Então você tinha sua casa toda arrumada,
Organizada
E eis que chega um estranho e bagunça tudo
Escancara seus armários
Revira suas gavetas
Arranha sua mobília
Diante do caos
Vem o desespero
Mas passada as primeiras horas
Você se dá conta de que só há uma coisa a se fazer:
Começar de novo
E tomar cuidado
Para que as coisas não fiquem tão bem arranjadas quanto antes
Sim
O estranho pode chegar para qualquer um
Desesperem-se
Mas também comemorem
E, sobretudo, não se enganem
O estranho não vem de fora
E também não brota de dentro
O estranho fica entre, à espreita
Basta um pequeno rasgo e ele emerge com força
Chegou o estranho
E se ele emergiu por uma pequena fresta
Não há como botá-lo pra dentro de novo
Esqueça!
Permita que ele escape
E faça dele matéria prima
O estranho é isso
É matéria prima
Para os que não se cansam de se reinventar
quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
Toda vez que pico couve
Me lembro do meu pai
Sempre que eu pedia
ele picava couve pra mim
Com a mão esquerda
Que usava para fazer tudo
Exceto escrever
(Foi obrigado pela professora
a escrever com a direita)
Nos últimos dias
A falta do meu pai
está especialmente presente
Interessante essa ausência/presença,
E meu entendimento
Que a saudade faz a ausência, presente
Já o amor mora ali no intervalo
Entre ausência e presença
Cozinhar me ajuda a fazer meus silêncios
Silêncios necessários
Fundamentais para encontrar comigo
Picando couve me lembrei de meu pai
E das perguntas
que eu hoje gostaria de lhe fazer
Então me veio o vazio
das respostas que ele não pode mais me dar
Mas o amor é um afeto poderoso
Que não mora exatamente na continuidade
Na completude
Na perfeição
Ele emerge exatamente nos intervalos
Nas falhas
Nas frestas que se abrem
No vazio
E diante do vazio
Descobri que, por amar
Sabia exatamente as respostas que meu pai me daria
Eu sabia...
Então, nesse buraco que se abriu
Meu pai veio me soprar pequenas verdades
E o buraco encheu-se de amor
Me lembro do meu pai
Sempre que eu pedia
ele picava couve pra mim
Com a mão esquerda
Que usava para fazer tudo
Exceto escrever
(Foi obrigado pela professora
a escrever com a direita)
Nos últimos dias
A falta do meu pai
está especialmente presente
Interessante essa ausência/presença,
E meu entendimento
Que a saudade faz a ausência, presente
Já o amor mora ali no intervalo
Entre ausência e presença
Cozinhar me ajuda a fazer meus silêncios
Silêncios necessários
Fundamentais para encontrar comigo
Picando couve me lembrei de meu pai
E das perguntas
que eu hoje gostaria de lhe fazer
Então me veio o vazio
das respostas que ele não pode mais me dar
Mas o amor é um afeto poderoso
Que não mora exatamente na continuidade
Na completude
Na perfeição
Ele emerge exatamente nos intervalos
Nas falhas
Nas frestas que se abrem
No vazio
E diante do vazio
Descobri que, por amar
Sabia exatamente as respostas que meu pai me daria
Eu sabia...
Então, nesse buraco que se abriu
Meu pai veio me soprar pequenas verdades
E o buraco encheu-se de amor
A vida também precisa de profundos silêncios
Porque, às vezes, não há nada mais a ser dito
E só nos resta esperar que o silêncio dê conta
Do que a palavra não foi capaz de expressar
Nessas horas é preciso suportar o vazio
Que é sempre pior que a dor
Porque a dor é plena de sentido
Mas o vazio é um buraco infinito
Que não adianta preencher com mentiras
E só o silêncio é capaz de encontrar algumas verdades
Meias verdades, obviamente
Que possam de novo dizer alguma coisa
Algo que nos pareça fazer sentido
A vida precisa sim, de profundos silêncios
Para ouvirmos as coisas que a tagarelice abafa
Para escutar o que está pra além do barulho da cidade
A vida precisa de profundos silêncios...
Porque, às vezes, não há nada mais a ser dito
E só nos resta esperar que o silêncio dê conta
Do que a palavra não foi capaz de expressar
Nessas horas é preciso suportar o vazio
Que é sempre pior que a dor
Porque a dor é plena de sentido
Mas o vazio é um buraco infinito
Que não adianta preencher com mentiras
E só o silêncio é capaz de encontrar algumas verdades
Meias verdades, obviamente
Que possam de novo dizer alguma coisa
Algo que nos pareça fazer sentido
A vida precisa sim, de profundos silêncios
Para ouvirmos as coisas que a tagarelice abafa
Para escutar o que está pra além do barulho da cidade
A vida precisa de profundos silêncios...
Das intensidades que a vida tem me oferecido
Escolhi não me esquivar
A fé que eu professo
Entende que a vida é uma experiência única
E que a covardia é o pior dos pecados
Porque tudo que se leva dessa vida
São as marcas que ela imprime em nosso corpo
Entendo que tudo que não faz marca no corpo
Não vale realmente a pena
E as cicatrizes mais fundamentais
São sempre as mais fundas
Doídas
As que eventualmente sangram
Só acredito na vida que nos arremessa
E nos corpos que carregam marcas
Do tempo
De dores
De amores
Porque o que vale no final das contas
É aquilo que nos esfola
E quem recua da vida por medo de se esfolar
Quem nega as marcas do tempo por medo de envelhecer
Vai ter que se haver um dia com o futuro
Um futuro a lhe cobrar histórias
A cada um será dada a oportunidade de inventar sua própria tragédia
E encená-la
Triste é aquele que não tem nenhuma ruga, marca ou cicatriz para exibir no palco.
É que a vida acontece aos saltos
mas não apenas quando estamos no ápice
também é vida o que acontece no limite do chão
É um erro acreditar que a vida é só aquilo que sentimos
quando estamos no ponto mais alto
e que a felicidade seria algo como flutuar eternamente
Não fomos equipados com asas!
Viver é a arte de manter a coragem de saltar
mesmo sabendo que em seguida
teremos que voltar de novo ao solo
É compreender que, sem colocar os pés no chão,
seria impossível saltar novamente
mas não apenas quando estamos no ápice
também é vida o que acontece no limite do chão
É um erro acreditar que a vida é só aquilo que sentimos
quando estamos no ponto mais alto
e que a felicidade seria algo como flutuar eternamente
Não fomos equipados com asas!
Viver é a arte de manter a coragem de saltar
mesmo sabendo que em seguida
teremos que voltar de novo ao solo
É compreender que, sem colocar os pés no chão,
seria impossível saltar novamente
terça-feira, 6 de outubro de 2015
O desejo como antídoto para o querer na sociedade de consumo
Por Rita Almeida
Há quem pense que querer e desejar sejam a mesma coisa. Não são! Ao menos, não para a psicanálise.
O querer é uma enorme prateleira, o desejo uma tesoura. A operação matemática do querer é a soma e do desejo a divisão, nunca exata, sempre com resto. O querer é cumulativo, já o desejo, envolve escolha e perda.
A operação que rege e sustenta o sistema capitalista e, portanto, domina a forma de estarmos no mundo hoje em dia é o querer. Ao capitalismo interessa o acumulo de coisas; prateleiras cheias para vender, prateleiras cheias para comprar. Queremos mais um livro, mais um perfume e mais um sapato, não importa quantos já temos. Queremos mais uma especialização, mais uma viagem e mais 20 canais de TV, não importa que sentido tenham feito em nossa vida. Queremos mais um carro, mais um imóvel e mais bens, não importa o que isso represente para a coletividade humana e a sustentabilidade do nosso planeta.
Jacques Lacan ao construir sua teoria dos discursos faz menção ao que ele chama de Discurso Capitalista, que seria uma mutação pervertida do Discurso do Mestre. Enquanto o Discurso do Mestre se baseia na relação do senhor e do escravo – resgatado da dialética hegeliana – o Discurso Capitalista se dá pelo eclipse da relação entre os sujeitos. Em tal discurso, o sujeito não se relaciona com um outro, se relaciona apenas com os objetos–mercadoria. Tudo vira objeto a ser consumido, até mesmo os próprios sujeitos.
O agente do Discurso Capitalista é o consumidor, seu interesse é pelo consumo. Como diria Viviane Forrester, na sociedade atual consumir é nosso último recurso, nossa última utilidade. Somos clientes necessários à sustentação do modelo capitalista.
Mas consumidor é aquele sujeito que está sempre aquém, sempre em déficit, pois sempre haverá uma bugiganga, uma tecnologia, um bem, um saber e um modelo mais novo que ele ainda não conseguiu adquirir, portanto, o verbo que ele conjuga é o querer. Entretanto, o engano do consumidor não é se considerar incompleto, já que a incompletude é uma realidade irremediável para todos nós, mas sim acreditar que irá alcançar a completude por meio da aquisição de coisas; das coisas que ainda não tem.
Nesse sentido, o querer é uma armadilha, pois por mais que o sujeito adquira coisas estará sempre se sentindo em falta, e ao invés de aceitá-la, seu movimento é continuar a buscar no consumo, coisas que criem uma falsa sensação de completude. O querer é sempre mais, sempre sem limites. O querer funciona como negação da castração. No excesso de querer o sujeito se perde, pois perde a capacidade de fazer escolhas, e com isso, seu potencial singular.
Mas, e o desejo?
A psicanálise se sustenta sobre a ética do desejo. Ao contrário do querer, em que o sujeito quer tudo até que sua prateleira fique completa, o desejo implica em escolhas, portanto, em perdas. O desejo é uma tesoura, sendo assim desejar implica em fazer opções. Ou isso Ou aquilo, diria Cecília Meireles.
Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
O desejo seria, portanto, um antídoto para intervir numa sociedade baseada no querer consumista. Desejar implica no sujeito admitir sua própria divisão, aceitar sua incapacidade de ter tudo. Desejar não é produzir um acúmulo de coisas, mas sim, definir o que é mais fundamental e importante. Desejar é cortar o excesso, é aceitar a perda de gozo, é escapar da mera sobreposição de bugigangas a fim de produzir singularidade e estilo.
Num mundo onde o imperativo categórico é que abarrotemos nossas prateleiras e que queiramos tudo, todo o tempo, utilizar a tesoura do desejo seria a verdadeira revolução.
Há quem pense que querer e desejar sejam a mesma coisa. Não são! Ao menos, não para a psicanálise.
O querer é uma enorme prateleira, o desejo uma tesoura. A operação matemática do querer é a soma e do desejo a divisão, nunca exata, sempre com resto. O querer é cumulativo, já o desejo, envolve escolha e perda.
A operação que rege e sustenta o sistema capitalista e, portanto, domina a forma de estarmos no mundo hoje em dia é o querer. Ao capitalismo interessa o acumulo de coisas; prateleiras cheias para vender, prateleiras cheias para comprar. Queremos mais um livro, mais um perfume e mais um sapato, não importa quantos já temos. Queremos mais uma especialização, mais uma viagem e mais 20 canais de TV, não importa que sentido tenham feito em nossa vida. Queremos mais um carro, mais um imóvel e mais bens, não importa o que isso represente para a coletividade humana e a sustentabilidade do nosso planeta.
Jacques Lacan ao construir sua teoria dos discursos faz menção ao que ele chama de Discurso Capitalista, que seria uma mutação pervertida do Discurso do Mestre. Enquanto o Discurso do Mestre se baseia na relação do senhor e do escravo – resgatado da dialética hegeliana – o Discurso Capitalista se dá pelo eclipse da relação entre os sujeitos. Em tal discurso, o sujeito não se relaciona com um outro, se relaciona apenas com os objetos–mercadoria. Tudo vira objeto a ser consumido, até mesmo os próprios sujeitos.
O agente do Discurso Capitalista é o consumidor, seu interesse é pelo consumo. Como diria Viviane Forrester, na sociedade atual consumir é nosso último recurso, nossa última utilidade. Somos clientes necessários à sustentação do modelo capitalista.
Mas consumidor é aquele sujeito que está sempre aquém, sempre em déficit, pois sempre haverá uma bugiganga, uma tecnologia, um bem, um saber e um modelo mais novo que ele ainda não conseguiu adquirir, portanto, o verbo que ele conjuga é o querer. Entretanto, o engano do consumidor não é se considerar incompleto, já que a incompletude é uma realidade irremediável para todos nós, mas sim acreditar que irá alcançar a completude por meio da aquisição de coisas; das coisas que ainda não tem.
Nesse sentido, o querer é uma armadilha, pois por mais que o sujeito adquira coisas estará sempre se sentindo em falta, e ao invés de aceitá-la, seu movimento é continuar a buscar no consumo, coisas que criem uma falsa sensação de completude. O querer é sempre mais, sempre sem limites. O querer funciona como negação da castração. No excesso de querer o sujeito se perde, pois perde a capacidade de fazer escolhas, e com isso, seu potencial singular.
Mas, e o desejo?
A psicanálise se sustenta sobre a ética do desejo. Ao contrário do querer, em que o sujeito quer tudo até que sua prateleira fique completa, o desejo implica em escolhas, portanto, em perdas. O desejo é uma tesoura, sendo assim desejar implica em fazer opções. Ou isso Ou aquilo, diria Cecília Meireles.
Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
O desejo seria, portanto, um antídoto para intervir numa sociedade baseada no querer consumista. Desejar implica no sujeito admitir sua própria divisão, aceitar sua incapacidade de ter tudo. Desejar não é produzir um acúmulo de coisas, mas sim, definir o que é mais fundamental e importante. Desejar é cortar o excesso, é aceitar a perda de gozo, é escapar da mera sobreposição de bugigangas a fim de produzir singularidade e estilo.
Num mundo onde o imperativo categórico é que abarrotemos nossas prateleiras e que queiramos tudo, todo o tempo, utilizar a tesoura do desejo seria a verdadeira revolução.
domingo, 23 de agosto de 2015
Sobre os desafios políticos de Dilma Rousseff
Por Rita Almeida
Eu participei ativamente da chegada do Lula à presidência, militando na política de 1989 a 2003, e fiz muitos amigos nessa jornada. Mas, já no primeiro ano do governo, assisti a desfiliação de muitos dos meus companheiros de militância dos partidos que faziam a base do governo. A justificativa era que Lula e o PT tinham renegado as bandeiras da esquerda e se aliado com aqueles que deveria repudiar.
Eu concordo com Deleuze quando ele diz que não existe governo de esquerda. No máximo, diria ele, teremos um governo sensibilizado com as causas da esquerda.
Ser de esquerda sempre supõe questionar e romper com o que está instituído, porque é uma proposta de visão de mundo para além: além do próprio umbigo, além de hoje ou amanhã ou além das necessidades imediatas. Só que assumir um governo pressupõe a peleja de ter que lidar com o pragmatismo necessário ao trabalho cotidiano. Ao governar podemos sustentar um olhar além, mas, não podemos deixar de olhar hoje e amanhã. E o problema é que olhar para hoje e amanhã pode significar algo muito diverso do que se pretendia quando se olhava para além. Então, esse é o desarranjo no qual os partidos de esquerda se metem quando assumem o poder – aqui ou em qualquer lugar do mundo. E é preciso ter maturidade política para entender o significa tal mudança de posição, para que ela não se torne uma armadilha ou uma maldição.
Política e laço social
Para fazermos qualquer tipo de laço social precisamos entrar numa rede discursiva, sendo assim, a política também é uma tentativa de fazer laço social. Algumas posições discursivas têm como objetivo exercer comando sobre outros. Outras se dispõem a questionar e mover tais posições de comando do seu lugar. Um bom exemplo seria a relação dos pais com seus filhos. Os primeiros tentarão, por meio do saber ou do poder que possuem, comandar seus filhos. Já estes últimos, por sua vez, farão de tudo para demover seus pais do lugar de comando. Tem sido assim, de geração a geração.
Mas então acontece uma coisa interessante. Aquele filho rebelde e questionador quando se torna pai ou mãe, se vê tomando com seus filhos, medidas e atitudes semelhantes as que ele questionou um dia de seus pais. Isso significaria que ele mudou suas convicções e princípios? Não necessariamente. Às vezes, isso acontece apenas pelo fato dele ter mudado sua posição no discurso. E é importante que tal mudança aconteça. Inclusive, muitos não conseguem assumir a condição de pai e mãe exatamente por não suportarem ter que mudar de posição. Não suportam ter que ficar no lugar de comando e alvo da crítica e da queixa dos filhos.
Muitos dos meus amigos que migraram para outros partidos quando Lula ganhou a eleição – apesar de suas justificativas serem totalmente plausíveis – o fizeram simplesmente por não conseguirem fazer uma mudança discursiva. Não suportaram ficar no lugar da vidraça que leva a pedrada; só sabiam ficar no lugar daquele que joga a pedra na vidraça do outro. E temos muitos políticos assim – que são excelentes – mas que só conseguem se figurar como oposição.
Temos também o caso daquele que, ao mudar seu lugar no discurso – de querelante para comandante – encarna o poder e se fixa a ele de tal modo, que não consegue mais se mover. Torna-se um comandante duro e inflexível, que vai tentar exercer seu comando pela força (poder) ou pelo apego demasiado a regras e teorias (saber). Numa empresa, temos o exemplo do encarregado mais questionador e que se torna o mais rigoroso dos chefes, quando colocado na posição de gerente.
Enfim, a metáfora do filme Senhor dos Anéis é perfeita para explicar o que eu estou tentando dizer. São poucos os que sabem usar o anel do poder. Muitos não suportam a pressão de usá-lo e outros ficam seduzidos e inebriados demais com seu uso. Ou seja, fazer bom uso da condição de comando seria ter coragem suficiente para usar o anel quando necessário, mas também saber abrir mão dele. É saber da responsabilidade que implica estar com o anel e da humildade de entender que não se pode tê-lo todo o tempo ou usar dele para fazer o que bem entender.
A política é a arte de fazer bom uso do anel. É a arte de fazer uso dos vários discursos para governar. O bom político é aquele que não se fixa em uma determinada posição discursiva. Sabe quando chamar a liderança para si e quando delega-la. Sabe que tomar uma decisão implica em responsabilizar-se e saber sobre ela, mas, sobretudo, em negociar, ceder poder, escutar o saber do outro, recuar de suas próprias certezas e convicções, ainda que temporariamente, ainda que a contragosto. Quem acha que um bom governante é aquele que vai fazer tudo o que disse que iria fazer na época da eleição não entendeu nada de política. Bom político é aquele que conseguirá negociar o que prometeu da melhor maneira possível. Na política é necessário compreender profundamente a metáfora: “vão-se os anéis, ficam os dedos”.
É por isso que a boa governança não se faz apenas com bons administradores. Bons administradores podem ser inteligentes, corretos e muito bem intencionados. Podem saber muito sobre teorias e técnicas de gestão, podem ter condições de assumir posições de liderança e comando, mas se não souberem fazer política, sofrerão amargamente.
Uma crise política
Engana-se quem acredita que a crise que vivemos atualmente no Brasil é econômica. Aqui dentro, nossa crise é eminentemente política, mas, tem servido de combustível para alimentar uma crise econômica que é mundial. Não tenho motivo nenhum para duvidar da capacidade administrativa, da dedicação ao trabalho, da boa intenção e da integridade moral e ética da presidenta Dilma, mas tem faltado a ela uma coisa fundamental para o cargo que assumiu: habilidade política.
Em seu segundo mandato, Dilma conseguiu o feito improvável de desagradar os que estavam a seu favor e os que estavam contra, os que estavam à sua direita e os que estavam à sua esquerda. Economicamente falando, tomou as diretrizes que seu oponente nas eleições disse que tomaria (desagradando grande parte de seu eleitorado) sem, no entanto, conseguir receber os aplausos daqueles que derrotou nas urnas. Por que isso foi possível? Porque o maior desafio de um governante não está, exatamente, no sucesso das decisões que vai tomar, mas, sobretudo em quantas pessoas, instituições, partidos, redes, organizações, coletivos, instâncias e movimentos ele conquistará para fazer com que sua decisão tenha sucesso. Na política, o sucesso nunca vem antes, vem depois. Na política, o sucesso não está no ato em si, é diretamente proporcional ao tamanho da força que se aglutinou a ele. Todo ato político, para ter sucesso, precisa ser o ato de muitos. É por isso que o pior que pode acontecer a um político é o seu isolamento.
A histeria quer impeachment
Um dos reflexos da inabilidade política de Dilma é a histeria generalizada que ganhou as redes sociais, as conversas do dia a dia, as sacadas da classe média e as ruas. Tal histeria – não se enganem – não é resultado das denuncias de corrupção e da tão falada crise, afinal, já vivemos dias muito piores nos dois aspectos (quem não sabe disso não viveu aqui nos últimos 30 anos ou sofre de amnésia grave). Então, o que significa tamanha histeria? Lacan dizia que a histeria quer é “um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina e ele não governa". Traduzindo para o Brasil de hoje: a histeria quer impeachment.
Entretanto, uma das habilidades do bom governante é conseguir evitar que a posição queixosa e querelante própria dos governados se fixe num discurso histérico sintomático, imaturo e vazio. Para escapar do discurso da histeria, só resta ao mestre (foi Freud quem nos ensinou isso) esvaziar-se da sua condição de mestria. Diante deste mesmo impasse outros governantes que tivemos, simplesmente abdicaram do seu lugar, de diferentes modos. Dilma já afirmou que não irá usar desse recurso, e é bom que seja assim. É bom que tenhamos alguém com coragem para suportar e sustentar este lugar numa condição política tão adversa. Entretanto, isso por si não resolve o impasse que está posto para este governo. Ainda assim, Dilma precisa esvaziar um pouco seu lugar para que a histeria não se sinta tão impelida em desbanca-la. É assim que funciona: quanto mais o mestre se impõe e se endurece, mais a histeria aumenta na tentativa de esvaziá-lo.
Então qual a saída para Dilma? Dilma precisar esvaziar um pouco seu lugar, flexibilizar-se, permitir-se, abrir-se para o outro, admitir suas próprias limitações. Outro dia alguém sugeriu a presidenta: erotize-se, e isso foi interpretado como uma sugestão de que ela estivesse precisando de sexo. Erotizar-se não tem nada a ver com fazer sexo, erotizar-se é abrir-se ao outro, se mobilizar em direção ao outro. Erotizar-se é acreditar que o outro possa ter algo que eu não tenho. Na verdade ninguém tem essa coisa que todos procuramos, mas sempre que procuramos essa coisa juntos estamos fazendo laço, ou seja, estamos fazendo política.
Resumindo: ou Dilma aprende a fazer política (o que pode significar admitir sua inabilidade neste aspecto para buscar alguém que faça isso junto com ela) ou está fadada ao fracasso.
Há rumores de que Lula foi convidado para assumir a articulação política do governo, com o recuo de Temer desta função. Podem-se fazer mil críticas ao Lula, mas ninguém pode negar sua habilidade para fazer política. Muitos não entenderam e não entendem, mas o sucesso do governo Lula não se deu exatamente pelo acerto nas suas decisões, mas pela sua capacidade de aglutinar forças que pudessem fazer com que um projeto de Brasil possível pudesse acontecer. Obviamente que o possível na política, não é o ideal.
E retomando o início no texto, o imbróglio da esquerda é que ela mora sempre no campo do ideal. Mas o desafio da política é fazer o ideal tornar-se possível através do trabalho de ligação e aglutinação de forças numa mesma direção.
A extrema direita, a extrema esquerda e a criminalização da política
Não por acaso vemos duas forças surgindo a partir dessa nossa crise política: a extrema direita e a extrema esquerda. Vale lembrar que ambas são dois lados da mesma moeda. As duas querem acabar com a crise de liderança por meio de um pulso forte que diga: “acabou essa bagunça, agora vai ser do jeito que eu mandar”. A extrema direita quer intervenção militar e a extrema esquerda quer intervenção armada do proletariado. Em ambos os casos abrimos mão da política para fazer uso da força. Não pode dar certo!
Em alguma medida, criminalizar a política, desejar a explosão do Congresso Nacional, a morte de todos os políticos ou coisa parecida, também é flertar com a abdicação da política como modo de governar. Mas é preciso ter clareza de uma coisa. Se a saída por meio política tem sido especialmente difícil e frustrante para nós brasileiros, sem a política não há saída alguma.
Eu participei ativamente da chegada do Lula à presidência, militando na política de 1989 a 2003, e fiz muitos amigos nessa jornada. Mas, já no primeiro ano do governo, assisti a desfiliação de muitos dos meus companheiros de militância dos partidos que faziam a base do governo. A justificativa era que Lula e o PT tinham renegado as bandeiras da esquerda e se aliado com aqueles que deveria repudiar.
Eu concordo com Deleuze quando ele diz que não existe governo de esquerda. No máximo, diria ele, teremos um governo sensibilizado com as causas da esquerda.
Ser de esquerda sempre supõe questionar e romper com o que está instituído, porque é uma proposta de visão de mundo para além: além do próprio umbigo, além de hoje ou amanhã ou além das necessidades imediatas. Só que assumir um governo pressupõe a peleja de ter que lidar com o pragmatismo necessário ao trabalho cotidiano. Ao governar podemos sustentar um olhar além, mas, não podemos deixar de olhar hoje e amanhã. E o problema é que olhar para hoje e amanhã pode significar algo muito diverso do que se pretendia quando se olhava para além. Então, esse é o desarranjo no qual os partidos de esquerda se metem quando assumem o poder – aqui ou em qualquer lugar do mundo. E é preciso ter maturidade política para entender o significa tal mudança de posição, para que ela não se torne uma armadilha ou uma maldição.
Política e laço social
Para fazermos qualquer tipo de laço social precisamos entrar numa rede discursiva, sendo assim, a política também é uma tentativa de fazer laço social. Algumas posições discursivas têm como objetivo exercer comando sobre outros. Outras se dispõem a questionar e mover tais posições de comando do seu lugar. Um bom exemplo seria a relação dos pais com seus filhos. Os primeiros tentarão, por meio do saber ou do poder que possuem, comandar seus filhos. Já estes últimos, por sua vez, farão de tudo para demover seus pais do lugar de comando. Tem sido assim, de geração a geração.
Mas então acontece uma coisa interessante. Aquele filho rebelde e questionador quando se torna pai ou mãe, se vê tomando com seus filhos, medidas e atitudes semelhantes as que ele questionou um dia de seus pais. Isso significaria que ele mudou suas convicções e princípios? Não necessariamente. Às vezes, isso acontece apenas pelo fato dele ter mudado sua posição no discurso. E é importante que tal mudança aconteça. Inclusive, muitos não conseguem assumir a condição de pai e mãe exatamente por não suportarem ter que mudar de posição. Não suportam ter que ficar no lugar de comando e alvo da crítica e da queixa dos filhos.
Muitos dos meus amigos que migraram para outros partidos quando Lula ganhou a eleição – apesar de suas justificativas serem totalmente plausíveis – o fizeram simplesmente por não conseguirem fazer uma mudança discursiva. Não suportaram ficar no lugar da vidraça que leva a pedrada; só sabiam ficar no lugar daquele que joga a pedra na vidraça do outro. E temos muitos políticos assim – que são excelentes – mas que só conseguem se figurar como oposição.
Temos também o caso daquele que, ao mudar seu lugar no discurso – de querelante para comandante – encarna o poder e se fixa a ele de tal modo, que não consegue mais se mover. Torna-se um comandante duro e inflexível, que vai tentar exercer seu comando pela força (poder) ou pelo apego demasiado a regras e teorias (saber). Numa empresa, temos o exemplo do encarregado mais questionador e que se torna o mais rigoroso dos chefes, quando colocado na posição de gerente.
Enfim, a metáfora do filme Senhor dos Anéis é perfeita para explicar o que eu estou tentando dizer. São poucos os que sabem usar o anel do poder. Muitos não suportam a pressão de usá-lo e outros ficam seduzidos e inebriados demais com seu uso. Ou seja, fazer bom uso da condição de comando seria ter coragem suficiente para usar o anel quando necessário, mas também saber abrir mão dele. É saber da responsabilidade que implica estar com o anel e da humildade de entender que não se pode tê-lo todo o tempo ou usar dele para fazer o que bem entender.
A política é a arte de fazer bom uso do anel. É a arte de fazer uso dos vários discursos para governar. O bom político é aquele que não se fixa em uma determinada posição discursiva. Sabe quando chamar a liderança para si e quando delega-la. Sabe que tomar uma decisão implica em responsabilizar-se e saber sobre ela, mas, sobretudo, em negociar, ceder poder, escutar o saber do outro, recuar de suas próprias certezas e convicções, ainda que temporariamente, ainda que a contragosto. Quem acha que um bom governante é aquele que vai fazer tudo o que disse que iria fazer na época da eleição não entendeu nada de política. Bom político é aquele que conseguirá negociar o que prometeu da melhor maneira possível. Na política é necessário compreender profundamente a metáfora: “vão-se os anéis, ficam os dedos”.
É por isso que a boa governança não se faz apenas com bons administradores. Bons administradores podem ser inteligentes, corretos e muito bem intencionados. Podem saber muito sobre teorias e técnicas de gestão, podem ter condições de assumir posições de liderança e comando, mas se não souberem fazer política, sofrerão amargamente.
Uma crise política
Engana-se quem acredita que a crise que vivemos atualmente no Brasil é econômica. Aqui dentro, nossa crise é eminentemente política, mas, tem servido de combustível para alimentar uma crise econômica que é mundial. Não tenho motivo nenhum para duvidar da capacidade administrativa, da dedicação ao trabalho, da boa intenção e da integridade moral e ética da presidenta Dilma, mas tem faltado a ela uma coisa fundamental para o cargo que assumiu: habilidade política.
Em seu segundo mandato, Dilma conseguiu o feito improvável de desagradar os que estavam a seu favor e os que estavam contra, os que estavam à sua direita e os que estavam à sua esquerda. Economicamente falando, tomou as diretrizes que seu oponente nas eleições disse que tomaria (desagradando grande parte de seu eleitorado) sem, no entanto, conseguir receber os aplausos daqueles que derrotou nas urnas. Por que isso foi possível? Porque o maior desafio de um governante não está, exatamente, no sucesso das decisões que vai tomar, mas, sobretudo em quantas pessoas, instituições, partidos, redes, organizações, coletivos, instâncias e movimentos ele conquistará para fazer com que sua decisão tenha sucesso. Na política, o sucesso nunca vem antes, vem depois. Na política, o sucesso não está no ato em si, é diretamente proporcional ao tamanho da força que se aglutinou a ele. Todo ato político, para ter sucesso, precisa ser o ato de muitos. É por isso que o pior que pode acontecer a um político é o seu isolamento.
A histeria quer impeachment
Um dos reflexos da inabilidade política de Dilma é a histeria generalizada que ganhou as redes sociais, as conversas do dia a dia, as sacadas da classe média e as ruas. Tal histeria – não se enganem – não é resultado das denuncias de corrupção e da tão falada crise, afinal, já vivemos dias muito piores nos dois aspectos (quem não sabe disso não viveu aqui nos últimos 30 anos ou sofre de amnésia grave). Então, o que significa tamanha histeria? Lacan dizia que a histeria quer é “um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina e ele não governa". Traduzindo para o Brasil de hoje: a histeria quer impeachment.
Entretanto, uma das habilidades do bom governante é conseguir evitar que a posição queixosa e querelante própria dos governados se fixe num discurso histérico sintomático, imaturo e vazio. Para escapar do discurso da histeria, só resta ao mestre (foi Freud quem nos ensinou isso) esvaziar-se da sua condição de mestria. Diante deste mesmo impasse outros governantes que tivemos, simplesmente abdicaram do seu lugar, de diferentes modos. Dilma já afirmou que não irá usar desse recurso, e é bom que seja assim. É bom que tenhamos alguém com coragem para suportar e sustentar este lugar numa condição política tão adversa. Entretanto, isso por si não resolve o impasse que está posto para este governo. Ainda assim, Dilma precisa esvaziar um pouco seu lugar para que a histeria não se sinta tão impelida em desbanca-la. É assim que funciona: quanto mais o mestre se impõe e se endurece, mais a histeria aumenta na tentativa de esvaziá-lo.
Então qual a saída para Dilma? Dilma precisar esvaziar um pouco seu lugar, flexibilizar-se, permitir-se, abrir-se para o outro, admitir suas próprias limitações. Outro dia alguém sugeriu a presidenta: erotize-se, e isso foi interpretado como uma sugestão de que ela estivesse precisando de sexo. Erotizar-se não tem nada a ver com fazer sexo, erotizar-se é abrir-se ao outro, se mobilizar em direção ao outro. Erotizar-se é acreditar que o outro possa ter algo que eu não tenho. Na verdade ninguém tem essa coisa que todos procuramos, mas sempre que procuramos essa coisa juntos estamos fazendo laço, ou seja, estamos fazendo política.
Resumindo: ou Dilma aprende a fazer política (o que pode significar admitir sua inabilidade neste aspecto para buscar alguém que faça isso junto com ela) ou está fadada ao fracasso.
Há rumores de que Lula foi convidado para assumir a articulação política do governo, com o recuo de Temer desta função. Podem-se fazer mil críticas ao Lula, mas ninguém pode negar sua habilidade para fazer política. Muitos não entenderam e não entendem, mas o sucesso do governo Lula não se deu exatamente pelo acerto nas suas decisões, mas pela sua capacidade de aglutinar forças que pudessem fazer com que um projeto de Brasil possível pudesse acontecer. Obviamente que o possível na política, não é o ideal.
E retomando o início no texto, o imbróglio da esquerda é que ela mora sempre no campo do ideal. Mas o desafio da política é fazer o ideal tornar-se possível através do trabalho de ligação e aglutinação de forças numa mesma direção.
A extrema direita, a extrema esquerda e a criminalização da política
Não por acaso vemos duas forças surgindo a partir dessa nossa crise política: a extrema direita e a extrema esquerda. Vale lembrar que ambas são dois lados da mesma moeda. As duas querem acabar com a crise de liderança por meio de um pulso forte que diga: “acabou essa bagunça, agora vai ser do jeito que eu mandar”. A extrema direita quer intervenção militar e a extrema esquerda quer intervenção armada do proletariado. Em ambos os casos abrimos mão da política para fazer uso da força. Não pode dar certo!
Em alguma medida, criminalizar a política, desejar a explosão do Congresso Nacional, a morte de todos os políticos ou coisa parecida, também é flertar com a abdicação da política como modo de governar. Mas é preciso ter clareza de uma coisa. Se a saída por meio política tem sido especialmente difícil e frustrante para nós brasileiros, sem a política não há saída alguma.
domingo, 21 de junho de 2015
O que a “treta” Boechat x Malafaia diz de nossos tempos sob a égide da moral politicamente correta ou sobre porque todos nós poderíamos “procurar uma rola”.
por Rita Almeida
Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar. Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras, a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha, nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa casa.
Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em dar conta do real.
O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se consume. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, porque foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta, que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo.
Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a resposta para todas as nossas mazelas.
Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto, toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM (inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço, produzindo discurso.
Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a todos a fim de evitar o mal-estar.
Esta perseguição desenfreada por um ideal de linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É obvio que se estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente. Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus caros! Não somos unívocos!
Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou notícia ao fazer uma intervenção inflamada contra o Pastor Silas Malafaia e seu já tradicional discurso de ódio. Em programa ao vivo na rádio BandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação de Malafaia no tuíter e o aconselha a “procurar uma rola”.
As manifestações na internet foram imediatas e junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos também os que denunciaram a própria fala do jornalista como machista e homofóbica. “Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.
É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção, dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse sentido ela não se dispõe a silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao invés de eliminá-lo.
Já proposta do discurso politicamente correto é silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas diferenças e que evite os conflitos.
Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, este tipo de discurso consegue apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitário temos medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns dos outros ou criarmos uma tendência muito comum nas redes sociais que é a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças, nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de Chalie Hebdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou mal-entendido.
Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra os mal-estares da linguagem. É obvio que podemos destacar o equívoco na fala de alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de conforto.
Mas o que a polícia politicamente correta pretende é tentar evitar o equivoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.
Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta Universal para todas as situações semelhantes.
O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz “procurar uma rola” poderia lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola” neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo é necessário admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria castração aceita a do outro também.
Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para “procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, só me resta repetir o conselho de Boechat: - Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria muito bem a você assim como pode fazer muito bem a qualquer um de nós.
Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar. Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras, a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha, nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa casa.
Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em dar conta do real.
O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se consume. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, porque foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta, que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo.
Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a resposta para todas as nossas mazelas.
Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto, toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM (inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço, produzindo discurso.
Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a todos a fim de evitar o mal-estar.
Esta perseguição desenfreada por um ideal de linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É obvio que se estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente. Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus caros! Não somos unívocos!
Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou notícia ao fazer uma intervenção inflamada contra o Pastor Silas Malafaia e seu já tradicional discurso de ódio. Em programa ao vivo na rádio BandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação de Malafaia no tuíter e o aconselha a “procurar uma rola”.
As manifestações na internet foram imediatas e junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos também os que denunciaram a própria fala do jornalista como machista e homofóbica. “Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.
É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção, dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse sentido ela não se dispõe a silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao invés de eliminá-lo.
Já proposta do discurso politicamente correto é silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas diferenças e que evite os conflitos.
Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, este tipo de discurso consegue apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitário temos medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns dos outros ou criarmos uma tendência muito comum nas redes sociais que é a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças, nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de Chalie Hebdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou mal-entendido.
Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra os mal-estares da linguagem. É obvio que podemos destacar o equívoco na fala de alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de conforto.
Mas o que a polícia politicamente correta pretende é tentar evitar o equivoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.
Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta Universal para todas as situações semelhantes.
O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz “procurar uma rola” poderia lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola” neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo é necessário admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria castração aceita a do outro também.
Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para “procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, só me resta repetir o conselho de Boechat: - Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria muito bem a você assim como pode fazer muito bem a qualquer um de nós.
domingo, 17 de maio de 2015
18 de maio: Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Sobre os muros que ainda precisamos derrubar
Semanas atrás eu soube que a maneira mais rápida de fazer um ovo apodrecer é envernizando-o. A explicação é a seguinte: o ovo, apesar de parecer um sistema fechado, não é. O ovo é totalmente poroso, o que faz dele um sistema completamente permeável ao mundo externo, ou seja, o que está dentro da casca se comunica com o que está fora e é isso que mantém sua saúde, digamos. É por isso que um ovo dura, sem apodrecer, até 15 dias fora da geladeira. Entretanto, se você cobre sua casca com verniz, impede a comunicação do que está dentro do ovo com o mundo externo e ele apodrece em algumas horas.
O resultado de tal experiência se dá por causa de um princípio da biologia que rege todos os sistemas. Segundo tal princípio todo sistema fechado tende a uma maior entropia, ou seja, tende a uma perda progressiva de energia, o que leva a morte daquele sistema. Por outro lado, todo sistema aberto é autossustentável, na medida em que é capaz de buscar energia do ambiente externo e assim, atingir as condições de estabilidade necessárias para a sustentação da vida.
Não é difícil transpor este princípio da biologia para explicar o que tem acontecido com os hospitais psiquiátricos brasileiros nas últimas décadas. É fácil entender que o que aconteceu com tais estabelecimentos – sistemas fechados por estrutura – foi exatamente a perda de energia e de vitalidade internas, que provocaram o seu adoecimento, seu apodrecimento e sua morte.
É fato que os muros dos nossos manicômios foram descontruídos de fora para dentro pelo movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ainda em curso, mas depois de saber sobre esta experiência com o ovo, estou certa de que os hospícios também morreram de dentro para fora. Antes que quebrássemos sua casca já estavam apodrecidos por dentro.
O desafio que temos hoje ao pensar nossos dispositivos de saúde mental, portanto, é o de sustentarmos sistemas abertos, permeáveis, arejados, comunicantes. Os serviços que inventamos para substituir o modelo manicomial – CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e quaisquer outros – precisam estar avisados de que estar aberto ao mundo externo e suas vicissitudes, se faz fundamental para a saúde dos mesmos e daqueles que lá estão sob nossos cuidados. Se não estivermos atentos a isso corremos o risco que envernizar nossos serviços, acreditando que ao fazê-lo estamos protegendo-os ou lhes oferecendo um cuidado extra. Impermeabilizar nossos serviços, todavia, é condená-los a morte.
Mas apesar de tudo que fizemos para descontruir a arquitetura manicomial, muitas vezes ainda mantemos a mesma mentalidade manicomial de antes. Quando acreditamos, por exemplo, que oferecer cuidados é sinônimo de fechar, trancar, prender. O que se impõe a nós, portanto, é um desafio tremendo: Cuidar sem fechar. Proteger sem trancar. Acolher sem prender. E as estratégias para cumprir tais desafios são bem mais difíceis que as de outrora. Obviamente que era muito mais fácil, pelo menos para nós cuidadores e profissionais da saúde mental, quando tínhamos a chave da porta.
Entretanto, quem escolheu trabalhar no campo da saúde mental pelo modo não manicomial não está à procura de caminhos fáceis. O que queremos são os caminhos melhores e mais humanos, em geral, bem mais difíceis de pensar e articular. Queremos aqueles caminhos que permitam que a gente siga juntos, se esbarrando por aí nesse mundo, que tem lá suas mazelas e perigos, mas que é lindo, porque é vivo e cheio de energia. Ninguém, mesmo aquele sob o tormento da loucura extrema, deseja apodrecer dentro de um ovo. Aliás, todos os esforços dos nossos queridos, que chamamos pacientes, são para ficarem melhores, mais saudáveis, menos atormentados. Desejam saúde, e é o que nós também desejamos.
Sendo assim, cuidemos para que nossos serviços sejam os mais abertos possíveis, cada vez mais capazes de colher a vitalidade e a energia do seu ambiente, do seu território. A força dos novos dispositivos que inventamos, precisamos entender, não está na força de sua arquitetura ou na sua capacidade de proteger e guardar, pelo contrário, está na sua permeabilidade, na sua flexibilidade e nos seus buracos abertos para exterior. O mundo externo, nesse caso, não serve para nos contaminar ou amedrontar, na verdade é o que nos mantém saudáveis e vivos.
Recentemente tivemos um pedido inusitado numa assembleia do CAPS Leste – onde eu trabalho – um familiar solicitava que fechássemos o portão do serviço para evitar que os pacientes ficassem à mercê dos perigos da rua. É interessante que quando os manicômios foram inventados a justificativa era a de que era necessário proteger os cidadãos dos chamados loucos, ou proteger os loucos de si mesmos. A loucura era enclausurada quando oferecia risco para si e para terceiros. Interessante que o pedido agora venha no sentido inverso. O portão deve ser fechado porque o mundo lá fora é que oferece riscos às pessoas com problemas mentais. Ao que parece, esse desejo de manicômio tende a sempre a retornar quando se trata de lidar com o sofrimento mental. Seja pelo lado de fora ou pelo lado dentro, “fechar portas” ainda é visto como uma opção possível nesse campo de intervenção.
Mais uma vez comemoramos no 18 de maio, o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Há quem diga que não há mais motivo para levantarmos bandeiras já que a Reforma Psiquiátrica está num curso sem volta. Eu não penso assim, porque o desejo de manicômio ainda se faz presente. Mesmo que seu aparato arquitetônico esteja quase todo desmontado, ainda escorregamos em intervenções com este modelo. Nossa sociedade ainda fica seduzida com instituições que isolam e cerceiam a liberdade como resposta para nossos mal-estares, individuais ou sociais. Basta olhar para as prisões, para os argumentos que defendem a redução da maioridade penal, para as demandas de tratamento para pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas.
A nossa ilusão com os sistemas fechados ainda persiste, por isso, é importante fazer circular a ideia de que tais sistemas, se é que já não estão podres, não irão se sustentar por muito tempo sem apodrecer. E avisados disso, neste 18 de maio, precisamos radicalizar ainda mais a experiência de abertura de nossos serviços de saúde mental para o mundo, para o nosso território, para a rede. Afinal, derrubar muros para auxiliar as pessoas a fazer laço continua sendo a nossa mais importante missão.
quarta-feira, 22 de abril de 2015
Minhas impressões sobre “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty. PARTE III
O livro se baseia no resultado de uma pesquisa histórica sobre as rendas e os patrimônios de vários países do mundo, a relação disso com a desigualdade social e a distribuição da riquezas. Piketty faz um trajeto de pesquisa com informações colhidas da Belle Époque até o início do século XXI.
Todos os dados levantados por Piketty demonstram que a herança é, de longe, o fator mais determinante para o enriquecimento, tanto que, taxação das grandes fortunas e imposto sobre a herança, são algumas de suas propostas para caminharmos em direção a um mundo economicamente mais justo.
Piketty cita duas grandes fortunas da atualidade para exemplificar: Bill Gates – conhecido fundador da Microsoft – e Liliane Bettencourt – herdeira da Loreal. Entre 1990 e 2010 Bill Gates multiplicou sua fortuna de 4 bilhões para 50 bilhões de dólares. Liliane Bettencourt, no mesmo período, viu a fortuna que herdou do pai passar de 2 bilhões para 25 bilhões de dólares. Isso resulta numa progressão média de mais de 13% ao ano para ambas as fortunas, mesmo que no caso de Bettencourt ela jamais tenha trabalhado. Isso posto, temos que “uma vez lançada a fortuna, a dinâmica da riqueza segue sua lógica própria e um capital pode continuar avançando a um ritmo sustentado por décadas apenas por conta do seu tamanho” (p. 429)
Piketty aproveita para citar a crítica ostensiva que a Europa fez à fortuna feita por Lakshumi Mittal, indiano dono da Acelor e por Teodorim Obiang filho do ditador da Guiné Equatorial (aquele que financiou o desfile de carnaval da Beija Flor em 2014). Piketty afirma não ter dúvida de que as críticas que se fez e faz à riqueza desses dois sujeitos se deve muito mais a cor da sua pele do que exatamente pelos meios pelos quais enriqueceram. Ele afirma que a propriedade privada é um pouco menos sagrada que se diz, quando assim se deseja. E que também em Paris ou em Londres não seria difícil encontrar outras fortunas feitas a partir da exploração privada de recursos naturais, ou por meios ilícitos, mesmo que à vista de todos pareçam menos roubo do que no caso de Teodorim, por exemplo. Sendo assim, enquanto os meios judiciais não são suficientes para resolver todos os problemas de fortunas indevidas e ilícitas, então o imposto sobre o capital permitiria dar a essa questão um tratamento mais justo, sistemático e pacífico.
O autor levanta outro problema gravíssimo que precisa ser enfrentado se quisermos uma sociedade mais justa. Todos sabemos que uma das coisas que determina a saúde financeira de um país é a quantidade de dinheiro que entra nele para se transformar em riqueza. A princípio, a dinâmica simplificada seria a seguinte: teríamos os países ricos que têm mais entrada do que saída de riqueza e os países pobres, num caminho inverso, que têm mais saída de riqueza do que entrada. Nesse sentido, nossa grande preocupação seria que os países ricos terminem por possuir cada dia mais os países pobres.
No entanto, Piketty revela um dado assombroso e que, segundo ele, tem se agravado cada vez mais nos últimos anos. Ele afirma que todos os países, em menor ou maior escala, apresentam balanço negativo, ou seja, todos estão perdendo riqueza. Como essa tese é financeiramente impossível, ele sugere, ironicamente, que seja Marte quem esteja adquirindo a riqueza perdida por todos os países do nosso planeta.
Mas obviamente que não é Marte quem está recebendo esta riqueza que se estima ser de 10% a 30% do PIB mundial. Os paraísos fiscais são os destinatários dessa riqueza que os entes privados estão sorrateiramente extraindo de seus países e, obviamente, minando destes sua capacidade de manter um nível de bem estar social – responsabilidade do poder público desses países. Isso quer dizer que as diferenças de riquezas oligárquicas (privadas) é infinitamente mais problemática que as diferenças de riqueza entre países, além de ser muito mais difícil de combater, afinal, demandaria união de países que, em geral, estão acostumados a competir.
A partir de seus estudos o autor propõe, obviamente, algumas saídas para que caminhemos em direção a uma sociedade menos desigual, sem que precisemos de guerras ou grandes revoluções. Além do imposto sobre o capital e herança, Piketty reforça a importância de um “Estado Social”, capaz de oferecer a seus cidadãos um aporte mínimo de saúde e educação públicas, além de um sistema eficiente de previdência. Ou seja, o autor não aposta na redução do tamanho do Estado, ao contrário, por outro lado aposta na sua modernização, como veremos adiante. Outra estratégia que ele acredita ser simples e fundamental para uma justiça social é possibilitar que todos sejam proprietários de sua própria residência. Esta é uma forma efetiva de reduzir o poder das heranças imobiliárias (ninguém precisaria alugar uma casa para morar) ao mesmo tempo em que protege o trabalhador da inflação sobre o aluguel. Piketty avalia que o proprietário de sua própria residência é capaz de obter um retorno real de rendimento de 3 a 4% ao ano.
Para retornar ao assunto do tamanho que o Estado deve ter na economia, parto da afirmação de Piketty de que a crise de 2008 foi a responsável pelo retorno do Estado. Segundo ele, a crise de 2008 só não reproduziu uma depressão grave como a de 1929 porque o Estado interviu nos sistemas financeiros. Por outro lado, a crise de 1929, apesar de levar o mundo à beira do abismo, teve o mérito de provocar mudanças radicais em termos de política fiscal. Permitiu ao presidente Roosevelt, por exemplo, criar uma taxa 80% de imposto para as rendas mais altas. Resumindo, Piketty só comprova aquilo que já suspeitávamos: a economia capitalista advoga pelo Estado Mínimo e pelo mercado livre até que isso seja do seu interesse, pois, diante do abismo recorre à intervenção do Estado.
Piketty não tem dúvidas sobre importância do Estado para intervir nas contradições e sandices do capitalismo financeiro, por outro lado entende que o Estado, ao atingir determinada proporção e complexidade, apresenta sérios problemas de organização, eficácia e inteligibilidade. Sendo assim ele defende que ambas as posições: antimercado e anti-Estado tem sua parte de verdade. Isso posto, o desafio que se impõe para o futuro é partir dessas duas verdades, a princípio inconciliáveis. Desse modo, acredita que o Estado não deve ser desmantelado, mas sim, transformado, modernizado e descentralizado. Defende que uma das saídas seja que a produção dos serviços ofertados pelo Estado possa executada por outras vias que não apenas a via direta. Além disso, entente que para o futuro novas formas de organização e propriedade estão para ser inventadas.
A arrecadação justa de impostos é, segundo Piketty, uma das melhores maneiras de reduzir as desigualdades. O desenvolvimento de um Estado fiscal e social é fundamental para o futuro do planeta. O objetivo é melhor dividir a riqueza já existente, na medida em que chegamos num limite ecológico que nos impossibilita de fazer a riqueza crescer mais. A aquisição deste Estado fiscal e social é o que, segundo seus estudos, tem atuado minimizando os efeitos da desigualdade para os mais desprotegidos socialmente.
A Europa, por exemplo, mantém um índice de arrecadação pública da ordem de 45 a 50% da renda nacional, chegando a uma arrecadação de 55% na Suécia. Esses são percentuais mínimos aceitáveis para a promoção de razoável bem estar social da população, segundo ao autor. Todas as experiências históricas sugerem que com 10 ou 15% de receita fiscal seja suficiente apenas para manter polícia e justiça, não sobrando nada para saúde e educação. Os EUA possui um nível de arrecadação fiscal da ordem de 30%, mas é importante lembrar que nesse país o sistema de saúde e a educação superior - em geral, os mais caros para o Estado - são eminentemente privados.
Encerro esta parte com uma citação que denota a importância que o autor dá para o imposto:
“O imposto não é uma questão apenas técnica, mas eminentemente política e filosófica, e sem dúvida a mais importante de todas. Sem impostos a sociedade não pode ter um destino comum e a ação coletiva é impossível”.
(texto em construção, em breve publico a IV e última parte)
quarta-feira, 15 de abril de 2015
Minhas impressões sobre “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty. PARTE II
O livro se baseia no resultado de uma pesquisa histórica sobre as rendas e os patrimônios de vários países do mundo, a relação disso com a desigualdade social e a distribuição da riquezas. Piketty faz um trajeto de pesquisa com informações colhidas da Belle Époque até o início do século XXI.
No final do primeiro terço do livro Piketty trata com mais cuidado das contradições do capitalismo. Segundo ele “o capital em excesso mata o retorno do capital”, ou seja, à medida que o estoque acumulado do capital aumenta sua produtividade diminui. Exemplificando: se um produtor agrícola tem a sua disposição milhares de hectares de terra, o rendimento adicional resultante do acréscimo de 1 hectare ao que ele já possui é muito limitado. Mas se este mesmo hectare for colocado a disposição de um produtor que tenha apenas 1 hectare de terra, o rendimento adicional proporcionará um adicional de capital muito mais elevado. Ou seja, a distribuição de capital e riqueza é importante até mesmo para a sobrevivência do capital.
A partir deste entendimento é bastante compreensível o efeito em cadeia que R$ 240,00 – valor médio do bolsa família – produziu na economia brasileira nos últimos anos. Enquanto R$ 240,00 não faria quase nenhuma diferença para as classes mais privilegiadas, faz e fez muita diferença para as classes mais pobres, mas não apenas para elas, mas para toda a economia brasileira, porque fez girar e dinamizar o capital.
Segundo Piketty a concentração de riqueza atual atingiu níveis insustentáveis, e ele acredita que seja difícil que a população aceite tal nível desigualdade por muito tempo. O autor afirma ainda que manter um nível de desigualdade como o que temos hoje no mundo, se sustenta sim, pela eficácia do aparato repressivo, mas, sobretudo, pela eficácia das diversas justificativas que se arranja para ela. A meritocracia seria, portanto, uma dessas justificativas; os mais ricos são ricos porque escolheram trabalhar mais e de forma mais competente. Outra justificativa muito usada é que impedir os mais ricos de ficarem mais ricos é prejudicar os pobres que dependem dele. Mas obviamente que esses dois exemplos são meras justificativas ideológicas, já que, pela pesquisa de Piketty não se sustentam.
Já caminhando para o final da terceira parte do livro Piketty escreve um parágrafo que seria um pecado não reproduzir literalmente:
“A racionalidade econômica e tecnológica nada tem a ver com a racionalidade democrática. O iluminismo engendrou a democracia, e é muito comum pensar que a economia acompanharia essa lógica democrática naturalmente, como que por encantamento. Ora, a democracia real e a justiça social exigem instituições específicas, que não são apenas as do mercado e também não podem ser reduzidas às instituições parlamentares e democráticas formais.” (p.413)
Resumindo, a força que alimenta a desigualdade nada tem a ver com uma imperfeição do mercado e não será, portanto resolvida com mercados mais livres e competitivos. A livre concorrência e a meritocracia são ilusões perigosas e mais, a igualdade de direitos e oportunidades não é suficiente para produzir igualdade de riquezas. Sem intervenção política, veremos, não há saída possível.
(texto em construção, em breve publico a PARTE 3)
sábado, 11 de abril de 2015
Minhas impressões sobre o livro: “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty. PARTE I
O livro se baseia no resultado de uma pesquisa histórica sobre as rendas e os patrimônios de vários países do mundo e a relação disso com a desigualdade social e a distribuição das riquezas. Piketty faz um trajeto de pesquisa com informações colhidas do final do século XIX até o início do século XXI.
As perguntas que o autor faz são: será que a dinâmica da acumulação do capital privado conduz de modo inevitável a uma concentração cada vez maior da riqueza e do poder em poucas mãos, como acreditava Marx? Ou será que as forças equilibradoras do crescimento, da concorrência e do progresso tecnológico levam espontaneamente a uma redução da desigualdade e a uma organização harmoniosa das classes como pensava Kuznets?
Ao que parece as respostas de Piketty estão mais próximas das previsões de Marx, apesar de pareceram menos drásticas do que o marxismo pregou, mas não por causa das intervenções próprias do capitalismo, como veremos. Segundo Piketty, a promessa de um mundo mais justo, em termos de distribuição de renda, nunca esteve tão distante. Em 2010 os 10% mais ricos possuíam entre 80% e 90% do patrimônio mundial, enquanto que a metade inferior da população divide menos de 5% dessa riqueza.
Piketty conclui ainda que toda a história de distribuição da riqueza no mundo é fundamentalmente política, não sendo explicável por preceitos meramente econômicos como muitos tendem a pensar. Ou seja, a desigualdade é fruto do jogo de forças que se apresenta na sociedade e não o resultado de índices e fatores econômicos. Outra conclusão importante do autor é que as forças que promovem a desigualdade tendem a prevalecer, ou seja, se não há intervenção política, o capital tende a se concentrar de forma cada vez mais intensa e perversa, levando até mesmo o próprio capitalismo a se autodestruir. Ele afirma, por exemplo, que não tem dúvidas de que o aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro americano e contribuir para e eclosão da crise de 2008.
O autor afirma que a democratização do acesso a educação, o desenvolvimento tecnológico da produção, que prometia uma melhoria na qualificação e no valor do capital humano, ou a racionalidade democrática, que prometia um maior acesso das massas de trabalhadores a direitos fundamentais, pouco ou nada fizeram em termos de melhorar a distribuição da riqueza no mundo. Tragicamente ele chega a conclusão com seus dados que, na verdade, foram as guerras as responsáveis pelo retorno ao zero na contagem da acumulação do capital, promovendo o que ele chamou de rejuvenescimento das fortunas, dando a ilusão de uma superação estrutural das contradições do capitalismo. Em outras palavras, nada foi mais eficaz do que as guerras para minimizar o efeito da desigualdade no mundo e, consequentemente, para mascarar as contradições do capitalismo.
Outra ilusão que ele coloca em cheque é a de que o crescimento econômico possa solucionar o problema das desigualdades, na medida em que ele é responsável por uma melhoria em tais índices, assim como aconteceu no Brasil recentemente, especialmente nos governos Lula. É aquela ideia de que aumentar o bolo melhora a qualidade de sua divisão, o que é verdade, no entanto, trata-se de uma estratégia limitada, pelo próprio limite de crescimento populacional. Vejamos: a taxa de crescimento econômico mundial segundo os dados do livro foi em média 1,6% ao ano entre 1700 e 2012, sendo que, 0,8% deste crescimento foi resultado do crescimento populacional neste mesmo período. Almejamos crescimentos de 4% e 5% como soluções para a redução da pobreza nos países só que esses são índices totalmente ilusórios e impossíveis de se sustentar a longo prazo, segundo Piketty.
Para se ter uma ideia apenas 0,8% de crescimento ao ano ao longo de 3 séculos só foi possível porque o mundo passou de 600 milhões de habitantes em 1700, para 7 bilhões em 2012. Para mantermos esse índice de crescimento econômico precisaríamos manter este índice de crescimento populacional, que faria com que em 2300 tenhamos 70 bilhões de pessoas no planeta. Sendo assim, o fôlego que o mundo ganhou de um crescimento de 3% nos últimos anos, especialmente em decorrência dos chamados “países emergentes”, tende a perder o vigor, tal como já está acontecendo no Brasil, porque é impossível de se sustentar a longo prazo. Na verdade, um crescimento considerado parco de apenas 1% ao ano já é insustentável. Resumindo: o crescimento econômico também não é uma saída para a crise do capitalismo.
O autor também desmonta a falácia da meritocracia, que segundo ele serve apenas para dar um sentido para as desigualdades nas sociedades democráticas modernas. A possibilidade de mobilidade social pela via do mérito, do trabalho ou do estudo é uma ilusão que os sistemas democráticos modernos sustentam apenas para justificar suas contradições. Os estudos feitos demonstraram que não existe nada mais determinante na riqueza do que a herança. Os exemplos de superação e ascensão social por mérito são insignificantes em termos estatísticos globais e só servem para sustentar o discurso da meritocracia, além de não produzem nenhum efeito direto na distribuição da riqueza. E com a estagnação do crescimento econômico mundial, que é uma tendência, o fator determinante da herança vai se tornar ainda maior nas próximas décadas, se nada for feito para minimizá-lo.
Outra discussão interessante que ele faz é sobre a questão da inflação. Eu, que não entendo nada de economia, sempre acreditei que a inflação é o demônio seja lá da maneira que se apresente. Mas Piketty traduz a inflação sob outros termos já que ela é capaz de dilapidar as grandes heranças intocáveis, ao criar alguma insegurança para aqueles que vivem de acumular bens e riqueza. Em situações de inflação alta os detentores de grandes posses se vêem impelidos a entrar na dinâmica da produção e do mercado já que, se ficarem apenas a “esconder dinheiro debaixo do colchão” verão sua riqueza se esvair. O que eu entendi é que apesar da inflação ser muito ruim para a classe trabalhadora ela não tem tanto efeito de dilapidação de riqueza como tem para os muito ricos, já que o trabalhador tende a gastar quase que imediatamente suas economias. Entretanto, o autor não concorda com o método da inflação para intervir na desigualdade, apesar de acreditar que exista uma taxa que é necessária e saudável para manter a dinâmica da economia.
(texto em construção, em breve publico a PARTE 2)
domingo, 5 de abril de 2015
Por um novo pacto civilizatório nas redes
Por Rita Almeida
Em algum momento, no inicio da constituição da comunidade humana, tivemos que fazer um pacto civilizatório. Como bem disse Freud, tivemos que recalcar nossos impulsos mais primitivos, perversos e egoístas em nome da convivência coletiva. Então, desde o início, mesmo com todos os equívocos que invariavelmente cometemos na nossa frágil condição humana, temos optado pelo amor, pelos laços que nos unem numa coletividade. Apesar de não sabemos até quando, é assim que nossa espécie tem sobrevivido até então.
Fico pensando que o advento da Internet, especialmente das redes sociais, tem nos colocado diante de uma nova forma de laço social diferente da que estávamos acostumados e daí, talvez, a sua fragilidade. A mediação tecnológica, já percebemos, dificulta a empatia. A comunicação pela escrita tende a ser mais fria. Ficam imperceptíveis a entonação da voz e a linguagem corporal o que faz com que os mal entendidos próprios da linguagem se fixem ainda mais no território do impossível de suportar o outro na sua diferença. Enquanto que o cara-a-cara e o olho-no-olho ou as nuances da voz favorecem a empatia fazendo do outro um semelhante mesmo quando diz algo que me causa mal estar, a impessoalidade de um post ou um tuíto transforma o outro num estranho insuportável. Ou não é verdade que seja totalmente possível e suportável discutir política, religião e outros assuntos difíceis na mesa do bar, na sala de aula ou na reunião de trabalho e totalmente inviável discuti-los nas redes?
Outra coisa que muita gente ainda não se deu conta é que publicar alguma coisa nas redes sociais hoje em dia é enviar uma mensagem para o Planeta inteiro ouvir. Mesmo sentadinhos e protegidos atrás de nossas telas de computador e smartfones, o que dizemos na esfera virtual tem mais transparência, rapidez e capacidade de alcance que qualquer outro modo de comunicação que já foi inventado. Uma publicação irrefletida pode nos levar do constrangimento público ao linchamento virtual.
Isso não quer dizer que as redes sociais e a internet sejam o demônio. Não sou partidária dos melancólicos nostálgicos que sempre temem os novos modos de existência. As novas formas de laço inauguradas pelas redes são uma realidade e, possivelmente, vieram para ficar, entretanto, elas estão exigindo de nós um novo pacto civilizatório. E precisamos fazer isso com urgência, sob o risco do esgarçamento do tecido social com a fabricação cada vez maior de guetos: políticos, religiosos, científicos ou ideológicos. Pois, na tentativa de manter um nível suportável de socialização nas redes, nossa saída tem sido o simples descarte do outro.
Enquanto na vida real o exercício de suportar o outro inclui não poder mata-lo, nas redes sociais matar o outro é tarefa simples e limpa, sem qualquer punição. “Unfollow”, “unblock” e “desfazer a amizade” são formas de eliminar o outro da nossa linha do tempo, mecanismos simples e rápidos que temos utilizado para lidar com os diferentes. Diante do impossível de transigir com o outro na sua diferença a saída tem sido apagá-lo simplesmente, nos relacionando apenas com aqueles que pensam como nós. É assim que os guetos das redes vão se constituindo e se fortalecendo, e não havendo discursos contraditórios, suas verdades vão se tornam ainda mais unificadas, fortes e inabaláveis. E ainda, insuflados pelo nosso narcisismo, pelo prazer de encontrarmos pessoas parecidas conosco e que pensam como nós, nos fechamos cada vez mais em nossos grupelhos com suas verdadezinhas inabaláveis.
Como já dizia o poeta: “toda unanimidade é burra”. E eu completo: todo fundamentalismo é perigoso. Nada é mais perigoso do que um grupo de pessoas munidas de verdades compartilhadas e inabaláveis.
Sendo assim, é urgente que façamos um novo pacto civilizatório para as redes. Precisamos resgatar a humanidade, nossa e do outro, por traz de um post. Precisamos cuidar do que postamos para não destruir pessoas, reforçar mentiras ou contribuir para linchamentos. Precisamos entender que um post é apenas um recorte de um sujeito, não diz tudo sobre ele. Precisamos aprender a suportar a diferença, escutar o contraditório, debater sem atacar. Escutar.
A política do amor, aquilo que nos enlaça enquanto espécie humana é o que nos tem sustentado. O amor é um ato político, sem o qual já teríamos sucumbido. O salto evolutivo que precisamos nesses tempos, talvez seja, levar a política do amor também para as redes.
Em algum momento, no inicio da constituição da comunidade humana, tivemos que fazer um pacto civilizatório. Como bem disse Freud, tivemos que recalcar nossos impulsos mais primitivos, perversos e egoístas em nome da convivência coletiva. Então, desde o início, mesmo com todos os equívocos que invariavelmente cometemos na nossa frágil condição humana, temos optado pelo amor, pelos laços que nos unem numa coletividade. Apesar de não sabemos até quando, é assim que nossa espécie tem sobrevivido até então.
Fico pensando que o advento da Internet, especialmente das redes sociais, tem nos colocado diante de uma nova forma de laço social diferente da que estávamos acostumados e daí, talvez, a sua fragilidade. A mediação tecnológica, já percebemos, dificulta a empatia. A comunicação pela escrita tende a ser mais fria. Ficam imperceptíveis a entonação da voz e a linguagem corporal o que faz com que os mal entendidos próprios da linguagem se fixem ainda mais no território do impossível de suportar o outro na sua diferença. Enquanto que o cara-a-cara e o olho-no-olho ou as nuances da voz favorecem a empatia fazendo do outro um semelhante mesmo quando diz algo que me causa mal estar, a impessoalidade de um post ou um tuíto transforma o outro num estranho insuportável. Ou não é verdade que seja totalmente possível e suportável discutir política, religião e outros assuntos difíceis na mesa do bar, na sala de aula ou na reunião de trabalho e totalmente inviável discuti-los nas redes?
Outra coisa que muita gente ainda não se deu conta é que publicar alguma coisa nas redes sociais hoje em dia é enviar uma mensagem para o Planeta inteiro ouvir. Mesmo sentadinhos e protegidos atrás de nossas telas de computador e smartfones, o que dizemos na esfera virtual tem mais transparência, rapidez e capacidade de alcance que qualquer outro modo de comunicação que já foi inventado. Uma publicação irrefletida pode nos levar do constrangimento público ao linchamento virtual.
Isso não quer dizer que as redes sociais e a internet sejam o demônio. Não sou partidária dos melancólicos nostálgicos que sempre temem os novos modos de existência. As novas formas de laço inauguradas pelas redes são uma realidade e, possivelmente, vieram para ficar, entretanto, elas estão exigindo de nós um novo pacto civilizatório. E precisamos fazer isso com urgência, sob o risco do esgarçamento do tecido social com a fabricação cada vez maior de guetos: políticos, religiosos, científicos ou ideológicos. Pois, na tentativa de manter um nível suportável de socialização nas redes, nossa saída tem sido o simples descarte do outro.
Enquanto na vida real o exercício de suportar o outro inclui não poder mata-lo, nas redes sociais matar o outro é tarefa simples e limpa, sem qualquer punição. “Unfollow”, “unblock” e “desfazer a amizade” são formas de eliminar o outro da nossa linha do tempo, mecanismos simples e rápidos que temos utilizado para lidar com os diferentes. Diante do impossível de transigir com o outro na sua diferença a saída tem sido apagá-lo simplesmente, nos relacionando apenas com aqueles que pensam como nós. É assim que os guetos das redes vão se constituindo e se fortalecendo, e não havendo discursos contraditórios, suas verdades vão se tornam ainda mais unificadas, fortes e inabaláveis. E ainda, insuflados pelo nosso narcisismo, pelo prazer de encontrarmos pessoas parecidas conosco e que pensam como nós, nos fechamos cada vez mais em nossos grupelhos com suas verdadezinhas inabaláveis.
Como já dizia o poeta: “toda unanimidade é burra”. E eu completo: todo fundamentalismo é perigoso. Nada é mais perigoso do que um grupo de pessoas munidas de verdades compartilhadas e inabaláveis.
Sendo assim, é urgente que façamos um novo pacto civilizatório para as redes. Precisamos resgatar a humanidade, nossa e do outro, por traz de um post. Precisamos cuidar do que postamos para não destruir pessoas, reforçar mentiras ou contribuir para linchamentos. Precisamos entender que um post é apenas um recorte de um sujeito, não diz tudo sobre ele. Precisamos aprender a suportar a diferença, escutar o contraditório, debater sem atacar. Escutar.
A política do amor, aquilo que nos enlaça enquanto espécie humana é o que nos tem sustentado. O amor é um ato político, sem o qual já teríamos sucumbido. O salto evolutivo que precisamos nesses tempos, talvez seja, levar a política do amor também para as redes.
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
Denuncias de corrupção na Petrobras: eu escolho saber
Meu sogro - queridíssimo – dizia, antes de partir deste mundo, que tinha uma saúde ótima até começar a frequentar médicos.
- Esse negócio de ir ao médico acabou com minha saúde – me disse certa vez.
Obviamente que ele dizia isso em tom de brincadeira, mas não sem uma certa dose de sarcasmo. Talvez, já no fim, imaginasse como teria sido viver o resto de sua vida na ignorância, sem saber sobre a doença que o fez enfrentar rotinas de tratamento tristes, desgastantes e até desumanas.
Mas ao contrário do meu sogro, esta lógica invertida é utilizada por muita gente, não como chiste, mas por ignorância e, muitas vezes ainda, por má fé. Vejamos o caso relativo às denuncias de corrupção sobre a Petrobras. Diante do escancarar do diagnóstico que corrói a estatal, certamente há muitos anos, define-se que a causa de todo mal é o fato dele ter se tornado público, ao menos desta vez. Nesse caso, o responsável pela doença só pode ser, claro, o atual governo. Eu não vou tecer um rosário de teorias da conspiração para tentar explicar porque somente agora tal diagnóstico foi colocado na mesa. Prefiro acreditar que estamos dando passos largos em direção ao combate à doença da corrupção no âmbito geral, como uma mudança de cultura, e não apenas para este governo em particular.
Vale lembrar ainda que a doença da corrupção é a mesma que degenera todas as grandes corporações, e não apenas as públicas. A corrupção segue o dinheiro (público ou privado) aonde quer que ele vá. “Siga o dinheiro” é a recomendação básica para se investigar qualquer ato de corrupção. Sendo assim, outro equívoco comum ao tratar o tema é acreditar que ele seja um defeito intrínseco das empresas públicas, como se as empresas e corporações privadas fossem imunes a este mal. Não são! Todas as grandes crises do capitalismo financeiro, por exemplo, tiveram como atores importantes bancos, corporações e empresas do setor privado. Desvios, fraudes, má gestão, promiscuidade, operações de risco, calote, são alguns dos eufemismos utilizados para nomear a corrupção quando ela acontece no campo privado. Ah! – vocês podem dizer – mas a corrupção no âmbito privado só traz prejuízo ao campo privado! Ah é? Me digam então quem foram os reais prejudicados na quebra do Lehman Brothers nos EUA em 2008? Me digam quem foi que pagou a conta da crise mundial desencadeada por este evento? Os donos deste banco com certeza é que não foram...
Mas há sim uma diferença descomunal entre a corrupção na esfera pública e a corrupção na esfera privada. É que, ao contrário do que a grande maioria imagina, é apenas na esfera pública que ela se torna realmente visível. No campo privado, a putrefação (sinônimo de corrupção) só é percebida quando o cadáver já se instalou. A maquiagem financeira e o manejo de dados e informações são muito menos visíveis, muito mais fáceis de esconder em empresas privadas, por razões óbvias. É fácil exemplificar. Esconda uma bolsinha de moedas no seu quarto e esconda a mesma bolsinha numa praça pública da sua cidade. Se sua intenção for a de que ninguém encontre as moedas, onde haverá menor risco?
Por isso, neste momento no qual a Petrobras se encontra fragilizada – talvez muito mais simbolicamente do que de fato – temos que ter muito cuidado com os que se utilizam da lógica invertida que eu citei no início do texto. Cuidado com os que gostam de defender a tese de que a Petrobras era um poço de virtudes até começarem a pipocar as atuais denuncias. E que se foi neste governo que tudo veio a tona, então, o problema só pode ser este governo ou o fato da empresa ser gerenciada por um governo. Seguindo tal raciocínio torpe, as soluções para o problema só poderiam ser duas: suspender este governo ou defender que a Petrobras não seja gerenciada por nenhum governo; seja privatizada.
Como eu disse antes, não sei por que todos esses malfeitos vieram à tona agora. Alguns vão dizer que é pelo fato das falcatruas estarem beneficiando outros que não aqueles que, tradicionalmente, mamavam na estatal; como se isso fizesse alguma diferença. Outros vão dizer que é por que agora a corrupção atingiu níveis insustentáveis, era uma pequena ferida e agora é um câncer; como se isso fizesse alguma diferença. O fato é que o governo e nós todos, já que a Petrobras é uma empresa pública, estamos tendo a oportunidade de diagnosticar e tratar a doença que se infiltrou no corpo de um dos nossos maiores patrimônios. Podemos optar por enfrentar este mal de frente, entendendo que só podemos tratar daquilo que somos capazes de ver. Ou podemos preferir não ter enxergado nada isso, ou ainda, defender a privatização e cessar de vez a oportunidade de continuar enxergando.
Eu compreendo profundamente meu sogro, a ignorância pode ser mesmo uma benção. Quem sabe Mas eu ainda prefiro saber. E você?
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Sobre a tragédia do Charlie Hebdo: Humor X Fundamentalismo
Ao ingressar na linguagem o ser humano perdeu para sempre o paraíso. A linguagem como recurso simbólico - nosso instrumento para lidar com o mundo - não é capaz de alcançar o real ou a “coisa em si”, sendo assim, a verdade que alcançamos em qualquer aspecto, será sempre uma meia verdade. Isso quer dizer que no campo da linguagem, qualquer tipo de discurso que se utilize produz alguma espécie de mal-entendido. Em resumo: somos seres condenados ao mal-estar.
Mas o que cada um fará com este mal-estar é diverso e singular. Entretanto, para efeito deste ensaio vou agrupá-los em dois tipos. Há formas discursivas que assumem e acolhem o mal-estar e outras que negam ou rejeitam o mal-estar e que representam, basicamente, duas maneiras de lidar com a verdade. No primeiro grupo estão as formas discursivas que entendem que não existe uma verdade única ou A Verdade, o que existe são meias verdades, ou seja, diferentes maneiras de enxergar uma mesma coisa. No segundo grupo estão as formas discursivas que acreditam que exista um saber universal e imutável. Neste modo de lidar com a realidade acredita-se ser possível se livrar do mal-estar buscando A Verdade; uma única verdade totalizadora capaz de responder todas as questões e, consequentemente, anular todas as diferenças.
No evento ocorrido na França onde religiosos fundamentalistas atacaram o jornal Charlie Hebdo, ao que parece, em retaliação às charges de humor que estes publicavam sobre o Islamismo, temos representantes dessas duas maneiras de lidar com o mal-estar. O humor é uma forma discursiva que acolhe e assume o mal-estar. O humor não nega o mal-estar, pelo contrário, ele sobrevive do mal-estar. Sua intenção é exatamente provocar riso a partir do mal-entendido. Ao avacalhar e desmoralizar o mal-estar, o humor denuncia-o e ao mesmo tempo lhe da leveza, tornando-o acessível ou suportável.
Já o discurso religioso - especialmente no caso das religiões fundamentalistas - tem a pretensão de rejeitar o mal-estar. Acreditam que exista uma verdade totalitária e imutável - exatamente a que professam ou que acreditam - única capaz de dar conta de todo e qualquer mal-estar. A proposta neste caso é: “Aceitem a minha Verdade – a única – e se livrem do mal-estar”. E certos de que estão diante dA Verdade, esses “religiosos” por vezes se tornam capazes de quaisquer atos extremos em nome dela. Em nome desta Verdade Universal pretendem apagar as diferenças, mesmo que para isso precisem fazer uso de medidas violentas.
Jacques Lacan, psicanalista francês, chamou este modo discursivo que tenta encontrar o Todo Saber ou o Saber Universal, de Discurso Universitário. Sua intenção ao levantar tal tema em 1969, era fazer uma crítica ao que a ciência e a própria psicanálise vinham se tornando, especialmente nas Universidades: saberes dogmáticos, engessados e duros.
Sendo assim, o fundamentalismo ou dogmatismo não é privilégio das religiões, apesar de ficar mais obvio enxergar nelas este tipo de visão de mundo. Há fundamentalismos erigidos em nome da ciência e da psicanálise. Há fundamentalismos nos movimentos sociais e políticos. Há fundamentalismos no discurso ecológico e no feminista. E há fundamentalismos de esquerda e de direita.
Leonardo Pandura, no livro O Homem que Amava Cachorros, narra os últimos dias do revolucionário russo Leon Trotsky e parte do desenrolar da revolução comunista na Europa. O que mais me chamou a atenção no livro é de como os ideais da Revolução Comunista e da filosofia Marxista foram transformados num dogma burocrático, tão duro e engessado, como o de qualquer religião fundamentalista. A revolução comunista, que tem como princípio rejeitar o discurso religioso por considerá-lo reacionário, vai se tornando ela mesma, com o caminhar da revolução, um emaranhado de dogmas e burocracias que acabam por pretender o mesmo que qualquer fundamentalismo religioso pretende: perseguir uma verdade única e acabar com todas as diferenças. Trotsky, inclusive, é assassinado por este motivo.
O que quero dizer é que nenhum tipo de saber: científico, político, religioso ou filosófico, está imune ao fundamentalismo. Basta que se pretenda negar o mal-estar, perseguindo uma verdade única e acabando com as diferenças.
Voltando ao caso Charlie Hebdo, podemos até questionar o bom gosto do humor que produziam. Podemos até concluir que suas charges incitaram sim o ódio e a revolta de fundamentalistas religiosos. Mas não podemos de maneira nenhuma acreditar que, por causa disso, não deveriam ter produzido humor que produziram durante todos esses anos. Porque o humor não pode ser covarde, não pode evitar o mal-estar. E por rejeitar uma verdade que seja toda ou um único modo de enxergar o que nos cerca, o humor é sempre revolucionário. Mesmo que seja de mau gosto, mesmo que pise em minorias, mesmo que reforce estigmas, o que o humor tem a seu favor é sempre o fato rejeitar uma verdade única. O humor é capaz de aceitar o mal-estar como parte integrante da vida e das nossas relações, o que é fundamental para arejar o conjunto de verdades que vamos construindo sobre as coisas.
Isso não quer dizer que o humor esteja acima da lei, ou acima do bem e do mal. Se o humor ultrapassa limites legais estabelecidos deve responder e ser responsabilizado por isso, este é o preço que arriscam pagar por evidenciarem o mal-estar, faz parte do jogo. Mas, quando falamos do limite do humor, não é possível pensarmos que tal limite possa ser estabelecido à priori. Se burocratizarmos ou dogmatizarmos o humor, ditando normas e regras para que ele aconteça, iremos mata-lo, pois será mais um discurso cheio de verdades estabelecidas.
Os cartunistas da Charlie Hebdo, possivelmente, preferiram assumir o risco do humor que produziram. Mesmo não achando nenhuma graça de algumas charges que vi circulando por aí (quem sabe influenciada pela tragédia ocorrida) acredito que eles estavam certos em não se acovardarem diante da missão do humor: denunciar verdades únicas e imutáveis, desconstruir visões de mundo estreitas e fundamentalistas, desmontar dogmas e debochar de certezas.
Já temos gente demais vomitando certezas neste mundo. Já temos teorias, instituições, seitas, religiões, regras e livros de autoajuda suficientes para nos dizer como encontrar A Verdade, Verdade essa capaz de acabar com todo o mal-estar que não cessa de se impor sobre nós. Temos gente demais empunhando suas certezas como se fossem armas, e eles não recuam se precisarem atirar. E o humor será sempre um bom antídoto contra isso.
Eu não vou escolher um lado no caso Charlie, porque não tenho conhecimento suficiente da situação para fazê-lo. Não sei se eles foram longe demais, se ultrapassaram algum limite ético ou legal. Eu não sei como vivem as minorias islâmicas na França. E também não acho que empunhar uma caneta seja um ato inocente, e nesse caso, não havia nenhuma pretensão que fosse. Mas se eu tiver que escolher entre o fanatismo religioso ou qualquer outro tipo de fundamentalismo e o humor, eu fico com o humor. Sempre.
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