segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Eu preferia quando a Myriam Rios posava nua

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Já faz algum tempo que uma sensação vem me incomodando: a de que estamos passando por uma espécie de onda conservadora e moralista. Jacques Lacan, em 1969, já previa para os tempos futuros o predomínio do que ele denominava Discurso Universitário – discurso da ciência moderna, religioso-dogmático ou da burocracia – ou seja, o discurso onde tudo precisa ficar muito bem entendido e explicado, sem falhas e sem restos. Discursos onde não há lugar para os conflitos, as divergências ou os mal-entendidos.

Mergulhados nesses discursos a caretice ressurge com força, às vezes com roupagem religiosa, defendendo dogmas fundamentalistas; outras vezes travestida de ciência, explicando a condição humana como um mero conjunto de genes, órgãos e sinapses; ou, até mesmo, cumprindo os exageros da moda politicamente correta. Nesse último caso, me explico melhor aos politicamente corretos de plantão. Acredito que questionar, denunciar e desconstruir termos e linguagens que tragam conteúdos preconceituosos e discriminatórios é totalmente plausível e desejável, mas, cercear, perseguir ou criminalizar o uso desses termos é mera caretice. Mascarar, burocratizar a linguagem, não vai atuar nas nossas concepções preconceituosas.

Enfim, na ultima semana, tive a sensação de que a caretice desembarcou definitivamente entre nós, e “de mala e cuia” – como se diz aqui em Minas –, o que me deixou cheia de desânimo e preguiça intelectual. Soube que o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB) aprovou o projeto de lei, de autoria da Deputada Estadual Myriam Rios (PSD), que institui o "Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, Éticos e Espirituais" em todo o Estado. Não sei do que se trata a lei, mas só o nome me causou arrepios. Arrepios e náusea.

O perigo do discurso burocrata, dogmático ou aprisionado em teorias é que eles sempre são moralistas, ou seja, propõem um modelo universal de conduta, um modo de ser e agir que sirva para todos e que, sobretudo, nos deixe clara a divisão entre o que é certo e o que é errado. Para usar as palavras da deputada ao justificar seu projeto de lei, "sem esse tipo de valor (o defendido pela lei que ela propõe), tudo é permitido, se perde o conceito do bom e ruim, do certo e errado".

Obviamente que nem tudo deve ser permitido. Nenhuma sociedade se sustentaria sem a constituição de limites ou concessões do indivíduo em prol da coletividade. Entretanto, criar limites partindo de uma ética do bem comum é muito diferente de pretender homogeneizar a todos partindo de um modelo único. Exemplifico. Afirmar que o certo é que uma família seja constituída somente a partir da relação de um homem com uma mulher é um discurso moralista porque desconsidera a possibilidade de outras formações familiares, no entanto, abrir mão dessa verdade como universal não impede que possamos pensar a família dentro de um preceito ético de respeito mutuo entre seus membros.

Os anos 60 foram responsáveis por iniciar a desconstrução de todos os valores e verdades tradicionais. Até essa década os territórios do certo e do errado estavam muito bem delimitados. Colhemos os frutos de tal desconstrução nas décadas seguintes e agora, me parece que essas tentativas de resgate dos valores tradicionais demonstram um certo receio do caminho que seguimos. Decidimos em dado momento da história, nos desvencilhar das amarras moralistas que definiam a priori o que era certo e o que era errado, mas pagamos um preço, afinal, é muito mais simples quando já está definido onde devemos ir. Como diria Nietzsche é muito mais fácil seguir o rebanho.

Mas há quem prefira pagar o preço de escapar do moralismo, da burocracia, do dogmatismo e de quaisquer teorias que preguem uma verdade única e acabada, para transitar pelo terreno movediço da incerteza, da inconstância, da mutabilidade; das meias verdades que estão sempre em construção e desconstrução.

Esta semana, depois da aprovação do projeto de lei da Deputada Myriam Rios, as redes sociais se apressaram em divulgar fotos sensuais que ela fizera no passado, esperando com isso denunciar sua incoerência moral. Isso também pode ser considerado um discurso moralista, afinal, as pessoas podem, sim, mudar de posição e opinião ao longo da vida. Mas o que fiquei pensando a partir disso, é que na época em que Myriam Rios decidiu fazer aquelas fotos, posar nua ainda era uma forma de rebeldia feminina, um modo de desmontar valores tradicionais atribuídos à mulher (já hoje em dia, penso que há muito pouco de subversivo em posar nua)

Eu decidi pagar o preço por desconfiar dos caminhos já feitos. Obviamente que, às vezes, desejo olhar para o céu e receber uma mensagem que me diga o que fazer, também fico tentada a procurar uma teoria que explique o mundo, uma pílula que me salve de todos os sofrimentos ou medidas legais que resolvam todas as mazelas sociais. Mas por mais tentada que fique com esses terrenos firmes, no final, sempre escolho patinar pelo gelo fino. Há quem diga que tal escolha seria uma espécie de atração pelo perigo, pela subversão, pode ser, o que eu sei é que, com todo respeito pelo trabalho da Deputada Myriam Rios, eu preferia quando ela posava nua.


3 comentários:

  1. Já era horrível, mesmo sem roupa. Mas era por fora, hj é por dentro!

    ResponderExcluir
  2. Olá Rita,

    Sou estudante de Psicologia da PUC-SP e descobri por acaso seu blog há poucos dias. Desde então, passei a entrar aqui todos os dias para ver ser tem algum texto novo.
    São todos ótimos, parabéns!
    Lívia F.

    ResponderExcluir
  3. Rita,


    Houve uma época em que até a Myriam Pérsia posou nua... [Eu vi! Eu vi!!! rs rs rs...].


    Myriam Rios é da Canção Nova, uma Comunidade da Renovaçao Carismática Cristã, o Movimento Pentecostal dentro da Igreja Católica. "Cheios do Espírito", pretendem levar a flama do Espírito (Santo) por onde passarem. Eles se dão essa tarefa, a título de Missão. O proselitismo é "avivado" nesses que se sentem "avivados" pelo Sopro que Sopra Onde Quer e escolheu, por Misericórdia e Graça, tocá-los. Dentro dessa "perspectiva avivada", querem compartilhar isso com o ardor (não-armado) dos antigos cruzados.


    Eu não gosto de proselitistas, de nenhuma feição. São os publicitários de ideologias ou códigos morais. E valores deveriam prescindir da publicidade, sobretudo os religiosos. Deveriam ser [e por vezes são!] tão eloquentes em sua manifestação que dispensassem "o ativo ardor do convencimento" via persuasão. Ou, o que é pior, via legislação.





    Um beijo, amiga.

    ResponderExcluir

Deixe aqui seu comentário.