía, quem buscava e quem levava. Alguns chegavam em carrões que não costumávamos ver por ali em outras ocasiões. Carrões para os quais tínhamos que dar passagem, afastando nossas traves de gol ou nossas bandeiras de pique bandeira, o que nos aborrecia muito, aliás. Apenas por duas vezes, quando criança, me lembro da polícia invadir o local e fazer alguma intervenção, mas na grande parte do tempo tudo parecia correr na mais profunda paz.
Ainda hoje moro no mesmo bairro e da minha infância pra cá muitas coisas mudaram. As crianças brincam menos na rua, os pontos de comércio de drogas se multiplicaram e a escalada da violência alcançou níveis nunca vistos. Só este ano, que eu me lembro, foram pelo menos 5 assassinatos no entorno da minha casa, todos eles ligados ao comércio de drogas. Outra mudança que observo é o surgimento de um novo personagem nesse movimento. Eles sobem e descem o morro inúmeras vezes ao dia. São usuários, mas também participantes ativos do comércio, muito provavelmente levam e trazem o produto em troca de alguma droga para sustentar o próprio vício. Todos por aqui os chamam de “craqueiros”. Os reconhecemos pela magreza, pelo andar acelerado e pela pouca higiene corporal. Mendigam dinheiro no sinal, nos estacionamentos, pedem comida e lanches nas portas das padarias e lanchonetes e dormem nas calçadas, debaixo das marquises.
Há cerca de quatro anos mais ou menos estabeleci uma relação de proximidade com um desses personagens, conhecido como “Neguinho”. Depois de conversarmos algumas vezes, perguntei o seu nome e ele me disse que era Luciano (para preservar a identidade do nosso personagem, este nome é fictício). Luciano deve ter entre 25 e 30 anos, é usuário de drogas e dado o seu apelido não preciso dizer sua cor. Sobe e desce o morro pelo menos uma dezena de vezes por dia. Pede dinheiro no sinal, nos estacionamentos e aos transeuntes ou moradores do bairro. Ultimamente andava dormindo debaixo da marquise de uma das padarias mais tradicionais do bairro, mas já dormiu numa casa abandonada (onde, certa vez, quase morreu queimado) e debaixo da carroceria de uma carreta enguiçada.
Minha proximidade com Luciano se deu mais por mérito dele do que meu. Ele sempre foi muito educado comigo, me dando bom dia, boa tarde ou boa noite quando que me encontrava, cumprimento que eu também passei a retribuir com o mesmo respeito que ele me dirigia. Diante da sua educação e simpatia, não pude evitar as conversas mais longas. Luciano conheceu meus filhos e meu marido, por isso, passou a cumprimentá-los também e sempre pergunta por eles quando me vê sozinha.
Antes de prosseguir com o texto, preciso abrir um parêntese para relatar uma coisa muito importante que aprendi com Luciano. Anteriormente, minha única questão para com os que me abordavam pedindo esmola, era se eu iria lhes dar dinheiro ou não. E o pior é que sempre me sentia desconfortável em quaisquer das opções que escolhesse. Me sentia mal quando dava esmola e também quando não dava. Luciano me ajudou a resolver definitivamente essa questão. Hoje sei que não importa se eu dou ou não dou a esmola que me pedem, o que faz diferença é o que eu estou disposta a oferecer, ou receber, para além do dinheiro, que dou ou não. Depois de Luciano, minha relação com os moradores de rua, ou os que me pedem dinheiro, mudou profundamente. Às vezes dou dinheiro, às vezes não dou, mas agora, sempre olho no olho, sorrio, cumprimento, pergunto alguma coisa e me coloco aberta a uma conversa. Aprendi isso com Luciano, que nem sempre me aborda pedindo alguma coisa, mas sempre está disposto a me desejar bom dia e me atualizar dos últimos acontecimentos do nosso território. Luciano me ensinou que os moradores de rua e afins, também precisam e merecem muito mais do que só dinheiro ou comida, merecem ser vistos como pessoas que são. Fecho o parêntese.
Sabendo que meus filhos adolescentes transitam pelo bairro à noite, Luciano sempre me tranquiliza dizendo que está cuidando deles pra mim quando chegam tarde. Ele me diz: - Pode deixar que eu fico de olho nos seus moleques, ninguém mexe com eles, eu estou sempre por aqui. O que me comove nessa promessa tão carinhosa de Luciano é a sua ingenuidade, pois eu sei que ninguém corre mais risco do que ele, especialmente nas noites violentas e incertas do meu bairro. Meus filhos são brancos, bem aparentados e usam “roupa da moda”. Numa confusão qualquer, num arrocho da polícia ou qualquer outro mal-entendido, provavelmente vão se safar. Vão poder se esconder no primeiro comércio ou portão que virem aberto sem serem acusados de marginais, terão a oportunidade de ligar para mim ou outro familiar e direito a uma abordagem amena da polícia, ou seja, lhes será garantida uma proteção que eu sei, nós sabemos, que Luciano não terá. Meu coração aperta diante da promessa de Luciano, porque eu sei que é sincera, e me dói saber que, eu, nós, nossa sociedade, não pode lhe garantir essa mesma proteção que ele gentilmente oferece aos meus filhos. Pobre, negro, craqueiro, morador de rua; sobram nele adjetivos e atributos para ser alvo fácil e frágil da violência, especialmente aquela alimentada pela estúpida e cruel política de “guerra às drogas”.
Mas essa “guerra às drogas”, pelo que estamos vendo nas últimas semanas, além de estúpida é também seletiva. Estamos em guerra contra os muito Lucianos que existem por aí, e no máximo, entramos em guerra contra o ”Zezão”, o “Pezão” ou o “Cachorrão”; “os “traficantes” dos bairros ou de comunidades pobres. Metaforizando, a guerra às drogas se limita a eliminar civis e soldados rasos que, sabemos, não produzem armas e nem munição, recebem isso de outrem. E se o tráfico de verdade é internacional, metaforizando de novo, ele só acontece com a participação das grandes corporações, com a complacência e intervenção de membros de alta patente: generais e coronéis. Então eu me pergunto: se vamos continuar com essa guerra estúpida, porque pelo menos não fazemos isso de forma mais inteligente intervindo com os generais, coronéis e grandes corporações, ou seja, com os que fornecem a arma e a munição?
Encontrar com Luciano passou a ser uma rotina nesses últimos 4 anos, tanto que passei a esperar por isso em determinados horários e locais e a sentir falta quando não o via. E já aconteceu como agora, de Luciano sumir por vários meses. A primeira vez que ele sumiu, imaginei que tivesse morto ou preso. Quando o vi de novo, depois de vários meses, perguntei por onde ele andava e ele me respondeu ironicamente: - Estava viajando, de férias. Depois riu da minha cara desconcertada e admitiu que estava “cumprindo cadeia”. Luciano anda sumido nos últimos meses, como não soube de sua morte, imagino que esteja preso novamente e muito provavelmente pelo mesmo motivo anterior: “tráfico de drogas”.
Nos últimos dias soubemos da interceptação de um helicóptero com carregamento de 450 kg pasta base de cocaína. Nesse caso, nenhuma corporação foi acusada, nenhum general ou nenhum coronel foi preso ou interrogado de verdade. Quem está preso é apenas o piloto do avião, outro soldado raso. Luciano, possivelmente está preso outra vez e seu crime deve ter sido carregar algumas gramas de cocaína, algumas pedras de crack ou alguns cigarros de "baseado". Ou seja, algo em quantidade suficiente para fazê-lo perder a condição de usuário (nesse caso não seria preso), mas nada que pudesse ser comparado a um helicóptero com 450kg de matéria prima capaz de fabricar 1 tonelada e meia de cocaína refinada. Temo que o destino do meu amigo seja uma sequencia de prisões, até que morra em combate, vítima dessa guerra que ele não criou e nem alimenta, mas que precisa dele como “bode expiatório”, como “boi de piranha”. Ao contrário do helicóptero abarrotado de munição para o tráfico que apareceu timidamente nos noticiários, é Luciano quem vai aparecer com notoriedade na capa jornal e no noticiário da TV, para ficarmos aliviados e dormirmos mais tranquilos quando anunciarem que ele foi preso ou morto em alguma esquina. Nessa hora seu apelido, “Neguinho”, ficará muito bem nas letras garrafais da manchete ou na voz incisiva do âncora do telejornal. ”Zezão”, “Pezão” e “Cachorrão” também são garantia de audiência.
Vale reforçar que é muito provável que Luciano não morra em consequência do uso de drogas, como se propagandeia por aí, mas sim, pela violência da guerra contra as drogas. Mas, como já disse, numa guerra seletiva, que só é feita nas ruas, de preferencia onde gente pobre mora, raramente nos helicópteros, nos aviões e navios e nunca contra os comandantes de alta patente.
Curiosamente, o comércio ilegal de drogas, que gera milhões e milhões de lucros para generais, coronéis e suas corporações, precisa do “Neguinho” e do “Zezão”. Mas esses personagens são totalmente descartáveis. Eles morrem aos punhados ou cumprem cadeia repetidamente, entretanto, haverá sempre um exército de reserva para cobrir o posto que ficou vago. E ainda tem gente pensando em mudar a legislação e agregar mais estupidez a essa barbárie, criminalizando o porte de qualquer quantidade de droga ilícita, inclusive para consumo! Quanta hipocrisia!
Agora, imaginem, apenas imaginem: e se a nossa política de drogas legislasse com o objetivo de parar de gastar tempo e dinheiro para fazer guerra contra o “Neguinho” e o “Zezão”? Ao invés disso, poderia concentrar esforços e recursos para reduzir a munição que chega até o “Pezão” e oferecer políticas sociais e de tratamento para “Neguinho”. Isso não seria mais inteligente e eficaz?
A política de guerra às drogas não está funcionando. Meu bairro é a prova viva disso. Passaram-se 35 anos desde a minha infância e nós continuamos sabendo quem são os traficantes da região, a droga continua sendo comercializada e a única coisa que a repressão tem produzido é um aumento galopante na escalada da violência. Por isso, se ainda sim vamos manter essa guerra estúpida, que pelo menos façamos guerra nos lugares e com as pessoas que realmente a alimentam e sustentam. Minha sugestão, pra começar, é que se investigue, descubra e prenda o traficante (sem aspas) da meia tonelada de cocaína apreendida do helicóptero dos Perella com combustível pago pela Assembleia Mineira e deixem meu amigo Luciano em paz.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Sobre o rei do camarote: ou sobre o narcisismo de nossos tempos
Por Rita de Cássia A Almeida
psicanalista
(para ler esse texto é necessário antes assistir o vídeo: Os dez mandamentos do rei do camarote)
Na última semana, a mídia e as redes sociais, se dedicaram a noticiar o chamado “rei do camarote” com seus bizarros 10 mandamentos. Alguns saíram em sua defesa, outros o satanizaram, mas grande maioria o transformou em alvo de piada e chacota. Se alguém ainda não tinha entendido o que significa ser trollado nas redes sociais, com certeza, agora já sabe. Acho até que Alexander Almeida, o tal rei do camarote, deve ter se tornado também, o rei da trollagem.
Minha primeira sensação ao ver o vídeo foi de indignação: como alguém pode afirmar que gasta “de R$ 50.000,00 ao infinito” numa noitada, quando tantas pessoas no mundo não chegarão a ter essa quantia nem numa vida inteira? E não venham me dizer que o dinheiro é dele e que, por isso, pode gastá-lo como quiser. Para usar apenas de um racionalismo matemático básico, a minha opinião é a de que se alguém tem o suficiente para esbanjar em “bebida que pisca” é porque outros estão sendo privados de uma vida razoavelmente confortável.
Mas esse meu texto não tratará de fazer uma crítica ao modelo capitalista, apesar de fazê-la sempre que posso, trata, na verdade, de explorar minha segunda sensação ao ver o vídeo: a de que estava assistindo a uma caricatura dos homens e mulheres que se multiplicam nesse nosso século. Um amigo me disse que o vídeo lhe pareceu um documentário do Discovery Chanel, daqueles que mostram as estranhezas e peculiaridades de culturas e tribos estranhas e distantes. Concordo. Depois de assistir algumas vezes o vídeo, fiquei pensando que se um alienígena ou algum membro de uma cultura muito diversa da nossa quisesse entender o tipo de pessoa que nos tornamos, valorizamos ou desejamos ser, “o rei do camarote” cumpriria muito bem a função de nos explicar. Obviamente que Alexander é uma versão exagerada e caricata, tão caricata que alcançou, com sucesso, a comicidade.
Entretanto sabemos desde Freud que o chiste, o cômico, é uma das formas que encontramos para lidar com aquilo que nos causa mal-estar. Na fissura da linguagem que não dá conta de representar tudo, irrompe a piada. E Alexander é uma excelente piada. Mas, para a psicanálise, toda piada carrega também, muitas verdades veladas, ou seja, o cômico é somente uma versão do trágico. E é assim que Alexander, num determinado momento, perde a graça e começa a ser alvo de nossa piedade, torna-se um retrato vivo do ditado “seria cômico se não fosse trágico”.
E a tragédia de Alexander é a mesma de Narciso. Narciso é um personagem da mitologia que apaixonado por si mesmo, se desliga do mundo real e acaba por se afogar, absorto e deslumbrado que está com sua própria imagem refletida no lago.
Nessa nossa cultura do individualismo competitivo, do imediatismo e do desejo desenfreado pela felicidade em forma de gozo, a eliminação do outro tem se tornado um caminho comum. No mundo de Narciso, o outro só serve para lhe “agregar valor” ou para “sentir inveja”, ou seja, em ambos os casos sua posição narcisista se mantém. E a tragédia de Narciso é que sua busca de sucesso, reconhecimento e aprovação do outro, apenas para manter-se enamorado de si, o leva paradoxalmente a intensificar o isolamento do eu. Ou seja, no final das contas, Narciso é um deprimido solitário, que afogado em si mesmo, desistiu de investir em laços reais com os outros e com o mundo.
Sendo assim, a tragédia pessoal de Alexander é também a tragédia de nossa época. Sem os exageros do rei do camarote, certamente inflados pelas suas posses econômicas, multiplicam-se os sujeitos que só enxergam o mundo através do seu próprio umbigo, que só percebem o outro como alimento para seu ego. O núcleo da nossa sociedade narcisista é, sobretudo, a necessidade das imagens. Não importa ser ou ter, se isso não se torna visível para os outros, e esse é claramente o objetivo do vídeo produzido por Alexander. O sujeito que emerge da cultura do narcisismo é aquele que depende dos outros para validar sua precária autoestima, ele precisa de plateia e admiração, sem isso, cresce sua insegurança e seu vazio, que, invariavelmente, irrompe em forma de depressão. Ou seja, não é por acaso que a depressão se tornou um mal do nosso século.
E por fim nos chama a atenção a ingenuidade e a infantilidade de Alexander, desconsiderando quão despropositada e desvinculada da realidade ficaria sua performance. Resta constatarmos que somente um sujeito mergulhado num delírio de encantamento consigo mesmo, seria capaz de se expor a tamanho ridículo. Um ridículo que o levou, afinal, a uma espécie de morte virtual e social. Sim, assistimos a um documentário a cores e com trilha sonora, de Narciso mergulhando para dentro do lago. Deslumbrado consigo mesmo, não conseguiu ver o que estava à sua volta. Se ele conseguir emergir, tomara que tenha aprendido a lição... Tomara que todos nós tenhamos aprendido a lição.
psicanalista
(para ler esse texto é necessário antes assistir o vídeo: Os dez mandamentos do rei do camarote)
Na última semana, a mídia e as redes sociais, se dedicaram a noticiar o chamado “rei do camarote” com seus bizarros 10 mandamentos. Alguns saíram em sua defesa, outros o satanizaram, mas grande maioria o transformou em alvo de piada e chacota. Se alguém ainda não tinha entendido o que significa ser trollado nas redes sociais, com certeza, agora já sabe. Acho até que Alexander Almeida, o tal rei do camarote, deve ter se tornado também, o rei da trollagem.
Minha primeira sensação ao ver o vídeo foi de indignação: como alguém pode afirmar que gasta “de R$ 50.000,00 ao infinito” numa noitada, quando tantas pessoas no mundo não chegarão a ter essa quantia nem numa vida inteira? E não venham me dizer que o dinheiro é dele e que, por isso, pode gastá-lo como quiser. Para usar apenas de um racionalismo matemático básico, a minha opinião é a de que se alguém tem o suficiente para esbanjar em “bebida que pisca” é porque outros estão sendo privados de uma vida razoavelmente confortável.
Mas esse meu texto não tratará de fazer uma crítica ao modelo capitalista, apesar de fazê-la sempre que posso, trata, na verdade, de explorar minha segunda sensação ao ver o vídeo: a de que estava assistindo a uma caricatura dos homens e mulheres que se multiplicam nesse nosso século. Um amigo me disse que o vídeo lhe pareceu um documentário do Discovery Chanel, daqueles que mostram as estranhezas e peculiaridades de culturas e tribos estranhas e distantes. Concordo. Depois de assistir algumas vezes o vídeo, fiquei pensando que se um alienígena ou algum membro de uma cultura muito diversa da nossa quisesse entender o tipo de pessoa que nos tornamos, valorizamos ou desejamos ser, “o rei do camarote” cumpriria muito bem a função de nos explicar. Obviamente que Alexander é uma versão exagerada e caricata, tão caricata que alcançou, com sucesso, a comicidade.
Entretanto sabemos desde Freud que o chiste, o cômico, é uma das formas que encontramos para lidar com aquilo que nos causa mal-estar. Na fissura da linguagem que não dá conta de representar tudo, irrompe a piada. E Alexander é uma excelente piada. Mas, para a psicanálise, toda piada carrega também, muitas verdades veladas, ou seja, o cômico é somente uma versão do trágico. E é assim que Alexander, num determinado momento, perde a graça e começa a ser alvo de nossa piedade, torna-se um retrato vivo do ditado “seria cômico se não fosse trágico”.
E a tragédia de Alexander é a mesma de Narciso. Narciso é um personagem da mitologia que apaixonado por si mesmo, se desliga do mundo real e acaba por se afogar, absorto e deslumbrado que está com sua própria imagem refletida no lago.
Nessa nossa cultura do individualismo competitivo, do imediatismo e do desejo desenfreado pela felicidade em forma de gozo, a eliminação do outro tem se tornado um caminho comum. No mundo de Narciso, o outro só serve para lhe “agregar valor” ou para “sentir inveja”, ou seja, em ambos os casos sua posição narcisista se mantém. E a tragédia de Narciso é que sua busca de sucesso, reconhecimento e aprovação do outro, apenas para manter-se enamorado de si, o leva paradoxalmente a intensificar o isolamento do eu. Ou seja, no final das contas, Narciso é um deprimido solitário, que afogado em si mesmo, desistiu de investir em laços reais com os outros e com o mundo.
Sendo assim, a tragédia pessoal de Alexander é também a tragédia de nossa época. Sem os exageros do rei do camarote, certamente inflados pelas suas posses econômicas, multiplicam-se os sujeitos que só enxergam o mundo através do seu próprio umbigo, que só percebem o outro como alimento para seu ego. O núcleo da nossa sociedade narcisista é, sobretudo, a necessidade das imagens. Não importa ser ou ter, se isso não se torna visível para os outros, e esse é claramente o objetivo do vídeo produzido por Alexander. O sujeito que emerge da cultura do narcisismo é aquele que depende dos outros para validar sua precária autoestima, ele precisa de plateia e admiração, sem isso, cresce sua insegurança e seu vazio, que, invariavelmente, irrompe em forma de depressão. Ou seja, não é por acaso que a depressão se tornou um mal do nosso século.
E por fim nos chama a atenção a ingenuidade e a infantilidade de Alexander, desconsiderando quão despropositada e desvinculada da realidade ficaria sua performance. Resta constatarmos que somente um sujeito mergulhado num delírio de encantamento consigo mesmo, seria capaz de se expor a tamanho ridículo. Um ridículo que o levou, afinal, a uma espécie de morte virtual e social. Sim, assistimos a um documentário a cores e com trilha sonora, de Narciso mergulhando para dentro do lago. Deslumbrado consigo mesmo, não conseguiu ver o que estava à sua volta. Se ele conseguir emergir, tomara que tenha aprendido a lição... Tomara que todos nós tenhamos aprendido a lição.
sábado, 28 de setembro de 2013
Democracia não é opinião pública ou sobre as implicações éticas de curtir e compartilhar nas redes sociais.
por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista real e virtual
A palavra DEMOCRACIA anda um tanto quanto desgastada. E em tempo de redes sociais então, esse desgaste tem produzido uma confusão terrível; a confusão entre democracia e opinião pública. O perigo desse tipo de confusão é o processo de simplificação e empobrecimento do discurso democrático. Nas redes sociais todos sentem necessidade de se apropriarem de uma posição política que, em geral, se resume em ser contra ou a favor, criando um terreno fértil para a banalização do maniqueísmo. Sem espaço para discussão, o aprofundamento dos temas e o debate de ideias – tão fundamentais para o fortalecimento da democracia – a “manifestação democrática” nas redes se faz num clique: curtir e compartilhar.
Obviamente que, numa sociedade democrática, é esperado e louvável que as pessoas se manifestem e opinem, todavia, é preocupante quando percebemos que tais opiniões são, muitas vezes, exploradas pelas redes sociais de maneira tendenciosa, parcial e até com certa dose de má fé, com o objetivo claro e explícito de manipular e distorcer uma informação e influenciar a tomada de posição das pessoas.
A grande febre do feicebuque, por exemplo, são as postagens com uma foto e uma frase pequena, de fácil entendimento. São postagens que se multiplicam diariamente, minuto a minuto na linha do tempo virtual, com a função precípua de seduzir os navegantes virtuais e receberem um curtir e um compartilhar (quanto mais, melhor). Tais publicações não têm a menor intenção de levar o interlocutor a pensar, a pesquisar, compreender ou questionar o tema em questão e, muitas vezes, o induzem ao erro. Além disso, produzem e reforçam a ideia de que um mero curtir e compartilhar possam ser formas efetivas e contundentes de participação democrática, quando na verdade o que elas mais fazem é influenciar a opinião pública.
Vou citar um exemplo aqui, mas poderia enumerar centenas deles. Cito esse exemplo porque se trata de um tema presente na minha vida acadêmica e profissional, e sobre o qual acredito ter certa autoridade para defender uma posição, que é técnica e política.
Meses atrás, apareceram várias publicações no feicebuque nos alertando que o governo federal pretendia fechar as APAES. Algumas chegavam a acusar diretamente a presidenta Dilma ou seu partido pelo fim dessas associações. Uma dessas publicações, a que me chamou mais atenção, trazia a foto de uma criança portadora de síndrome de down com uma pergunta: Você quer que as crianças especiais fiquem sem educação e tratamento? Se sua resposta é NÃO, então curta e compartilhe, para que o Governo Federal não feche as APAES.
A postagem em questão foi baseada no temor relacionado ao relatório do senador José Pimentel (PT-CE) referente ao Plano Nacional da Educação (PLC 103/2012), aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos. Segundo o relatório, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou superdotação deve ser universalizado na rede regular de ensino. Sendo assim, a meta é que até 2018, a escolaridade de crianças especiais seja feita integralmente e obrigatoriamente no ensino regular, reforçando a diretriz de uma política de educação que seja inclusiva, ou seja, que garanta o direito de acesso de TODAS as crianças na escola regular, sem nenhuma distinção. Fala a favor dessa proposta a promoção de uma política de educação universal, não excludente, que respeite e acolha as diversidades dos alunos. Fala a favor dessa proposta a construção de uma diretriz pedagógica que trabalhe contra noções preconceituosas e equivocadas de que a criança especial seria apenas mais um peso ou problema para escola ou educadores, quando na verdade, poderia ser - se assim permitíssemos - uma oportunidade única e rica de humanizarmos nossas escolas, torna-las mais democráticas, acessíveis, sensíveis às diferenças e tolerantes com aquilo que diverge de nós ou que nos cause estranheza.
Sendo assim, essa diretriz política, retiraria de entidades como Apaes e Pestalozzis a necessidade de oferecer uma escolarização especial que substitua a educação regular, como pode ser feito hoje em dia. Além disso, como se sabe, Apaes e Pestalozzis não são instituições públicas, mas pelo fato de hoje substituírem a escola publica para muitas crianças, fazem jus o recebimento de recursos e repasses do governo, fundamentais para a sua manutenção e sobrevivência. Obviamente que, na medida em que a escola pública assume as crianças especiais, poderá também se desobrigar do envio de recursos públicos para essas associações. Mas ainda que a federação se esquive do repasse financeiro a essas instituições – o que ainda não está definido – e que isso signifique o enfraquecimento ou até a extinção das mesmas, não se pode dizer que o governo irá fechar Apaes e Pestallozzis, simplesmente pelo fato delas serem organizações da sociedade civil, não submetidas a uma intervenção da União.
Depois desses esclarecimentos, somos capazes de enxergar com alguma crítica a postagem que eu citei sobre as Apaes. Em primeiro lugar podemos analisar melhor a pergunta que é feita, e ela é feita para seduzir emocionalmente o interlocutor, afinal, quem em sã consciência será capaz de se colocar contrário ao atendimento e escolarização de crianças especiais? Todavia, em nenhum momento é dito que a proposta não é retirar o atendimento a essas crianças, mas sim, propor um outro tipo de atendimento; teoricamente mais inclusivo, menos excludente. A segunda indução ao erro é dizer que o governo tem como proposta fechar as Apaes, quando na verdade, ele não tem nenhuma ingerência para fazê-lo.
Isso não quer dizer que todas as pessoas que leram este meu texto devem, a partir de agora, concordar com a proposta inclusiva do Plano Nacional de Educação. Muitas podem defender que deva mesmo haver escolas especiais para crianças especiais, podem argumentar que as escolas regulares não têm condições de receber alunos diferentes, que os professores não têm preparo para este tipo de trabalho, que o governo deve continuar mantendo essas instituições, sob o risco de que elas sucumbam por falta de recursos, ou podem defender que tais instituições mereçam recurso público para que possam fazer um trabalho paralelo à escolarização regular. Todas essas argumentações, e outras, podem ser usadas em defesa das Apaes, mas é importante que elas sejam sustentadas por uma discussão que realmente enriqueça o debate sobre o tema e não no parco resultado de uma curtida no feicebuque.
Por meio dessas postagens toscas e de fácil manipulação, associou-se a famosa PEC 37 à impunidade dos nossos políticos. Se manifestar contra a PEC 37 virou sinônimo de acabar com a corrupção, mesmo quando a própria OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) denunciava o falso debate sobre tal proposta, fazendo, inclusive, a defesa da mesma. PEC que, no final, diante da pressão das ruas, foi derrotada. Mais recentemente os tais “embargos infringentes” (que a maioria da população, assim como eu, não tem a menor noção do que seja) caíram na rede e foram execrados. Todo mundo se sentiu impelido a ser contra, e muitos se manifestaram de luto pelas redes sociais quando foram mantidos. Eu não tenho duvidas de que muitas dessas manifestações ocorreram porque a sobrevivência dos tais embargos ficou vinculada exclusivamente à possível absolvição dos chamados “mensaleiros”, que já foram condenados pela opinião pública mesmo sem terem sidos condenados definitivamente pela justiça.
As redes sociais são capazes dos entrelaçamentos mais incríveis e improváveis, porque superam as barreiras do tempo, do espaço, da distância, das limitações físicas e até sensoriais. Assim como esses enlaçamentos abrem possibilidades ricas e infinitas de articulação, organização, aprendizado, afetividade, mobilização, empoderamento, participação, abrem na mesma proporção uma fenda que, esvaziada de sabedoria, de crítica, de conteúdo, de sentido e/ou de ética, torna-se um espaço fecundo para abrigar o “estouro da boiada”; quando todos seguem cegamente uma direção sem questionamento, embalados pela maioria.
Entendo que seja urgente compreendermos a distância que existe entre opinião pública e debate democrático. Precisamos fortalecer as instancias de participação social, os conselhos, os partidos, as organizações civis, os movimentos sociais e de classe, se quisermos uma democracia robusta e viva. Plebiscitos, pesquisas de opinião, consultas públicas, curtidas no feicebuque têm sim sua função, mas, em geral, servem mais para polarizar e empobrecer a discussão do que para favorecer tomadas de posição maduras que realmente demonstrem a necessidade e o desejo da população.
Também é urgente que vejamos com mais responsabilidade uma atitude aparentemente inofensiva, de curtir e compartilhar uma postagem. Vejo todo dia nas redes sociais, temas importantes sendo simplificados, pessoas e instituições sofrendo linchamento público e informações sendo distorcidas ou até mesmo inventadas, e o que é pior, vejo pessoas curtindo e compartilhando tais postagens sem a menor crítica. Me assusta muito, por exemplo, quando vejo publicadas fotos de pessoas com uma frase do tipo: esta pessoa maltrata idosos ou é estupradora ou ladra ou assassina: quem encontrá-la denuncie. Será que não devemos considerar a hipótese de uma postagem dessas ser falsa ou equivocada?
É famosa uma fotografia que circula pelas redes sociais de uma mulher com uma criança no colo do lado esquerdo e uma arma na mão direita apontando para a criança. No entanto, trata-se de uma montagem. Na foto original a mulher segura um pássaro e não uma arma. Então devemos perguntar: Que tipo de consequência essa foto pode ou poderá trazer para essa mulher? E será que uma possível reparação poderá ser feita na mesma medida do estrago? São questionamentos que, no meu entendimento, precisamos fazer antes de mostrarmos nosso polegar para cima, concordando com alguma postagem e fazendo-a se multiplicar por aí, acreditando que estamos, com isso, exercitando nossa liberdade de expressão ou a veia democrática da nossa sociedade. Democracia sem ética também pode produzir distorções e barbárie. Sim, a simplicidade deste ato de clicar o polegar para cima, especialmente quando feito coletivamente, me parece, às vezes, tão bárbaro e cruel como aquele utilizado nas arenas romanas no início da era cristã, quando o povo presente era conclamado a mostrar o polegar para cima ou para baixo para absolver ou condenar os julgados. Apesar de ser uma forma que os Imperadores Romanos utilizavam para acolher a decisão da maioria, isso não me parece em nada com o que poderíamos chamar de uma decisão democrática.
Mas alguém pode argumentar ingenuamente que é exagero comparar um linchamento ou execução real de um linchamento ou execução na esfera virtual. Para mim, quem diz isso não entendeu nada do mundo virtual, ou nunca assistiu Matrix. O mundo virtual não é um mundo de mentirinha ou de fantasia. Real e virtual apesar de serem universos distintos, participam de uma mesma realidade, se entrelaçam e se influenciam o tempo todo. Assim como em Matrix, morrer no mundo virtual pode significar a morte no mundo real. Por isso, devemos exercitar mais nossa ética e nossa responsabilidade ao curtir e compartilhar no mundo virtual. E pensando bem, agora eu entendo porque Mark Zuckerberg – criador do feicebuque – não instituiu por lá o polegar para baixo. Melhor não.
Minha humilde sugestão é que a gente se preocupe, pelo menos, em se informar um pouco mais antes de curtir e compartilhar uma notícia, especialmente quando ela vier simplificada demais. Na dúvida, prefira curtir e compartilhar fotos de animais fofos. Eu prefiro as de gatinhos.
psicanalista real e virtual
A palavra DEMOCRACIA anda um tanto quanto desgastada. E em tempo de redes sociais então, esse desgaste tem produzido uma confusão terrível; a confusão entre democracia e opinião pública. O perigo desse tipo de confusão é o processo de simplificação e empobrecimento do discurso democrático. Nas redes sociais todos sentem necessidade de se apropriarem de uma posição política que, em geral, se resume em ser contra ou a favor, criando um terreno fértil para a banalização do maniqueísmo. Sem espaço para discussão, o aprofundamento dos temas e o debate de ideias – tão fundamentais para o fortalecimento da democracia – a “manifestação democrática” nas redes se faz num clique: curtir e compartilhar.
Obviamente que, numa sociedade democrática, é esperado e louvável que as pessoas se manifestem e opinem, todavia, é preocupante quando percebemos que tais opiniões são, muitas vezes, exploradas pelas redes sociais de maneira tendenciosa, parcial e até com certa dose de má fé, com o objetivo claro e explícito de manipular e distorcer uma informação e influenciar a tomada de posição das pessoas.
A grande febre do feicebuque, por exemplo, são as postagens com uma foto e uma frase pequena, de fácil entendimento. São postagens que se multiplicam diariamente, minuto a minuto na linha do tempo virtual, com a função precípua de seduzir os navegantes virtuais e receberem um curtir e um compartilhar (quanto mais, melhor). Tais publicações não têm a menor intenção de levar o interlocutor a pensar, a pesquisar, compreender ou questionar o tema em questão e, muitas vezes, o induzem ao erro. Além disso, produzem e reforçam a ideia de que um mero curtir e compartilhar possam ser formas efetivas e contundentes de participação democrática, quando na verdade o que elas mais fazem é influenciar a opinião pública.
Vou citar um exemplo aqui, mas poderia enumerar centenas deles. Cito esse exemplo porque se trata de um tema presente na minha vida acadêmica e profissional, e sobre o qual acredito ter certa autoridade para defender uma posição, que é técnica e política.
Meses atrás, apareceram várias publicações no feicebuque nos alertando que o governo federal pretendia fechar as APAES. Algumas chegavam a acusar diretamente a presidenta Dilma ou seu partido pelo fim dessas associações. Uma dessas publicações, a que me chamou mais atenção, trazia a foto de uma criança portadora de síndrome de down com uma pergunta: Você quer que as crianças especiais fiquem sem educação e tratamento? Se sua resposta é NÃO, então curta e compartilhe, para que o Governo Federal não feche as APAES.
A postagem em questão foi baseada no temor relacionado ao relatório do senador José Pimentel (PT-CE) referente ao Plano Nacional da Educação (PLC 103/2012), aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos. Segundo o relatório, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou superdotação deve ser universalizado na rede regular de ensino. Sendo assim, a meta é que até 2018, a escolaridade de crianças especiais seja feita integralmente e obrigatoriamente no ensino regular, reforçando a diretriz de uma política de educação que seja inclusiva, ou seja, que garanta o direito de acesso de TODAS as crianças na escola regular, sem nenhuma distinção. Fala a favor dessa proposta a promoção de uma política de educação universal, não excludente, que respeite e acolha as diversidades dos alunos. Fala a favor dessa proposta a construção de uma diretriz pedagógica que trabalhe contra noções preconceituosas e equivocadas de que a criança especial seria apenas mais um peso ou problema para escola ou educadores, quando na verdade, poderia ser - se assim permitíssemos - uma oportunidade única e rica de humanizarmos nossas escolas, torna-las mais democráticas, acessíveis, sensíveis às diferenças e tolerantes com aquilo que diverge de nós ou que nos cause estranheza.
Sendo assim, essa diretriz política, retiraria de entidades como Apaes e Pestalozzis a necessidade de oferecer uma escolarização especial que substitua a educação regular, como pode ser feito hoje em dia. Além disso, como se sabe, Apaes e Pestalozzis não são instituições públicas, mas pelo fato de hoje substituírem a escola publica para muitas crianças, fazem jus o recebimento de recursos e repasses do governo, fundamentais para a sua manutenção e sobrevivência. Obviamente que, na medida em que a escola pública assume as crianças especiais, poderá também se desobrigar do envio de recursos públicos para essas associações. Mas ainda que a federação se esquive do repasse financeiro a essas instituições – o que ainda não está definido – e que isso signifique o enfraquecimento ou até a extinção das mesmas, não se pode dizer que o governo irá fechar Apaes e Pestallozzis, simplesmente pelo fato delas serem organizações da sociedade civil, não submetidas a uma intervenção da União.
Depois desses esclarecimentos, somos capazes de enxergar com alguma crítica a postagem que eu citei sobre as Apaes. Em primeiro lugar podemos analisar melhor a pergunta que é feita, e ela é feita para seduzir emocionalmente o interlocutor, afinal, quem em sã consciência será capaz de se colocar contrário ao atendimento e escolarização de crianças especiais? Todavia, em nenhum momento é dito que a proposta não é retirar o atendimento a essas crianças, mas sim, propor um outro tipo de atendimento; teoricamente mais inclusivo, menos excludente. A segunda indução ao erro é dizer que o governo tem como proposta fechar as Apaes, quando na verdade, ele não tem nenhuma ingerência para fazê-lo.
Isso não quer dizer que todas as pessoas que leram este meu texto devem, a partir de agora, concordar com a proposta inclusiva do Plano Nacional de Educação. Muitas podem defender que deva mesmo haver escolas especiais para crianças especiais, podem argumentar que as escolas regulares não têm condições de receber alunos diferentes, que os professores não têm preparo para este tipo de trabalho, que o governo deve continuar mantendo essas instituições, sob o risco de que elas sucumbam por falta de recursos, ou podem defender que tais instituições mereçam recurso público para que possam fazer um trabalho paralelo à escolarização regular. Todas essas argumentações, e outras, podem ser usadas em defesa das Apaes, mas é importante que elas sejam sustentadas por uma discussão que realmente enriqueça o debate sobre o tema e não no parco resultado de uma curtida no feicebuque.
Por meio dessas postagens toscas e de fácil manipulação, associou-se a famosa PEC 37 à impunidade dos nossos políticos. Se manifestar contra a PEC 37 virou sinônimo de acabar com a corrupção, mesmo quando a própria OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) denunciava o falso debate sobre tal proposta, fazendo, inclusive, a defesa da mesma. PEC que, no final, diante da pressão das ruas, foi derrotada. Mais recentemente os tais “embargos infringentes” (que a maioria da população, assim como eu, não tem a menor noção do que seja) caíram na rede e foram execrados. Todo mundo se sentiu impelido a ser contra, e muitos se manifestaram de luto pelas redes sociais quando foram mantidos. Eu não tenho duvidas de que muitas dessas manifestações ocorreram porque a sobrevivência dos tais embargos ficou vinculada exclusivamente à possível absolvição dos chamados “mensaleiros”, que já foram condenados pela opinião pública mesmo sem terem sidos condenados definitivamente pela justiça.
As redes sociais são capazes dos entrelaçamentos mais incríveis e improváveis, porque superam as barreiras do tempo, do espaço, da distância, das limitações físicas e até sensoriais. Assim como esses enlaçamentos abrem possibilidades ricas e infinitas de articulação, organização, aprendizado, afetividade, mobilização, empoderamento, participação, abrem na mesma proporção uma fenda que, esvaziada de sabedoria, de crítica, de conteúdo, de sentido e/ou de ética, torna-se um espaço fecundo para abrigar o “estouro da boiada”; quando todos seguem cegamente uma direção sem questionamento, embalados pela maioria.
Entendo que seja urgente compreendermos a distância que existe entre opinião pública e debate democrático. Precisamos fortalecer as instancias de participação social, os conselhos, os partidos, as organizações civis, os movimentos sociais e de classe, se quisermos uma democracia robusta e viva. Plebiscitos, pesquisas de opinião, consultas públicas, curtidas no feicebuque têm sim sua função, mas, em geral, servem mais para polarizar e empobrecer a discussão do que para favorecer tomadas de posição maduras que realmente demonstrem a necessidade e o desejo da população.
Também é urgente que vejamos com mais responsabilidade uma atitude aparentemente inofensiva, de curtir e compartilhar uma postagem. Vejo todo dia nas redes sociais, temas importantes sendo simplificados, pessoas e instituições sofrendo linchamento público e informações sendo distorcidas ou até mesmo inventadas, e o que é pior, vejo pessoas curtindo e compartilhando tais postagens sem a menor crítica. Me assusta muito, por exemplo, quando vejo publicadas fotos de pessoas com uma frase do tipo: esta pessoa maltrata idosos ou é estupradora ou ladra ou assassina: quem encontrá-la denuncie. Será que não devemos considerar a hipótese de uma postagem dessas ser falsa ou equivocada?
É famosa uma fotografia que circula pelas redes sociais de uma mulher com uma criança no colo do lado esquerdo e uma arma na mão direita apontando para a criança. No entanto, trata-se de uma montagem. Na foto original a mulher segura um pássaro e não uma arma. Então devemos perguntar: Que tipo de consequência essa foto pode ou poderá trazer para essa mulher? E será que uma possível reparação poderá ser feita na mesma medida do estrago? São questionamentos que, no meu entendimento, precisamos fazer antes de mostrarmos nosso polegar para cima, concordando com alguma postagem e fazendo-a se multiplicar por aí, acreditando que estamos, com isso, exercitando nossa liberdade de expressão ou a veia democrática da nossa sociedade. Democracia sem ética também pode produzir distorções e barbárie. Sim, a simplicidade deste ato de clicar o polegar para cima, especialmente quando feito coletivamente, me parece, às vezes, tão bárbaro e cruel como aquele utilizado nas arenas romanas no início da era cristã, quando o povo presente era conclamado a mostrar o polegar para cima ou para baixo para absolver ou condenar os julgados. Apesar de ser uma forma que os Imperadores Romanos utilizavam para acolher a decisão da maioria, isso não me parece em nada com o que poderíamos chamar de uma decisão democrática.
Mas alguém pode argumentar ingenuamente que é exagero comparar um linchamento ou execução real de um linchamento ou execução na esfera virtual. Para mim, quem diz isso não entendeu nada do mundo virtual, ou nunca assistiu Matrix. O mundo virtual não é um mundo de mentirinha ou de fantasia. Real e virtual apesar de serem universos distintos, participam de uma mesma realidade, se entrelaçam e se influenciam o tempo todo. Assim como em Matrix, morrer no mundo virtual pode significar a morte no mundo real. Por isso, devemos exercitar mais nossa ética e nossa responsabilidade ao curtir e compartilhar no mundo virtual. E pensando bem, agora eu entendo porque Mark Zuckerberg – criador do feicebuque – não instituiu por lá o polegar para baixo. Melhor não.
Minha humilde sugestão é que a gente se preocupe, pelo menos, em se informar um pouco mais antes de curtir e compartilhar uma notícia, especialmente quando ela vier simplificada demais. Na dúvida, prefira curtir e compartilhar fotos de animais fofos. Eu prefiro as de gatinhos.
domingo, 1 de setembro de 2013
Delirar é fundamental!
Delirar é fundamental! Tão fundamental que se eu fosse uma filósofa importante mudaria a máxima cartesiana para: "Deliro, logo existo". É comum que se diga que só os loucos deliram, mas isso não é verdade. Todos nós deliramos. Quem não delira ou é pedra ou é planta. Todas as pequenas e grandes realizações humanas iniciaram com um delírio, ou seja, numa invenção da cabeça de alguém.
Quando começamos a trabalhar na saúde mental, temos muito medo do delírio. Mas depois de um tempo, entendemos que o que difere uns delírios de outros, é o simples fato de alguns deles conseguirem nos convencer de que são uma verdade possível e outros não. Ou seja, tememos o delírio quando acontece de não conseguirmos compartilhar de sua verdade. É um medo do desconhecido, apenas.
Portanto, o grande desafio enfrentado pelo delírio, ou por quem delira, é conseguir convencer outras pessoas da verdade daquele delírio. Assim também deve ter sido para Copérnico no século XV, quando afirmou que o Sol, e não a Terra, seria o centro do nosso Universo. Também foi considerado delírio quando alguns disseram ser possível tratar da loucura entre nós: sem muros, sem trancas, sem isolamento, sem exclusão. Hoje vemos que isso é totalmente possível. Isso quer dizer que um delírio é capaz de se tornar uma verdade quando, e se, tem a chance de ser compartilhado por um determinado número de pessoas; quando consegue fazer laço e lastro.
Mas ai daquele que não consegue compartilhar seu delírio! Ai daquele que não consegue fazer laço com seu delírio! Assim sendo, a missão dos novos serviços de saúde mental não manicomiais, inventados pela Reforma Psiquiátrica, tem sido, exatamente, tornar possível o delírio de muitas pessoas, aquelas que tinham seu delírio silenciado, desvalorizado e desacreditado.
E assim se resume o meu trabalho nos últimos anos: eu acredito nos delírios que ouço. Em todos eles. Porque o que aprendi nesses meus 17 anos de trabalho na saúde mental, nos vários CAPS que já trabalhei e com os inúmeros delírios que ouvi é que: não existe delírio que não possa se tornar uma verdade. Todo e qualquer delírio pode adquirir valor de verdade quando compartilhado por outras pessoas, afinal o que distingue a verdade do delírio é que a verdade é o delírio que a gente acredita e compartilha.
Então, deliremos! E botemos fé no delírio!
Rita de Cássia de A Almeida
Coordenadora do CAPS CasAberta de Lima Duarte MG
Texto em comemoração aos 10 anos do CAPS CasAberta.
30 de agosto de 2013
terça-feira, 27 de agosto de 2013
Quando as Feras Selvagens chegam...
Por Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista e mãe de três filhos
“Deixa eu lhe dizer uma coisa. Quando somos crianças as pessoas dizem que nossa vida será feliz, que será maravilhosa e tal. Mas fique sabendo que não é assim. Então, tire isso da cabeça agora. Porque a vida pode ser um banquete, mas você poderá ser apenas uma garçonete idiota. Um dia, a comida do seu prato vai cair no chão e ninguém vai estar lá para pegá-la para você. Um dia você vai ter que se virar sozinha. Entende o que eu estou dizendo? Então, sorria garota. Sorria. Porque ninguém gosta de uma mulher que vive se lamentando.”.
Este trecho é parte do diálogo entre uma (provável) mãe e sua filha de seis anos, que compõe uma, entre muitas outras cenas belas e inesquecíveis, do filme: Indomável Sonhadora (péssima tradução para o original Beasts of the Southern Wild). A primeira vista, especialmente pra quem não assistiu ao filme, trata-se apenas de uma fala cruel, cruel demais para uma garotinha. No entanto, a avaliação a ser feita da cena não pode ser tão simples, quando vista dentro de todo o contexto narrativo.
Eu traduziria o título do filme como “As Feras Selvagens que chegam do Sul”, já que a grande questão suscitada pelo filme é aquela que persegue cotidianamente a todos nós, pais e mães: devemos proteger nossos filhos das feras selvagens ou ensiná-los a enfrentar tais feras selvagens?
O mundo idealizado pelo cineasta e no qual Hushpuppy, a garotinha que protagoniza a história, vive, é demasiadamente bruto e atroz, e as feras que ela precisa enfrentar são grandes, feias e cruéis. Os adultos dessa história sabem disso, e parecem não fazer questão de esconder tal realidade das crianças, especialmente o pai de Hushpuppy, que dedica seus últimos dias a ensinar a filha a sobreviver sozinha, já que ele é vítima de uma doença terminal e a mãe os abandonou há alguns anos.
No nosso mundo real, no entanto, sinto que cada vez menos educamos nossos filhos para lidar e enfrentar as feras selvagens que invariavelmente virão. Percebo um demasiado exagero na proteção de nossas crianças, que nos parecem cada dia mais frágeis e indefesas, incapazes de lidar com qualquer pequena frustração, com um minúsculo não, um desagrado, uma rejeição. Vejo jovens imaturos e inseguros, que enxergam uma besta fera horrenda, onde muitas vezes, existe apenas um pequeno inseto esquisito e fedorento. E para lidar com tal inseto demandam um arsenal de guerra, quando lhes bastaria apenas, tapar o nariz. Ao contrário do mundo de Hushpuppy, o nosso, acredita ser capaz de evitar todas as feras selvagens que porventura virão. Mas a tragédia que se abate sobre nós é que não podemos evitá-las completamente. E jamais poderemos.
Hushpuppy, por sua vez, apesar dos seus parcos seis anos, é capaz de encarar as feras que lhe perseguem olho no olho, e no fim, as chama de “quase amigas”. Na sua jovem sabedoria, e posto que seu pai soube cumprir devidamente a missão de educá-la para suportar as adversidades do seu mundo, Hushpuppy sabe que as feras que precisou enfrentar também se tornaram parte de quem ela é. Ela já compreendeu que as feras nos atemorizam e podem até nos devorar se não formos fortes, espertos ou sábios o suficiente, mas ela também entendeu que somente as feras, sobretudo as grande e feias, são capazes de extrair de nós, o melhor que podemos ser.
Por isso, eu lamento muito quando vejo pais e mães galgando esforços sobre-humanos para evitar que seus filhos enfrentem e encarem as feras que habitam nosso mundo. Não percebem que estão criando louças frágeis que vão se quebrar ao menor arranhão. Não compreendem que os demasiadamente frágeis, os vitimados, os higienizados, os mimados e os melindrados terão muito mais dificuldade em lidar com as feras; as que vêm do norte, do sul ou as que vêm de dentro. Vejo pais e mães que se desdobram com a pretensão de “dar tudo de bom para os filhos” ou “dar tudo aquilo que não tiveram”, por não entenderem que o grande desafio de educar talvez seja, exatamente, resistir à tentação de dar, e não dar, mesmo tendo condições de fazê-lo.
Na teoria psicanalítica de Winnicott, uma mãe deve ser suficientemente boa, ou seja, suficientemente boa para amar seu bebê e possibilitar seu desenvolvimento. Mas o que nos interessa na teoria winicotiana é que ser boa apenas o suficiente, também implica em ser necessariamente má. E assim eu descreveria os pais que sabem cumprir sua missão de educadores: suficientemente bons e necessariamente maus.
Numa leitura psicanalítica, as feras selvagens que aparecem no filme representam o real. O real é aquilo que se impõe sobre nós e sobre o qual não temos nenhum controle; é o inominável, o indecifrável, o indizível. O real, portanto, é o que nos causa desespero, espanto ou horror. A psicanálise acredita que existem inúmeras formas de lidar com o real que não seja padecendo dele, mas em todas elas é necessário que o sujeito assuma a existência do real, e também sua própria limitação diante dele. Fica paralisado diante do real quem insiste em acreditar que seja possível um mundo ou uma vida sem ele.
Talvez seja isso que a (provável) mãe de Hushpuppy tenta lhe dizer: que as feras selvagens existem e podem, sim, ser tão horrendas quanto más, mas ficar apenas lamentando o fato delas existirem não vai adiantar nada, o melhor é enfrentá-las e seguir sorrindo.
psicanalista e mãe de três filhos
“Deixa eu lhe dizer uma coisa. Quando somos crianças as pessoas dizem que nossa vida será feliz, que será maravilhosa e tal. Mas fique sabendo que não é assim. Então, tire isso da cabeça agora. Porque a vida pode ser um banquete, mas você poderá ser apenas uma garçonete idiota. Um dia, a comida do seu prato vai cair no chão e ninguém vai estar lá para pegá-la para você. Um dia você vai ter que se virar sozinha. Entende o que eu estou dizendo? Então, sorria garota. Sorria. Porque ninguém gosta de uma mulher que vive se lamentando.”.
Este trecho é parte do diálogo entre uma (provável) mãe e sua filha de seis anos, que compõe uma, entre muitas outras cenas belas e inesquecíveis, do filme: Indomável Sonhadora (péssima tradução para o original Beasts of the Southern Wild). A primeira vista, especialmente pra quem não assistiu ao filme, trata-se apenas de uma fala cruel, cruel demais para uma garotinha. No entanto, a avaliação a ser feita da cena não pode ser tão simples, quando vista dentro de todo o contexto narrativo.
Eu traduziria o título do filme como “As Feras Selvagens que chegam do Sul”, já que a grande questão suscitada pelo filme é aquela que persegue cotidianamente a todos nós, pais e mães: devemos proteger nossos filhos das feras selvagens ou ensiná-los a enfrentar tais feras selvagens?
O mundo idealizado pelo cineasta e no qual Hushpuppy, a garotinha que protagoniza a história, vive, é demasiadamente bruto e atroz, e as feras que ela precisa enfrentar são grandes, feias e cruéis. Os adultos dessa história sabem disso, e parecem não fazer questão de esconder tal realidade das crianças, especialmente o pai de Hushpuppy, que dedica seus últimos dias a ensinar a filha a sobreviver sozinha, já que ele é vítima de uma doença terminal e a mãe os abandonou há alguns anos.
No nosso mundo real, no entanto, sinto que cada vez menos educamos nossos filhos para lidar e enfrentar as feras selvagens que invariavelmente virão. Percebo um demasiado exagero na proteção de nossas crianças, que nos parecem cada dia mais frágeis e indefesas, incapazes de lidar com qualquer pequena frustração, com um minúsculo não, um desagrado, uma rejeição. Vejo jovens imaturos e inseguros, que enxergam uma besta fera horrenda, onde muitas vezes, existe apenas um pequeno inseto esquisito e fedorento. E para lidar com tal inseto demandam um arsenal de guerra, quando lhes bastaria apenas, tapar o nariz. Ao contrário do mundo de Hushpuppy, o nosso, acredita ser capaz de evitar todas as feras selvagens que porventura virão. Mas a tragédia que se abate sobre nós é que não podemos evitá-las completamente. E jamais poderemos.
Hushpuppy, por sua vez, apesar dos seus parcos seis anos, é capaz de encarar as feras que lhe perseguem olho no olho, e no fim, as chama de “quase amigas”. Na sua jovem sabedoria, e posto que seu pai soube cumprir devidamente a missão de educá-la para suportar as adversidades do seu mundo, Hushpuppy sabe que as feras que precisou enfrentar também se tornaram parte de quem ela é. Ela já compreendeu que as feras nos atemorizam e podem até nos devorar se não formos fortes, espertos ou sábios o suficiente, mas ela também entendeu que somente as feras, sobretudo as grande e feias, são capazes de extrair de nós, o melhor que podemos ser.
Por isso, eu lamento muito quando vejo pais e mães galgando esforços sobre-humanos para evitar que seus filhos enfrentem e encarem as feras que habitam nosso mundo. Não percebem que estão criando louças frágeis que vão se quebrar ao menor arranhão. Não compreendem que os demasiadamente frágeis, os vitimados, os higienizados, os mimados e os melindrados terão muito mais dificuldade em lidar com as feras; as que vêm do norte, do sul ou as que vêm de dentro. Vejo pais e mães que se desdobram com a pretensão de “dar tudo de bom para os filhos” ou “dar tudo aquilo que não tiveram”, por não entenderem que o grande desafio de educar talvez seja, exatamente, resistir à tentação de dar, e não dar, mesmo tendo condições de fazê-lo.
Na teoria psicanalítica de Winnicott, uma mãe deve ser suficientemente boa, ou seja, suficientemente boa para amar seu bebê e possibilitar seu desenvolvimento. Mas o que nos interessa na teoria winicotiana é que ser boa apenas o suficiente, também implica em ser necessariamente má. E assim eu descreveria os pais que sabem cumprir sua missão de educadores: suficientemente bons e necessariamente maus.
Numa leitura psicanalítica, as feras selvagens que aparecem no filme representam o real. O real é aquilo que se impõe sobre nós e sobre o qual não temos nenhum controle; é o inominável, o indecifrável, o indizível. O real, portanto, é o que nos causa desespero, espanto ou horror. A psicanálise acredita que existem inúmeras formas de lidar com o real que não seja padecendo dele, mas em todas elas é necessário que o sujeito assuma a existência do real, e também sua própria limitação diante dele. Fica paralisado diante do real quem insiste em acreditar que seja possível um mundo ou uma vida sem ele.
Talvez seja isso que a (provável) mãe de Hushpuppy tenta lhe dizer: que as feras selvagens existem e podem, sim, ser tão horrendas quanto más, mas ficar apenas lamentando o fato delas existirem não vai adiantar nada, o melhor é enfrentá-las e seguir sorrindo.
sexta-feira, 2 de agosto de 2013
Sobre macumbas, marchas, santos, anéis e muros e sobre a força dos símbolos
por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
Dias atrás ouvi a explicação de um militante do movimento negro - e, diga-se de passagem, uma belíssima explicação – sobre o sentido original das oferendas que as religiões afro-brasileiras utilizam em seus rituais, as que vulgarmente chamamos de macumbas. Ele explicou que, na época da escravidão, muitos negros fugiam para o mato na tentativa de se libertarem do jugo dos seus senhores e, antes de conseguirem fugir para algum Quilombo, ficavam próximos às fazendas, escondidos no meio da mata por dias e até semanas. As mulheres negras, na tentativa de auxiliar esses fugitivos a se manterem vivos até que pudessem partir definitivamente, deixavam tais oferendas pelas margens do caminho ou em locais combinados previamente (em baixo de um cruzeiro, numa encruzilhada, em baixo de uma árvore), oferendas que não eram nada mais do que comida e bebida preparadas para saciar a fome e a sede dos seus entes queridos. No entanto, para disfarçar sua atitude, diziam que os quitutes eram oferendas para os Santos ou Orixás, inventavam rituais e acendiam velas, um modo de sinalizar o local do alimento, especialmente à noite. E por meio dessa estratégia elas sabiam também, se os fugitivos já tinham seguido caminho ou se ainda estavam por ali, bastava observar no dia seguinte como estava o alimento que tinham deixado. O fato é que o que, inicialmente, foi uma estratégia de resistência dos negros escravizados, acabou sendo incorporado pelas religiões afro-brasileiras como ritual.
Eu nunca tinha ouvido essa história e achei de uma poesia infinita. Antes de tal explicação as macumbas não faziam nenhum sentido para mim, não continham nenhum significado, a não ser o de saber que eram significativas para a religião de alguns, o que sempre me impediu de ser desrespeitosa ou intolerante com elas. Mas agora, eu vejo as macumbas de um modo completamente novo. Passei a vê-las com grande respeito e até com reverência, porque agora elas me remetem à sabedoria e ao poder de invenção e resistência dos negros escravizados. As macumbas fazem todo o sentido para mim agora.
E é assim que os símbolos funcionam para nós, humanos. Objetos, palavras, cores, músicas, letras, desenhos, ou seja, qualquer coisa, acrescida de um significado cultural compartilhado, pode se tornar um símbolo para um determinado grupo de pessoas.
A psicanálise entende que o homem, uma vez atravessado pelo inconsciente – que é a linguagem ou o corpo social que se inscreve em nós à revelia de nós mesmos – nunca mais poderá ter acesso à coisa em si; a das ding, para usar o termo freudiano, ou ao real, para usar um termo lacaniano. Ou seja, para nós, seres falantes, a coisa em si nunca poderá ser apreendida, o real nunca poderá ser acessado na medida em que estará sempre configurado pelo sentido e significado que damos a ele.
Fiz essa introdução para tratar do tema que dividiu opiniões na última semana: a quebra e manipulação de imagens de santos católicos por algumas militantes da Marcha das Vadias. Chamou minha atenção a tentativa de alguns em reduzir o peso do impacto que o ato causou em muitas pessoas, buscando descolar das imagens a simbologia que lhes é inerente. O argumento utilizado era que se tratava apenas de pedaços de cerâmica e que, em um local não sacralizado – a rua – perderiam seu significado religioso. Obviamente que, dentro da perspectiva que adotamos aqui, esse argumento carece de fundamento, até porque, se as manifestantes se dispuseram a realizar aquela performance com as imagens, é exatamente por saberem o simbolismo e o sentido que elas carregam. Caso fossem pedaços de cerâmica, o ato delas também não teria sentido algum.
Quem assistiu a queda do Muro de Berlim na década de 80, não duvida do impacto simbólico que foi ver centenas de alemães quebrando aqueles tijolos, simplesmente porque, todos sabíamos que não eram apenas tijolos que estavam sendo quebrados. Foi pelo mesmo motivo que as Torres Gêmeas do World Trade Center foram escolhidas para ser alvo dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, porque eram o símbolo do poderio econômico americano. Em todo mundo, são comuns manifestações em que se queimam bandeiras, que podem ser de países, partidos ou simplesmente de times de futebol. E as mulheres também já queimaram sutiãs, num ato simbólico contra a repressão feminina. Ou seja, a destruição ou profanação de símbolos sempre foi, e é, muito utilizada para desconstruir, questionar, protestar, demonstrar insatisfação e rebeldia, podemos citar um zilhão de exemplos ao longo da história, e não há dúvidas de que tais atos cumprem sua função que também nunca é real, mas sobretudo simbólica.
Num outro sentido de desconstrução de símbolos, nesse caso de uma forma, digamos, pacífica, está a postura do Papa Francisco e que assistimos de perto, também na última semana. Sem entrar no mérito da intenção do Papa, não pretende ser destituído de sentido que o líder máximo da Igreja Católica rejeite a cadeira, o manto, o anel, os sapatos, o tapete vermelho, o carro, a segurança, e todos os aparatos que estavam associados ao status, poderio e riqueza da Igreja e do Vaticano. Por mais que possamos duvidar das reais mudanças que possam ocorrer a partir disso, não dá pra negar a força desse ato simbólico e da sua repercussão.
Sendo assim, o que pretendo dizer é que da mesma maneira que os símbolos são criados, inventados e construídos, também podem – e invariavelmente até devem – ser quebrados, desinventados e destruídos. Então, a meu ver, nossa rejeição ou indignação quando se quebra um símbolo não deveria ser moral, mas estética. Ou seja, o problema não é que se quebrem certos símbolos, mas como isso é feito e por quem.
Por exemplo, imaginemos que o Wold Trade Center não tivesse sido destruído em 2001 e que em 2008 os milhares de americanos, vítimas da chamada bolha imobiliária, que tiveram suas casas hipotecadas tomadas pelos bancos, decidissem invadir o coração financeiro daquele país, ocupá-lo e quebrá-lo, assim como fizeram os franceses na “Tomada da Bastilha” no século XVIII. Obviamente que, esteticamente, esse ato teria um sentido totalmente diverso do que teve os atentados de 11 de setembro. Nesse caso, teria o mesmo sentido estético que teve a derrubada do Muro de Berlim, este porque foi feito por alemães e aquele porque foi feito por americanos. Do mesmo modo, a recusa dos símbolos tradicionais do Papa só tem valor estético porque são feitos por ele mesmo, estética que se perderia caso tais símbolos fossem roubados ou vandalizados por manifestantes de outra religião A queima de sutiãs pelas feministas da década de 60 foi um ato político belíssimo, porque tratava-se de um apetrecho feminino, queimado por mulheres.
Resumindo, entendo que são belos, mesmo os mais violentos atos de destruição de símbolos, desde que aconteçam de dentro para fora e não pela via da intervenção de outrem. Se conseguirmos nos livrar de moralismos tolos, entenderemos a beleza da nudez das mulheres na Marcha das Vadias com seus corpos cheios de inscrições, afinal são mulheres desnudando e escrevendo em seus próprios corpos, estética que se perderia se por acaso se tratasse mulheres obrigadas por outrem a andarem pelas ruas, nuas e pintadas. Sendo assim, caso um dia os católicos desejem questionar a função dos Santos dentro da sua fé religiosa e num ato de rebeldia façam uma procissão em que imagens sejam quebradas e profanadas, teremos um outro padrão estético de violência simbólica. No entanto,a performance das ativistas com os símbolos católicos foi, para mim, um desastre estético. Tão feio quanto o desempenho teatral daquele pastor que chutou a Santa num programa de TV há alguns anos atrás. Tão feia quanto a invasão de Terreiros de Candomblé por alguns evangélicos em Olinda, no ano passado.
Então, é importante, sim, que nós quebremos e queimemos nossos próprios símbolos e com eles os paradigmas e as verdades que precisem ser superadas a fim de fazermos desse mundo um lugar melhor para vivermos. Mas profanar e destruir símbolos alheios, ainda que se cumpra uma função de rebeldia, é de um mau-gosto colossal. E no meu entendimento, todo ato político que perde sua beleza estética perde com ela, muito de sua potência revolucionária.
psicanalista
Dias atrás ouvi a explicação de um militante do movimento negro - e, diga-se de passagem, uma belíssima explicação – sobre o sentido original das oferendas que as religiões afro-brasileiras utilizam em seus rituais, as que vulgarmente chamamos de macumbas. Ele explicou que, na época da escravidão, muitos negros fugiam para o mato na tentativa de se libertarem do jugo dos seus senhores e, antes de conseguirem fugir para algum Quilombo, ficavam próximos às fazendas, escondidos no meio da mata por dias e até semanas. As mulheres negras, na tentativa de auxiliar esses fugitivos a se manterem vivos até que pudessem partir definitivamente, deixavam tais oferendas pelas margens do caminho ou em locais combinados previamente (em baixo de um cruzeiro, numa encruzilhada, em baixo de uma árvore), oferendas que não eram nada mais do que comida e bebida preparadas para saciar a fome e a sede dos seus entes queridos. No entanto, para disfarçar sua atitude, diziam que os quitutes eram oferendas para os Santos ou Orixás, inventavam rituais e acendiam velas, um modo de sinalizar o local do alimento, especialmente à noite. E por meio dessa estratégia elas sabiam também, se os fugitivos já tinham seguido caminho ou se ainda estavam por ali, bastava observar no dia seguinte como estava o alimento que tinham deixado. O fato é que o que, inicialmente, foi uma estratégia de resistência dos negros escravizados, acabou sendo incorporado pelas religiões afro-brasileiras como ritual.
Eu nunca tinha ouvido essa história e achei de uma poesia infinita. Antes de tal explicação as macumbas não faziam nenhum sentido para mim, não continham nenhum significado, a não ser o de saber que eram significativas para a religião de alguns, o que sempre me impediu de ser desrespeitosa ou intolerante com elas. Mas agora, eu vejo as macumbas de um modo completamente novo. Passei a vê-las com grande respeito e até com reverência, porque agora elas me remetem à sabedoria e ao poder de invenção e resistência dos negros escravizados. As macumbas fazem todo o sentido para mim agora.
E é assim que os símbolos funcionam para nós, humanos. Objetos, palavras, cores, músicas, letras, desenhos, ou seja, qualquer coisa, acrescida de um significado cultural compartilhado, pode se tornar um símbolo para um determinado grupo de pessoas.
A psicanálise entende que o homem, uma vez atravessado pelo inconsciente – que é a linguagem ou o corpo social que se inscreve em nós à revelia de nós mesmos – nunca mais poderá ter acesso à coisa em si; a das ding, para usar o termo freudiano, ou ao real, para usar um termo lacaniano. Ou seja, para nós, seres falantes, a coisa em si nunca poderá ser apreendida, o real nunca poderá ser acessado na medida em que estará sempre configurado pelo sentido e significado que damos a ele.
Fiz essa introdução para tratar do tema que dividiu opiniões na última semana: a quebra e manipulação de imagens de santos católicos por algumas militantes da Marcha das Vadias. Chamou minha atenção a tentativa de alguns em reduzir o peso do impacto que o ato causou em muitas pessoas, buscando descolar das imagens a simbologia que lhes é inerente. O argumento utilizado era que se tratava apenas de pedaços de cerâmica e que, em um local não sacralizado – a rua – perderiam seu significado religioso. Obviamente que, dentro da perspectiva que adotamos aqui, esse argumento carece de fundamento, até porque, se as manifestantes se dispuseram a realizar aquela performance com as imagens, é exatamente por saberem o simbolismo e o sentido que elas carregam. Caso fossem pedaços de cerâmica, o ato delas também não teria sentido algum.
Quem assistiu a queda do Muro de Berlim na década de 80, não duvida do impacto simbólico que foi ver centenas de alemães quebrando aqueles tijolos, simplesmente porque, todos sabíamos que não eram apenas tijolos que estavam sendo quebrados. Foi pelo mesmo motivo que as Torres Gêmeas do World Trade Center foram escolhidas para ser alvo dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, porque eram o símbolo do poderio econômico americano. Em todo mundo, são comuns manifestações em que se queimam bandeiras, que podem ser de países, partidos ou simplesmente de times de futebol. E as mulheres também já queimaram sutiãs, num ato simbólico contra a repressão feminina. Ou seja, a destruição ou profanação de símbolos sempre foi, e é, muito utilizada para desconstruir, questionar, protestar, demonstrar insatisfação e rebeldia, podemos citar um zilhão de exemplos ao longo da história, e não há dúvidas de que tais atos cumprem sua função que também nunca é real, mas sobretudo simbólica.
Num outro sentido de desconstrução de símbolos, nesse caso de uma forma, digamos, pacífica, está a postura do Papa Francisco e que assistimos de perto, também na última semana. Sem entrar no mérito da intenção do Papa, não pretende ser destituído de sentido que o líder máximo da Igreja Católica rejeite a cadeira, o manto, o anel, os sapatos, o tapete vermelho, o carro, a segurança, e todos os aparatos que estavam associados ao status, poderio e riqueza da Igreja e do Vaticano. Por mais que possamos duvidar das reais mudanças que possam ocorrer a partir disso, não dá pra negar a força desse ato simbólico e da sua repercussão.
Sendo assim, o que pretendo dizer é que da mesma maneira que os símbolos são criados, inventados e construídos, também podem – e invariavelmente até devem – ser quebrados, desinventados e destruídos. Então, a meu ver, nossa rejeição ou indignação quando se quebra um símbolo não deveria ser moral, mas estética. Ou seja, o problema não é que se quebrem certos símbolos, mas como isso é feito e por quem.
Por exemplo, imaginemos que o Wold Trade Center não tivesse sido destruído em 2001 e que em 2008 os milhares de americanos, vítimas da chamada bolha imobiliária, que tiveram suas casas hipotecadas tomadas pelos bancos, decidissem invadir o coração financeiro daquele país, ocupá-lo e quebrá-lo, assim como fizeram os franceses na “Tomada da Bastilha” no século XVIII. Obviamente que, esteticamente, esse ato teria um sentido totalmente diverso do que teve os atentados de 11 de setembro. Nesse caso, teria o mesmo sentido estético que teve a derrubada do Muro de Berlim, este porque foi feito por alemães e aquele porque foi feito por americanos. Do mesmo modo, a recusa dos símbolos tradicionais do Papa só tem valor estético porque são feitos por ele mesmo, estética que se perderia caso tais símbolos fossem roubados ou vandalizados por manifestantes de outra religião A queima de sutiãs pelas feministas da década de 60 foi um ato político belíssimo, porque tratava-se de um apetrecho feminino, queimado por mulheres.
Resumindo, entendo que são belos, mesmo os mais violentos atos de destruição de símbolos, desde que aconteçam de dentro para fora e não pela via da intervenção de outrem. Se conseguirmos nos livrar de moralismos tolos, entenderemos a beleza da nudez das mulheres na Marcha das Vadias com seus corpos cheios de inscrições, afinal são mulheres desnudando e escrevendo em seus próprios corpos, estética que se perderia se por acaso se tratasse mulheres obrigadas por outrem a andarem pelas ruas, nuas e pintadas. Sendo assim, caso um dia os católicos desejem questionar a função dos Santos dentro da sua fé religiosa e num ato de rebeldia façam uma procissão em que imagens sejam quebradas e profanadas, teremos um outro padrão estético de violência simbólica. No entanto,a performance das ativistas com os símbolos católicos foi, para mim, um desastre estético. Tão feio quanto o desempenho teatral daquele pastor que chutou a Santa num programa de TV há alguns anos atrás. Tão feia quanto a invasão de Terreiros de Candomblé por alguns evangélicos em Olinda, no ano passado.
Então, é importante, sim, que nós quebremos e queimemos nossos próprios símbolos e com eles os paradigmas e as verdades que precisem ser superadas a fim de fazermos desse mundo um lugar melhor para vivermos. Mas profanar e destruir símbolos alheios, ainda que se cumpra uma função de rebeldia, é de um mau-gosto colossal. E no meu entendimento, todo ato político que perde sua beleza estética perde com ela, muito de sua potência revolucionária.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
Sobre o Holocausto Brasileiro, livro de Daniela Arbex
Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicóloga/psicanalista
Trabalhadora da rede de saúde mental do SUS
Ainda estou sob o impacto do livro Holocausto Brasileiro, da premiada jornalista do Tribuna de Minas, Daniela Arbex. A realidade contada no livro não era desconhecida para mim, já que sou trabalhadora da Saúde Mental do SUS e militante do Movimento Antimanicomial há 17 anos, mas a riqueza de detalhes, com fotos e documentos e a forma sensível como Daniela tratou tamanha tragédia, me tocaram profundamente.
Há momentos da história da humanidade que todos nós preferiríamos esquecer. Momentos que nos fazem sentir vergonha de pertencer à espécie humana. Ao testemunhar através dos olhos da autora o horror imposto aos “doentes mentais” do Hospital Colônia de Barbacena no século passado, não há como não sentir revolta pela nossa espécie. Porque permitimos tanto descaso, desrespeito e horror? Como pudemos estar tão cegos para aquela realidade, e por tanto tempo?
Dizem que os índios não foram capazes de enxergar as primeiras caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil, simplesmente porque nunca tinham visto nada parecido, sendo assim não tiveram parâmetros para enxergar, mesmo podendo ver. Sendo assim, a única explicação que encontrei para compreender porque tamanha barbárie se sustentou por décadas foi exatamente essa: a de que muitas das testemunhas desse holocausto viam, mas não enxergavam. Afinal, o olhar também precisa aprender a enxergar.
Mas depois que aprendemos a enxergar, fomos capazes de gradativamente desmontar aquela realidade dantesca, apesar de lamentavelmente, alguns daqueles horrores ainda assombrarem nosso presente, aqui e acolá. Através da sua obra, a autora nos convida a enxergar essa tragédia mais uma vez e com mais profundidade, e esse aprendizado não pode ser perdido para que não cometamos os mesmos erros novamente, em outras situações e com novas vítimas. Por isso, mesmo desejando esquecer esse período sombrio da nossa história recente, é muito bom que Daniela refresque nossa memória.
Psicóloga/psicanalista
Trabalhadora da rede de saúde mental do SUS
Ainda estou sob o impacto do livro Holocausto Brasileiro, da premiada jornalista do Tribuna de Minas, Daniela Arbex. A realidade contada no livro não era desconhecida para mim, já que sou trabalhadora da Saúde Mental do SUS e militante do Movimento Antimanicomial há 17 anos, mas a riqueza de detalhes, com fotos e documentos e a forma sensível como Daniela tratou tamanha tragédia, me tocaram profundamente.
Há momentos da história da humanidade que todos nós preferiríamos esquecer. Momentos que nos fazem sentir vergonha de pertencer à espécie humana. Ao testemunhar através dos olhos da autora o horror imposto aos “doentes mentais” do Hospital Colônia de Barbacena no século passado, não há como não sentir revolta pela nossa espécie. Porque permitimos tanto descaso, desrespeito e horror? Como pudemos estar tão cegos para aquela realidade, e por tanto tempo?
Dizem que os índios não foram capazes de enxergar as primeiras caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil, simplesmente porque nunca tinham visto nada parecido, sendo assim não tiveram parâmetros para enxergar, mesmo podendo ver. Sendo assim, a única explicação que encontrei para compreender porque tamanha barbárie se sustentou por décadas foi exatamente essa: a de que muitas das testemunhas desse holocausto viam, mas não enxergavam. Afinal, o olhar também precisa aprender a enxergar.
Mas depois que aprendemos a enxergar, fomos capazes de gradativamente desmontar aquela realidade dantesca, apesar de lamentavelmente, alguns daqueles horrores ainda assombrarem nosso presente, aqui e acolá. Através da sua obra, a autora nos convida a enxergar essa tragédia mais uma vez e com mais profundidade, e esse aprendizado não pode ser perdido para que não cometamos os mesmos erros novamente, em outras situações e com novas vítimas. Por isso, mesmo desejando esquecer esse período sombrio da nossa história recente, é muito bom que Daniela refresque nossa memória.
sábado, 13 de julho de 2013
Entre Maria Louca e Maria Maluquinha tem um Bolsa Família.
Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicanalista
Trabalhadora de CAPS da Rede de Saúde Mental do SUS
Este texto tem uma personagem: Maria. Maria é um nome fictício, mas tudo mais é real, tão real que muitos leitores vão pensar que é ficção.
No início da nossa história Maria é pobre, muito pobre, na verdade, Maria é miserável. Sem nenhuma renda, ela e sua única filha vivem da caridade e da boa vontade de pessoas e instituições. Maria também tem pouquíssima escolaridade, parece uma personagem tirada daquele programa de humor que é a cara da pobreza da nossa TV. Maria fala “pobrema” (problema), “risistente social” (assistente social), “conselho titular” (conselho tutelar), “presentivo” (preventivo), “elétrico” (eletroencefalograma) dentre outras pérolas. Além de tudo Maria é louca, e ela geralmente, concordava com este rótulo que lhe davam. Com algumas passagens por hospícios da região, confessava: “nunca tive cabeça boa pra trabalhar”.
Mas atualmente, Maria não aceita mais ser chamada de louca, se considera uma “maluquinha”. Mas para fazer a travessia de louca para maluquinha, passaram-se quase 10 anos, e muita coisa aconteceu nesse caminho, incluindo um abençoado Bolsa Família. Eu sempre tive vontade de escrever um texto sobre o Bolsa Família e achei apropriado usar a história de Maria para fazê-lo.
Em 17 anos de trabalho em serviços de Saúde Mental do SUS (CAPS), lidando diariamente com pessoas, em geral, pobres, muito pobres ou miseráveis, aprendi uma coisa que só a experiência ensina. Existe uma diferença descomunal, abissal, entre ser pobre e ser miserável. Quem não lida cotidianamente com a população mais humilde, talvez conheça os pobres, mas não conhece os miseráveis, já que eles são “invisíveis a olho nu”. E esse seria o mesmo destino de Maria, ser invisível, mas afinal, sua loucura incomodou e obrigou que a enxergássemos. Foi assim que tomamos conhecimento de Maria, a louca, sem pai nem mãe, rejeitada pela família, em sua miséria absoluta, dependendo do que encontrava no lixo, de favores ou da caridade alheia para sobreviver com sua filha.
Quando ouço pessoas que criticam o Bolsa Família ou outro programa de transferência de renda, dizendo que ele acostuma mal as pessoas, estimula a preguiça e desvirtua o caráter, sinto vontade de vomitar. Quem diz isso, definitivamente, não sabe o que é miséria. Quem faz esse tipo de afirmação tosca e preconceituosa, para usar palavras publicáveis, nunca passou pela situação de encontrar em R$ 70,00 algum alento. Com pouquíssima probabilidade de errar, ninguém que está lendo agora este texto sabe, na carne, o real valor de R$ 70,00. Maria sabe. Muitos aqui vão duvidar, mas R$ 70,00 ou R$ 130,00 (média nacional do valor repassado para cada família com o Bolsa Família), é capaz de reduzir o enorme abismo entre a miséria e a pobreza, e com isso, viabilizar um status inicial necessário para acessar qualquer outro tipo possível de justiça social: ser visto.
E R$ 70,00 fez muita diferença na vida de Maria, não só pelo valor, mas porque em mais de 30 anos de vida, esse foi o primeiro dinheiro que ela conseguiu que não fosse por caridade ou proveniente de algum dos homens com os quais, eventualmente, se aventurava a morar. Isso porque o Bolsa Família não é tratado pelos profissionais, não pelos sérios e éticos, como um mero benefício assistencial ou uma esmola do prefeito ou do governo, mas como um direito. Sendo assim, o cartão do Bolsa Família foi o primeiro direito que Maria conquistou, depois dele, como veremos, muitos outros vieram.
Um segundo direito que Maria teve voz e força para exigir depois do primeiro, foi uma pensão alimentícia para filha. O ex-companheiro de Maria era alcoolista, raramente tinha trabalho fixo, e mesmo quando conseguia algum trabalho, não pagava pensão, regularmente. Mas Maria tinha aprendido a exigir seus direitos, e foi até às últimas conseqüências para conseguir que o pai da menina pagasse a pensão, achou até justo quando ele quase foi preso por não cumprir com a obrigação. Hoje ele paga a pensão de R$ 90,00 assiduamente, e ela assina o recibo na nossa frente (como ficou combinado na justiça), com a postura de quem aprendeu a lutar pelo seu lugar no mundo.
A loucura de Maria, que se instalou desde o nascimento da filha, continuava a lhe imputar uma incapacidade real para o trabalho formal. Sua irritabilidade e instabilidade emocionais faziam de qualquer relação possível com o outro, um inferno. Mesmo dentro do CAPS, eram comuns suas agressões verbais e até físicas a técnicos e outros usuários.
Maria, eventualmente, se envolvia com homens com os quais imaginava conquistar alguma segurança, mas em geral, eles obedeciam a um mesmo padrão: alcoolistas ou usuários de drogas, também pobres, com ligações familiares empobrecidas e sem trabalho fixo. Com esses homens, Maria vive relações muito conturbadas e violentas. Assim também vinha caminhando a relação com seu atual companheiro, e com o qual Maria teve um filho, hoje com 3 anos.
Inúmeras vezes tentamos conseguir para Maria o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que assegura um salário mínimo para idosos, ou pessoas com alguma deficiência grave, que não contribuíram com a previdência social, desde que a renda familiar per capta não ultrapasse ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente. Mas, apesar de inúmeras tentativas, Maria não passava na perícia médica, não era considerada suficientemente incapaz para fazer juz ao benefício.
O fato é que, após muita insistência, no final do ano passado, Maria finalmente conseguiu o BPC e assim que teve certeza de que o benefício chegaria, avisou com satisfação, que agora poderia devolver o cartão do Bolsa Família para que ele pudesse ajudar outra pessoa. Era justo que tivesse recebido o benefício por um tempo e agora, com sua nova condição assegurada, era justo que o passasse adiante. Apesar de louca e ignorante, como a maioria a considerava, Maria sabia o exato significado da palavra justiça, mesmo tendo tão pouco acesso a ela.
Com alguns meses recebendo salário mínimo, além de poder atender suas necessidades básicas e a dos dois filhos, Maria teve melhorias subjetivas ainda mais notórias. A vaidade consigo mesma e com seu pequeno barraco (herança dos pais), que mesmo nos tempos de miséria insistiam em manter nela um pouco de orgulho, hoje se destacam e evidenciam cada vez mais seu estilo. Maria sempre gostou de bijuteria, maquiagem, sapato, bolsa e roupas e, tal como antes, ainda depende de doações para atender a esses seus caprichos. Mas hoje ela parece feliz em apenas poder se aventurar em entrar numa loja e perguntar o preço das coisas. Ontem me abordou dizendo que viu uma calça igual a que eu vestia por R$ 90,00, achou muito cara e, por isso, não comprou. Semana passada Maria compartilhou numa reunião com outros usuários do CAPS, com lágrimas nos olhos, que mês que vem irá realizar o sonho da sua vida: comprar um jogo de panelas na loja. “Meu sonho é comprar um jogo de panelas novo e colocar tudo em cima da mesa”. O projeto seguinte é colocar piso na casa, toda de chão batido.
Também existem os preconceituosos de plantão que vão criticar os que, depois de saírem do abismo da miséria, se rendem ao consumo. Então nós vivemos numa sociedade capitalista e consumista, que propagandeia o tempo todo que podemos alcançar felicidade comprando coisas e acusamos de consumistas os que estão tendo a primeira oportunidade de testar se essa teoria é verdadeira? Ah, tá!
Mas, quem acredita que uma renda mensal mínima tem apenas efeito de consumo, também se engana. Cerca de dois meses depois de Maria ter recebido seu primeiro salário mínimo questionei a ela como estava sua relação com o companheiro, perguntei se ainda se estapeavam. E ela me respondeu: “Não, agora eu não deixo mais ele me bater”. Sendo eu uma psicanalista, poderia ter interpretado a frase dela dizendo: “Mas, então, antes você deixava?” Mas não foi necessário, eu sabia exatamente porque Maria aceitava apanhar. Ao contrário do que muitos podem supor essa Maria, e muitas outras, não apanham por gosto ou costume, tampouco são fãs dos “50 tons”. Nossas Marias aceitam a violência porque acreditam que esse é o preço que têm que pagar para manter em casa seu homem e com ele algum respeito, amor próprio ou possibilidade de sustento para si mesma e para os seus filhos, ainda que esses sejam ganhos totalmente ilusórios.
Já concluindo, preciso contar o que aconteceu no último mês de maio, por ocasião da festa do nosso CAPS em comemoração ao dia Nacional de Luta Antimanicomial. Durante os eventos, Maria nos surpreendeu ao pegar o microfone e recitar uma longa poesia feita por ela, na qual tecia, com muito humor, sua trajetória de louca à maluquinha. No seu poema, meio cantado meio falado, “louca” tinha a conotação pejorativa que lhe davam no passado e “maluquinha” falava de como ela se via hoje, do seu jeitinho diferente, meio maluquinho sim, mas também capaz de declarar seu amor pela vida e pelas pessoas que ali estavam. Era o outro com o qual ela “nunca se dava” transformando-se, finalmente, em objeto de seu amor.
Sim, passado o período em que só podia viver no campo da necessidade imediata e urgente de sobreviver junto com seus filhos, Maria alcança o campo da arte. Maria produz cultura. Atualmente está empolgadíssima com a possibilidade de ser atriz em uma peça de teatro produzida pelo CAPS e cuja história poderá ser a sua própria, aquela tecida em seu poema.
Ainda há quem chame Maria de louca. Para mim, louco é quem critica benefícios sociais e programas de transferência de renda sem saber o que é ser invisível. Muitos dirão que Maria é uma analfabeta ignorante. Para mim, ignorante é quem não consegue olhar em torno, é quem só consegue ver o mundo a partir do próprio umbigo.
Para você que insiste em criticar programas sociais, eu deixo Maria no seu encalço. Mas se sua intenção for apenas criticar, com os amigos ou nas redes sociais, algum tipo de benefício pago com recurso público e que você não recebe, tenho algumas sugestões. Numa pesquisa rápida no Google, descobri alguns auxílios concedidos a ministros, vereadores, deputados, senadores, desembargadores, policiais federais, diplomatas, altas patentes do exército, marinha ou aeronáutica e/ou juízes. São eles: Bolsa Moradia, Bolsa Paletó, Bolsa Passagens Aéreas, Bolsa Combustível, Bolsa Telefone, Bolsa Gabinete, Bolsa Alimentação, Bolsa Despesas, Bolsa Creche, Bolsa Indenizatória, Bolsa Estudo, Bolsa Funeral e Bolsa Assistência Médica. Obviamente, que nem todas as categorias citadas recebem todos esses benefícios, mas cada uma delas recebe pelo menos duas ou três “Bolsas” citadas. E, na verdade, esses benefícios não são chamados de “Bolsa”, fui eu quem, propositalmente, os batizei com esse nome. Mas bem que poderiam chamar, não é? (Eu não pesquisei o valor de tais “Bolsas”, se você quiser fazê-lo fique à vontade. Sugiro apenas que tome um antiácido antes)
Então, alguém aí pra tentar me convencer que o Bolsa Família não é um direito justo?
Psicanalista
Trabalhadora de CAPS da Rede de Saúde Mental do SUS
Este texto tem uma personagem: Maria. Maria é um nome fictício, mas tudo mais é real, tão real que muitos leitores vão pensar que é ficção.
No início da nossa história Maria é pobre, muito pobre, na verdade, Maria é miserável. Sem nenhuma renda, ela e sua única filha vivem da caridade e da boa vontade de pessoas e instituições. Maria também tem pouquíssima escolaridade, parece uma personagem tirada daquele programa de humor que é a cara da pobreza da nossa TV. Maria fala “pobrema” (problema), “risistente social” (assistente social), “conselho titular” (conselho tutelar), “presentivo” (preventivo), “elétrico” (eletroencefalograma) dentre outras pérolas. Além de tudo Maria é louca, e ela geralmente, concordava com este rótulo que lhe davam. Com algumas passagens por hospícios da região, confessava: “nunca tive cabeça boa pra trabalhar”.
Mas atualmente, Maria não aceita mais ser chamada de louca, se considera uma “maluquinha”. Mas para fazer a travessia de louca para maluquinha, passaram-se quase 10 anos, e muita coisa aconteceu nesse caminho, incluindo um abençoado Bolsa Família. Eu sempre tive vontade de escrever um texto sobre o Bolsa Família e achei apropriado usar a história de Maria para fazê-lo.
Em 17 anos de trabalho em serviços de Saúde Mental do SUS (CAPS), lidando diariamente com pessoas, em geral, pobres, muito pobres ou miseráveis, aprendi uma coisa que só a experiência ensina. Existe uma diferença descomunal, abissal, entre ser pobre e ser miserável. Quem não lida cotidianamente com a população mais humilde, talvez conheça os pobres, mas não conhece os miseráveis, já que eles são “invisíveis a olho nu”. E esse seria o mesmo destino de Maria, ser invisível, mas afinal, sua loucura incomodou e obrigou que a enxergássemos. Foi assim que tomamos conhecimento de Maria, a louca, sem pai nem mãe, rejeitada pela família, em sua miséria absoluta, dependendo do que encontrava no lixo, de favores ou da caridade alheia para sobreviver com sua filha.
Quando ouço pessoas que criticam o Bolsa Família ou outro programa de transferência de renda, dizendo que ele acostuma mal as pessoas, estimula a preguiça e desvirtua o caráter, sinto vontade de vomitar. Quem diz isso, definitivamente, não sabe o que é miséria. Quem faz esse tipo de afirmação tosca e preconceituosa, para usar palavras publicáveis, nunca passou pela situação de encontrar em R$ 70,00 algum alento. Com pouquíssima probabilidade de errar, ninguém que está lendo agora este texto sabe, na carne, o real valor de R$ 70,00. Maria sabe. Muitos aqui vão duvidar, mas R$ 70,00 ou R$ 130,00 (média nacional do valor repassado para cada família com o Bolsa Família), é capaz de reduzir o enorme abismo entre a miséria e a pobreza, e com isso, viabilizar um status inicial necessário para acessar qualquer outro tipo possível de justiça social: ser visto.
E R$ 70,00 fez muita diferença na vida de Maria, não só pelo valor, mas porque em mais de 30 anos de vida, esse foi o primeiro dinheiro que ela conseguiu que não fosse por caridade ou proveniente de algum dos homens com os quais, eventualmente, se aventurava a morar. Isso porque o Bolsa Família não é tratado pelos profissionais, não pelos sérios e éticos, como um mero benefício assistencial ou uma esmola do prefeito ou do governo, mas como um direito. Sendo assim, o cartão do Bolsa Família foi o primeiro direito que Maria conquistou, depois dele, como veremos, muitos outros vieram.
Um segundo direito que Maria teve voz e força para exigir depois do primeiro, foi uma pensão alimentícia para filha. O ex-companheiro de Maria era alcoolista, raramente tinha trabalho fixo, e mesmo quando conseguia algum trabalho, não pagava pensão, regularmente. Mas Maria tinha aprendido a exigir seus direitos, e foi até às últimas conseqüências para conseguir que o pai da menina pagasse a pensão, achou até justo quando ele quase foi preso por não cumprir com a obrigação. Hoje ele paga a pensão de R$ 90,00 assiduamente, e ela assina o recibo na nossa frente (como ficou combinado na justiça), com a postura de quem aprendeu a lutar pelo seu lugar no mundo.
A loucura de Maria, que se instalou desde o nascimento da filha, continuava a lhe imputar uma incapacidade real para o trabalho formal. Sua irritabilidade e instabilidade emocionais faziam de qualquer relação possível com o outro, um inferno. Mesmo dentro do CAPS, eram comuns suas agressões verbais e até físicas a técnicos e outros usuários.
Maria, eventualmente, se envolvia com homens com os quais imaginava conquistar alguma segurança, mas em geral, eles obedeciam a um mesmo padrão: alcoolistas ou usuários de drogas, também pobres, com ligações familiares empobrecidas e sem trabalho fixo. Com esses homens, Maria vive relações muito conturbadas e violentas. Assim também vinha caminhando a relação com seu atual companheiro, e com o qual Maria teve um filho, hoje com 3 anos.
Inúmeras vezes tentamos conseguir para Maria o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que assegura um salário mínimo para idosos, ou pessoas com alguma deficiência grave, que não contribuíram com a previdência social, desde que a renda familiar per capta não ultrapasse ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente. Mas, apesar de inúmeras tentativas, Maria não passava na perícia médica, não era considerada suficientemente incapaz para fazer juz ao benefício.
O fato é que, após muita insistência, no final do ano passado, Maria finalmente conseguiu o BPC e assim que teve certeza de que o benefício chegaria, avisou com satisfação, que agora poderia devolver o cartão do Bolsa Família para que ele pudesse ajudar outra pessoa. Era justo que tivesse recebido o benefício por um tempo e agora, com sua nova condição assegurada, era justo que o passasse adiante. Apesar de louca e ignorante, como a maioria a considerava, Maria sabia o exato significado da palavra justiça, mesmo tendo tão pouco acesso a ela.
Com alguns meses recebendo salário mínimo, além de poder atender suas necessidades básicas e a dos dois filhos, Maria teve melhorias subjetivas ainda mais notórias. A vaidade consigo mesma e com seu pequeno barraco (herança dos pais), que mesmo nos tempos de miséria insistiam em manter nela um pouco de orgulho, hoje se destacam e evidenciam cada vez mais seu estilo. Maria sempre gostou de bijuteria, maquiagem, sapato, bolsa e roupas e, tal como antes, ainda depende de doações para atender a esses seus caprichos. Mas hoje ela parece feliz em apenas poder se aventurar em entrar numa loja e perguntar o preço das coisas. Ontem me abordou dizendo que viu uma calça igual a que eu vestia por R$ 90,00, achou muito cara e, por isso, não comprou. Semana passada Maria compartilhou numa reunião com outros usuários do CAPS, com lágrimas nos olhos, que mês que vem irá realizar o sonho da sua vida: comprar um jogo de panelas na loja. “Meu sonho é comprar um jogo de panelas novo e colocar tudo em cima da mesa”. O projeto seguinte é colocar piso na casa, toda de chão batido.
Também existem os preconceituosos de plantão que vão criticar os que, depois de saírem do abismo da miséria, se rendem ao consumo. Então nós vivemos numa sociedade capitalista e consumista, que propagandeia o tempo todo que podemos alcançar felicidade comprando coisas e acusamos de consumistas os que estão tendo a primeira oportunidade de testar se essa teoria é verdadeira? Ah, tá!
Mas, quem acredita que uma renda mensal mínima tem apenas efeito de consumo, também se engana. Cerca de dois meses depois de Maria ter recebido seu primeiro salário mínimo questionei a ela como estava sua relação com o companheiro, perguntei se ainda se estapeavam. E ela me respondeu: “Não, agora eu não deixo mais ele me bater”. Sendo eu uma psicanalista, poderia ter interpretado a frase dela dizendo: “Mas, então, antes você deixava?” Mas não foi necessário, eu sabia exatamente porque Maria aceitava apanhar. Ao contrário do que muitos podem supor essa Maria, e muitas outras, não apanham por gosto ou costume, tampouco são fãs dos “50 tons”. Nossas Marias aceitam a violência porque acreditam que esse é o preço que têm que pagar para manter em casa seu homem e com ele algum respeito, amor próprio ou possibilidade de sustento para si mesma e para os seus filhos, ainda que esses sejam ganhos totalmente ilusórios.
Já concluindo, preciso contar o que aconteceu no último mês de maio, por ocasião da festa do nosso CAPS em comemoração ao dia Nacional de Luta Antimanicomial. Durante os eventos, Maria nos surpreendeu ao pegar o microfone e recitar uma longa poesia feita por ela, na qual tecia, com muito humor, sua trajetória de louca à maluquinha. No seu poema, meio cantado meio falado, “louca” tinha a conotação pejorativa que lhe davam no passado e “maluquinha” falava de como ela se via hoje, do seu jeitinho diferente, meio maluquinho sim, mas também capaz de declarar seu amor pela vida e pelas pessoas que ali estavam. Era o outro com o qual ela “nunca se dava” transformando-se, finalmente, em objeto de seu amor.
Sim, passado o período em que só podia viver no campo da necessidade imediata e urgente de sobreviver junto com seus filhos, Maria alcança o campo da arte. Maria produz cultura. Atualmente está empolgadíssima com a possibilidade de ser atriz em uma peça de teatro produzida pelo CAPS e cuja história poderá ser a sua própria, aquela tecida em seu poema.
Ainda há quem chame Maria de louca. Para mim, louco é quem critica benefícios sociais e programas de transferência de renda sem saber o que é ser invisível. Muitos dirão que Maria é uma analfabeta ignorante. Para mim, ignorante é quem não consegue olhar em torno, é quem só consegue ver o mundo a partir do próprio umbigo.
Para você que insiste em criticar programas sociais, eu deixo Maria no seu encalço. Mas se sua intenção for apenas criticar, com os amigos ou nas redes sociais, algum tipo de benefício pago com recurso público e que você não recebe, tenho algumas sugestões. Numa pesquisa rápida no Google, descobri alguns auxílios concedidos a ministros, vereadores, deputados, senadores, desembargadores, policiais federais, diplomatas, altas patentes do exército, marinha ou aeronáutica e/ou juízes. São eles: Bolsa Moradia, Bolsa Paletó, Bolsa Passagens Aéreas, Bolsa Combustível, Bolsa Telefone, Bolsa Gabinete, Bolsa Alimentação, Bolsa Despesas, Bolsa Creche, Bolsa Indenizatória, Bolsa Estudo, Bolsa Funeral e Bolsa Assistência Médica. Obviamente, que nem todas as categorias citadas recebem todos esses benefícios, mas cada uma delas recebe pelo menos duas ou três “Bolsas” citadas. E, na verdade, esses benefícios não são chamados de “Bolsa”, fui eu quem, propositalmente, os batizei com esse nome. Mas bem que poderiam chamar, não é? (Eu não pesquisei o valor de tais “Bolsas”, se você quiser fazê-lo fique à vontade. Sugiro apenas que tome um antiácido antes)
Então, alguém aí pra tentar me convencer que o Bolsa Família não é um direito justo?
sexta-feira, 28 de junho de 2013
EU NÃO QUERO MAIS DO MESMO
Em tempo de levantar bandeiras, peço licença para levantar as minhas.
Eu não quero mais automóveis, viadutos, estacionamentos, avenidas, sinais de trânsito, pontes ou anéis rodoviários. Eu quero uma cidade que privilegie os caminhantes e os ciclistas, os corredores de rua, os cadeirantes, os deficientes visuais e os que passeiam com seus animais. Quero uma rua tão humanizada que o termo “morador de rua” perca totalmente seu sentido pejorativo.
Eu não quero mais empresas, indústrias, empregos, agências ou mais vagas em concurso público. Eu quero um mundo onde possamos trabalhar menos, para dedicarmos ao ócio, à contemplação, às artes e aos nossos filhos e livros.
Eu não quero mais hospitais, mais métodos terapêuticos, mais especialistas, mais modalidades de exames, mais planos de saúde e técnicas cirúrgicas. Eu quero um mundo onde a gente adoeça menos, se contamine menos, se estresse menos, se desgaste menos, se acidente menos. Um mundo no qual tenhamos tempo suficiente para nossos afetos e nossos jardins.
Eu não quero mais médicos, professores, advogados, burocratas, psicanalistas, jornalistas, comerciantes, policiais ou motoristas de caminhão. Eu quero é gente. Gente que cante e dance, gente que chore, que acolha, que acaricie os gatos, gente que se indigne e que sonhe.
Eu não quero mais velocidade de conexão, mais sites na internet, mais minutos para falar no celular ou mais “largura de banda”. Eu quero encontros, abraços, conversas na calçada, tardes na praça, almoços em família, piqueniques no bosque, viagens sem pressa e papos de botequim.
Eu não quero mais renda, mais salário, mais oportunidades financeiras, mais PIB, mais linhas de financiamento, mais limite no cartão de crédito ou mais crescimento econômico. Eu quero é um mundo onde o dinheiro seja cada vez menos importante pra gente se sentir feliz.
Eu não quero mais hidrelétricas, mais arranha-céus, mais antenas de telefonia, mais shoppings centers e condomínios. Eu quero que a água, os rios e as árvores retomem para nós a importância que tinham para os primeiros habitantes dessa terra; os povos indígenas.
Eu não quero mais tecnologia, mais produção científica, mais obras monumentais, mais eventos espetaculares, mais programa espacial. Eu quero é poesia, arte, futebol de várzea, jabuticaba chupada no pé e entardeceres diante do mar.
Eu não quero mais igrejas, mais templos religiosos, mais padres ou pastores. Eu não quero mais dogmas ou livros de auto-ajuda. Eu quero um mundo que apenas entenda que o amor é a força mais poderosa do Universo.
Eu não quero mais canais de TV, mais variedades de sabor de pizza, mais modelos de celular, mais grifes de roupas, mais drogas ou remédios, mais conteúdo no jornal, mais cursos de pós-graduação, mais marcas de tênis, mais cores de esmalte ou técnicas de embelezamento. Eu quero viver a experiência da simplicidade e do contentamento.
Nosso mundo tem caminhado desesperadamente na direção desse “querer sempre mais”. Desejamos mais direitos, oportunidades e espaços, tal qual desejamos objetos para consumir. E do excesso deste “mais” há um resto produzido, um lixo, que por mais que queiramos, não poderemos reciclar totalmente. Com esse modo de vida estamos alterando perigosamente nosso ecossistema, afundando severamente nas desigualdades sociais e produzindo injustiça e violência.
Através dos movimentos de massa que se espalham pelo mundo atual – talvez não por acaso chamados de Primaveras – estamos tendo a oportunidade de também fazermos uma escolha, fundamental para a sobrevivência desse nosso planeta e seus habitantes. Precisamos urgentemente nos fazer a seguinte pergunta: Vamos continuar querendo mais?
Eu já fiz minha escolha, e sei que muitos também fizeram. Portanto, na minha bandeira está escrito: EU NÃO QUERO MAIS DO MESMO. Eu não quero mais desse mesmo mundo, quero outro mundo. E essa seria a verdadeira revolução para os nossos tempos.
Eu não quero mais automóveis, viadutos, estacionamentos, avenidas, sinais de trânsito, pontes ou anéis rodoviários. Eu quero uma cidade que privilegie os caminhantes e os ciclistas, os corredores de rua, os cadeirantes, os deficientes visuais e os que passeiam com seus animais. Quero uma rua tão humanizada que o termo “morador de rua” perca totalmente seu sentido pejorativo.
Eu não quero mais empresas, indústrias, empregos, agências ou mais vagas em concurso público. Eu quero um mundo onde possamos trabalhar menos, para dedicarmos ao ócio, à contemplação, às artes e aos nossos filhos e livros.
Eu não quero mais hospitais, mais métodos terapêuticos, mais especialistas, mais modalidades de exames, mais planos de saúde e técnicas cirúrgicas. Eu quero um mundo onde a gente adoeça menos, se contamine menos, se estresse menos, se desgaste menos, se acidente menos. Um mundo no qual tenhamos tempo suficiente para nossos afetos e nossos jardins.
Eu não quero mais médicos, professores, advogados, burocratas, psicanalistas, jornalistas, comerciantes, policiais ou motoristas de caminhão. Eu quero é gente. Gente que cante e dance, gente que chore, que acolha, que acaricie os gatos, gente que se indigne e que sonhe.
Eu não quero mais velocidade de conexão, mais sites na internet, mais minutos para falar no celular ou mais “largura de banda”. Eu quero encontros, abraços, conversas na calçada, tardes na praça, almoços em família, piqueniques no bosque, viagens sem pressa e papos de botequim.
Eu não quero mais renda, mais salário, mais oportunidades financeiras, mais PIB, mais linhas de financiamento, mais limite no cartão de crédito ou mais crescimento econômico. Eu quero é um mundo onde o dinheiro seja cada vez menos importante pra gente se sentir feliz.
Eu não quero mais hidrelétricas, mais arranha-céus, mais antenas de telefonia, mais shoppings centers e condomínios. Eu quero que a água, os rios e as árvores retomem para nós a importância que tinham para os primeiros habitantes dessa terra; os povos indígenas.
Eu não quero mais tecnologia, mais produção científica, mais obras monumentais, mais eventos espetaculares, mais programa espacial. Eu quero é poesia, arte, futebol de várzea, jabuticaba chupada no pé e entardeceres diante do mar.
Eu não quero mais igrejas, mais templos religiosos, mais padres ou pastores. Eu não quero mais dogmas ou livros de auto-ajuda. Eu quero um mundo que apenas entenda que o amor é a força mais poderosa do Universo.
Eu não quero mais canais de TV, mais variedades de sabor de pizza, mais modelos de celular, mais grifes de roupas, mais drogas ou remédios, mais conteúdo no jornal, mais cursos de pós-graduação, mais marcas de tênis, mais cores de esmalte ou técnicas de embelezamento. Eu quero viver a experiência da simplicidade e do contentamento.
Nosso mundo tem caminhado desesperadamente na direção desse “querer sempre mais”. Desejamos mais direitos, oportunidades e espaços, tal qual desejamos objetos para consumir. E do excesso deste “mais” há um resto produzido, um lixo, que por mais que queiramos, não poderemos reciclar totalmente. Com esse modo de vida estamos alterando perigosamente nosso ecossistema, afundando severamente nas desigualdades sociais e produzindo injustiça e violência.
Através dos movimentos de massa que se espalham pelo mundo atual – talvez não por acaso chamados de Primaveras – estamos tendo a oportunidade de também fazermos uma escolha, fundamental para a sobrevivência desse nosso planeta e seus habitantes. Precisamos urgentemente nos fazer a seguinte pergunta: Vamos continuar querendo mais?
Eu já fiz minha escolha, e sei que muitos também fizeram. Portanto, na minha bandeira está escrito: EU NÃO QUERO MAIS DO MESMO. Eu não quero mais desse mesmo mundo, quero outro mundo. E essa seria a verdadeira revolução para os nossos tempos.
segunda-feira, 24 de junho de 2013
Carta aberta aos meus filhos adolescentes, sobre a onda de movimentos das últimas semanas.
Meus queridos,
Acredito que a única herança deixada por uma mãe ou um pai que realmente fará diferença na vida de um filho, são exemplos e ensinamentos. Por isso, me dediquei a escrever algumas das coisas que aprendi ao longo da minha história. Esta carta será uma de minhas heranças pra vocês.
Aos 18 e 16 anos vocês estão participando pela primeira vez de uma manifestação na rua. Talvez vocês não saibam, mas me orgulhei muito de encontrá-los naquela manifestação da última quinta-feira, ali, naquela mesma avenida que eu já percorri tantas vezes, em manifestações estudantis, de militância política, nas lutas junto ao sindicato dos professores e em eventos do movimento de luta antimanicomial. Assistir o despertar de vocês me fez chorar de emoção.
Eu despertei, precisamente, em 1989 pouco antes de completar 20 anos, quando me filiei ao PSB (Partido Socialista Brasileiro) e conheci a UJS (União da Juventude Socialista). Neste mesmo ano participei ativamente da campanha do Lula, que se candidatava pela primeira vez à Presidência da República, com o apoio de uma coligação chamada Frente Brasil Popular que agregava PT, PSB e PCdoB. Aquele ano mudou para sempre a minha vida, desde então, nunca mais deixei de participar da política da minha cidade e do meu país.
Desejo profundamente que este movimento não seja para vocês apenas uma espécie de micareta sem banda ou carnaval sem trio-elétrico, mas que nele vocês aprendam sobre participação política, sobre democracia e, sobretudo, sobre a força da coletividade.
Ninguém sabe exatamente de onde veio e para onde vão essas manifestações. Alguém já disse que: “quem entendeu essas manifestações é porque não entendeu nada”. Concordo. Não é possível explicá-la ou nomeá-la, mas, apesar disso, decidi escrever aqui algo do que aprendi e vi nos últimos 24 anos e também nos últimos dias.
A primeira coisa a qual preciso alertá-los é sobre um discurso que tem aparecido muito nas manifestações se dizendo a-partidário ou anti-partidário. Vocês já têm uma boa leitura de historia do Brasil e do Mundo e já estudaram que os sistemas políticos que rejeitam ou rejeitaram os partidos políticos, são os governos totalitários e ditatoriais. Nossa democracia está fundamentada na política partidária, que tem sim suas mazelas, mas sem ela, acreditem, seria muito pior. Portanto, isso que vocês estão ouvindo nas manifestações: “Não queremos partidos, queremos unidos” (ou coisa parecida) até que soa bonito, mas é pura bobagem. Não é possível existir um discurso unificado na democracia. Aliás, a beleza da democracia está exatamente em acolher discursos múltiplos e diversos, mesmo que isso gere conflitos. Essa coisa de discurso único é coisa de fascismo e nazismo. Hitler adorava a ideia de ver sua Alemanha unificada e livre dos diferentes (os judeus), não é mesmo?
Outra bobagem é dizer que esse movimento não tem ideologia. Não é possível fazer NADA sem ideologia. Antes de escovarmos o dente pela manhã vestimos uma ideologia, sendo assim, não é possível nos manifestarmos nas ruas sem ideologia. O problema do discurso ideológico é que ele só fica evidente quando destoa da ideologia dominante, então ele pode se manter silencioso, invisível, mas, não se enganem, ele está lá. É como um camaleão, que se camufla com as cores do ambiente. Então, por meio da nossa participação política é possível apontarmos os modelos ideológicos sob os quais nossa sociedade está assentada, para questioná-los e desconstruí-los, se assim for nossa intenção, mas negá-los serve apenas para manter tudo como está. Por exemplo, somos uma sociedade de ideologia machista e consumista, se alguém afirma que defende uma proposta sem ideologia, não tenha dúvida, é porque tal proposta é machista e/ou consumista.
“Nem direita, nem esquerda, nós vamos é pra frente”. Essa é outra afirmação tola. Direita e esquerda, e todas as nuances possíveis para uma ou outra direção, também correspondem a um discurso ideológico e do qual não podemos fugir. É a mesma tolice de se dizer a-político. Toda proposta política tem uma direção, ainda que não nos demos conta de qual é. Uma dica para vocês saberem se uma proposta está à esquerda ou à direita é fazer a seguinte pergunta: “A quem ela protege ou favorece?” Se a resposta for: “Ela favorece à grande maioria da população (geralmente a mais pobre)”. Então vocês já sabem, ela é uma proposta à esquerda. Mas vamos supor que ela favoreça a uma minoria. Nesse caso, vocês precisam fazer uma segunda pergunta: “Essa minoria faz parte de uma elite privilegiada ou de um grupo ou segmento excluído ou desprivilegiado?”. Se a resposta for: “Minoria desprivilegiada, excluída ou marginalizada” então, essa continua sendo uma proposta à esquerda, caso contrário, trata-se de uma proposta à direita.
Vamos exemplificar. Sobre redução do valor a ser pago no transporte público, uma das pautas das manifestações.
Pergunta: “A quem ela favorece?”
Resposta: “A população que usa transporte público”.
Pergunta: “A quem ela prejudica?”
Resposta: “Os donos de empresas de ônibus que terão que reduzir seus lucros e/ou o governo que terá que reordenar suas contas para financiar a redução”.
Pergunta: “Quem é a maioria?”
Resposta: “A população que usa transporte público.”
Então, bingo, a pauta da redução da tarifa de ônibus é uma proposta à esquerda.
Outro exemplo. Sobre a recente aprovação da PEC que prevê regulamentação dos direitos das empregadas domésticas.
Pergunta: “A quem ela favorece?”
Resposta: “As empregadas domésticas.”
Pergunta: “A quem ela prejudica?”
Resposta: “Os patrões”.
Pergunta: “Quem é a maioria?”
Resposta: “Podemos argumentar que, nesse caso, não temos uma maioria, supondo que temos um patrão para cada empregada, então, vamos para a pergunta seguinte.”
Pergunta: “Quem é o grupo mais desprivilegiado?”
Resposta: “As domésticas”.
Portanto, a PEC das domésticas é uma proposta à esquerda.
Sendo assim, políticas que fortalecem e ampliam os serviços públicos que atendem a maioria da população; políticas de distribuição de renda e redução da desigualdade social; políticas que apoiam e defendem minorias excluídas, como gays, deficientes, doentes mentais e indígenas; políticas que protegem e empoderam segmentos marginalizados e alvos de violência, como mulheres e negros; são todas propostas à esquerda.
Já as políticas que favorecem certos segmentos, grupos ou corporações e, que em geral, já fazem parte de setores privilegiados da sociedade, são políticas à direita. Um bom exemplo de proposta à direita, muito discutida atualmente, é a chamada Lei do Ato Médico. A referida lei funciona para manter o poder e o privilégio da classe médica, em detrimento da autonomia de todos os demais profissionais da saúde (enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, bioquímicos e fisioterapeutas) que certamente, serão prejudicados. Vendas, privatizações e concessões do setor público à empresas ou grupos privados, também são consideradas propostas à direita. E finalmente, propostas que aprofundam a marginalização e o preconceito sobre segmentos já vulneráveis, também são propostas à direita. Agora vocês já sabem para qual lado tendem propostas como “Cura Gay”e redução da maioridade penal, não é? Resumindo, não podemos ir à frente sem antes escolher esquerda ou direita, afinal, toda proposta política tem um viés, podendo inclusive se radicalizar nos dois extremos, daí o termo, extrema direita ou extrema esquerda.
Tenham cuidado com os discursos e as causas que vocês defendem. Muita gente acha que liberdade de expressão é poder manifestar o que “lhe dá na telha”, seja lá o que for. No campo privado essa premissa pode ter sua função, mas se estamos falando de manifestação pública, política e democrática, a liberdade de expressão precisa ganhar um contorno mais responsável. Nessas manifestações vocês vão precisar falar para além das suas próprias convicções intelectuais, religiosas ou morais, o que, não se enganem, não é fácil de fazer. Por exemplo, existe uma abissal diferença entre levantar a bandeira da redução da passagem de ônibus e outra que defenda a “Cura Gay”, por exemplo. Na primeira, vocês favorecem amplamente a maioria da população, na segunda, pelo simples fato de partirem da premissa de que a homossexualidade seja uma doença, um desvio da normalidade, contribuem para acentuar a descriminação contra os homossexuais, o que, invariavelmente, gera violência e opressão a este segmento. Portanto, mesmo que vocês pensem intimamente que a homossexualidade seja mesmo um desvio, precisam aprender a pensar fora do próprio umbigo para exercer a democracia com responsabilidade. Querem uma dica? Quando uma política interferir em algum grupo ou minoria do qual vocês não façam parte, escutem o que os movimentos organizados de tal minoria têm a dizer. Apoiá-los é sempre a melhor decisão.
Cuidado também com palavras de ordem vazias, do tipo: “não à corrupção”, “sim a vida”. Ninguém é a favor da corrupção. Ninguém é contra a vida. Esses discursos são vazios de conteúdo, e, geralmente, servem apenas para despolitizar e empobrecer o debate político. Portanto, se vocês são contra a corrupção, procurem se informar sobre as ações políticas que possam coibi-la, como defender a pauta da urgência da Reforma Política, por exemplo.
Outro cuidado que precisam tomar se refere aos discursos moralistas que se abatem sobre essas manifestações. São pessoas e instâncias que se indignam contra elas porque atrapalham o trânsito, porque impedem que as pessoas cheguem ao trabalho ou em casa, porque levam caos e violência para as ruas, porque degradam os espaços públicos, porque desmontam a ordem estabelecida. O fato é que NENHUMA manifestação de massas pode acontecer sem que alguma espécie de caos ou violência simbólica se instaure. Que tipo de manifestação de motoristas de ônibus funcionaria se não criasse o caos o trânsito? Que tipo de manifestação de professores funcionaria se não criasse um caos para alunos e pais? E nesse caos, invariavelmente, a violência aparece, sim. Mas é obvio que existe uma diferença enorme entre a violência usada para invadir o Congresso Nacional – numa demonstração simbólica de que a casa que lá está é, ou deveria ser, a casa do povo –, e a violência usada na invasão de lojas para fazer saques ou para depredar do Teatro Municipal de São Paulo. Mas enfim, apesar de ser totalmente contrária a qualquer tipo de violência, é puro moralismo desqualificar um movimento social de massa por protagonizar atos violentos.
Existe outro discurso moralista que é muito perigoso para a democracia. Sob essa bandeira higienista de “limpar o Brasil da corrupção”, fica implícito um discurso perigoso. Já que os políticos e os partidos estão todos contaminados pela corrupção, então só nos resta acabar com eles. O golpe de 1964, que inaugurou um período de ditadura cruel e sangrenta, começou pela cassação de parlamentares e pela dissolução dos partidos políticos. Portanto, precisamos sim, criar mecanismos que evitem, coíbam e punam a corrupção, mas, também precisamos entender que não há como esterilizar a política. Vocês assistiram à trilogia do Senhor dos Anéis, assistimos juntos, aliás, e vocês viram que, durante o filme, muitas personagens são corrompidas pelo Anel do Poder. Mas a tragédia explorada no filme é que é preciso colocar o anel no dedo para saber-se imune ou não ao seu efeito, ou seja, antes de usar o anel ninguém está certo de ser corrompido por ele ou não. Entendo que essa metáfora pode ser transcrita para a política. Não podemos prever quem irá fazer mau uso do poder que lhe conferirmos. Mas, por outro lado, podemos criar mecanismos, estratégias e linhas de fuga que sejam capazes de proteger e resguardar o anel do poder, assim como faz Frodo durante toda a trilogia. Quem sabe nós devamos encarnar Frodo? Vigilantes, inteligentes e destemidos na proteção do Anel do Poder.
Assistam ao filme A Onda (2008) do diretor Dennis Gansel. Vocês verão que a massa é uma força poderosíssima. A favor da democracia ela pode ser uma ferramenta potente, mas para isso, precisa ser mais que um “estouro da boidada”, onde todo mundo repete o que ouve, sem crítica e questionamentos. Cuidado para não servirem apenas como massa de manobra. Não se posicionem contra ou a favor da PEC 37, por exemplo, sem antes saberem o que é a PEC 37. Se interessar a vocês se posicionarem sobre algum tema levantado e sobre o qual vocês não tenham conhecimento, perguntem, procurem saber, leiam, pesquisem os argumentos contra e a favor, para formarem uma opinião consciente. Antes disso, é preferível se abster de tomar uma posição do que seguir apenas o “estouro da boiada”.
Não sejam ingênuos. A polícia estará presente nessas manifestações para tentar restabelecer e manter a ordem pública e para evitar o caos, este é o papel dela. Obviamente que ela pode ser mais ou menos truculenta e violenta (e a nossa polícia é historicamente truculenta), mas não sejam tolos, ela não poderá participar do movimento do mesmo lugar que vocês. E se vocês assistirem ou forem alvo da violência das polícias, não exagerem no drama, saibam que a periferia, os negros, os pobres, os índios, já são alvo dessa violência há muito tempo. Então, essa experiência pode levantar um bom tema para discussão: a desmilitarização da polícia.
Também não esperem que os representantes do poder executivo (prefeitos, governadores ou a presidente) aplaudam de pé o movimento ou se juntem a ele. Mesmo que as concepções e ideologias desses líderes sejam concordantes com as reivindicações propostas, ou com sua própria luta histórica, eles estarão vivendo um incômodo enorme e precisarão entoar discursos e propor intervenções que reduzam tal incômodo. Entendam. Eu desobedeci meus pais inúmeras vezes, mas isso não quer dizer que, por isso, eu não me incomode quando vocês me desobedecem. Eu posso até compreender a desobediência de vocês, conversar e negociar sobre ela, mas estejam certos, ela me causará incômodo e mal-estar. Então não sejam ridículos em esperar que nossos líderes, seus aliados e parceiros, achem tudo lindo e maravilhoso. A diferença é que os lideres mais sábios saberão fazer bom uso dos movimentos, acolhendo as pautas importantes para o Município, para o Estado ou para a Nação. Os tolos criminalizarão os movimentos e tentarão restabelecer a ordem com mão de ferro.
Bem, depois de tudo isso que eu relatei aqui, obviamente que vocês já entenderam que eu sou uma militante de esquerda. Sim, sou, e das que se orgulha das bandeiras que levantou e das lutas que travou. Sendo assim, reitero a vocês que, seja lá para onde seguir esse movimento, é para a esquerda que eu vou continuar minha caminhada. Seguirei sempre em favor da maioria, dos mais pobres, dos mais frágeis e dos mais vulneráveis. E também sei que lá estarão todos os Partidos Políticos que também abraçam a mesma causa que eu, e alguns deles estão na luta há muito tempo. Sei que alguns desses Partidos seguirão inteiros e que outros se partirão mais uma vez. Lá também estarão os políticos que verdadeiramente se elegeram para representar o povo mais pobre e oprimido, com ou sem seus partidos. Lá estarão os movimentos sociais que se preocupam com exclusão, a miséria e as injustiças sociais. Lá estarão os sindicatos, as organizações de classe e os movimentos estudantis que realmente desejam um Brasil mais justo e igualitário. Lá estarão os segmentos religiosos que pregam a liberdade e a justiça social. Lá estará, com certeza, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), maior e mais legítimo movimento social deste país, e que está em marcha desde 1984, quase sempre sem contar com a simpatia da mídia e da população em geral. Lá estarão velhos companheiros de luta e outros tantos que ainda irei conhecer, e desejo que vocês também estejam lá, caminhando em frente, mas não se esqueçam, sempre à esquerda.
Com amor,
Mamãe
terça-feira, 21 de maio de 2013
Política sobre drogas e internação compulsória
(palestra proferida na Semana de Saúde Mental de Ubá /MG, em 21 de maio de 2013)
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas brasileiras nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a ela: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado de “epidemia do crack” ou na formação das “cracolândias”.
Responder a esta questão tem sido um desafio. E as respostas, em geral, têm se sustentado num discurso meramente higienista, cuja pretensão é, simplesmente, limpar certos locais do que a sociedade atual enxerga como lixo: certos usuários de droga, especialmente os de crack. A decisão de vários municípios, seja por intermédio da justiça ou por mera intervenção do poder público, tem sido a de promover a retirada das pessoas desses lugares sob as mais diversas alegações: de que estão infringindo a lei, perturbando a ordem pública ou de que precisam ser deslocadas para locais de assistência e tratamento, por meio das internações involuntárias ou compulsórias. Grande parte dessas intervenções, apesar de muitas vezes travestidas dos mais dignos e decentes atos "humanos" e "cristãos", na verdade, só cumprem a função de limpar nossas cidades daquilo que a sociedade não deseja ver; daquilo que lhe parece incômodo, inútil e sem valor.
E não é a primeira vez que esse tipo de estratégia é utilizada. Num passado não muito distante, que coincide com o início da era capitalista, loucos, bêbados, prostitutas, mendigos, aleijados, e todos aqueles que não serviam para movimentar a roda do sistema capitalista, que não podiam vender sua força de trabalho, foram recolhidos das ruas e encarcerados no Hospital Geral; instituição criada para esse fim. A ordem era sanear as cidades. Esse modelo de intervenção gerou, inclusive, o modelo manicomial para o tratamento dos doentes mentais. Modelo que ao longo das décadas se mostrou desumano, iatrogênico e ineficaz. Modelo criticado e desconstruído pelo movimento antimanicomial, que hoje comemoramos neste evento de 18 de maio.
Há um fato que ninguém discute. O uso e o abuso de substâncias psicoativas em nossa sociedade têm tomado contornos e gerado conseqüências que vem colocando todos diante de um não-saber sobre os rumos e os caminhos a serem tomados, não-saber compartilhado por governos, instituições, políticas públicas, serviços de saúde e organizações governamentais e não-governamentais. Entretanto, mesmo quando admitimos que há um não-saber que atravessa este tema, é possível ainda sim sustentar alguns saberes, dos quais não podemos recuar, saberes que foram conquistados por meio de experiências e transformados em avanços nas políticas e legislações. Ou seja, mesmo que não saibamos exatamente o que fazer em determinadas situações, quando o assunto é o tratamento e o cuidado das pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, ainda sim sabemos exatamente o que não fazer na mesma situação.
Ao desenterrar a internação involuntária - essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais - conseguimos tão somente oferecer respostas velhas para problemas novos. Sabemos que as internações involuntárias e compulsórias – antes utilizadas em doses cavalares – não solucionaram o problema dos doentes mentais nem de suas famílias, ou pelo menos não daquelas que pretendiam tratar de seu ente querido e não apenas se ver livre dele. Desenterrar a desgastada internação involuntária é desconsiderar os caminhos trilhados pelas políticas de cuidado aos doentes mentais. Só pra lembrar as internações involuntárias e indiscriminadas, serviram apenas para enriquecer a chamada “indústria da loucura”, condenando os doentes mentais ao isolamento, ao abandono e à exclusão, e ainda sob a justificativa que isso era feito em nome do ‘tratamento’ e do ‘bem’ deles, já que não teriam capacidade de escolha.
Nossa experiência de trabalho tem mostrado que a internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses, se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa, numa situação pontual e específica (observando o caso a caso) possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, este sim, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
É claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem balançar em favor de medidas extremas como essa. No entanto, o que não é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da internação considerada ‘salvadora’, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja definitivamente da compulsão pelas drogas, e o ciclo então, tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Sendo assim, precisamos ressaltar que a internação - involuntária ou compulsória - não será o milagre que todos esperamos para solucionar a questão das drogas. Também é necessário que se diga que o índice de fracasso se torna muito grande quando se entende que tratar as pessoas que apresentam problemas relacionados ao uso de drogas se resume apenas em promover a abstinência, e a qualquer preço. Nenhum tratamento ou intervenção que se pretenda humanizada, respeitosa, ética e, portanto eficaz, se conquista à revelia do sujeito, passando por cima de seus desejos, escolhas e singularidades, ainda que a nosso ver, estranhas e atrapalhadas.
Enfim, existem alguns avanços conquistados no âmbito das políticas de saúde mental que não podem retroceder, sob nenhuma justificativa, nem mesmo pelo apelo emocionado de pais e mães. Aquilo que foi superado pela sua ineficácia e ineficiência, pela iatrogenia gerada, pela desumanidade e desrespeito a direitos mínimos de dignidade e cidadania e pelo reforçamento de estigmas e preconceitos, não pode ser novamente pensado como uma estratégia possível e plausível. Já vimos este filme antes, o roteiro é o mesmo, agora com outros atores. Eram os ‘loucos’, agora os ‘drogadictos’.
Sendo assim, a internação tradicional, especialmente aquelas motivadas por intervenções involuntárias ou compulsórias, apesar de parecer, não é a solução para os problemas relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples, ao contrário, são muito mais complexas e exigem a criação de uma rede de cuidados, com os vários setores das políticas públicas (saúde, educação, assistência social, segurança pública, esporte, lazer, cultura, justiciário) e com diversos tipos de aparatos, intervenções, instâncias e estratégias.
Infelizmente, muitos municípios estão optando pelas estratégias meramente higienistas para intervir na questão do uso de drogas e elas tem se resumido a dois tipos de intervenção: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação. Mas a verdade é que o resultado dessas estratégias é semelhante àquele que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória.
As intervenções baseadas no recolhimento e na internação, seja involuntária ou compulsória, se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde, de que é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma doença onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. O sucesso dos CAPS, das Residências Terapêuticas, dos CC são a prova disso. Sendo assim, no caso das políticas sobre drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Precisamos apostar nas pontes e nas redes. Pontes que aproximam ao invés de espantar e redes que acolhem ao invés de recolher. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque acolher leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Voltando ao problema das cracolândias, há uma pergunta desafiadora que talvez seja interessante para pensar este fenômeno. Porque existem cracolândias? Porque não ouvimos falar de maconholândias, cocainolândias ou ecstasyitolândias?
Trata-se de uma pergunta realmente intrigante que nos faz pensar, dentre outras coisas, sobre o lugar social que o crack vem ocupando no Brasil. Apesar de sabermos que o uso do crack está presente nas diversas classes sociais, é no abandono social e nas ruas que ele tem mostrado sua face mais perversa. Não há justificativa para defendermos a tese de que as cracolândias são formadas apenas pelo poder devastador e desagregador da química do crack, com se o crack fosse o único responsável pelas cracolândias. É muito mais realista pensar que um certo tipo de população já excluída pela sociedade, seja pela miséria, pelo abandono, pelo alcoolismo ou pela dependência de outras drogas, fez do crack "a sua droga", numa tentativa de remediar o próprio sofrimento, e para isso precisaram criar um lugar delimitado na pólis. As cracolândias, na verdade, são frutos de políticas preconceituosas, excludentes, moralistas e da tão anunciada "guerra contra as drogas". Enquanto continuarmos em "guerra contra as drogas", as cracolândias funcionarão como um território de refugiados, como um gueto para os excluídos.
Não faz muito tempo que a questão do abuso ou dependência de drogas ilícitas deixou de ser “caso de polícia”, pelo menos no âmbito legal. Para sermos mais específicos é a partir da lei n° 11.343/2006 que traficante e usuário de substâncias ilícitas são colocados em territórios distintos. Enquanto o traficante continua sendo problema de segurança pública, o usuário passa a ser preocupação das políticas de saúde.
Apesar de contarmos com esse avanço legal importante que descriminaliza o usuário ou dependente (e que, infelizmente, corre o risco retroceder) o uso de drogas ilícitas ainda permanece envolto em uma nuvem de preconceitos e mitos, que contaminam nossa forma de abordar o tema, em especial quando o assunto é tratamento. Infelizmente, ainda enxergamos uma associação direta entre o uso de drogas e delinqüência ou criminalidade, visão exaustivamente reforçada pela mídia.
Isso tem gerado uma certa confusão quando o assunto é oferecer tratamento para o sujeito que se encontra adoecido pelo uso de drogas. Além de vítima da doença, ele se torna também vítima do preconceito e da retaliação da sociedade, o que intensifica os danos, ainda mais quando o sujeito já se encontra em estado de vulnerabilidade social.
Essa nuvem de preconceitos que envolve o tema precisa ser dissipada, para que não façamos política de saúde utilizando estratégias de guerra. Sabemos que as guerras produzem sempre muitas vítimas e muito poucas soluções, e nesse caso, as vítimas tem sido aqueles para os quais as políticas deveriam oferecer cuidado: os drogadictos.
É importante reiterar: não se faz política de saúde utilizando estratégias de guerra, pelo menos, não quando a intenção é democratizar, humanizar e promover a inserção social, diretrizes fundamentais da política de saúde mental que o SUS vem implementando ao longo desses anos. Por isso, precisamos abolir formas de tratamento que se utilizem de verbos do tipo: combater, reprimir, tutelar, capturar, aprisionar, perseguir, ameaçar, cercear, coibir, atacar ou amedrontar. Técnicas muito úteis quando se está numa frente de batalha. Por outro lado, precisamos reforçar estratégias de tratamento que façam uso dos verbos: cuidar, acolher, compreender, abrigar, escutar, oferecer, apaziguar, esperar, confiar, apoiar e possibilitar, essas sim, fortalecedoras de laço e produtoras de vida.
Muito se fala sobre a morte como destino do sujeito adoecido pelo uso de drogas, mas o que não se diz é que a morte que realmente ameaça esse sujeito é a “morte social”. Esta sim é a mais perigosa, a que chega primeiro e a que, se não cuidada em tempo, pode provocar a morte do corpo. Isso nos indica que em se tratando de política de saúde não estamos, ou pelo menos não deveríamos estar, em guerra contra as drogas ou contra aqueles que as utilizam, já que esse é o caminho mais rápido para acelerarmos tal “morte social”.
É de Slavo Zizek a seguinte afirmação: "É bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto outros ficam com o risco". Na questão do uso de drogas isso fica muito claro. Apenas os membros da "sociedade de bem" fica com as escolhas, mesmo que porventura arriscadas. Nós podemos escolher entre vodka ou cerveja, se vamos tomar remédios para dormir ou para nos livrar do pânico cotidiano, podemos escolher se nossa balada vai ser movida a "doce" ou "bala". Mas os frequentadores das cracolândias ou os que estão caminhando para ela, são exatamente os que perderam suas possibilidades de escolha e ficaram apenas com o risco.
Diante dessa realidade, o único caminho sensato para se pensar as cracolândias seria no sentido de reduzir os riscos que seus frequentadores enfrentam e possibilitar-lhes escolhas, sem esquecer que oferecer-lhes escolhas não é escolher por eles. Entretanto, sabemos que em muitos casos, a degradação subjetiva pode ter lhes prejudicado severamente a capacidade de fazer escolhas. Podemos, nesses casos, criar estratégias que nos possibilitem escolher com eles, mas jamais à revelia deles, como se tem feito. Também não devemos ofertar a essas pessoas apenas dois caminhos possíveis: com drogas ou sem drogas. É fundamental também considerar possibilidades que incluam viver - com dignidade, com todas as suas potencialidades e contradições - apesar das drogas. E sem nenhuma hipocrisia, tal como faz a maioria de nós.
Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias dos quais não poderemos escapar completamente. A psicanálise admite que ao longo da história, o homem tem se utilizado de substâncias psicoativas, como medidas paliativas para lidar com o mal-estar da existência. Usar drogas, portanto, faz parte da cultura humana desde sempre. No entanto, assistimos o fenômeno do uso de drogas atingindo contornos nunca antes vistos, especialmente na sociedade capitalista ocidental, onde ser tornou mais uma mercadoria a ser consumida. Sem falar que vivemos numa era que acredita ser possível tratar qualquer conflito, angústia, medo, dor e tristeza, com alguma droga prescrita pelo médico. E a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de mal estar. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos... Não é curioso? Estimulamos como nunca o uso de drogas farmacêuticas para anestesiar nossas dores e mal-estares e nos enchemos de arrogância e preconceito quando vamos lidar com aqueles que, foram capturados pela dependência de outras drogas, só porque não estão na prateleira da farmácia.
Mas, é importante saber que existe outra saída para lidar com nossos mal-estares existenciais. Freud dirá que apesar de não podermos erradicar completamente nosso desamparo, podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão desse desamparo e desse mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, pelas redes e pontes que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Portanto, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima: queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Nesse de 18 de maio, mais uma vez, escolha é nossa.
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas brasileiras nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a ela: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado de “epidemia do crack” ou na formação das “cracolândias”.
Responder a esta questão tem sido um desafio. E as respostas, em geral, têm se sustentado num discurso meramente higienista, cuja pretensão é, simplesmente, limpar certos locais do que a sociedade atual enxerga como lixo: certos usuários de droga, especialmente os de crack. A decisão de vários municípios, seja por intermédio da justiça ou por mera intervenção do poder público, tem sido a de promover a retirada das pessoas desses lugares sob as mais diversas alegações: de que estão infringindo a lei, perturbando a ordem pública ou de que precisam ser deslocadas para locais de assistência e tratamento, por meio das internações involuntárias ou compulsórias. Grande parte dessas intervenções, apesar de muitas vezes travestidas dos mais dignos e decentes atos "humanos" e "cristãos", na verdade, só cumprem a função de limpar nossas cidades daquilo que a sociedade não deseja ver; daquilo que lhe parece incômodo, inútil e sem valor.
E não é a primeira vez que esse tipo de estratégia é utilizada. Num passado não muito distante, que coincide com o início da era capitalista, loucos, bêbados, prostitutas, mendigos, aleijados, e todos aqueles que não serviam para movimentar a roda do sistema capitalista, que não podiam vender sua força de trabalho, foram recolhidos das ruas e encarcerados no Hospital Geral; instituição criada para esse fim. A ordem era sanear as cidades. Esse modelo de intervenção gerou, inclusive, o modelo manicomial para o tratamento dos doentes mentais. Modelo que ao longo das décadas se mostrou desumano, iatrogênico e ineficaz. Modelo criticado e desconstruído pelo movimento antimanicomial, que hoje comemoramos neste evento de 18 de maio.
Há um fato que ninguém discute. O uso e o abuso de substâncias psicoativas em nossa sociedade têm tomado contornos e gerado conseqüências que vem colocando todos diante de um não-saber sobre os rumos e os caminhos a serem tomados, não-saber compartilhado por governos, instituições, políticas públicas, serviços de saúde e organizações governamentais e não-governamentais. Entretanto, mesmo quando admitimos que há um não-saber que atravessa este tema, é possível ainda sim sustentar alguns saberes, dos quais não podemos recuar, saberes que foram conquistados por meio de experiências e transformados em avanços nas políticas e legislações. Ou seja, mesmo que não saibamos exatamente o que fazer em determinadas situações, quando o assunto é o tratamento e o cuidado das pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, ainda sim sabemos exatamente o que não fazer na mesma situação.
Ao desenterrar a internação involuntária - essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais - conseguimos tão somente oferecer respostas velhas para problemas novos. Sabemos que as internações involuntárias e compulsórias – antes utilizadas em doses cavalares – não solucionaram o problema dos doentes mentais nem de suas famílias, ou pelo menos não daquelas que pretendiam tratar de seu ente querido e não apenas se ver livre dele. Desenterrar a desgastada internação involuntária é desconsiderar os caminhos trilhados pelas políticas de cuidado aos doentes mentais. Só pra lembrar as internações involuntárias e indiscriminadas, serviram apenas para enriquecer a chamada “indústria da loucura”, condenando os doentes mentais ao isolamento, ao abandono e à exclusão, e ainda sob a justificativa que isso era feito em nome do ‘tratamento’ e do ‘bem’ deles, já que não teriam capacidade de escolha.
Nossa experiência de trabalho tem mostrado que a internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses, se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa, numa situação pontual e específica (observando o caso a caso) possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, este sim, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
É claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem balançar em favor de medidas extremas como essa. No entanto, o que não é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da internação considerada ‘salvadora’, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja definitivamente da compulsão pelas drogas, e o ciclo então, tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Sendo assim, precisamos ressaltar que a internação - involuntária ou compulsória - não será o milagre que todos esperamos para solucionar a questão das drogas. Também é necessário que se diga que o índice de fracasso se torna muito grande quando se entende que tratar as pessoas que apresentam problemas relacionados ao uso de drogas se resume apenas em promover a abstinência, e a qualquer preço. Nenhum tratamento ou intervenção que se pretenda humanizada, respeitosa, ética e, portanto eficaz, se conquista à revelia do sujeito, passando por cima de seus desejos, escolhas e singularidades, ainda que a nosso ver, estranhas e atrapalhadas.
Enfim, existem alguns avanços conquistados no âmbito das políticas de saúde mental que não podem retroceder, sob nenhuma justificativa, nem mesmo pelo apelo emocionado de pais e mães. Aquilo que foi superado pela sua ineficácia e ineficiência, pela iatrogenia gerada, pela desumanidade e desrespeito a direitos mínimos de dignidade e cidadania e pelo reforçamento de estigmas e preconceitos, não pode ser novamente pensado como uma estratégia possível e plausível. Já vimos este filme antes, o roteiro é o mesmo, agora com outros atores. Eram os ‘loucos’, agora os ‘drogadictos’.
Sendo assim, a internação tradicional, especialmente aquelas motivadas por intervenções involuntárias ou compulsórias, apesar de parecer, não é a solução para os problemas relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples, ao contrário, são muito mais complexas e exigem a criação de uma rede de cuidados, com os vários setores das políticas públicas (saúde, educação, assistência social, segurança pública, esporte, lazer, cultura, justiciário) e com diversos tipos de aparatos, intervenções, instâncias e estratégias.
Infelizmente, muitos municípios estão optando pelas estratégias meramente higienistas para intervir na questão do uso de drogas e elas tem se resumido a dois tipos de intervenção: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação. Mas a verdade é que o resultado dessas estratégias é semelhante àquele que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória.
As intervenções baseadas no recolhimento e na internação, seja involuntária ou compulsória, se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde, de que é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma doença onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. O sucesso dos CAPS, das Residências Terapêuticas, dos CC são a prova disso. Sendo assim, no caso das políticas sobre drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Precisamos apostar nas pontes e nas redes. Pontes que aproximam ao invés de espantar e redes que acolhem ao invés de recolher. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque acolher leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Voltando ao problema das cracolândias, há uma pergunta desafiadora que talvez seja interessante para pensar este fenômeno. Porque existem cracolândias? Porque não ouvimos falar de maconholândias, cocainolândias ou ecstasyitolândias?
Trata-se de uma pergunta realmente intrigante que nos faz pensar, dentre outras coisas, sobre o lugar social que o crack vem ocupando no Brasil. Apesar de sabermos que o uso do crack está presente nas diversas classes sociais, é no abandono social e nas ruas que ele tem mostrado sua face mais perversa. Não há justificativa para defendermos a tese de que as cracolândias são formadas apenas pelo poder devastador e desagregador da química do crack, com se o crack fosse o único responsável pelas cracolândias. É muito mais realista pensar que um certo tipo de população já excluída pela sociedade, seja pela miséria, pelo abandono, pelo alcoolismo ou pela dependência de outras drogas, fez do crack "a sua droga", numa tentativa de remediar o próprio sofrimento, e para isso precisaram criar um lugar delimitado na pólis. As cracolândias, na verdade, são frutos de políticas preconceituosas, excludentes, moralistas e da tão anunciada "guerra contra as drogas". Enquanto continuarmos em "guerra contra as drogas", as cracolândias funcionarão como um território de refugiados, como um gueto para os excluídos.
Não faz muito tempo que a questão do abuso ou dependência de drogas ilícitas deixou de ser “caso de polícia”, pelo menos no âmbito legal. Para sermos mais específicos é a partir da lei n° 11.343/2006 que traficante e usuário de substâncias ilícitas são colocados em territórios distintos. Enquanto o traficante continua sendo problema de segurança pública, o usuário passa a ser preocupação das políticas de saúde.
Apesar de contarmos com esse avanço legal importante que descriminaliza o usuário ou dependente (e que, infelizmente, corre o risco retroceder) o uso de drogas ilícitas ainda permanece envolto em uma nuvem de preconceitos e mitos, que contaminam nossa forma de abordar o tema, em especial quando o assunto é tratamento. Infelizmente, ainda enxergamos uma associação direta entre o uso de drogas e delinqüência ou criminalidade, visão exaustivamente reforçada pela mídia.
Isso tem gerado uma certa confusão quando o assunto é oferecer tratamento para o sujeito que se encontra adoecido pelo uso de drogas. Além de vítima da doença, ele se torna também vítima do preconceito e da retaliação da sociedade, o que intensifica os danos, ainda mais quando o sujeito já se encontra em estado de vulnerabilidade social.
Essa nuvem de preconceitos que envolve o tema precisa ser dissipada, para que não façamos política de saúde utilizando estratégias de guerra. Sabemos que as guerras produzem sempre muitas vítimas e muito poucas soluções, e nesse caso, as vítimas tem sido aqueles para os quais as políticas deveriam oferecer cuidado: os drogadictos.
É importante reiterar: não se faz política de saúde utilizando estratégias de guerra, pelo menos, não quando a intenção é democratizar, humanizar e promover a inserção social, diretrizes fundamentais da política de saúde mental que o SUS vem implementando ao longo desses anos. Por isso, precisamos abolir formas de tratamento que se utilizem de verbos do tipo: combater, reprimir, tutelar, capturar, aprisionar, perseguir, ameaçar, cercear, coibir, atacar ou amedrontar. Técnicas muito úteis quando se está numa frente de batalha. Por outro lado, precisamos reforçar estratégias de tratamento que façam uso dos verbos: cuidar, acolher, compreender, abrigar, escutar, oferecer, apaziguar, esperar, confiar, apoiar e possibilitar, essas sim, fortalecedoras de laço e produtoras de vida.
Muito se fala sobre a morte como destino do sujeito adoecido pelo uso de drogas, mas o que não se diz é que a morte que realmente ameaça esse sujeito é a “morte social”. Esta sim é a mais perigosa, a que chega primeiro e a que, se não cuidada em tempo, pode provocar a morte do corpo. Isso nos indica que em se tratando de política de saúde não estamos, ou pelo menos não deveríamos estar, em guerra contra as drogas ou contra aqueles que as utilizam, já que esse é o caminho mais rápido para acelerarmos tal “morte social”.
É de Slavo Zizek a seguinte afirmação: "É bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto outros ficam com o risco". Na questão do uso de drogas isso fica muito claro. Apenas os membros da "sociedade de bem" fica com as escolhas, mesmo que porventura arriscadas. Nós podemos escolher entre vodka ou cerveja, se vamos tomar remédios para dormir ou para nos livrar do pânico cotidiano, podemos escolher se nossa balada vai ser movida a "doce" ou "bala". Mas os frequentadores das cracolândias ou os que estão caminhando para ela, são exatamente os que perderam suas possibilidades de escolha e ficaram apenas com o risco.
Diante dessa realidade, o único caminho sensato para se pensar as cracolândias seria no sentido de reduzir os riscos que seus frequentadores enfrentam e possibilitar-lhes escolhas, sem esquecer que oferecer-lhes escolhas não é escolher por eles. Entretanto, sabemos que em muitos casos, a degradação subjetiva pode ter lhes prejudicado severamente a capacidade de fazer escolhas. Podemos, nesses casos, criar estratégias que nos possibilitem escolher com eles, mas jamais à revelia deles, como se tem feito. Também não devemos ofertar a essas pessoas apenas dois caminhos possíveis: com drogas ou sem drogas. É fundamental também considerar possibilidades que incluam viver - com dignidade, com todas as suas potencialidades e contradições - apesar das drogas. E sem nenhuma hipocrisia, tal como faz a maioria de nós.
Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias dos quais não poderemos escapar completamente. A psicanálise admite que ao longo da história, o homem tem se utilizado de substâncias psicoativas, como medidas paliativas para lidar com o mal-estar da existência. Usar drogas, portanto, faz parte da cultura humana desde sempre. No entanto, assistimos o fenômeno do uso de drogas atingindo contornos nunca antes vistos, especialmente na sociedade capitalista ocidental, onde ser tornou mais uma mercadoria a ser consumida. Sem falar que vivemos numa era que acredita ser possível tratar qualquer conflito, angústia, medo, dor e tristeza, com alguma droga prescrita pelo médico. E a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de mal estar. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos... Não é curioso? Estimulamos como nunca o uso de drogas farmacêuticas para anestesiar nossas dores e mal-estares e nos enchemos de arrogância e preconceito quando vamos lidar com aqueles que, foram capturados pela dependência de outras drogas, só porque não estão na prateleira da farmácia.
Mas, é importante saber que existe outra saída para lidar com nossos mal-estares existenciais. Freud dirá que apesar de não podermos erradicar completamente nosso desamparo, podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão desse desamparo e desse mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, pelas redes e pontes que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Portanto, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima: queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Nesse de 18 de maio, mais uma vez, escolha é nossa.
A clínica da Reforma Psiquiátrica e seus novos desafios
(palestra proferida dia 15 de maio, em evento da Luta Antimanicomial na FAMINAS, em Muriaé/MG)
A maior missão dos dispositivos inventados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira (os CAPS ou instâncias dessa natureza) sempre foi desconstruir o modelo manicomial. Mas quando falamos em desconstruir o manicômio, não falamos apenas em desconstruir os edifícios, mas, sobretudo, a mentalidade manicomial, ou o modo manicomial de compreender.
Isso quer dizer que, mais do que criar uma instituição em substituição à outra, o que se pretende é uma mudança de paradigma, uma mudança na maneira olhar as nossas loucuras ou doenças mentais, uma mudança na concepção de tratamento e cuidado, e a desconstrução de um princípio tradicional e clássico no tratamento das enfermidades mentais: de que é preciso isolar para tratar.Sendo assim, podemos pensar no melhor hospital psiquiátrico do mundo, com os profissionais mais especializados e experientes e um maravilhoso aparato de hotelaria. Ainda assim ficaremos limitados a uma clínica tradicional – aquela que isola para tratar e que chamaremos aqui de: clínica do leito
Clinicar é se debruçar sobre o leito de alguém doente, tarefa fundamental nos dispositivos de saúde e também de saúde mental, pois tem o sentido de se debruçar sobre a singularidade de cada sujeito, com seu sintoma, sua história e seu estilo de existência. A clínica é um dispositivo atento àquilo que, no sujeito, não pode ser universalizado ou generalizado. Quando utilizamos, no entanto, o termo, clínica do leito, para falar da clínica proposta pelo modelo manicomial, nos referimos a uma clínica que, para funcionar, demanda que o sujeito fique cerceado ou limitado no seu trânsito habitual, na sua lida familiar e social. A clínica do leito supõe que, para se tratar de alguém, seja necessário isolá-lo ou afastá-lo de seus afazeres e atividades cotidianas. Segundo tal clínica, somente depois de tratada ou curada a enfermidade, o sujeito poderá então retomar sua vida “normal”. Essa clínica dependeria, portanto, um lugar geograficamente delimitado, submetido a alguma espécie de isolamento do mundo real, capaz de circunscrever tudo aquilo que incomoda, adoece ou atormenta o doente, ao mesmo tempo em que também protege a sociedade do incômodo que é lidar com os sintomas daquele que adoeceu. Sendo assim, mesmo se tratando de um hospital que se utilize do dispositivo da clínica – preocupada com a subjetividade e singularidade o que apontaria por uma qualidade no tratamento dos seus pacientes - ainda sim a clínica possível para o modelo hospitalar é a clínica do leito.
Em geral, o modelo hospitalar se baseia nesse tipo de clínica tendo como justificativa a gravidade do caso. Quanto mais grave, maior a intensidade e o tempo de isolamento; de restrição à vida normal. E sabemos que, no caso do hospital psiquiátrico, tal suspensão no leito esperando que a doença mental fosse curada, poderia durar, via de regra, toda uma vida, se olharmos para um passado não muito distante da psiquiatria.
Sendo assim, o que a Reforma Psiquiátrica tem de inovador ou subversivo vai muito além da garantia de direitos e das novidades defendidas pela lei 10.216 de 2001, também chamada de lei Paulo Delgado. Trata-se da invenção de uma outra clínica que denominaremos aqui de clínica em rede. Para entendemos o que seria esta clínica em rede faremos menção à fala de uma usuária do CAPS Casaberta de Lima Duarte MG.
Estávamos em uma reunião de bom-dia (reunião que acontece no CAPS todas as manhãs, com os usuários e técnicos presentes na instituição naquele momento) conversando sobre assuntos diversos quando uma participante – que chamaremos de Rosa – começou a relatar detalhes de uma internação psiquiátrica, da qual havia retornado recentemente (internação de 30 dias indicada por nossa equipe). Ela nos dizia que, durante tal internação, era como se sua vida tivesse ficado parada do lado de fora do hospital, esperando ela sair. Afirmava também que tal internação para ela não significava tratamento nenhum, e em seguida disse o seguinte: “A loucura se cura andando”.
Com essa beleza de frase, começamos a compreender o que seria uma clínica em rede: uma clínica capaz de acompanhar o sujeito para onde ele vá, e, sobretudo, para onde ele deseje ir. Portanto, a clínica em rede é essa que aposta que “a loucura se cura andando” (sabemos da limitação de usarmos o termo cura, quando falamos de doença mental, nesse caso, o termo cura tem o sentido de possibilitar um tratamento possível). A clínica em rede entende que não é necessário deixar uma vida em suspenso ou interromper a caminhada do sujeito para que ele possa então se tratar. Andar e tratar faz-se tudo ao mesmo tempo e nos lugares mais distantes e improváveis. A clínica em rede, portanto é uma clínica que não demanda isolamento ou afastamento da vida familiar e social do sujeito, já que é uma clínica capaz de se movimentar até esses lugares.
Franco Rotelli, teórico militante da reforma psiquiátrica italiana, vai dizer em seu texto, A instituição inventada de 1988, que uma instituição para desinstitucionalizar a loucura deve ser uma instituição contaminada, liberta do higienismo médico tradicional. Essa clínica em rede que os CAPS propõem é, portanto, uma clínica essencialmente contaminada. Contaminada com as intempéries e dificuldades da vida cotidiana, contaminada pelas dificuldades inerentes ao laço social, pela tragicidade da existência e pelas crises sociais econômicas. É uma clínica que não pretende criar um espaço artificial, descontaminado, isolado do resto do mundo para então poder acontecer.
Sendo assim, um serviço de saúde mental que aposte na clínica em rede não pode ser uma instituição fixa, inerte, burocrática, que cumpre sua função pelo numero de pessoas (vagas) ou de intervenções (consultas) que consegue atender. Criar uma clínica em rede é inventar uma outra lógica, trata-se de criar pontos de ligação com vários outros sujeitos e dispositivos (de saúde ou não) para formar um tecido que consiga abarcar as singularidades e demandas que se apresentarem. A clínica em rede precisa de uma instituição plástica, móvel, flexível, que possa se mobilizar de modo a acolher todos e cada um.
As redes funcionam como pontes e elementos de ligação e devem substituir os muros do modelo manicomial. As redes, diferentemente dos muros, são sistemas abertos, que se abrem e se fecham, estendem-se e se recolhem, tomam a forma necessária a cada situação e singularidade. A força da rede não está na sua dureza e rigidez e sim nos seus pontos de união, que precisam ser muitos porque se um fio se rompe – e fios sempre se rompem – existem inúmeros outros para manter a rede funcionando.
Outro diferencial importante da clínica em rede é estar ciente de ser esburacada. É estar avisada de que apesar de todos os enlaçamentos que lhe permitem criar um tecido, um sistema, ainda sim os buracos estão lá e sempre estarão. Sendo assim, a clínica em rede não pretende ter soluções definitivas para todos os males, não pretende aplacar todos os enigmas, dar todas as respostas, silenciar todas as loucuras ou impedir todos os transtornos. Não podemos esquecer, essa era a pretensão do manicômio.
É importante ressaltar, no entanto, que superar os manicômios e inventar uma nova clínica, como é a proposta da Reforma Psiquiátrica, não implica necessariamente em prescindir da clínica do leito. Em situações extremas e especiais, a clínica do leito pode e deve ser utilizada, mas sempre durante o menor período necessário e em outros dispositivos que estejam mais abertos à lógica da clínica em rede, como os CAPS III (24 horas) e os leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Entendemos que o paradigma do leito é importante e às vezes precisará ser acionado, o problema é quando ele se torna a única maneira de intervir, como acontece no hospital psiquiátrico. Por isso dissemos que o problema essencial do modelo hospitalar não está apenas no fato dele ser bom ou ruim, de ser humanizado ou não, de prestar um bom atendimento ou não, de ter uma boa hotelaria ou não; apesar disso fazer toda diferença na qualidade do tratamento oferecido. O problema do modelo hospitalar é de trabalhar apenas com a clínica do leito e ter limitações para trabalhar nessa nova clínica inventada pela Reforma – a clínica em rede.
O dia 18 de Maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, nasceu no histórico Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru (SP), em 1987, e o lema escolhido para marcar e reafirmar o sentido de sua existência foi “Por uma sociedade sem manicômios”. O sentido dessa luta era, portanto, desconstruir o modelo manicomial: mais redes e menos muros. Desde esta data histórica, muita coisa mudou no campo das Políticas de Saúde Mental. Os grandes manicômios foram fechados e os que restaram tiveram que reduzir significativamente seus leitos, além de serem obrigados a cumprir normas de humanização, atendimento e funcionamento, até que sejam desinventados gradativamente. Desde esta época também começaram as restrições quanto ao tempo de internação, nenhum paciente pode mais ser condenado a morar no hospital psiquiátrico, deve permanecer nele o menor tempo necessário, apenas o suficiente para se recuperar de um período de crise, sendo, a continuidade do tratamento, feita em serviços extra-hospitalares, como os CAPS.
Mas a reforma psiquiátrica enfrenta ainda alguns novos desafios. Primeiramente precisamos citar o tema das drogas que tem tomado à cena e, nesse caso, novamente, o modelo de tratamento baseado no isolamento social, na restrição das liberdades e nos muros, tem sido pensado por alguns como saída. Sabemos que a solução para esta questão precisa ser pensada para além das intervenções em saúde, já que é muito complexa, mas sabemos também que não podemos repetir os erros do passado, acreditando que solucionar um problema é simplesmente isolá-lo, afastá-lo da nossa convivência. Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também e principalmente, em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado redes e pontes. E afinal, concluímos que as redes e as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. O sucesso dos CAPS e demais dispositivos da Reforma são a prova disso. Sendo assim, no caso das políticas sobre drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (e na verdade, já estão demonstrando).
Precisamos apostar nas redes e nas pontes. Pontes que aproximam ao invés de afastar e redes que acolhem ao invés de espantar. Lembrando que acolher não é recolher, porque acolher leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Outro grande desafio para os serviços de saúde mental na atualidade tem sido a demanda por psiquiatrização e medicalização do sofrimento cotidiano e dos nossos problemas relacionais. Vivemos na era da ditadura da felicidade, época em que qualquer mal-estar tem sido interpretado como doença, e em que qualquer sintoma precisa ser silenciado rapidamente. O excesso de diagnósticos psiquiátricos, o exagero e a pressa em medicar todos os mal-estares são os novos muros que estamos construindo para lidar com aquilo que nos incomoda. Diante desse imperativo de ter que ser feliz o tempo todo, esquecemos que a infelicidade cotidiana, manifesta em situações de perda, conflitos e angústia, é também parte da condição humana e não doença.
Num passado não muito distante a felicidade era uma utopia, uma busca, um enigma a ser decifrado. Hoje a felicidade é mesmo uma obrigação e a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de mal estar. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos... Hoje, todo tipo de mal estar cabe num diagnóstico, e para cada diagnóstico, temos um medicamento. A reforma psiquiátrica precisa se ater a esse novo desafio, afinal, precisamos escutar, acolher e compreender nossos mal estares, e não apenas criar muros químicos que nos separem deles. Precisamos ter cuidado para não medicalizar e anestesiar o que deveria ser a matéria prima para podermos fazer e refazer nossas escolhas, nos aperfeiçoar enquanto seres humanos e repensar nosso modo de vida em sociedade.
É importante dizer que os medicamentos, de quaisquer espécies, são ferramentas importantes da ciência médica em favor da nossa saúde e bem estar, o problema é quando o medicamento deixa de ser um recurso terapêutico para ser um produto comercial. Ao
entrar na categoria das mercadorias, a medicação perde bastante da sua potência ética e terapêutica, se torna apenas mais um objeto ávido por ser consumido, seja lá por quem e de que maneira for.
Se antes tínhamos que autorizar as pessoas a serem felizes, hoje precisamos enfrentar o desafio de autorizá-las a serem infelizes, a entenderem situações de angústia, tristeza e luto, como sentimentos que fazem parte da vida e não como um mal a ser curado e medicalizado. Temos um novo desafio ético, novos muros precisam ser derrubados, precisamos desconstruir diagnósticos a fim de despsiquiatrizar e rehumanizar nossa infelicidade cotidiana.
Para se ter uma idéia a que ponto chegamos, a edição do DSM V (manual psiquiátrico americano) será capaz de transformar a pirraça infantil em um transtorno mental. Será chamado de transtorno de humor desregulado e perturbador. Isso diz muito da sociedade que nos tornamos e precisamos pensar sobre isso. Precisaremos pensar, por exemplo, sobre o que fazer com as crises de pirraça de nossas crianças pequenas. Atenderemos prontamente a demanda delas para que não se frustrem e para fazer cessar a pirraça? Levaremos nossas crianças ao serviço de saúde mental para que sejam devidamente diagnosticadas e medicadas? Ou permitiremos que elas aprendam, desde cedo, que às vezes (ou quase sempre) as coisas não funcionam exatamente como gostaríamos, e que isso certamente vai aborrecê-la, mas que, afinal, não é o fim do mundo?
Precisamos pensar se queremos uma sociedade que transforma todo tipo de desvio ou comportamento fora do padrão em doença passível de cura, tratamento e medicalização, ou seja, normatização. Precisamos pensar se queremos silenciar, anestesiar e criar muros químicos que contenham todos os conflitos, angústias, medos, dores e tristezas que sentiremos ao longo da vida.
Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias dos quais não poderemos escapar completamente. Mas se por um lado não podemos erradicar completamente esse desamparo, Freud dirá que podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, pelas redes e pontes que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Portanto, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima: queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Nesse de 18 de maio, mais uma vez, escolha é nossa.
A maior missão dos dispositivos inventados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira (os CAPS ou instâncias dessa natureza) sempre foi desconstruir o modelo manicomial. Mas quando falamos em desconstruir o manicômio, não falamos apenas em desconstruir os edifícios, mas, sobretudo, a mentalidade manicomial, ou o modo manicomial de compreender.
Isso quer dizer que, mais do que criar uma instituição em substituição à outra, o que se pretende é uma mudança de paradigma, uma mudança na maneira olhar as nossas loucuras ou doenças mentais, uma mudança na concepção de tratamento e cuidado, e a desconstrução de um princípio tradicional e clássico no tratamento das enfermidades mentais: de que é preciso isolar para tratar.Sendo assim, podemos pensar no melhor hospital psiquiátrico do mundo, com os profissionais mais especializados e experientes e um maravilhoso aparato de hotelaria. Ainda assim ficaremos limitados a uma clínica tradicional – aquela que isola para tratar e que chamaremos aqui de: clínica do leito
Clinicar é se debruçar sobre o leito de alguém doente, tarefa fundamental nos dispositivos de saúde e também de saúde mental, pois tem o sentido de se debruçar sobre a singularidade de cada sujeito, com seu sintoma, sua história e seu estilo de existência. A clínica é um dispositivo atento àquilo que, no sujeito, não pode ser universalizado ou generalizado. Quando utilizamos, no entanto, o termo, clínica do leito, para falar da clínica proposta pelo modelo manicomial, nos referimos a uma clínica que, para funcionar, demanda que o sujeito fique cerceado ou limitado no seu trânsito habitual, na sua lida familiar e social. A clínica do leito supõe que, para se tratar de alguém, seja necessário isolá-lo ou afastá-lo de seus afazeres e atividades cotidianas. Segundo tal clínica, somente depois de tratada ou curada a enfermidade, o sujeito poderá então retomar sua vida “normal”. Essa clínica dependeria, portanto, um lugar geograficamente delimitado, submetido a alguma espécie de isolamento do mundo real, capaz de circunscrever tudo aquilo que incomoda, adoece ou atormenta o doente, ao mesmo tempo em que também protege a sociedade do incômodo que é lidar com os sintomas daquele que adoeceu. Sendo assim, mesmo se tratando de um hospital que se utilize do dispositivo da clínica – preocupada com a subjetividade e singularidade o que apontaria por uma qualidade no tratamento dos seus pacientes - ainda sim a clínica possível para o modelo hospitalar é a clínica do leito.
Em geral, o modelo hospitalar se baseia nesse tipo de clínica tendo como justificativa a gravidade do caso. Quanto mais grave, maior a intensidade e o tempo de isolamento; de restrição à vida normal. E sabemos que, no caso do hospital psiquiátrico, tal suspensão no leito esperando que a doença mental fosse curada, poderia durar, via de regra, toda uma vida, se olharmos para um passado não muito distante da psiquiatria.
Sendo assim, o que a Reforma Psiquiátrica tem de inovador ou subversivo vai muito além da garantia de direitos e das novidades defendidas pela lei 10.216 de 2001, também chamada de lei Paulo Delgado. Trata-se da invenção de uma outra clínica que denominaremos aqui de clínica em rede. Para entendemos o que seria esta clínica em rede faremos menção à fala de uma usuária do CAPS Casaberta de Lima Duarte MG.
Estávamos em uma reunião de bom-dia (reunião que acontece no CAPS todas as manhãs, com os usuários e técnicos presentes na instituição naquele momento) conversando sobre assuntos diversos quando uma participante – que chamaremos de Rosa – começou a relatar detalhes de uma internação psiquiátrica, da qual havia retornado recentemente (internação de 30 dias indicada por nossa equipe). Ela nos dizia que, durante tal internação, era como se sua vida tivesse ficado parada do lado de fora do hospital, esperando ela sair. Afirmava também que tal internação para ela não significava tratamento nenhum, e em seguida disse o seguinte: “A loucura se cura andando”.
Com essa beleza de frase, começamos a compreender o que seria uma clínica em rede: uma clínica capaz de acompanhar o sujeito para onde ele vá, e, sobretudo, para onde ele deseje ir. Portanto, a clínica em rede é essa que aposta que “a loucura se cura andando” (sabemos da limitação de usarmos o termo cura, quando falamos de doença mental, nesse caso, o termo cura tem o sentido de possibilitar um tratamento possível). A clínica em rede entende que não é necessário deixar uma vida em suspenso ou interromper a caminhada do sujeito para que ele possa então se tratar. Andar e tratar faz-se tudo ao mesmo tempo e nos lugares mais distantes e improváveis. A clínica em rede, portanto é uma clínica que não demanda isolamento ou afastamento da vida familiar e social do sujeito, já que é uma clínica capaz de se movimentar até esses lugares.
Franco Rotelli, teórico militante da reforma psiquiátrica italiana, vai dizer em seu texto, A instituição inventada de 1988, que uma instituição para desinstitucionalizar a loucura deve ser uma instituição contaminada, liberta do higienismo médico tradicional. Essa clínica em rede que os CAPS propõem é, portanto, uma clínica essencialmente contaminada. Contaminada com as intempéries e dificuldades da vida cotidiana, contaminada pelas dificuldades inerentes ao laço social, pela tragicidade da existência e pelas crises sociais econômicas. É uma clínica que não pretende criar um espaço artificial, descontaminado, isolado do resto do mundo para então poder acontecer.
Sendo assim, um serviço de saúde mental que aposte na clínica em rede não pode ser uma instituição fixa, inerte, burocrática, que cumpre sua função pelo numero de pessoas (vagas) ou de intervenções (consultas) que consegue atender. Criar uma clínica em rede é inventar uma outra lógica, trata-se de criar pontos de ligação com vários outros sujeitos e dispositivos (de saúde ou não) para formar um tecido que consiga abarcar as singularidades e demandas que se apresentarem. A clínica em rede precisa de uma instituição plástica, móvel, flexível, que possa se mobilizar de modo a acolher todos e cada um.
As redes funcionam como pontes e elementos de ligação e devem substituir os muros do modelo manicomial. As redes, diferentemente dos muros, são sistemas abertos, que se abrem e se fecham, estendem-se e se recolhem, tomam a forma necessária a cada situação e singularidade. A força da rede não está na sua dureza e rigidez e sim nos seus pontos de união, que precisam ser muitos porque se um fio se rompe – e fios sempre se rompem – existem inúmeros outros para manter a rede funcionando.
Outro diferencial importante da clínica em rede é estar ciente de ser esburacada. É estar avisada de que apesar de todos os enlaçamentos que lhe permitem criar um tecido, um sistema, ainda sim os buracos estão lá e sempre estarão. Sendo assim, a clínica em rede não pretende ter soluções definitivas para todos os males, não pretende aplacar todos os enigmas, dar todas as respostas, silenciar todas as loucuras ou impedir todos os transtornos. Não podemos esquecer, essa era a pretensão do manicômio.
É importante ressaltar, no entanto, que superar os manicômios e inventar uma nova clínica, como é a proposta da Reforma Psiquiátrica, não implica necessariamente em prescindir da clínica do leito. Em situações extremas e especiais, a clínica do leito pode e deve ser utilizada, mas sempre durante o menor período necessário e em outros dispositivos que estejam mais abertos à lógica da clínica em rede, como os CAPS III (24 horas) e os leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Entendemos que o paradigma do leito é importante e às vezes precisará ser acionado, o problema é quando ele se torna a única maneira de intervir, como acontece no hospital psiquiátrico. Por isso dissemos que o problema essencial do modelo hospitalar não está apenas no fato dele ser bom ou ruim, de ser humanizado ou não, de prestar um bom atendimento ou não, de ter uma boa hotelaria ou não; apesar disso fazer toda diferença na qualidade do tratamento oferecido. O problema do modelo hospitalar é de trabalhar apenas com a clínica do leito e ter limitações para trabalhar nessa nova clínica inventada pela Reforma – a clínica em rede.
O dia 18 de Maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, nasceu no histórico Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru (SP), em 1987, e o lema escolhido para marcar e reafirmar o sentido de sua existência foi “Por uma sociedade sem manicômios”. O sentido dessa luta era, portanto, desconstruir o modelo manicomial: mais redes e menos muros. Desde esta data histórica, muita coisa mudou no campo das Políticas de Saúde Mental. Os grandes manicômios foram fechados e os que restaram tiveram que reduzir significativamente seus leitos, além de serem obrigados a cumprir normas de humanização, atendimento e funcionamento, até que sejam desinventados gradativamente. Desde esta época também começaram as restrições quanto ao tempo de internação, nenhum paciente pode mais ser condenado a morar no hospital psiquiátrico, deve permanecer nele o menor tempo necessário, apenas o suficiente para se recuperar de um período de crise, sendo, a continuidade do tratamento, feita em serviços extra-hospitalares, como os CAPS.
Mas a reforma psiquiátrica enfrenta ainda alguns novos desafios. Primeiramente precisamos citar o tema das drogas que tem tomado à cena e, nesse caso, novamente, o modelo de tratamento baseado no isolamento social, na restrição das liberdades e nos muros, tem sido pensado por alguns como saída. Sabemos que a solução para esta questão precisa ser pensada para além das intervenções em saúde, já que é muito complexa, mas sabemos também que não podemos repetir os erros do passado, acreditando que solucionar um problema é simplesmente isolá-lo, afastá-lo da nossa convivência. Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também e principalmente, em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado redes e pontes. E afinal, concluímos que as redes e as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. O sucesso dos CAPS e demais dispositivos da Reforma são a prova disso. Sendo assim, no caso das políticas sobre drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (e na verdade, já estão demonstrando).
Precisamos apostar nas redes e nas pontes. Pontes que aproximam ao invés de afastar e redes que acolhem ao invés de espantar. Lembrando que acolher não é recolher, porque acolher leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Outro grande desafio para os serviços de saúde mental na atualidade tem sido a demanda por psiquiatrização e medicalização do sofrimento cotidiano e dos nossos problemas relacionais. Vivemos na era da ditadura da felicidade, época em que qualquer mal-estar tem sido interpretado como doença, e em que qualquer sintoma precisa ser silenciado rapidamente. O excesso de diagnósticos psiquiátricos, o exagero e a pressa em medicar todos os mal-estares são os novos muros que estamos construindo para lidar com aquilo que nos incomoda. Diante desse imperativo de ter que ser feliz o tempo todo, esquecemos que a infelicidade cotidiana, manifesta em situações de perda, conflitos e angústia, é também parte da condição humana e não doença.
Num passado não muito distante a felicidade era uma utopia, uma busca, um enigma a ser decifrado. Hoje a felicidade é mesmo uma obrigação e a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de mal estar. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos... Hoje, todo tipo de mal estar cabe num diagnóstico, e para cada diagnóstico, temos um medicamento. A reforma psiquiátrica precisa se ater a esse novo desafio, afinal, precisamos escutar, acolher e compreender nossos mal estares, e não apenas criar muros químicos que nos separem deles. Precisamos ter cuidado para não medicalizar e anestesiar o que deveria ser a matéria prima para podermos fazer e refazer nossas escolhas, nos aperfeiçoar enquanto seres humanos e repensar nosso modo de vida em sociedade.
É importante dizer que os medicamentos, de quaisquer espécies, são ferramentas importantes da ciência médica em favor da nossa saúde e bem estar, o problema é quando o medicamento deixa de ser um recurso terapêutico para ser um produto comercial. Ao
entrar na categoria das mercadorias, a medicação perde bastante da sua potência ética e terapêutica, se torna apenas mais um objeto ávido por ser consumido, seja lá por quem e de que maneira for.
Se antes tínhamos que autorizar as pessoas a serem felizes, hoje precisamos enfrentar o desafio de autorizá-las a serem infelizes, a entenderem situações de angústia, tristeza e luto, como sentimentos que fazem parte da vida e não como um mal a ser curado e medicalizado. Temos um novo desafio ético, novos muros precisam ser derrubados, precisamos desconstruir diagnósticos a fim de despsiquiatrizar e rehumanizar nossa infelicidade cotidiana.
Para se ter uma idéia a que ponto chegamos, a edição do DSM V (manual psiquiátrico americano) será capaz de transformar a pirraça infantil em um transtorno mental. Será chamado de transtorno de humor desregulado e perturbador. Isso diz muito da sociedade que nos tornamos e precisamos pensar sobre isso. Precisaremos pensar, por exemplo, sobre o que fazer com as crises de pirraça de nossas crianças pequenas. Atenderemos prontamente a demanda delas para que não se frustrem e para fazer cessar a pirraça? Levaremos nossas crianças ao serviço de saúde mental para que sejam devidamente diagnosticadas e medicadas? Ou permitiremos que elas aprendam, desde cedo, que às vezes (ou quase sempre) as coisas não funcionam exatamente como gostaríamos, e que isso certamente vai aborrecê-la, mas que, afinal, não é o fim do mundo?
Precisamos pensar se queremos uma sociedade que transforma todo tipo de desvio ou comportamento fora do padrão em doença passível de cura, tratamento e medicalização, ou seja, normatização. Precisamos pensar se queremos silenciar, anestesiar e criar muros químicos que contenham todos os conflitos, angústias, medos, dores e tristezas que sentiremos ao longo da vida.
Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias dos quais não poderemos escapar completamente. Mas se por um lado não podemos erradicar completamente esse desamparo, Freud dirá que podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, pelas redes e pontes que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Portanto, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima: queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Nesse de 18 de maio, mais uma vez, escolha é nossa.
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