por Rita Almeida
O interesse que hoje tenho por Deus é mais filosófico do que religioso. Sendo assim, entendo que o conceito que se tem de Deus não é unívoco, ele vem se modificando de acordo com o tempo e as diversas culturas e sociedades. É como se cada tempo e cada sociedade tivesse o Deus (ou os deuses) que precisasse ou desejasse.
Se tomarmos o cristianismo, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento era uma espécie de grande líder tirano e cruel, que vigiava e castigava seu povo sempre que lhe conviesse. Suas normas e regras eram rígidas e, muitas vezes, sem qualquer sentido ético, moral ou prático. O único sentido parecia ser deixar bem claro quem era o Todo Poderoso.
Já o Deus do Novo Testamento é um Deus que desceu do seu pedestal e da sua arrogância para se tornar um meio-irmão, um semelhante, que mesmo depois de morto promete ficar entre nós. Esta é exatamente a mensagem final de Jesus na Última Ceia, horas antes de ser crucificado e morto. Mas em algum momento, o Deus do cristianismo que prometeu estar entre nós passou cada vez mais a estar dentro, “habitar o coração do homem”.
Sabemos que o Deus do protestantismo, que nasce no século XV, serviu muito bem à disseminação e ao desenvolvimento do capitalismo. Ao que parece, a noção de um Deus que está dentro de cada um, tem servido muito bem à sociedade capitalista-ocidental em sua versão cada vez mais individualista e narcisista. E o Deus que produzimos neste caldeirão me parece assustador. É uma espécie de Deus-portátil, Deus-de-bolso ou um Deus-I fone; aquele que possui todos os aplicativos, conexões, contatos e arquivos que eu preciso para ser feliz.
O Deus que encontramos na sociedade capitalista-narcisista atual é um Deus que serve cada vez mais para resolver os meus problemas individuais, mesmo os mais egoístas. É um Deus capaz de atender a um pedido meu, mesmo que isso implique em sabotar o pedido de outrem. O Deus do narcisismo me permite agradecer pelo sucesso num concurso, numa seleção de trabalho ou a conquista de uma vaga na faculdade, sem questionar o fato de que isso aconteceu apenas porque alguém foi preterido. Somente o Deus do narcisismo me permite colocar aquele tradicional adesivo no carro: “Foi Deus que me deu”, mesmo quando o digno presente é mais um a poluir o ambiente já a beira do completo caos. O Deus do narcisismo é capaz de me fazer vencedor numa disputa, ainda que do outro lado esteja alguém que fracassou, como se o meu Deus fosse melhor ou mais poderoso que o dele.
Mas que tipo de Deus é este que tolera um pedido de salvação, cuidado ou proteção para apenas eu ou meus familiares e amigos mais próximos? Que tipo de Deus me permite agradecer por ter escapado viva de um acidente em que muitos outros se tornaram vítimas fatais? Que tipo de Deus me autoriza fazer um pedido de mesa farta nas festas de fim de ano, quando a miséria e a fome devasta milhões mundo afora?
O conceito de Deus que vemos hoje é tão narcisista que até quando um desejo meu não é atendido, a explicação é: “porque Deus sabe o que é melhor para mim”.
Enfim, lamentavelmente, o Deus que nos resta atualmente é aquele que atende aos apelos do Eu, o Deus- I fone. É o Deus que promete a tão sonhada felicidade individual. Um Deus que nos demanda louvores, adoração e glorificação, além de uma prova de sua devoção e fé por meio de doação financeira. Somente um Deus narcisista e egocêntrico precisaria deste tipo de devoção ou reconhecimento.
“Meu Deus!” Aí está a exclamação que usamos em nossas orações ou sempre quando o desespero bate e tudo parece perdido. Entretanto, o Deus do indivíduo não será capaz de cumprir sua missão de nos salvar, especialmente porque nosso tempo precisa urgentemente se livrar do individualismo.
No cristianismo é preciso se livrar do Deus que se ocupa das nossas misérias egoístas e individuais e resgatar o “Pai Nosso”, aquele capaz de nos ajudar a reparar as nossas mazelas coletivas. Não aquelas que estão dentro de nós, mas as que estão entre nós; a fome, as injustiças sociais, a degradação do meio ambiente, a falta de água e saneamento básico, as guerras.
É bem provável que não seja possível ou desejável um Deus único para toda a humanidade. A diversidade de culturas e religiões pelo mundo não possibilitaria isso, mas é fundamental e urgente perseguirmos a ética de um Deus para Todos, e não só para todos os seres humanos, mas para todos os seres que habitam este planeta, animados ou não.
Resumindo, se a função de Deus é nos salvar, nos libertar e nos proteger, o Deus do narcisismo, se é que realmente precisamos dele algum dia, não nos serve mais. O Deus que irá permitir à humanidade fazer sua travessia em direção ao próximo milênio precisa ser um outro Deus. Precisamos parar de orar a Deus para curar nossa unha encravada, proteger nossa prole, melhorar nossa vida financeira ou sustentar nosso amor-próprio. Nossas orações (representantes autênticas do nosso desejo) precisam se livrar do narcisismo e do egoísmo e alcançar o campo da alteridade. Caso não modifiquemos nossas orações, o abismo narcísico do EU irá nos engolir em breve.
Sendo assim, o Deus que precisamos ou que deveríamos desejar não é mais o Deus que está dentro, mas o Deus que está entre nós. O Deus que nos une, que nos enlaça, que possibilita o amor, que nos faz irmãos porque habitantes do mesmo planeta. O Deus que precisamos invocar não é o “Meu Deus”. O Deus que nos permitirá sobreviver é o "Nosso Deus", ou o "Pai Nosso" o Deus da alteridade.
O Deus que precisaremos para não sucumbirmos como espécie não poderá ser tolerante com a ideia de salvação individual, seja ela de que tipo for. O Deus que rogaremos, caso haja futuro, é aquele que exige que respeitemos o seguinte mandamento: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.
domingo, 28 de dezembro de 2014
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
A inacreditável passeata pelo golpe militar ou sobre porque precisamos passar a limpo nossa história.
O Brasil viveu nesta semana um episódio inacreditável. Uma passeata em São Paulo que carregava, dentre outras bandeiras, o pedido de intervenção e golpe militar, ou seja, a reedição de um dos períodos mais sombrios da nossa história.
Pasma com a tal passeata, postei algo no feicebuque sobre a necessidade dos professores brasileiros pararem tudo que programaram durante a semana para se dedicarem a discutir em suas salas de aula os anos de ditadura militar no Brasil, a fim de conscientizar e alertar nossos jovens. Pois mais pasma ainda fiquei com um comentário ao meu post que pedia para que os professores trabalhassem o tema de forma neutra, a fim de que os alunos tirassem suas próprias conclusões sobre o episódio, além de salientar a importância das obras públicas feitas na época da ditadura e destacar que as organizações de esquerda também tiveram sua parcela de responsabilidade no episódio. E o mais triste: o comentário tem, até o momento, uma defesa e 22 curtidas.
Esse tipo de passeata que ocorreu em São Paulo, assim como o comentário que apareceu no meu post - e que ouvimos por aí toda hora - é um sintoma da falta que fez não termos acertado as contas com esse pedaço da nossa história, tal como souberam fazer nossos vizinhos Argentinos e Uruguaios, por exemplo. Precisamos urgentemente rasgar essas cicatrizes que ainda não se fecharam a fim de fazer com que a ditadura militar brasileira seja, irremediavelmente, tratada como aquilo que realmente foi: um crime bárbaro.
Não há nenhuma obra construída, nenhuma justificativa, nenhuma versão, nenhum romantismo, nenhuma suposta neutralidade que seja capaz de fazer com que tiremos outra conclusão sobre esse período que não seja: crime e barbárie. Se existe uma versão dos militares para o que ocorreu nos porões da ditadura ela é criminosa e, assim sendo, não pode ser considerada como possível ou plausível. Assim como, se existe uma versão dos brancos sobre a escravidão imposta aos negros ela é criminosa; se existe uma versão nazista para o genocídio dos judeus, ela é criminosa; se existe uma versão europeia para o que se fez com os povos que viviam nas Américas, ela é criminosa; e ponto final, nada mais.
Mas o fato de não termos passado a limpo esse nosso passado sombrio é que exatamente abre a possibilidade de que alguém diga: "A ditadura militar também não foi tão ruim assim como dizem!" Este tipo de discurso sustenta argumentos do tipo: “A ditadura militar foi terrível, mas, e as obras que foram feitas nesta época, não valeram?” Isso seria o mesmo que dizer: “A escravidão a que foram submetidos os negros no Brasil foi terrível sim, mas e a nossa produção de cana-de-açúcar e café no século XVII, não conta?” Ou: “Os povos nativos nas Américas foram dizimados sim, mas e os países Americanos que daí surgiram, não fizeram tudo valer a pena?”
Este tipo de desmemoria, misturada com ignorância histórica ou até má fé, também produz argumentos desse tipo: “Eu concordo que os militares foram horríveis, mas os militantes de esquerda também não eram flor-que-se-cheira não é?”. Isso seria o mesmo que dizer: “As torturas e castigos a que foram submetidos os negros na escravidão foram um horror, mas os negros também não colaboravam: fugiam, resistiam, desobedeciam...” Ou: “Tá certo que os nazistas perseguiam e matavam os judeus, mas esses também não facilitavam não é? Mudavam de nomes, se escondiam, escondiam seus bens...”
Outra forma de tentar camuflar a realidade terrível do que foi o período de ditadura no Brasil, também é utilizada para justificar outras atrocidades ao longo da história. É a velha justificativa: “Fizemos o mal, mas foi para o bem”. Esta é a forma mais perversa de impingir mal ao outro, tentando convencê-lo de que foi o melhor que se pôde fazer por ele. Assim, os portugueses dizimaram os índios que aqui viviam para lhes salvar a alma. Assim os EUA matam milhares em guerras estúpidas e desumanas com a desculpa de que estão promovendo a paz. No caso do golpe militar, a justificativa era nos salvar do comunismo.
Desarquivar a ditadura brasileira é urgente!
Não podemos mais aceitar que ela seja romantizada pelo efeito, supostamente positivo, das obras feitas na época. Se não podemos demolir o que foi construído tendo como matéria prima a humilhação, o sangue e a dor de muitos brasileiros, então que, pelo menos, nada do que foi construído na ocasião nos seja motivo de orgulho.
Não podemos mais aceitar que os que bravamente lutaram - muitos deles com suas vidas - para tentar resistir a essa barbárie, sejam responsabilizados por não se curvarem ao desmando e a opressão. E sabemos que não era preciso uma bomba ou um revólver para ser considerado um subversivo. A arma poderia ser apenas uma caneta e o território de ocupação uma folha de papel.
Não podemos mais aceitar que se justifique todo o horror que foi produzido nesta época como um bem para o Brasil e os brasileiros, ou como algo inevitável.
Sendo assim, os anos de ditadura do Brasil não podem estar sujeitos a uma espécie de interpretação pessoal de quem lê a história. Alguém teria, hoje, coragem de dar outra interpretação para o genocídio dos judeus que não a de um crime bárbaro? Alguém teria coragem de dar outra interpretação para a escravidão dos povos africanos, que não a de um crime bárbaro? Do mesmo modo, a ditadura brasileira, precisa se tornar urgentemente aquilo que realmente foi: um crime bárbaro, sem possibilidade de outra interpretação. Foi humilhação, cerceamento, censura, prisão, desespero, dor, silêncio imposto, abandono, exclusão, perda, desumanidade, desamor, ignorância, tristeza, depressão, alienação, emburrecimento, embrutecimento, doença, tortura e morte. Nada que tenha acontecido de bom nesta época pode mudar ou romantizar isso. Nenhuma opinião pessoal que se tenha sobre esta passagem da nossa história pode mudar tal realidade! E nenhuma estupidez ou alienação pode permitir que alguém possa desejar ou clamar por ela novamente!
O genocídio do povo judeu foi um crime, portanto, clamar pelo seu retorno não é uma questão de opinião é crime também.
A escravidão dos negros foi um crime, portanto, clamar pela sua volta não é uma questão de opinião, é crime também.
Então é preciso que fique muito bem claro: A ditadura militar no Brasil foi criminosa, portanto, clamar por ela não é uma questão de opinião, é crime também. Simples assim.
Pasma com a tal passeata, postei algo no feicebuque sobre a necessidade dos professores brasileiros pararem tudo que programaram durante a semana para se dedicarem a discutir em suas salas de aula os anos de ditadura militar no Brasil, a fim de conscientizar e alertar nossos jovens. Pois mais pasma ainda fiquei com um comentário ao meu post que pedia para que os professores trabalhassem o tema de forma neutra, a fim de que os alunos tirassem suas próprias conclusões sobre o episódio, além de salientar a importância das obras públicas feitas na época da ditadura e destacar que as organizações de esquerda também tiveram sua parcela de responsabilidade no episódio. E o mais triste: o comentário tem, até o momento, uma defesa e 22 curtidas.
Esse tipo de passeata que ocorreu em São Paulo, assim como o comentário que apareceu no meu post - e que ouvimos por aí toda hora - é um sintoma da falta que fez não termos acertado as contas com esse pedaço da nossa história, tal como souberam fazer nossos vizinhos Argentinos e Uruguaios, por exemplo. Precisamos urgentemente rasgar essas cicatrizes que ainda não se fecharam a fim de fazer com que a ditadura militar brasileira seja, irremediavelmente, tratada como aquilo que realmente foi: um crime bárbaro.
Não há nenhuma obra construída, nenhuma justificativa, nenhuma versão, nenhum romantismo, nenhuma suposta neutralidade que seja capaz de fazer com que tiremos outra conclusão sobre esse período que não seja: crime e barbárie. Se existe uma versão dos militares para o que ocorreu nos porões da ditadura ela é criminosa e, assim sendo, não pode ser considerada como possível ou plausível. Assim como, se existe uma versão dos brancos sobre a escravidão imposta aos negros ela é criminosa; se existe uma versão nazista para o genocídio dos judeus, ela é criminosa; se existe uma versão europeia para o que se fez com os povos que viviam nas Américas, ela é criminosa; e ponto final, nada mais.
Mas o fato de não termos passado a limpo esse nosso passado sombrio é que exatamente abre a possibilidade de que alguém diga: "A ditadura militar também não foi tão ruim assim como dizem!" Este tipo de discurso sustenta argumentos do tipo: “A ditadura militar foi terrível, mas, e as obras que foram feitas nesta época, não valeram?” Isso seria o mesmo que dizer: “A escravidão a que foram submetidos os negros no Brasil foi terrível sim, mas e a nossa produção de cana-de-açúcar e café no século XVII, não conta?” Ou: “Os povos nativos nas Américas foram dizimados sim, mas e os países Americanos que daí surgiram, não fizeram tudo valer a pena?”
Este tipo de desmemoria, misturada com ignorância histórica ou até má fé, também produz argumentos desse tipo: “Eu concordo que os militares foram horríveis, mas os militantes de esquerda também não eram flor-que-se-cheira não é?”. Isso seria o mesmo que dizer: “As torturas e castigos a que foram submetidos os negros na escravidão foram um horror, mas os negros também não colaboravam: fugiam, resistiam, desobedeciam...” Ou: “Tá certo que os nazistas perseguiam e matavam os judeus, mas esses também não facilitavam não é? Mudavam de nomes, se escondiam, escondiam seus bens...”
Outra forma de tentar camuflar a realidade terrível do que foi o período de ditadura no Brasil, também é utilizada para justificar outras atrocidades ao longo da história. É a velha justificativa: “Fizemos o mal, mas foi para o bem”. Esta é a forma mais perversa de impingir mal ao outro, tentando convencê-lo de que foi o melhor que se pôde fazer por ele. Assim, os portugueses dizimaram os índios que aqui viviam para lhes salvar a alma. Assim os EUA matam milhares em guerras estúpidas e desumanas com a desculpa de que estão promovendo a paz. No caso do golpe militar, a justificativa era nos salvar do comunismo.
Desarquivar a ditadura brasileira é urgente!
Não podemos mais aceitar que ela seja romantizada pelo efeito, supostamente positivo, das obras feitas na época. Se não podemos demolir o que foi construído tendo como matéria prima a humilhação, o sangue e a dor de muitos brasileiros, então que, pelo menos, nada do que foi construído na ocasião nos seja motivo de orgulho.
Não podemos mais aceitar que os que bravamente lutaram - muitos deles com suas vidas - para tentar resistir a essa barbárie, sejam responsabilizados por não se curvarem ao desmando e a opressão. E sabemos que não era preciso uma bomba ou um revólver para ser considerado um subversivo. A arma poderia ser apenas uma caneta e o território de ocupação uma folha de papel.
Não podemos mais aceitar que se justifique todo o horror que foi produzido nesta época como um bem para o Brasil e os brasileiros, ou como algo inevitável.
Sendo assim, os anos de ditadura do Brasil não podem estar sujeitos a uma espécie de interpretação pessoal de quem lê a história. Alguém teria, hoje, coragem de dar outra interpretação para o genocídio dos judeus que não a de um crime bárbaro? Alguém teria coragem de dar outra interpretação para a escravidão dos povos africanos, que não a de um crime bárbaro? Do mesmo modo, a ditadura brasileira, precisa se tornar urgentemente aquilo que realmente foi: um crime bárbaro, sem possibilidade de outra interpretação. Foi humilhação, cerceamento, censura, prisão, desespero, dor, silêncio imposto, abandono, exclusão, perda, desumanidade, desamor, ignorância, tristeza, depressão, alienação, emburrecimento, embrutecimento, doença, tortura e morte. Nada que tenha acontecido de bom nesta época pode mudar ou romantizar isso. Nenhuma opinião pessoal que se tenha sobre esta passagem da nossa história pode mudar tal realidade! E nenhuma estupidez ou alienação pode permitir que alguém possa desejar ou clamar por ela novamente!
O genocídio do povo judeu foi um crime, portanto, clamar pelo seu retorno não é uma questão de opinião é crime também.
A escravidão dos negros foi um crime, portanto, clamar pela sua volta não é uma questão de opinião, é crime também.
Então é preciso que fique muito bem claro: A ditadura militar no Brasil foi criminosa, portanto, clamar por ela não é uma questão de opinião, é crime também. Simples assim.
domingo, 19 de outubro de 2014
Para debater o bom debate
por Rita Almeida
Quem me conhece sabe que eu não fujo de um bom debate. E gosto especialmente de discutir os três temas que muitos acreditam que se deva evitar: religião, futebol e política. Mas o exercício que eu mais prezo em um bom debate é o uso da razão, do intelecto; argumentar racionalmente é o que me move numa discussão. Admito que seja bem difícil fazer isso quando é a seleção ou o flamengo que estão em campo, mas, eu juro que me esforço.
Nesse segundo turno das eleições presidenciais sinto muita falta de um bom debate, aquele travado no campo das ideias. Sinto falta de argumentos elaborados no cérebro e não no fígado. O discurso de ódio ao PT, infelizmente colou e o PSDB está deitando e rolando nele para tentar eleger Aécio. Então, todo argumento que escuto para votar no Aécio se resume ao #foraPT.
Na verdade tive apenas um bom debate nesse segundo turno, e foi com um amigo que sempre foi eleitor do PSDB. A coerência do seu discurso e de seus argumentos me fez respeitar sua escolha e apertar sua mão. Resumidamente o que ele me disse foi: “Tudo bem! Nós tivemos por 12 anos governos que se dedicaram aos pobres, investindo em políticas públicas e programas sociais, mas agora é hora de fazer a economia crescer!”
Antônio Prata outro dia em sua coluna na Folha, “O chapeiro e o dono da padaria”, usou uma metáfora muito interessante para falar das diferenças entre o Governo Dilma e um provável Governo Aécio, partindo do discurso dos seus respectivos economistas: Guido Mantega e Armínio Fraga. Me apropriando de tal metáfora eu diria o seguinte: Os governos Lula e Dilma melhoraram muito a vida do chapeiro (trabalhador da padaria). Seu salário teve aumento real, ele passou a ter mais acesso a políticas públicas, conseguiu credito para adquirir sua casa própria ou até um carro. O poder de compra do chapeiro aumentou tanto que ele, possivelmente, tem hoje uma TV de tela plana igualzinha à do dono da padaria. Além disso, seus filhos terão, pela primeira vez, a oportunidade de quebrar o ciclo de chapeiros da família pois, sendo mais escolarizados que o pai e com chances até de entrar até no curso superior, poderão escolher uma outra profissão. Mas o problema é que o dono da padaria está preocupado. Com o aumento do poder de compra dos assalariados ele até tinha aumentado as vendas e, por isso, ampliou a padaria e abriu novas filiais. Mas nos últimos tempos ele está percebendo que este crescimento esgotou e ele precisa de um governo que o socorra, ainda que isso implique em interromper ou reduzir os benefícios dirigidos aos chapeiros. Até porque ele acredita que se sua padaria minguar o chapeiro poderá ficar desempregado.
Diante do argumento feito pelo viés dos donos de padaria, eu não posso deixar de respeitar a justificativa do meu amigo em votar no Aécio, mesmo não concordando com ela. Isso sim é um argumento plausível, racional, coerente e corretíssimo visto por esse ângulo. E sua argumentação me ajudou ainda mais a reafirmar minha posição, pois, por mais que eu compreenda a preocupação do dono da padaria e do meu amigo, eu ainda voto em nome do chapeiro, é com ele que me preocupo mais. Até porque eu não acredito que uma melhoria nas finanças na padaria vá refletir automaticamente na melhoria das condições de vida do chapeiro sem que o Estado e as leis intervenham.
Então, meus caros, se alguém vai votar no Aécio pensando no dono da padaria, tem todo o meu respeito, aceito e vou adorar travar um bom debate. Mas quando o argumento é apenas precisamos tirar o PT para acabar com a corrupção, para afastar o comunismo ou o risco de nos tornarmos uma Venezuela (!), porque azul é mais bonito que vermelho ou porque a Dilma é uma vaca estúpida e o Lula um analfabeto, esqueça, não vou me dignar em discutir. Também não concordo quando o argumento em favor de Aécio é que ele irá governar para o chapeiro. É mentira! Basta assistir o debate entre Fraga e Mantega, lá está muito claro quem governa pra quem e por que. E eu até conheço chapeiros que estão votando pelo dono da padaria, se estão cientes disso também respeito, é uma escolha.
Resumindo, meu voto é pelo chapeiro! Quem quiser votar pelo dono da padaria que vote, mas que pelo menos tenha a honestidade de assumir isso. Ah! E não me venha com esse papinho mole que o Brasil é um só e que, portanto, os interesses do dono da padaria são iguais aos do chapeiro! Como disse Antônio Prata: você não precisa ser marxista-leninista pra saber que as necessidades do dono da padaria não são as mesmas do chapeiro, né?
Quem me conhece sabe que eu não fujo de um bom debate. E gosto especialmente de discutir os três temas que muitos acreditam que se deva evitar: religião, futebol e política. Mas o exercício que eu mais prezo em um bom debate é o uso da razão, do intelecto; argumentar racionalmente é o que me move numa discussão. Admito que seja bem difícil fazer isso quando é a seleção ou o flamengo que estão em campo, mas, eu juro que me esforço.
Nesse segundo turno das eleições presidenciais sinto muita falta de um bom debate, aquele travado no campo das ideias. Sinto falta de argumentos elaborados no cérebro e não no fígado. O discurso de ódio ao PT, infelizmente colou e o PSDB está deitando e rolando nele para tentar eleger Aécio. Então, todo argumento que escuto para votar no Aécio se resume ao #foraPT.
Na verdade tive apenas um bom debate nesse segundo turno, e foi com um amigo que sempre foi eleitor do PSDB. A coerência do seu discurso e de seus argumentos me fez respeitar sua escolha e apertar sua mão. Resumidamente o que ele me disse foi: “Tudo bem! Nós tivemos por 12 anos governos que se dedicaram aos pobres, investindo em políticas públicas e programas sociais, mas agora é hora de fazer a economia crescer!”
Antônio Prata outro dia em sua coluna na Folha, “O chapeiro e o dono da padaria”, usou uma metáfora muito interessante para falar das diferenças entre o Governo Dilma e um provável Governo Aécio, partindo do discurso dos seus respectivos economistas: Guido Mantega e Armínio Fraga. Me apropriando de tal metáfora eu diria o seguinte: Os governos Lula e Dilma melhoraram muito a vida do chapeiro (trabalhador da padaria). Seu salário teve aumento real, ele passou a ter mais acesso a políticas públicas, conseguiu credito para adquirir sua casa própria ou até um carro. O poder de compra do chapeiro aumentou tanto que ele, possivelmente, tem hoje uma TV de tela plana igualzinha à do dono da padaria. Além disso, seus filhos terão, pela primeira vez, a oportunidade de quebrar o ciclo de chapeiros da família pois, sendo mais escolarizados que o pai e com chances até de entrar até no curso superior, poderão escolher uma outra profissão. Mas o problema é que o dono da padaria está preocupado. Com o aumento do poder de compra dos assalariados ele até tinha aumentado as vendas e, por isso, ampliou a padaria e abriu novas filiais. Mas nos últimos tempos ele está percebendo que este crescimento esgotou e ele precisa de um governo que o socorra, ainda que isso implique em interromper ou reduzir os benefícios dirigidos aos chapeiros. Até porque ele acredita que se sua padaria minguar o chapeiro poderá ficar desempregado.
Diante do argumento feito pelo viés dos donos de padaria, eu não posso deixar de respeitar a justificativa do meu amigo em votar no Aécio, mesmo não concordando com ela. Isso sim é um argumento plausível, racional, coerente e corretíssimo visto por esse ângulo. E sua argumentação me ajudou ainda mais a reafirmar minha posição, pois, por mais que eu compreenda a preocupação do dono da padaria e do meu amigo, eu ainda voto em nome do chapeiro, é com ele que me preocupo mais. Até porque eu não acredito que uma melhoria nas finanças na padaria vá refletir automaticamente na melhoria das condições de vida do chapeiro sem que o Estado e as leis intervenham.
Então, meus caros, se alguém vai votar no Aécio pensando no dono da padaria, tem todo o meu respeito, aceito e vou adorar travar um bom debate. Mas quando o argumento é apenas precisamos tirar o PT para acabar com a corrupção, para afastar o comunismo ou o risco de nos tornarmos uma Venezuela (!), porque azul é mais bonito que vermelho ou porque a Dilma é uma vaca estúpida e o Lula um analfabeto, esqueça, não vou me dignar em discutir. Também não concordo quando o argumento em favor de Aécio é que ele irá governar para o chapeiro. É mentira! Basta assistir o debate entre Fraga e Mantega, lá está muito claro quem governa pra quem e por que. E eu até conheço chapeiros que estão votando pelo dono da padaria, se estão cientes disso também respeito, é uma escolha.
Resumindo, meu voto é pelo chapeiro! Quem quiser votar pelo dono da padaria que vote, mas que pelo menos tenha a honestidade de assumir isso. Ah! E não me venha com esse papinho mole que o Brasil é um só e que, portanto, os interesses do dono da padaria são iguais aos do chapeiro! Como disse Antônio Prata: você não precisa ser marxista-leninista pra saber que as necessidades do dono da padaria não são as mesmas do chapeiro, né?
sábado, 4 de outubro de 2014
Sobre o debate presidencial na rede Globo: O que já foi dito e o que foi dito de novo?
por Rita Almeida
O último debate presidencial na TV Globo foi, na maior parte do tempo, mais do mesmo. Pouca discussão política e muitos ataques de todas as partes. E quando o debate era político se arrastava por discussões inúteis, porque levantavam temas que não faziam parte das atribuições de um Presidente da República, afinal, não elegeremos uma rainha ou um rei, mas um líder que dependerá das forças que se apresentarem nas Assembleias Legislativas e no Senado ou do que for executado pelos Estados e Municípios.
Mas também tivemos alguns momentos impagáveis, como a entrada fenomenal da Luciana Genro com uma voadora na cara da Rede Globo - e pelo lado de dentro - e a cena épica do Eduardo Jorge orientando o Bonner, todo atrapalhado, que já não sabia se era réplica ou tréplica. Além disso, as redes sociais, como sempre, fizeram tudo valer a pena.
No mais, o que vimos foi pura repetição regada a clichês; clichês de direita, clichês de esquerda, clichês machistas e homofóbicos. Diante de tanta repetição, uma das poucas novidades, a meu ver, foi uma das falas de Dilma quando o tema era, de novo, a corrupção. Disse ela:
- Não acredito que ninguém esteja acima de corrupção. Acho que todo mundo pode cometer corrupção. As instituições é que precisam ser virtuosas e investigar.
Esta é uma fala freudiana. E é preciso muita coragem para dizê-la. Porque é uma fala que foge da mesmice e que pode nos ajudar a pensar a corrupção para além do senso comum. O senso comum acredita que, para combatermos a corrupção, basta não votarmos em corruptos. Só que existe um problema grave nessa premissa: não existe corrupto até que ele cometa um ato de corrupção ou, pelo menos, até que ele seja flagrado em tal ato.
Rousseau dizia que todo homem nasce bom, a sociedade é que o perverte. Ao contrário de Rousseau, Freud afirmava que o ser humano ao chegar ao mundo é um tirano perverso, exige que satisfaçam todas as suas necessidades e pulsões. Todavia, todo o processo civilizatório se sustenta na repressão daquilo que há de mais sombrio em nós: a vontade de realizarmos todos os nossos desejos e vontades à revelia do prejuízo, da dor ou do sofrimento alheio. E a educação (ética, moral ou religiosa) e a lei foram as principais maneiras que a humanidade encontrou para barrar seus impulsos egoístas em favor dos laços sociais.
Meu pai dizia que se você é capaz de roubar R$ 0,50 é capaz de roubar R$ 1.000.000,00. Eu sempre interpretei isso como: “nunca roube, nem mesmo R$ 0,50!”. Mas hoje interpreto tal ensinamento de outro modo: “se é muito simples roubar R$ 0,50, então é igualmente simples roubar R$ 1.000.000,00”. Sei que alguns vão dizer: “eu não” ou “comigo não”, mas para esses eu lanço um desafio: Quem de vocês nunca furou uma fila? Quem nunca colou ou tentou saber o gabarito de uma prova? Quem nunca se favoreceu da ajuda de um amigo influente para resolver um problema? Quem nunca tentou negociar com o policial após cometer uma infração de trânsito? Quem nunca comprou um remédio que precisava de receita, sem a receita? Quem nunca pagou um despachante sabendo que metade do dinheiro era pra facilitar a liberação do alvará ou do documento do carro? Quem nunca evitou emitir uma nota fiscal? Quem nunca fez gato na TV por assinatura? Quem nunca bateu o ponto para o colega de trabalho? Quem nunca comprou pirataria? Quem nunca tentou entrar de graça num evento pago? Quem nunca tentou malabarismos para reduzir o imposto de renda? Quem nunca carregou um souvenir do hotel?
Se você tropeçou em pelo menos uma dessas perguntas então, sinto muito lhe informar, mas você é totalmente capaz de cometer qualquer ato de corrupção. O que quero dizer é que não existe uma vacina, um gene ou uma aura virtuosa que o deixe imune à corrupção. Assim sendo teremos que, humildemente, concordar com Dilma: Ninguém está acima da corrupção!
Ah sim, claro! Não podemos comparar comprar pirataria com roubar dinheiro público, não é? Será? Segundo informações do Senado Federal a pirataria desvia dos cofres públicos, todo ano, cerca de R$ 250 milhões em impostos. E, segundo a Revista Valor nos primeiros 100 dias deste ano, o Brasil perdeu mais de R$ 106 bilhões com a sonegação de impostos.
Isso quer dizer, então, que “o fim está próximo” ou que somos todos canalhas e que, portanto, não adianta combater a corrupção? Não! De maneira nenhuma! Mas precisamos entender que corrupção não se combate como no filme Minority Report, onde seremos capazes de reconhecer os políticos corruptos no seu berço e, tirando-os de circulação, teremos resolvido o problema.
Obviamente que existem os canalhas. Aqueles que rejeitaram participar da partilha do bem comum e se ocupam apenas em satisfazer suas vontades e seu narcisismo. Para o canalha verdadeiro, o outro é um mero degrau para atingir seus objetivos egoístas. Mas, ao contrário do que dizem por aí, os canalhas são raros e, possivelmente, dada sua meticulosidade e racionalização, muito mais difíceis de serem desmascarados. E é obvio que eles se aproximam da política já com a intensão de tirar dela algum proveito próprio. Em que lugar melhor eles poderiam ir? Todavia, grande parte dos corruptos não é necessariamente um canalha stricto sensu. Na imensa maioria das vezes, o corrupto é um sujeito comum. É aquele que um dia falsificou a carteirinha de estudante para pagar meia num espetáculo, mais tarde vendeu um recibo falso para que outro burlasse o Imposto de Renda, depois, como candidato a vereador, recebeu dinheiro não declarado de amigos para ajudar na sua campanha, isso foi um passo para achar natural que seu partido também recebesse dinheiro não declarado, daí entendeu perfeitamente as manobras contábeis do tesoureiro do partido para maquiar dinheiro vindo sabe-se lá de onde. E por aí vai...
Por isso, independente se Dilma tem ou não o seu voto, é preciso compreender o que ela teve coragem de dizer. Não podemos combater a corrupção acreditando que vamos conseguir nos cercar de pessoas incorruptíveis já que, como vimos, isso não está exatamente nos planos da humanidade. Não é possível acreditar que conseguiremos identificar os tais “homens bons” (alguns candidatos afirmam conhecê-los) que nos livrarão de todo o mal, amém. Combate-se a corrupção, primeiro, com uma educação para a ética (a de minha preferência, mas há também a educação religiosa e a moral que, de toda forma, também funcionam). Combate-se a corrupção com leis claras, justas e simples. Leis muito complicadas acabam abrindo margem para que sejam novamente burladas, corrompidas. A burocracia também é utilizada para combater a corrupção, mas quando é exagerada acaba por reeditar e reforçar a corrupção. É a corrupção como saída para burlar o excesso de burocracia. Enfim, concordando mais uma vez com Dilma, combatemos a corrupção com instituições fortes e virtuosas, instituições capazes de coibir, educar e também punir atos de corrupção.
Enfim, lamento se fiz o leitor perder um pouco mais a fé na humanidade, atributo já tão escasso, mas admitir nossas limitações e ter humildade para perceber que não somos tão diferentes uns dos outros, nos faz seguir caminhos mais realistas e, portanto, mais acertados. É preciso admitir que, afinal, o demônio não está alhures.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Eu também amo a Luciana Genro e o Eduardo Jorge!
Eu também amo a Luciana Genro e o Eduardo Jorge! Adoraria viver num Brasil onde o discurso deles não fosse possível apenas porque sabem que não tem chance de ganhar. Ou seja, adoraria que suas propostas representassem a realidade do pensamento de uma fatia grande de brasileiros. O discurso de Luciana e Eduardo habitam o meu ideal de Brasil.
Todavia, não se faz política com o ideal, mas com o real. Também não se faz política apenas com os iguais, os que pensam ou tem direções semelhantes. A política nasceu exatamente para evitar a guerra, para negociar acordos diante de posições divergentes, para tentar um caminho comum possível diante da diversidade de interesses e opiniões. A política está para a linguagem assim como a guerra está para a passagem ao ato. Fazemos uso da linguagem para não partirmos para as "vias de fato" e fazemos uso da política para não partirmos pra guerra.
Sendo assim, Luciana e Eduardo são fundamentais para o debate político, mas precisamos ter clareza de que só podem ser tão originais porque são feitos para provocar e levantar os temas polêmicos e não necessariamente para possibilitar uma via política possível dentro da nossa realidade brasileira atual. Para dar um exemplo, segundo uma pesquisa recente do Ibope, quase 80% da população é contrária à legalização do aborto ou das drogas e a favor da redução da maioridade penal e 53% não apoiam as bandeiras do movimento gay. Ou seja, se Luciana e Eduardo quisessem mesmo serem eleitos, infelizmente, não poderiam ser tão claros e diretos em suas convicções e teriam, sim que negociar apoio e parcerias com os que têm pensamentos divergentes deles o que, certamente, contaminaria suas propostas e projetos. E entendam, isso não seria necessariamente uma traição ou canalhice, mas simplesmente modos de alcançar o que é possível dentro daquilo que se pensa ser o ideal; é dessa matéria prima que se faz a política.
Enfim, a política é pura poesia quando é feita entre iguais, mas só é mesmo fundamental quando é feita com os diferentes. E esse é o grande desafio.
Todavia, não se faz política com o ideal, mas com o real. Também não se faz política apenas com os iguais, os que pensam ou tem direções semelhantes. A política nasceu exatamente para evitar a guerra, para negociar acordos diante de posições divergentes, para tentar um caminho comum possível diante da diversidade de interesses e opiniões. A política está para a linguagem assim como a guerra está para a passagem ao ato. Fazemos uso da linguagem para não partirmos para as "vias de fato" e fazemos uso da política para não partirmos pra guerra.
Sendo assim, Luciana e Eduardo são fundamentais para o debate político, mas precisamos ter clareza de que só podem ser tão originais porque são feitos para provocar e levantar os temas polêmicos e não necessariamente para possibilitar uma via política possível dentro da nossa realidade brasileira atual. Para dar um exemplo, segundo uma pesquisa recente do Ibope, quase 80% da população é contrária à legalização do aborto ou das drogas e a favor da redução da maioridade penal e 53% não apoiam as bandeiras do movimento gay. Ou seja, se Luciana e Eduardo quisessem mesmo serem eleitos, infelizmente, não poderiam ser tão claros e diretos em suas convicções e teriam, sim que negociar apoio e parcerias com os que têm pensamentos divergentes deles o que, certamente, contaminaria suas propostas e projetos. E entendam, isso não seria necessariamente uma traição ou canalhice, mas simplesmente modos de alcançar o que é possível dentro daquilo que se pensa ser o ideal; é dessa matéria prima que se faz a política.
Enfim, a política é pura poesia quando é feita entre iguais, mas só é mesmo fundamental quando é feita com os diferentes. E esse é o grande desafio.
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
Do que eu me libertei
por Rita Almeida
A liberdade sempre foi um tema muito caro para mim. Minhas opções políticas, filosóficas e religiosas, sempre tiveram a liberdade como diretriz. Minha vida profissional é toda dedicada à liberdade. Mas apesar das grandes liberdades serem a pauta da minha vida, foi na conquista de algumas pequenas liberdades cotidianas que eu encontrei o que procurava.
Eu me libertei da culpa por sair de casa e deixar a cama desarrumada de manhã
Eu me libertei do carro para minhas tarefas do dia a dia
Eu me libertei da pressa para a chegada do final de semana
Eu me libertei do nojo de biscoito que caiu no chão e de lambida de cachorro
Eu me libertei do excesso de preocupação para lembrar de colocar a escova de dente na mala
Eu me libertei do medo de abrir as contas no final do mês
Eu me libertei do medo de sentir medo
Eu me libertei da raiva com as burocracias tolas e desnecessárias, desnecessárias até para merecerem minha raiva
Eu me libertei da necessidade de me queixar com alguém que não seja o atendente de algum SAC
Eu me libertei da vontade de conversar na cama
Eu me libertei da necessidade de falar quando não há nada a ser dito
Eu me libertei do ciúme
Eu me libertei do “espelho, espelho meu...”
Eu me libertei da obrigação de ficar feliz quando estou triste
Eu me libertei do medo de errar ao fazer uma receita pela primeira vez
Eu me libertei da culpa por cometer pequenos pecados como: tomar coca-cola, comer batatas fritas, fumar um cigarro de palha ou gastar demais com um sofá novo.
Eu me libertei da culpa por conseguir passar um dia todo dedicada ao nada
Eu me libertei da necessidade de remoer o passado e da ansiedade em saber do futuro
Eu me libertei das inibições do meu corpo
Eu me libertei da vontade de saber demais
Eu me libertei da prepotência de acreditar que posso salvar todos os cachorros e gatos abandonados da rua ou todos os abandonados do mundo
Eu me libertei da arrogância de sempre saber o que é melhor
Eu me libertei da necessidade de ter o controle sobre tudo
Eu me libertei do medo de dizer não
Eu me libertei do imperativo de ter que tirar uma teia de aranha do teto assim que a vi
Eu me libertei da necessidade de atender as expectativas dos outros ou achar que os outros devem ser como eu gostaria que fossem
Eu me libertei de ter que colocar condições para amar
Eu me libertei das tendências da moda
Eu me libertei do secador de cabelos, da escova e da chapinha
Eu me libertei da preocupação em sair estranha na foto
Eu me libertei da prisão que é se achar insubstituível
Eu me libertei da vergonha ao admitir que fui ridícula
Eu me libertei da vontade de ajeitar os quadros na parede quando estou na casa de um amigo
Eu me libertei da culpa por rejeitar uma ligação
Eu me libertei da ideia de que ficar acordada durante a noite pensando, será capaz de me ajudar a resolver um problema ou proteger meus filhos que estão na rua
Eu me libertei da necessidade de criar uma conversa mental antes que a conversa real aconteça
Eu me libertei da necessidade de ouvir desculpas
Eu me libertei do medo de perder
Eu me libertei do desejo de entender a morte
Eu me libertei do interesse em ser especial para Deus, para meus pais, para meu chefe ou para meu analista, porque viver já é especial o suficiente.
A liberdade sempre foi um tema muito caro para mim. Minhas opções políticas, filosóficas e religiosas, sempre tiveram a liberdade como diretriz. Minha vida profissional é toda dedicada à liberdade. Mas apesar das grandes liberdades serem a pauta da minha vida, foi na conquista de algumas pequenas liberdades cotidianas que eu encontrei o que procurava.
Eu me libertei da culpa por sair de casa e deixar a cama desarrumada de manhã
Eu me libertei do carro para minhas tarefas do dia a dia
Eu me libertei da pressa para a chegada do final de semana
Eu me libertei do nojo de biscoito que caiu no chão e de lambida de cachorro
Eu me libertei do excesso de preocupação para lembrar de colocar a escova de dente na mala
Eu me libertei do medo de abrir as contas no final do mês
Eu me libertei do medo de sentir medo
Eu me libertei da raiva com as burocracias tolas e desnecessárias, desnecessárias até para merecerem minha raiva
Eu me libertei da necessidade de me queixar com alguém que não seja o atendente de algum SAC
Eu me libertei da vontade de conversar na cama
Eu me libertei da necessidade de falar quando não há nada a ser dito
Eu me libertei do ciúme
Eu me libertei do “espelho, espelho meu...”
Eu me libertei da obrigação de ficar feliz quando estou triste
Eu me libertei do medo de errar ao fazer uma receita pela primeira vez
Eu me libertei da culpa por cometer pequenos pecados como: tomar coca-cola, comer batatas fritas, fumar um cigarro de palha ou gastar demais com um sofá novo.
Eu me libertei da culpa por conseguir passar um dia todo dedicada ao nada
Eu me libertei da necessidade de remoer o passado e da ansiedade em saber do futuro
Eu me libertei das inibições do meu corpo
Eu me libertei da vontade de saber demais
Eu me libertei da prepotência de acreditar que posso salvar todos os cachorros e gatos abandonados da rua ou todos os abandonados do mundo
Eu me libertei da arrogância de sempre saber o que é melhor
Eu me libertei da necessidade de ter o controle sobre tudo
Eu me libertei do medo de dizer não
Eu me libertei do imperativo de ter que tirar uma teia de aranha do teto assim que a vi
Eu me libertei da necessidade de atender as expectativas dos outros ou achar que os outros devem ser como eu gostaria que fossem
Eu me libertei de ter que colocar condições para amar
Eu me libertei das tendências da moda
Eu me libertei do secador de cabelos, da escova e da chapinha
Eu me libertei da preocupação em sair estranha na foto
Eu me libertei da prisão que é se achar insubstituível
Eu me libertei da vergonha ao admitir que fui ridícula
Eu me libertei da vontade de ajeitar os quadros na parede quando estou na casa de um amigo
Eu me libertei da culpa por rejeitar uma ligação
Eu me libertei da ideia de que ficar acordada durante a noite pensando, será capaz de me ajudar a resolver um problema ou proteger meus filhos que estão na rua
Eu me libertei da necessidade de criar uma conversa mental antes que a conversa real aconteça
Eu me libertei da necessidade de ouvir desculpas
Eu me libertei do medo de perder
Eu me libertei do desejo de entender a morte
Eu me libertei do interesse em ser especial para Deus, para meus pais, para meu chefe ou para meu analista, porque viver já é especial o suficiente.
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
Política de saúde para álcool e outras drogas: tratamento ou salvação?
Por Rita de Cássia de A. Almeida
Psicóloga/psicanalista da Rede de Saúde Mental do SUS
A questão da participação das Comunidades Terapêuticas como atores no tratamento das dependências de álcool e outras drogas tem sido um nó para nossa política de saúde mental. Longos e árduos anos de debates, trabalho e militância ativa de familiares, trabalhadores e usuários culminaram da desconstrução progressiva (e que ainda está em curso) de um modelo de tratamento que sempre priorizou e valorizou as longas internações e o isolamento social. Assim sendo, a noção de que as Comunidades Terapêuticas têm se configurado como um passo atrás naquilo que a Reforma Psiquiátrica Brasileira conquistou ao longo das últimas décadas precisa ser considerado, para que não cometamos os mesmo erros de outrora.
Mas além de reinaugurar o isolamento sócio familiar como método de intervenção, as Comunidades Terapêuticas, posto que a grande maioria delas é coordenada e mantida por instituições religiosas, criam uma delicada confusão entre tratamento e salvação. Por considerar que, para ocorrer o tratamento, a salvação espiritual e a crença ou aceitação de Deus/Jesus sejam fundamentais, grande parte dessas instituições se pautam em discursos morais e religiosos que não deveriam ser confundidos com o tratamento em si.
Dias atrás ministrei algumas aulas em uma pós-graduação em saúde mental e, dada a ementa proposta no módulo, o tema das Comunidades Terapêuticas foi inevitável. Na turma havia alunos que, inclusive, trabalhavam nessas instâncias, o que enriqueceu e acalorou bastante as discussões. A defesa pela presença das Comunidades Terapêuticas no cuidado de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas se pautou basicamente na seguinte premissa: elas funcionam em muitos casos.
Meu percurso de 17 anos trabalhando e militando no campo da saúde mental do SUS tem mostrado que as vias possíveis de recuperação e tratamento dos casos de dependência de drogas são múltiplas e diversas. Conheço pessoas que se recuperaram tratando no CAPS ou em outro tipo de serviço ambulatorial. Conheço casos em que a participação em grupos de mutuo ajuda, do tipo AA e NA foram suficientes, sem nem mesmo a necessidade de um serviço de saúde de suporte. Também acompanhei casos em que uma internação em Hospital Geral, numa Comunidade Terapêutica ou mesmo em um Hospital Psiquiátrico, teve efeito terapêutico.
Mas também acompanhei casos onde a vinculação da pessoa a uma religião com códigos morais mais rígidos foi suficiente para uma mudança de comportamento, e casos onde uma eventual prisão ou intervenção judicial (muitas vezes por conseqüência dos efeitos ou do envolvimento com as drogas) também serviu como elemento transformador. Também não é incomum que o aparecimento de uma doença grave, que coloca o sujeito diante da morte, produza um efeito terapêutico que todas as tentativas anteriores não produziram. Quem não assistiu ao filme Clube de Compras Dallas, que assista! E vale lembrar, que a história de Ron, que faz uma virada em sua vida depois de contrair HIV, não é ficção, é real.
Também recomendo o Especial produzido pela HBO: Verdade Fora de Disputa, programa estrelado por Mike Tyson e dirigido por Spike Lee, onde Tyson conta sua trajetória de vida, incluindo seu problema relacionado com álcool e cocaína. No relato do pugilista sua prisão em 1992 foi a responsável pela conversão ao Islamismo e pela subsequente libertação das drogas. O depoimento de Tyson é fundamental para compreendermos a diversidade de discursos que podem figurar como “salvadoras” para o sujeito diante da dependência de drogas. Ou seja, assim como Jesus, Alá também pode salvar.
O fato é que ninguém pode menosprezar ou questionar o efeito terapêutico de nenhuma intervenção ou evento, especialmente quando o próprio sujeito significa tal evento como seu ponto de virada, como sua cura ou mesmo salvação. E quanto mais o adoecimento do sujeito é atravessado pelo campo da subjetividade, tanto mais essas significações são importantes no processo de tratamento e cura.
Num dos CAPS em que atuo, acompanhamos por anos o caso de M., uma dependente grave (álcool, cocaína e crack) para a qual já tínhamos tentado todas as intervenções possíveis, inclusive as de internação. Seu problema com as drogas a levou a cometer pequenos delitos e a se envolver com o tráfico para sustentar o próprio vicio, motivo pelo qual ficou detida por duas vezes. M. teve dois filhos que foram praticamente criados pela avó (mãe de M.). Uma de suas filhas R., que vimos crescer durante o processo de tratamento, mostrou-se tão madura que, quando adolescente, acabou por assumir funções de cuidar da mãe, ao invés de ser cuidada por ela. O tratamento de M. seguia entre pequenas melhoras e grandes e nocivas recaídas até que R. (filha de M.) engravidou e deu a luz a uma criança com problemas graves de saúde. R. que se mostrava tão madura e responsável não reagiu bem à situação e caiu em depressão. Quando achávamos que M. sucumbiria diante do novo desenho familiar, eis que ela simplesmente renasce, ressignifica completamente sua posição diante das drogas e não só se afasta delas, como passa a ser aquela que vai cuidar do neto e da filha. Na construção de sentido de M., seu neto nasceu com problemas exatamente para que ela se libertasse das drogas.
Podemos nos reportar ou construir uma dezena de teorias “psi” para explicar como se deu a entrada deste bebê na dinâmica de M. e sua família, e de como isso fez com que a droga deixasse de ocupar o centro da vida de M., entretanto, não podemos de forma nenhuma menosprezar a construção feita por ela: que a doença do neto foi sua porta de saída das drogas. Quem sou eu, ou quem somos nós para questionar e desprezar a construção de M.? Quem somos nós para questionar o sentido que Tyson deu para a sua prisão e conversão ao Islamismo? Quem somos nós para menosprezar quando alguém nos diz que Deus ou Jesus lhe “tirou das drogas”? Quem somos nós para questionar alguém que se diz grato por ter contraído uma doença terminal ou ter sido preso, já que foi esse seu ponto de virada para o tratamento?
Não. Ninguém tem o direito de descontruir a construção de ninguém, especialmente quando ela é produto da dor, do sofrimento, do desespero ou do desejo de se curar. Sendo assim, não podemos negar que o discurso da salvação, explorado por grande parte das Comunidades Terapêuticas, tenha seu efeito de construção significante para algumas pessoas. No entanto, uma coisa é dizer que o discurso da salvação pode ser uma das portas de saída para o problema das drogas, outra coisa é assumir o discurso da salvação como norte dentro da política pública sobre álcool e outras drogas. Ou seja, o discurso da salvação ou da crença pode ter efeito terapêutico para algumas pessoas (e é obvio que tem), mas isso não quer dizer que possamos sustentar dentro da política de saúde mental, terapêuticas baseadas nesses tipos de discurso.
O discurso da salvação ou da crença podem atravessar as pessoas que fazem uso do SUS, mas não podem nortear políticas do SUS. Da mesma maneira, posso considerar que o nascimento do neto de M. com uma doença grave tenha tido efeito terapêutico em sua luta contra a dependência, mas não posso propor que “ter um neto com doença” seja diretriz política para tratamento de drogas. Assim como não podemos propor como política de drogas, a prisão, infecção por HIV e a conversão ao Cristianismo ou ao Islamismo.
Por isso, advogar que as Comunidades Terapêuticas devam participar da política de álcool e outras drogas porque sua estratégia de salvação e de conversão funciona para muitos casos, é um argumento muito frágil. Para participar do SUS é preciso muito mais do que isso, é preciso se submeter aos seus princípios e respeitar suas instâncias. Que alguns desejem e até conquistem a salvação, tudo bem! Mas que isso não seja feito em nome do SUS, já que a missão do SUS é o tratamento e seus desdobramentos: a prevenção e a reabilitação ou reinserção psicossocial.
terça-feira, 15 de julho de 2014
O futebol vive!
por Rita Almeida
Depois de uma semana melancólica para nossa seleção a única coisa que me consola é saber que o futebol vai sobreviver.
O futebol vai sobreviver na pelada dos garotos da minha rua, onde o campo é de asfalto e as traves são chinelos de dedo. Um futebol que ainda resiste ao tráfego intenso e às tecnologias virtuais.
O futebol vai sobreviver na pureza das nossas crianças pequenas, que antes mesmo de aprenderem a andar com destreza, ensaiam um chute a gol. Um ato corriqueiro por aqui, e que denuncia o quanto futebol está enraizado na nossa cultura.
O futebol vai sobreviver nas peladas de várzea que acontecem em todos os cantos desse país. Um futebol que, muitas vezes, sobra peso e falta forma física, mas que faz uma coisa fundamental: reúne amigos.
O futebol vai sobreviver, semanalmente, na Oficina de Futebol que eu coordeno no CAPS Leste, serviço de saúde mental do SUS. Nessa oficina, o futebol serve como via de tratamento e inserção psicossocial. Só quem conhece esse tipo de trabalho, sabe os milagres que a linguagem universal do futebol pode fazer.
O futebol vai sobreviver na promessa da minha filha de 7 anos. Ela me disse que quando crescer vai conseguir assistir a outros jogos de futebol, não só os da seleção brasileira. Me fez essa promessa, quando a convidei para assistir comigo a final Alemanha x Argentina.
O futebol vai sobreviver na fé do torcedor e na rivalidade das torcidas.
Enfim, o futebol vai sobreviver, porque é muito maior que essa Copa e muito maior que a seleção brasileira e os nossos clubes de futebol.
O futebol é infinitamente maior que a FIFA, a CBF, que seus dirigentes e cartolas corruptos e obscenos.
O futebol é maior que o nossas escolinhas de base medíocres, que não servem para democratizar o futebol ou fazer surgir talentos, são, muitas vezes, apenas fábricas de mercadoria humana tipo exportação.
O futebol é maior que os acordos espúrios feitos fora do campo para favorecer determinados canais de TV.
O futebol vale mais que seus patrocinadores, que o comércio que gira em torno dele. O futebol vale muito mais do que todo o dinheiro que movimenta, aqui e acolá.
Me apaixonei por futebol aos 12 anos, acompanhando pela TV, junto com meu pai, a trajetória do Flamengo na conquista do Mundial de Interclubes de 1981. Zico e Nunes se tornaram meus heróis. Aquela final com o Liverpool está entre as melhores e mais emocionantes lembranças da minha infância. Isso que eu vivi com o futebol não tem preço e nem tamanho.
Não gosto de viver de passado e também não tenho a síndrome de “meia noite em Paris”, aquela que nos faz acreditar que o passado sempre foi melhor ou mais romântico que hoje, mas confesso que tenho saudade de um futebol menos capitalista, menos pervertido pelo dinheiro e pelos lucros.
Também não faço a menor ideia de como vamos fazer para recuperar o futebol brasileiro no nível macro, depois dessa última experiência da nossa seleção brasileira. Espero, sinceramente, que o fracasso nos impulsione para uma grande mudança, assim como deve ser. O que eu sei é que no nível micro, o futebol não vai parar, porque ele, simplesmente, não pode esperar que a gente remende os cacos dessa derrota.
Hoje é domingo e amanhã pela manhã estarei com os participantes da Oficina de Futebol do CAPS Leste, fazendo nosso treino. E no mesmo clube que nos cede espaço para treinar, estarão meninos e meninas de 7 a 12 anos, que no contra turno da escola participam de uma escolinha de futebol. Experiências como essa acontecerão aos montes pelo Brasil afora, porque o futebol continua vivo, presente e forte!
Meu desejo, hoje, é que a gente não demore muito tempo para perceber que o nosso futebol não morreu. Está ferido sim, quebrado talvez, mas vivo. E tomara que a gente saiba aproveitar toda essa vitalidade para seguir em frente e numa outra direção. E tomara que a gente não espere o segundo tempo da prorrogação para reagir.
Depois de uma semana melancólica para nossa seleção a única coisa que me consola é saber que o futebol vai sobreviver.
O futebol vai sobreviver na pelada dos garotos da minha rua, onde o campo é de asfalto e as traves são chinelos de dedo. Um futebol que ainda resiste ao tráfego intenso e às tecnologias virtuais.
O futebol vai sobreviver na pureza das nossas crianças pequenas, que antes mesmo de aprenderem a andar com destreza, ensaiam um chute a gol. Um ato corriqueiro por aqui, e que denuncia o quanto futebol está enraizado na nossa cultura.
O futebol vai sobreviver nas peladas de várzea que acontecem em todos os cantos desse país. Um futebol que, muitas vezes, sobra peso e falta forma física, mas que faz uma coisa fundamental: reúne amigos.
O futebol vai sobreviver, semanalmente, na Oficina de Futebol que eu coordeno no CAPS Leste, serviço de saúde mental do SUS. Nessa oficina, o futebol serve como via de tratamento e inserção psicossocial. Só quem conhece esse tipo de trabalho, sabe os milagres que a linguagem universal do futebol pode fazer.
O futebol vai sobreviver na promessa da minha filha de 7 anos. Ela me disse que quando crescer vai conseguir assistir a outros jogos de futebol, não só os da seleção brasileira. Me fez essa promessa, quando a convidei para assistir comigo a final Alemanha x Argentina.
O futebol vai sobreviver na fé do torcedor e na rivalidade das torcidas.
Enfim, o futebol vai sobreviver, porque é muito maior que essa Copa e muito maior que a seleção brasileira e os nossos clubes de futebol.
O futebol é infinitamente maior que a FIFA, a CBF, que seus dirigentes e cartolas corruptos e obscenos.
O futebol é maior que o nossas escolinhas de base medíocres, que não servem para democratizar o futebol ou fazer surgir talentos, são, muitas vezes, apenas fábricas de mercadoria humana tipo exportação.
O futebol é maior que os acordos espúrios feitos fora do campo para favorecer determinados canais de TV.
O futebol vale mais que seus patrocinadores, que o comércio que gira em torno dele. O futebol vale muito mais do que todo o dinheiro que movimenta, aqui e acolá.
Me apaixonei por futebol aos 12 anos, acompanhando pela TV, junto com meu pai, a trajetória do Flamengo na conquista do Mundial de Interclubes de 1981. Zico e Nunes se tornaram meus heróis. Aquela final com o Liverpool está entre as melhores e mais emocionantes lembranças da minha infância. Isso que eu vivi com o futebol não tem preço e nem tamanho.
Não gosto de viver de passado e também não tenho a síndrome de “meia noite em Paris”, aquela que nos faz acreditar que o passado sempre foi melhor ou mais romântico que hoje, mas confesso que tenho saudade de um futebol menos capitalista, menos pervertido pelo dinheiro e pelos lucros.
Também não faço a menor ideia de como vamos fazer para recuperar o futebol brasileiro no nível macro, depois dessa última experiência da nossa seleção brasileira. Espero, sinceramente, que o fracasso nos impulsione para uma grande mudança, assim como deve ser. O que eu sei é que no nível micro, o futebol não vai parar, porque ele, simplesmente, não pode esperar que a gente remende os cacos dessa derrota.
Hoje é domingo e amanhã pela manhã estarei com os participantes da Oficina de Futebol do CAPS Leste, fazendo nosso treino. E no mesmo clube que nos cede espaço para treinar, estarão meninos e meninas de 7 a 12 anos, que no contra turno da escola participam de uma escolinha de futebol. Experiências como essa acontecerão aos montes pelo Brasil afora, porque o futebol continua vivo, presente e forte!
Meu desejo, hoje, é que a gente não demore muito tempo para perceber que o nosso futebol não morreu. Está ferido sim, quebrado talvez, mas vivo. E tomara que a gente saiba aproveitar toda essa vitalidade para seguir em frente e numa outra direção. E tomara que a gente não espere o segundo tempo da prorrogação para reagir.
O legado subjetivo da Copa
Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
Ao contrário do que muitos pensam a Copa não fez de nós melhores ou piores do que já éramos. Querem ver? Listem tudo o que foi considerado um sucesso nessa Copa ou todas as mazelas que se atribuiu a ela e me digam: aparece nessa lista alguma coisa diferente do que já fazia parte da realidade brasileira?
A Copa é um acontecimento. Um acontecimento, por si só, não é capaz de nos transformar em algo para além de nós mesmos, no entanto, é capaz de evidenciar, destacar nossas peculiaridades. A vida segue sem saltos e a gente se acomoda, mas basta um acontecimento pra gente se re-conhecer e se aperfeiçoar (se soubermos aproveitar a oportunidade, é claro!).
Eu sempre fui contra o movimento #nãovaitercopa. Primeiro porque eu amo futebol e segundo porque seria negar uma oportunidade única de nos conhecermos mais enquanto nação, enquanto povo. Saber mais sobre o que somos e, obviamente, o que queremos. Eu confesso que temia o que iria ver. Tinha medo de que tudo o que diziam sobre nós fosse realmente verdade e também temi o fim dos tempos anunciado na TV, jornais e revistas.
O Mundial termina em alguns dias. Muito se diz sobre os legados econômicos e estruturais que a Copa poderá nos deixar, sejam eles positivos ou negativos. Pois eu acho que o maior legado dessa Copa é subjetivo e muito mais importante, e tem a ver com a distância abissal entre aquilo que se imaginava sobre uma Copa no Brasil e o que ela realmente tem sido. Eu estou certa de que, se a Copa no Brasil foi um sucesso apesar de tudo (da FIFA, da corrupção, das empresas e empreiteiras de péssima índole, da mídia, da política de esgoto, dos cartolas e outros) foi por causa de uma força poderosíssima que não se pode subestimar nunca mais chamada: PAIXÃO PELO FUTEBOL. Nesse caso, eu não estou falando apenas do futebol dos clubes ou do jogo jogado dentro das quatro linhas do campo, estou falando do futebol que faz parte da nossa cultura e da nossa história. O futebol está tão entranhado no DNA brasileiro que mesmo quem diz não gostar do esporte é incapaz de ficar fora de sua influência. Ou eu estou enganada?
Então, no meu entendimento, o grande legado dessa Copa, com ou sem o hexa, é que ninguém pode duvidar da capacidade do Brasil quando movido por essa grande paixão chamada futebol. Alguém disse antes da Copa que precisamos de serviços de saúde e educação de qualidade e não de Copa do Mundo. Na ocasião eu já pensava que tais investimentos não seriam excludentes, mas complementares. Mas hoje, diante da explosão positiva que foi essa Copa no Brasil eu tendo a pensar que qualquer política pública, seja ela de saúde, de segurança, de educação ou de mobilidade urbana, precisa levar em conta nossa ligação afetiva e intensa com o futebol. Através e a partir do futebol, esse esporte que nos identifica e nos representa, podemos ir muito melhor e muito mais longe. E que ninguém nunca mais duvide disso!
segunda-feira, 7 de julho de 2014
É isso
por Rita de Cássia Araújo Almeida
No caso Zuñiga x Neymar, assim como na vida, muitas vezes demoramos muito a chegar ao que Lacan chamou de "c'est ça" ou traduzindo: "é isso". Chegar ao "é isso" é chegar num ponto de entender que não há queixa, vingança, tristeza ou ódio que mudará um determinado fato. Se deparar com o "é isso" é compreender que há o imponderável, o inevitável, o incontornável, "o que não em remédio, nem nunca terá", na vida e no futebol.
O fato é que Neymar está fora da Copa, não há nenhuma queixa, vingança ou discurso inflamado contra o tal Zuñiga que fará isso mudar. Então o que nos resta é lidar com o "é isso" e seguir em frente, segue o jogo, como se diz em linguagem futebolística.
Entretanto, muitas vezes, na mídia, a repetição exagerada do evento é intencional. Repete-se a cena mil vezes, de diferentes ângulos, e os especialistas (argh!) analisam o avesso, o direito, o transverso do evento apenas para ganhar ibope. O efeito dessa repetição é que ela aprisiona as pessoas nesse discurso do "tem que fazer alguma coisa, nem que seja xingar a filha de dois anos do Zuñiga", impedindo que cheguemos a conclusão do "é isso". Feliz daqueles que conseguem se libertar desse aprisionamento.
No depoimento de Neymar fica claro que ele já chegou ao "é isso", tenho certeza que a seleção está buscando chegar ao "é isso" o mais rápido possível e, se eu conheço o estilo Felipão, ele já chegou no "é isso" faz tempo. Então agora é nossa vez, pessoal: "é isso": não teremos mais Neymar na Copa, mas segue o jogo. Deixemos o Zuñiga à cargo da FIFA e de seu próprio ato.
No caso Zuñiga x Neymar, assim como na vida, muitas vezes demoramos muito a chegar ao que Lacan chamou de "c'est ça" ou traduzindo: "é isso". Chegar ao "é isso" é chegar num ponto de entender que não há queixa, vingança, tristeza ou ódio que mudará um determinado fato. Se deparar com o "é isso" é compreender que há o imponderável, o inevitável, o incontornável, "o que não em remédio, nem nunca terá", na vida e no futebol.
O fato é que Neymar está fora da Copa, não há nenhuma queixa, vingança ou discurso inflamado contra o tal Zuñiga que fará isso mudar. Então o que nos resta é lidar com o "é isso" e seguir em frente, segue o jogo, como se diz em linguagem futebolística.
Entretanto, muitas vezes, na mídia, a repetição exagerada do evento é intencional. Repete-se a cena mil vezes, de diferentes ângulos, e os especialistas (argh!) analisam o avesso, o direito, o transverso do evento apenas para ganhar ibope. O efeito dessa repetição é que ela aprisiona as pessoas nesse discurso do "tem que fazer alguma coisa, nem que seja xingar a filha de dois anos do Zuñiga", impedindo que cheguemos a conclusão do "é isso". Feliz daqueles que conseguem se libertar desse aprisionamento.
No depoimento de Neymar fica claro que ele já chegou ao "é isso", tenho certeza que a seleção está buscando chegar ao "é isso" o mais rápido possível e, se eu conheço o estilo Felipão, ele já chegou no "é isso" faz tempo. Então agora é nossa vez, pessoal: "é isso": não teremos mais Neymar na Copa, mas segue o jogo. Deixemos o Zuñiga à cargo da FIFA e de seu próprio ato.
segunda-feira, 30 de junho de 2014
30 coisas que aprendemos com a Copa, até agora:
1. Nós, brasileiros, somos melhores e mais competentes do que acreditamos ser.
2. Boa parte da grande mídia brasileira se comporta como abutres, torcem pela desgraça para se refestelarem com os cadáveres.
3. Nossa polícia é violenta: com ou sem Copa.
4. O conceito “padrão FIFA” não é sinônimo de excelência.
5. O sistema de cotas para negros ainda é fundamental para reduzir a distância entre brancos e negros no Brasil, sem cotas não teremos negros nas Universidades, do mesmo modo como não tivemos negros nas arquibancadas dos estádios.
6. Num estádio de futebol, as únicas pessoas que você pode mandar tomar naquele lugar sem causar uma comoção social continuam sendo os árbitros e os bandeirinhas.
7. Vaiar o Hino Nacional da equipe adversária é feio, muito feio.
8. Tradição, camisa e favoritismo não ganham jogo.
9. O futebol nem sempre é justo, nem sempre a melhor equipe vence.
10. Mas vence sempre a equipe que faz mais gols, portanto, Deus castiga quem joga na retranca
.
11. Árbitros e bandeirinhas erram; isso faz parte do futebol e é o que mantém o jogo vivo entre uma partida e outra.
12. Narradores e comentaristas de futebol são quase sempre figuras chatas, são pouquíssimos os que conseguem evitar esse fato.
13. Datena também é chato narrando futebol, mas é bem menos nocivo do que como jornalista policial.
14. Futebolizar a política é uma ideia estúpida.
15. Politizar o futebol é uma boa ideia.
16. Qualquer movimento de contestação ou revolucionário que negue nossa paixão pelo futebol tenderá ao fracasso, por isso, o #nãovaitercopa não vingou. Quem sabe poderíamos ter pensado num #vaitercopa #masvaiterluta?
17. Quem acreditou que iria ganhar votos nas próximas eleições apostando no fracasso da Copa no Brasil se lascou, terá que arranjar outra estratégia.
18. Nós queremos escolas, educação de qualidade, serviços de saúde, segurança, mas também queremos futebol. E porque não?
19. Ninguém gosta da FIFA.
20. O Fuleco, como prevíamos, foi um fiasco. Não se deve dar a ninguém que se queira bem o apelido do orifício anal.
21. Colecionar o álbum de figurinhas da copa foi uma das melhores coisas que aconteceu no evento.
22. Aquilo que a gente aprende aos três anos de idade continua valendo: não pode morder os coleguinhas.
23. A bunda do Hulk é um monumento à liberação sexual feminina.
24. “Sou brasileiro, com muito orgulho e com muito amor” já encheu o saco.
25. É totalmente possível para um homem chorar, demonstrar fragilidade e ser capaz de catar dois pênaltis logo em seguida diante do mundo todo.
26. Curiosamente, reclamamos mais quando somos favorecidos pela arbitragem do que quando somos prejudicados por ela.
27. Durante uma disputa de pênaltis da seleção brasileira, até os não crentes rezam.
28. As cores verde e amarelo definitivamente não combinam, mas ficam lindas quando se juntam na época da Copa.
29. Somos muito exigentes com o escrete canarinho, para satisfazer nossa torcida não basta vencer, é preciso convencer.
30. Nós, brasileiros, amamos futebol, e quem não entendeu isso, não entendeu nada sobre o Brasil.
2. Boa parte da grande mídia brasileira se comporta como abutres, torcem pela desgraça para se refestelarem com os cadáveres.
3. Nossa polícia é violenta: com ou sem Copa.
4. O conceito “padrão FIFA” não é sinônimo de excelência.
5. O sistema de cotas para negros ainda é fundamental para reduzir a distância entre brancos e negros no Brasil, sem cotas não teremos negros nas Universidades, do mesmo modo como não tivemos negros nas arquibancadas dos estádios.
6. Num estádio de futebol, as únicas pessoas que você pode mandar tomar naquele lugar sem causar uma comoção social continuam sendo os árbitros e os bandeirinhas.
7. Vaiar o Hino Nacional da equipe adversária é feio, muito feio.
8. Tradição, camisa e favoritismo não ganham jogo.
9. O futebol nem sempre é justo, nem sempre a melhor equipe vence.
10. Mas vence sempre a equipe que faz mais gols, portanto, Deus castiga quem joga na retranca
.
11. Árbitros e bandeirinhas erram; isso faz parte do futebol e é o que mantém o jogo vivo entre uma partida e outra.
12. Narradores e comentaristas de futebol são quase sempre figuras chatas, são pouquíssimos os que conseguem evitar esse fato.
13. Datena também é chato narrando futebol, mas é bem menos nocivo do que como jornalista policial.
14. Futebolizar a política é uma ideia estúpida.
15. Politizar o futebol é uma boa ideia.
16. Qualquer movimento de contestação ou revolucionário que negue nossa paixão pelo futebol tenderá ao fracasso, por isso, o #nãovaitercopa não vingou. Quem sabe poderíamos ter pensado num #vaitercopa #masvaiterluta?
17. Quem acreditou que iria ganhar votos nas próximas eleições apostando no fracasso da Copa no Brasil se lascou, terá que arranjar outra estratégia.
18. Nós queremos escolas, educação de qualidade, serviços de saúde, segurança, mas também queremos futebol. E porque não?
19. Ninguém gosta da FIFA.
20. O Fuleco, como prevíamos, foi um fiasco. Não se deve dar a ninguém que se queira bem o apelido do orifício anal.
21. Colecionar o álbum de figurinhas da copa foi uma das melhores coisas que aconteceu no evento.
22. Aquilo que a gente aprende aos três anos de idade continua valendo: não pode morder os coleguinhas.
23. A bunda do Hulk é um monumento à liberação sexual feminina.
24. “Sou brasileiro, com muito orgulho e com muito amor” já encheu o saco.
25. É totalmente possível para um homem chorar, demonstrar fragilidade e ser capaz de catar dois pênaltis logo em seguida diante do mundo todo.
26. Curiosamente, reclamamos mais quando somos favorecidos pela arbitragem do que quando somos prejudicados por ela.
27. Durante uma disputa de pênaltis da seleção brasileira, até os não crentes rezam.
28. As cores verde e amarelo definitivamente não combinam, mas ficam lindas quando se juntam na época da Copa.
29. Somos muito exigentes com o escrete canarinho, para satisfazer nossa torcida não basta vencer, é preciso convencer.
30. Nós, brasileiros, amamos futebol, e quem não entendeu isso, não entendeu nada sobre o Brasil.
quarta-feira, 25 de junho de 2014
Sobre a Copa no Brasil
E essa é a Copa do Sobrenatural de Almeida,
personagem de Nelson Rodrigues)
Uma copa pra silenciar comentaristas e especialistas,
Pra furar as estatísticas e desbancar favoritismos.
Adoro quando os especialistas ficam de joelhos diante do inexplicável
E as previsões vão pro espaço.
Nessa Copa tudo é possível.
Porque todas as portas estão abertas
Inclusive as portas do improvável
Nessa Copa
O único favorito se chama gol
Porque no Brasil futebol não é prosa,
é poesia.
personagem de Nelson Rodrigues)
Uma copa pra silenciar comentaristas e especialistas,
Pra furar as estatísticas e desbancar favoritismos.
Adoro quando os especialistas ficam de joelhos diante do inexplicável
E as previsões vão pro espaço.
Nessa Copa tudo é possível.
Porque todas as portas estão abertas
Inclusive as portas do improvável
Nessa Copa
O único favorito se chama gol
Porque no Brasil futebol não é prosa,
é poesia.
terça-feira, 27 de maio de 2014
Sobre Rita de Cássia e causas impossíveis
No último dia 22 de maio foi dia de Santa Rita de Cássia e também, faz três meses que meu pai se foi. Santa Rita, a Santa das causas impossíveis, me deu o nome, graças a devoção de meus pais, que um dia viveram um amor impossível. Sendo assim, entregaram nas mãos dessa Santa a promessa de que a primeira filha se chamaria Rita de Cássia, caso o amor deles se consumasse no casamento. Graça alcançada, promessa cumprida. E aqui estou eu que sempre carreguei esse nome com muito orgulho. Sou fruto do amor de duas pessoas incríveis, mas também, por ocasião desse enredo, me sinto também de certa forma, uma espécie de patrocinadora deste amor. (E meus amigos psicanalistas vão concordar, esse enredo me economizou muitos anos de análise, rs).
Então cresci indo todos os anos na Matriz de Santa Rita de Cássia, cumprindo essa promessa que tanto me honra e encanta, hábito que mantenho até hoje. Ouvi mil vezes a história da Santa que recebeu um dos espinhos da coroa de Cristo em sua testa.
Mas a história mais bonita sobre essa personagem, que faz parte da minha vida antes mesmo de eu estar neste mundo, eu li há cerca de 6 anos, num livro chamado Rita, A Santa do Impossível de Juan Arias. O livro conta a história da Rita mulher, antes de ser canonizada pela Igreja. O autor é um historiador e não um religioso. Achei o livro por acaso, vasculhando aleatoriamente as prateleiras de uma livraria, como de costume. Rita viveu nos séculos XIV e XV e, numa época em que desavenças entre famílias eram perpetuadas com ódio e vingança.Mas Rita era uma conciliadora, era chamada para resolver com diálogo, o que só se resolveria com sangue e ficou muito conhecida pela sua capacidade de conciliar o irreconciliável. Rita era capaz de fazer laço e reatar ligações onde tudo parecia perdido, daí o seu título: advogada as causas impossíveis.
Então é isso... hoje minha fé se resume no amor, que nada mais é do que aquilo capaz de fazer laço e também aprendi isso com Rita (mais inconscientemente do que conscientemente, certamente). Esse é o Deus no qual acredito: tudo que promove o laço faz deste mundo um mundo melhor...
18 DE MAIO DE 2014, 26 ANOS DE LUTA ANTIMANICOMIAL – ORGULHO DE FAZER PARTE DESSA HISTÓRIA!
Rita de Cássia de A Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Na última semana fiquei muito feliz acompanhando vários eventos e manifestações pelo 18 de maio, Dia Nacional de Luta Antimanicomial, nos municípios aqui da minha região. Também acompanhei através das postagens de inúmeros amigos virtuais das redes sociais, a potência das manifestações que ocorreram por todo o Brasil. Alguns desses amigos eu nunca vi, mas também são meus companheiros de caminhada nessa luta "Por uma Sociedade sem Manicômios" que abracei em 1996.
Queria dizer que tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento, que vem, ao longo desses 26 anos, mudando a história de muitas pessoas e muitas famílias, mas que também mudou a minha própria história; foi um divisor de águas na minha vida. Tenho orgulho de fazer parte do SUS que dá certo, que trabalha com compromisso, com desejo, com interesse de estudar e se capacitar, um SUS que constrói laços, fomenta redes, encontros e afetos.
Fala-se muito mal do SUS, na mídia e nas redes sociais, por isso, infelizmente muitos, acreditam que ele só tenha mazelas e defeitos, mas não é verdade, grande parte do SUS faz muita diferença para nossa população e deveríamos nos orgulhar dele. Eu não sei se isso acontece com outros militantes da luta, em outros lugares do país, mas sempre que fazemos eventos públicos com usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental para falarmos dos trabalhos dos CAPS e outros Serviços Substitutivos, muitas pessoas na rua nos abordam e perguntam quem financia o serviço e quando falamos que se trata de um serviço gratuito do SUS as pessoas ficam admiradas. Não imaginam que exista um SUS dessa qualidade, que promove saúde, alegria, arte, cultura, beleza...
Outra coisa da qual me orgulho é de fazer parte de um movimento social e político, um dos maiores que o Brasil já teve (se não estou enganada, só não foi maior do que o do MST) que trava suas lutas e batalhas com muita garra, mas também, com muito afeto e alegria. O estilo de militância inventada pelo Movimento Nacional de Luta Antimanicomial deveria ser estudado, aprendido e vivenciado por outros movimentos políticos e sociais. Duvido de qualquer movimento político, social ou militância que não seja capaz de fazer laço, que não seja capaz de aproximar as pessoas. E, para tal, acredito que duas características são fundamentais: apelo estético e senso de humor. Então, eu preciso dizer que eu nunca vi uma militância mais bonita e alegre que a nossa. Quando vejo gente fazendo militância feia, burra, violenta, que só afasta as pessoas, que só cria mais distâncias e aprisiona, sinto pena. Fico pensando: “e dizem que os loucos estão é do lado de cá...”.
Para finalizar, eu quero parabenizar a todos os usuários, familiares e trabalhadores da Saúde Mental do Brasil, pela sua luta, pelas suas vitórias, pela estrada percorrida e que tenhamos ainda muito desejo, afeto e alegria para travar as lutas que ainda temos pela frente. Eu tenho muito orgulho de caminhar com vocês!!
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Na última semana fiquei muito feliz acompanhando vários eventos e manifestações pelo 18 de maio, Dia Nacional de Luta Antimanicomial, nos municípios aqui da minha região. Também acompanhei através das postagens de inúmeros amigos virtuais das redes sociais, a potência das manifestações que ocorreram por todo o Brasil. Alguns desses amigos eu nunca vi, mas também são meus companheiros de caminhada nessa luta "Por uma Sociedade sem Manicômios" que abracei em 1996.
Queria dizer que tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento, que vem, ao longo desses 26 anos, mudando a história de muitas pessoas e muitas famílias, mas que também mudou a minha própria história; foi um divisor de águas na minha vida. Tenho orgulho de fazer parte do SUS que dá certo, que trabalha com compromisso, com desejo, com interesse de estudar e se capacitar, um SUS que constrói laços, fomenta redes, encontros e afetos.
Fala-se muito mal do SUS, na mídia e nas redes sociais, por isso, infelizmente muitos, acreditam que ele só tenha mazelas e defeitos, mas não é verdade, grande parte do SUS faz muita diferença para nossa população e deveríamos nos orgulhar dele. Eu não sei se isso acontece com outros militantes da luta, em outros lugares do país, mas sempre que fazemos eventos públicos com usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental para falarmos dos trabalhos dos CAPS e outros Serviços Substitutivos, muitas pessoas na rua nos abordam e perguntam quem financia o serviço e quando falamos que se trata de um serviço gratuito do SUS as pessoas ficam admiradas. Não imaginam que exista um SUS dessa qualidade, que promove saúde, alegria, arte, cultura, beleza...
Outra coisa da qual me orgulho é de fazer parte de um movimento social e político, um dos maiores que o Brasil já teve (se não estou enganada, só não foi maior do que o do MST) que trava suas lutas e batalhas com muita garra, mas também, com muito afeto e alegria. O estilo de militância inventada pelo Movimento Nacional de Luta Antimanicomial deveria ser estudado, aprendido e vivenciado por outros movimentos políticos e sociais. Duvido de qualquer movimento político, social ou militância que não seja capaz de fazer laço, que não seja capaz de aproximar as pessoas. E, para tal, acredito que duas características são fundamentais: apelo estético e senso de humor. Então, eu preciso dizer que eu nunca vi uma militância mais bonita e alegre que a nossa. Quando vejo gente fazendo militância feia, burra, violenta, que só afasta as pessoas, que só cria mais distâncias e aprisiona, sinto pena. Fico pensando: “e dizem que os loucos estão é do lado de cá...”.
Para finalizar, eu quero parabenizar a todos os usuários, familiares e trabalhadores da Saúde Mental do Brasil, pela sua luta, pelas suas vitórias, pela estrada percorrida e que tenhamos ainda muito desejo, afeto e alegria para travar as lutas que ainda temos pela frente. Eu tenho muito orgulho de caminhar com vocês!!
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Qual é a diferença entre um bom hospital e um bom hotel?
por Rita de Cássia de A Almeida
trabalhadora do SUS
Há quem não saiba diferenciar um bom hospital de um bom hotel. Quando atravessamos os corredores de um belo hospital, de paredes brancas e arquitetura fina, com profissionais devidamente uniformizados, nos sentimos seguros e protegidos, certos de que a boa hotelaria é o reflexo de um bom atendimento, todavia, isso nem sempre é verdade. Obviamente que quase ninguém rejeita conforto, beleza, limpeza e organização, mas será que tais quesitos são matéria prima suficiente para fazer um hospital qualidade?
Neste mês, estive junto a uma amiga em sua saga de aproximadamente três semanas, passando várias vezes pela urgência dos dois hospitais PARTICULARES mais bem avaliados da minha cidade, saga que, por falta de um acolhimento humanizado seguido de equívocos diagnósticos crassos, poderia ter ocasionado um final trágico. Tais hospitais poderiam ser categorizados como excelentes hotéis, um deles, com certeza, receberia cinco estrelas, mas, será que é disso mesmo que precisamos em um bom hospital?
Coincidentemente, a matéria de capa da Revista Época desta semana, intitulada: "Porque a medicina pode levar você à falência", também levanta tal questão. Ter um plano de saúde hoje é uma das maiores aspirações da população, no entanto, a promessa das seguradoras de saúde de que as falhas apresentadas pelo SUS serão sanadas com a aquisição de um plano privado, podem ser apenas uma armadilha, como se vê na reportagem. Sabemos que os planos funcionam muito bem para as consultas médicas de rotina e intervenções de baixa ou média complexidade, mas quando a necessidade é para intervenções de alta complexidade, ou seja, aquelas que realmente vão fazer diferença entre a vida e a morte do paciente, os planos de saúde saem de cena. Sendo assim, a matéria mostra a tragédia de inúmeras famílias ricas que foram à bancarrota financeira por decidirem assumir dívidas que as seguradoras de saúde se recusaram a pagar. Afinal, diante da tarefa impossível de decidir entre a morte do ente querido ou assinar um “cheque em branco” num hospital particular, quem decidirá pela morte? (Infelizmente a matéria não revela que muitas vezes é o SUS, e não as famílias abastadas, que pagam a conta quando o plano de saúde se recusa a pagar. Estimativas mais conservadoras dizem que as seguradoras de saúde devem ao SUS cerca de R$ 2 bilhões por ano. Para se ter uma ideia de 2005 a 2010, último ano sobre o qual há dados disponíveis, o aumento de internações de clientes dos planos em hospitais do SUS foi de nada menos do que 59,7%.)
A matéria segue com uma entrevista com Vijay Govindarajan, consultor especialista influente no mundo dos negócios que se dedicou a estudar o sucesso de nove hospitais particulares na Índia, sua terra natal. Govindarajan critica o modelo hospitalar brasileiro dizendo que ele gasta demais e de maneira pouco inteligente. “Os grandes hospitais parecem hotéis cinco estrelas. Isso não faz diferença no resultado”- afirma. Ou seja, a hotelaria de primeira encarece o custo do hospital para aquilo que não fará a menor diferença no tratamento de fato. Por outro lado, economizar no que não é imprescindível, tanto permitiria que o hospital investisse mais no que realmente importa, tal como, profissionais qualificados e humanização, quanto poderia baratear o custo dos tratamentos, possibilitando que os planos arcassem com um espectro maior de intervenções.
O que vi acompanhando minha amiga na sua via crucis foi exatamente isso: hotelaria nota dez, arquitetura linda, jardim de inverno, TV com canal por assinatura, telefone no quarto, cuidados de enfermagem e serviço de quarto nota mil. Mas, o trágico é que ela poderia não ter sobrevivido à intervenção da porta de emergência do hospital para gozar de toda essa hospitalidade e conforto. E não pensem que ela correu esse risco por falta de exames? Foram muitos. Os mesmos repetidos em todas as vezes que ela entrou na emergência com dores fortíssimas nas costas. Sabemos que tais exames também não são baratos, mas se esqueceram de que é necessário um bom profissional que saiba lê-los, e que, sobretudo saiba utilizá-los para fazer uma boa clínica. E uma boa clínica é aquela que sabe ver a pessoa, e entende que o exame é apenas um método auxiliar para se fazer uma hipótese diagnóstica. Mas o que eu vi foi profissionais que simplesmente não viram a pessoa que ali estava, só buscavam confirmar uma hipótese diagnóstica por meio de um exame e quando não “encontravam nada”, repetiam o exame. Resultado: paga-se muito caro numa clínica ruim, que olha - e possui instrumentos e exames variados para olhar melhor e mais fundo - mas não sabe ver, porque também só ouve, mas não sabe escutar. Este é outro exemplo de como o hospital gasta mal seus recursos. Investe muito em instrumentos que olham e ouvem e pouquíssimo no profissional, o único capaz de ver e escutar.
Enfim, creio que estamos esquecendo que uma boa medicina se faz primeiramente com bons profissionais, já que, hotelaria e tecnologia só servirão caso a primeira prerrogativa for atendida. Por isso, não se enganem com fachada de mármore, jardim na recepção, obras de arte nas paredes, quartos amplos e serviço de quarto de primeira, não é isso que irá salvar sua vida quando você realmente precisar de um hospital. Lembre-se, maquiagem pode servir para melhorar o que já é belo, mas também pode servir para camuflar o que é feio. Então, jamais confunda um bom hospital com um bom hotel!
trabalhadora do SUS
Há quem não saiba diferenciar um bom hospital de um bom hotel. Quando atravessamos os corredores de um belo hospital, de paredes brancas e arquitetura fina, com profissionais devidamente uniformizados, nos sentimos seguros e protegidos, certos de que a boa hotelaria é o reflexo de um bom atendimento, todavia, isso nem sempre é verdade. Obviamente que quase ninguém rejeita conforto, beleza, limpeza e organização, mas será que tais quesitos são matéria prima suficiente para fazer um hospital qualidade?
Neste mês, estive junto a uma amiga em sua saga de aproximadamente três semanas, passando várias vezes pela urgência dos dois hospitais PARTICULARES mais bem avaliados da minha cidade, saga que, por falta de um acolhimento humanizado seguido de equívocos diagnósticos crassos, poderia ter ocasionado um final trágico. Tais hospitais poderiam ser categorizados como excelentes hotéis, um deles, com certeza, receberia cinco estrelas, mas, será que é disso mesmo que precisamos em um bom hospital?
Coincidentemente, a matéria de capa da Revista Época desta semana, intitulada: "Porque a medicina pode levar você à falência", também levanta tal questão. Ter um plano de saúde hoje é uma das maiores aspirações da população, no entanto, a promessa das seguradoras de saúde de que as falhas apresentadas pelo SUS serão sanadas com a aquisição de um plano privado, podem ser apenas uma armadilha, como se vê na reportagem. Sabemos que os planos funcionam muito bem para as consultas médicas de rotina e intervenções de baixa ou média complexidade, mas quando a necessidade é para intervenções de alta complexidade, ou seja, aquelas que realmente vão fazer diferença entre a vida e a morte do paciente, os planos de saúde saem de cena. Sendo assim, a matéria mostra a tragédia de inúmeras famílias ricas que foram à bancarrota financeira por decidirem assumir dívidas que as seguradoras de saúde se recusaram a pagar. Afinal, diante da tarefa impossível de decidir entre a morte do ente querido ou assinar um “cheque em branco” num hospital particular, quem decidirá pela morte? (Infelizmente a matéria não revela que muitas vezes é o SUS, e não as famílias abastadas, que pagam a conta quando o plano de saúde se recusa a pagar. Estimativas mais conservadoras dizem que as seguradoras de saúde devem ao SUS cerca de R$ 2 bilhões por ano. Para se ter uma ideia de 2005 a 2010, último ano sobre o qual há dados disponíveis, o aumento de internações de clientes dos planos em hospitais do SUS foi de nada menos do que 59,7%.)
A matéria segue com uma entrevista com Vijay Govindarajan, consultor especialista influente no mundo dos negócios que se dedicou a estudar o sucesso de nove hospitais particulares na Índia, sua terra natal. Govindarajan critica o modelo hospitalar brasileiro dizendo que ele gasta demais e de maneira pouco inteligente. “Os grandes hospitais parecem hotéis cinco estrelas. Isso não faz diferença no resultado”- afirma. Ou seja, a hotelaria de primeira encarece o custo do hospital para aquilo que não fará a menor diferença no tratamento de fato. Por outro lado, economizar no que não é imprescindível, tanto permitiria que o hospital investisse mais no que realmente importa, tal como, profissionais qualificados e humanização, quanto poderia baratear o custo dos tratamentos, possibilitando que os planos arcassem com um espectro maior de intervenções.
O que vi acompanhando minha amiga na sua via crucis foi exatamente isso: hotelaria nota dez, arquitetura linda, jardim de inverno, TV com canal por assinatura, telefone no quarto, cuidados de enfermagem e serviço de quarto nota mil. Mas, o trágico é que ela poderia não ter sobrevivido à intervenção da porta de emergência do hospital para gozar de toda essa hospitalidade e conforto. E não pensem que ela correu esse risco por falta de exames? Foram muitos. Os mesmos repetidos em todas as vezes que ela entrou na emergência com dores fortíssimas nas costas. Sabemos que tais exames também não são baratos, mas se esqueceram de que é necessário um bom profissional que saiba lê-los, e que, sobretudo saiba utilizá-los para fazer uma boa clínica. E uma boa clínica é aquela que sabe ver a pessoa, e entende que o exame é apenas um método auxiliar para se fazer uma hipótese diagnóstica. Mas o que eu vi foi profissionais que simplesmente não viram a pessoa que ali estava, só buscavam confirmar uma hipótese diagnóstica por meio de um exame e quando não “encontravam nada”, repetiam o exame. Resultado: paga-se muito caro numa clínica ruim, que olha - e possui instrumentos e exames variados para olhar melhor e mais fundo - mas não sabe ver, porque também só ouve, mas não sabe escutar. Este é outro exemplo de como o hospital gasta mal seus recursos. Investe muito em instrumentos que olham e ouvem e pouquíssimo no profissional, o único capaz de ver e escutar.
Enfim, creio que estamos esquecendo que uma boa medicina se faz primeiramente com bons profissionais, já que, hotelaria e tecnologia só servirão caso a primeira prerrogativa for atendida. Por isso, não se enganem com fachada de mármore, jardim na recepção, obras de arte nas paredes, quartos amplos e serviço de quarto de primeira, não é isso que irá salvar sua vida quando você realmente precisar de um hospital. Lembre-se, maquiagem pode servir para melhorar o que já é belo, mas também pode servir para camuflar o que é feio. Então, jamais confunda um bom hospital com um bom hotel!
quarta-feira, 30 de abril de 2014
Enquanto isso, na República das Bananas, a militância, mais uma vez, vira implicância.
Rita de Cássia de Araújo Almeida
#SomosTodosMacacos
Daniel Alves, jogador de futebol do Barcelona e da Seleção Brasileira, se tornou o personagem da semana, ao comer a banana que lhe foi atirada num campo da Europa. Atitude, aliás, sensacional, na minha opinião; inusitada, criativa, bem humorada e o que é mais importante, chamou a atenção do mundo todo sobre essa mazela que ainda corrói nosso mundo: o racismo.
Existem muitas maneiras de se combater o preconceito. Uma delas é pela via das leis, fundamental para criminalizar os excessos e punir quem se excede. Entretanto, existe outra maneira bastante interessante, muito bem exemplificada pela atitude de Dani Alves, que pode (e deve) acontecer longe do tapete dos tribunais, que é a que desqualifica, desconstrói e desmonta o ato preconceituoso. Ao comer a banana, Daniel ridiculariza e menospreza seu algoz. E ao invés de se comportar como mera vítima de uma atitude racista, se coloca como protagonista de um ato potente, que rejeita a humilhação dirigida a ele e devolve-a para o lado de lá.
Imediatamente ao ato de Daniel Alves surge a campanha virtual #WeAreAllMonkeys, e a versão nacional #SomosTodosMacacos, com a multiplicação de “selfies” de pessoas comendo bananas. E com a mesma rapidez que a campanha se alastrou, surgiu aqui, na República das Bananas, uma contracorrente criticando-a; por reafirmar o preconceito, porque o Luciano Huck se aproveitou dela para vender camisa (não sei se essa informação é verdadeira) ou porque a presidente Dilma aderiu e, por isso, não tratou o episódio como crime, tal como deveria.
Olha! Falta de senso de humor tem limite! Tudo bem, eu também fiquei com nojinho da campanha quando vi o Reinaldo Azevedo comendo uma banana, mas #pelamordedeus, concluir que o movimento criado a partir do ato de Daniel Alves e seguido por Neymar foi ruim, por que tem gente que eu não gosto que aderiu a ela? Tenha a santa paciência!
Então tem alguém lucrando com a macacada comendo bananas? Que novidade! Tem gente que lucra com a miséria alheia, com a burrice alheia, com a desgraça alheia, por que afinal de contas, num mundo capitalista e mercantilista como o nosso, alguém não iria lucrar com um ato inusitado e sagaz como o do jogador? Mais uma vez temos que admitir, o lado de lá teve inteligência, burro é o lado de cá que simplesmente desmerece e esvazia a campanha, perdendo a oportunidade de aproveita-la para enfrentar o tema do racismo, dentro e fora dos estádios.
É nessa hora que a militância (de qualquer espécie) fica chata, e vira implicância, porque não agrega, não soma, não reúne, fica só encontrando os defeitos e os detalhes para ficar do contra (há quem acredite que militar em uma causa é ficar sempre “do contra” e evitar “modinhas”). Que mal há numa modinha que agrega multidões se ela se presta a por em discussão um tema tão importante? Eu, definitivamente, não entendo...
Também fica chato quando aproveitam tudo para uso político partidário. Li por aí muitas críticas à nossa presidente por ela ter entrado na campanha via twitter, disseram que ela deveria tratar o racismo como crime, e não o fez quando simplesmente aderiu ao #SomosTodosMacacos. Obviamente que racismo é crime, aqui como em muitos outros países e deve ser tratado como tal, mas a judicialização não pode ser considerada a única via possível para combater esse e outros tipos de preconceito. A judicialização excessiva, da vida e das nossas relações, se sobrepõe ao laço e ao diálogo, o que sempre empobrece e esgarça o tecido social, já tão fragilizado. Não seria melhor guardar os tribunais para os casos de gente amarrando preto no poste e paras emissoras de TV e jornalistas que incentivam essa atitude repulsiva?
Já o time do #nãovaitercopa suspeita que a atitude de Daniel Alves seja um golpe publicitário para salvar a Copa no Brasil... Teoria da conspiração também tem limite!
Para os que se queixam que usar o termo macaco é reafirmar o preconceito eu peço que aprendam com o movimento feminista atual, com a Marcha das Vadias. Vadia sempre foi um termo usado para desqualificar a mulher, o mesmo que puta. O que a Marcha das Vadias faz é se apropriar deste termo pejorativo e dar a ele um outro sentido, que liberta, que potencializa, que retira a mulher do lugar subjugado, de vítima. #SomosTodasVadias não quer transformar todas as mulheres em putas, vadias, mas dizer que não há problema em ser vadia, especialmente, quando ser vadia é aquilo que eu digo que é, e não aquilo que você julga ou define que é. O Orgulho Gay, o Orgulho Louco, também são formas criativas e interessantes de lidar com o preconceito, e seguem nessa mesma linha, de retirar o peso do significante pejorativo que uma palavra carrega. Há pouco tempo chamar alguém de negro, por exemplo, era considerada uma ofensa, mas, os movimentos de valorização da cultura negra, felizmente conseguiram reatar o laço com essa palavra tão forte, bela e cheia de significados.
Será tão difícil entender que a apropriação do significante macaco, nesse caso, poderá ser uma ferramenta importante para combatermos o racismo? Não poderíamos entrar numa “vibe” darwinista (onde foi que eu ouvi isso?) e resgatar uma ancestralidade comum que nos une, fazendo um contraponto à atitude racista que busca exacerbar nossas diferenças?
Vou dar outro exemplo de quando a militância vira implicância. Tudo bem, eu também detesto as músicas do Alexandre Pires, acho o cúmulo da breguice cantar pagode de terno e achei ridículo quando ele chorou diante do Presidente Bush, mas faça-me o favor, investigar se o clipe da música Kong é racista, porque tem um monte de macacos dançando é pura chatice, implicância. É procurar pelo em ovo.
Há os que ainda vão dizer que minha opinião não tem validade porque sou branca. É fato que minha cor me impede de vivenciar o racismo na dureza da carne e, por isso, não tenho autoridade nenhuma para falar em nome dos negros, sobre os negros ou para os negros, quando o assunto é racismo. No entanto, posso produzir um discurso para estar com os negros, ao lado deles nessa luta contra a humilhação e a violência imputadas pelo racismo. Assim como posso estar com os Guarani Kaiwoá - #SomosTodosGuaraniKaiwoá - exilados de sua própria terra, com as Cláudias - #SomosTodosClaudia - e com os Amarildos - #SomosTodosAmarildo - os massacrados pela violência policial nas periferias das nossas cidades.
Duvido de qualquer movimento político, social ou militância que não seja capaz de fazer laço. E, para tal, duas características são fundamentais: apelo estético e senso de humor. Acredito que toda luta também precisa ter beleza e leveza. Quem está brigando contra o #SomosTodosMacacos não entendeu a beleza, a leveza e a dimensão da sua potência para colocar o racismo na pauta mundial. O futebol é o esporte mais popular do mundo, possivelmente o mais amado, estamos no ano da Copa do Mundo e o episódio inusitado, amplamente comentado na mídia e nas redes sociais, acontece dentro de um campo de futebol, tendo como protagonista um dos maiores jogadores da atualidade... Precisa desenhar?
É lamentável que alguns precisem retirar os holofortes deste ato tão incrivelmente vigoroso, bonito e bem humorado de Daniel Alves a fim de girá-los para si mesmo. E assim, o que poderia ser uma discussão global de como extinguir ou pelo menos reduzir os efeitos nocivos do racismo, dentro e fora dos estádios, se limita ao exercício mesquinho de decidir quem é macaco, quem não é macaco e quem é banana.
Nessas horas, só me resta invocar o mestre Raulzito: “Pare o mundo que eu quero descer!”.
domingo, 20 de abril de 2014
Dos Jardins que meu pai deixou
por: Rita de Cássia A. Almeida
Meu pai gostava de contar histórias, mas também protagonizou muitas delas. Quem conviveu com ele entende o que vou dizer agora. Muito mais do que um homem, meu pai foi um personagem. E cada vez mais me convenço que ele se dedicava muito a esse ofício: de inventar personagens para fazer uma história acontecer, mesmo a mais singela delas. Quem dera tivéssemos a sabedoria de entender que a vida é simplesmente isso!
Possivelmente essa não foi a última história que o “Seu” Messias protagonizou, mas é a última que ficou comigo e que, afinal, me arrastou para seu enredo. Pouco mais de um mês depois da morte dele, por amor, fui capaz de criar um personagem para continuar essa história que ele tinha começado.
Há cerca de um ano (talvez mais) abriram uma nova padaria na região central do nosso bairro. Uma padaria cuidadosamente arquitetada e decorada com estilo rústico de interior mineiro. Belíssima! Com destaque para dois vasos com plantas que ficavam na frente do estabelecimento, contornando o balcão de madeira de demolição onde se instalava o caixa. Mas as duas plantas que surgiram verdes e frondosas na inauguração, logo perderam o viço, e dia após dia foram amarelando e secando, notadamente por falta de cuidado. Eu que passava em frente a tal padaria quase todos os dias, observava, com pesar, a morte lenta daquelas duas folhagens e me incomodei, silenciosamente, com aquela contradição: uma padaria tão linda emoldurada por duas plantas mortas.
Um dia, fazendo o mesmo trajeto diário, observei que tinham trocado as plantas do vaso por espécies mais resistentes à falta de cuidados: sabiamente – pensei eu.
Quase sempre cruzava com meu pai na avenida onde fica a tal padaria. Eu, indo para o trabalho e ele, voltando da sua caminhada matinal. Numa dessas vezes observei que ele aguou os dois vasos de frente a padaria e seguiu seu caminho. Curiosa, perguntei a ele, dias depois, porque estava molhando aquelas plantas e ele, então, me contou essa história.
Me disse que passava todos os dias ali em frente e assim como eu, assistiu a morte lenta e triste das plantas colocadas na decoração original do estabelecimento. Um dia, cansado do incômodo e do próprio silêncio, entrou na padaria e pediu pra “falar com o responsável”. Uma jovem senhora se apresentou como “a dona” e ele então revelou a ela o seu incômodo. Disse que aquela era a padaria mais bonita da região, muito bem decorada e que, por isso, não poderia jamais manter dois vasos de planta mortos na entrada. Se ofereceu, então, para trocar as plantas por outras, o que a jovem senhora aceitou com boa vontade e simpatia. E foi assim que meu pai arranjou duas novas espécies mais resistentes à falta de cuidados (sabiamente, como eu já havia notado), plantou-as e desde então passou a agua-las. Para não vê-las morrer também – concluiu – optou por cuidar daquelas que plantou.
Era típico do “Seu” Messias esses gestos singelos que produziam laços por onde ele passava. Meu pai tinha o dom de criar histórias e cativar pessoas.
Entretanto, ele partiu há dois meses. Eu, na minha rotina diária, continuo passando em frente à padaria e tendo a certeza que aquelas plantinhas só estavam sobrevivendo por causa dos cuidados dele. Enfim, para não vê-las sucumbir, decidi me vestir de um personagem e continuar essa história. Há cerca de um mês entrei na padaria e me identifiquei, disse que meu pai - o que plantou e aguava aquelas plantas - tinha morrido, e que, agora, elas precisavam de alguém que cuidasse delas. Percebi, portanto que meu apelo não surtiu efeito, por isso decidi, eu mesma, manter a rotina do meu pai. Pelo menos duas vezes por semana interrompo meu percurso e molho aqueles vasos.
Suponho que a missão dos pais seja essa de deixar alguns jardins plantados para que os filhos se incumbam de cuidar. Uma ilusão boba, mas necessária, de imortalidade. E suponho que a angustia dos filhos seja a de decidir se vão ou não cuidar dos jardins que lhes foram deixados por herança. Alguns jardins herdados se tornam um peso para os filhos, outros uma missão de vida e outros uma honra. Bons pais são aqueles que deixam jardins que mereçam ser cuidados com honra e felizes dos filhos que escolhem cuidar apenas da herança que os honra.
Desejaria que meu pai soubesse que tem sido uma honra cuidar do jardim que ele deixou.
Meu pai gostava de contar histórias, mas também protagonizou muitas delas. Quem conviveu com ele entende o que vou dizer agora. Muito mais do que um homem, meu pai foi um personagem. E cada vez mais me convenço que ele se dedicava muito a esse ofício: de inventar personagens para fazer uma história acontecer, mesmo a mais singela delas. Quem dera tivéssemos a sabedoria de entender que a vida é simplesmente isso!
Possivelmente essa não foi a última história que o “Seu” Messias protagonizou, mas é a última que ficou comigo e que, afinal, me arrastou para seu enredo. Pouco mais de um mês depois da morte dele, por amor, fui capaz de criar um personagem para continuar essa história que ele tinha começado.
Há cerca de um ano (talvez mais) abriram uma nova padaria na região central do nosso bairro. Uma padaria cuidadosamente arquitetada e decorada com estilo rústico de interior mineiro. Belíssima! Com destaque para dois vasos com plantas que ficavam na frente do estabelecimento, contornando o balcão de madeira de demolição onde se instalava o caixa. Mas as duas plantas que surgiram verdes e frondosas na inauguração, logo perderam o viço, e dia após dia foram amarelando e secando, notadamente por falta de cuidado. Eu que passava em frente a tal padaria quase todos os dias, observava, com pesar, a morte lenta daquelas duas folhagens e me incomodei, silenciosamente, com aquela contradição: uma padaria tão linda emoldurada por duas plantas mortas.
Um dia, fazendo o mesmo trajeto diário, observei que tinham trocado as plantas do vaso por espécies mais resistentes à falta de cuidados: sabiamente – pensei eu.
Quase sempre cruzava com meu pai na avenida onde fica a tal padaria. Eu, indo para o trabalho e ele, voltando da sua caminhada matinal. Numa dessas vezes observei que ele aguou os dois vasos de frente a padaria e seguiu seu caminho. Curiosa, perguntei a ele, dias depois, porque estava molhando aquelas plantas e ele, então, me contou essa história.
Me disse que passava todos os dias ali em frente e assim como eu, assistiu a morte lenta e triste das plantas colocadas na decoração original do estabelecimento. Um dia, cansado do incômodo e do próprio silêncio, entrou na padaria e pediu pra “falar com o responsável”. Uma jovem senhora se apresentou como “a dona” e ele então revelou a ela o seu incômodo. Disse que aquela era a padaria mais bonita da região, muito bem decorada e que, por isso, não poderia jamais manter dois vasos de planta mortos na entrada. Se ofereceu, então, para trocar as plantas por outras, o que a jovem senhora aceitou com boa vontade e simpatia. E foi assim que meu pai arranjou duas novas espécies mais resistentes à falta de cuidados (sabiamente, como eu já havia notado), plantou-as e desde então passou a agua-las. Para não vê-las morrer também – concluiu – optou por cuidar daquelas que plantou.
Era típico do “Seu” Messias esses gestos singelos que produziam laços por onde ele passava. Meu pai tinha o dom de criar histórias e cativar pessoas.
Entretanto, ele partiu há dois meses. Eu, na minha rotina diária, continuo passando em frente à padaria e tendo a certeza que aquelas plantinhas só estavam sobrevivendo por causa dos cuidados dele. Enfim, para não vê-las sucumbir, decidi me vestir de um personagem e continuar essa história. Há cerca de um mês entrei na padaria e me identifiquei, disse que meu pai - o que plantou e aguava aquelas plantas - tinha morrido, e que, agora, elas precisavam de alguém que cuidasse delas. Percebi, portanto que meu apelo não surtiu efeito, por isso decidi, eu mesma, manter a rotina do meu pai. Pelo menos duas vezes por semana interrompo meu percurso e molho aqueles vasos.
Suponho que a missão dos pais seja essa de deixar alguns jardins plantados para que os filhos se incumbam de cuidar. Uma ilusão boba, mas necessária, de imortalidade. E suponho que a angustia dos filhos seja a de decidir se vão ou não cuidar dos jardins que lhes foram deixados por herança. Alguns jardins herdados se tornam um peso para os filhos, outros uma missão de vida e outros uma honra. Bons pais são aqueles que deixam jardins que mereçam ser cuidados com honra e felizes dos filhos que escolhem cuidar apenas da herança que os honra.
Desejaria que meu pai soubesse que tem sido uma honra cuidar do jardim que ele deixou.
sábado, 29 de março de 2014
Estupro não é sexo!
por: Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista
Esta semana o Ipea divulgou o estudo: “Tolerância social à violência contra as mulheres”. Os resultados são lamentáveis: 58,5% dos entrevistados concordam totalmente ou parcialmente com a frase "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros". Quando a frase é: "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas", o resultado ainda é mais assustador: 65,1% dos pesquisados concordam inteiramente ou parcialmente com tal afirmativa. A pesquisa ouviu 3.810 pessoas entre maio e junho do ano passado em 212 cidades do Brasil e (pasmem!) do total de entrevistados, 66,5% eram mulheres.
Coincidentemente, na ocasião da divulgação da pesquisa, estava lendo o livro, Longe da Árvore, de Andrew Solomon, exatamente no capítulo do livro dedicado ao tema do estupro. O autor estudou, especificamente, casos de estupros que resultaram em gravidez. Entrevistou mulheres estupradas, filhos gerados de estupro e familiares das mulheres vítimas. O estudo de Solomon foi feito basicamente nos EUA, mas ele colheu dados de outros países também.
Fica evidente no estudo de Solomon que a situação das sociedades que ele pesquisou não está muito diferente da nossa: a mulher é sempre culpabilizada pelo estupro. Solomon também aponta que a forma como a mulher se veste ou se comporta são apenas meios de escamotear a seguinte verdade: a grande maioria acredita que o que causa o estupro é a mulher, é ela quem provoca o desejo sexual no homem, independente do que ela faça ou de como ela seja.
O estupro tem raízes profundas na cultura machista que domina a maior parte das sociedades, isso é fato. O estupro é, sobretudo, um ato de dominação. No entanto, o fato de se conceber o estupro como um tipo de intercurso sexual, abre sempre essa dúvida sobre o desejo e a implicação da vítima: Será que ela realmente não queria? Será que ela não estava pedindo?
Talvez uma saída para esse problema seja destituir o estupro de seu conteúdo sexual. Partindo dessa premissa, o estupro não pode ser considerado ato sexual violento ou forçado, porque nem mesmo é um ato sexual. O ato sexual só pode existir com o consenso das partes implicadas. Sendo assim, estupro não é sexo, não é sexual, não é sexualidade. Estupro é violência pura e simples, e da pior espécie, porque é violência física, moral, emocional, espiritual e psicológica. A mais simbólica das violências. A mais impregnada de sentidos.
O estudo de Solomon também se aproxima do nosso quando conclui que as próprias mulheres se culpam e culpam as outras mulheres pelo estupro. Talvez exatamente porque, ao pensarmos no estupro, ainda entendamos o mesmo como uma modalidade de ato sexual. Ao longo da historia das sociedades, a sedução tem sido uma das armas mais eficientes e importantes do universo feminino, especialmente quando entramos no terreno da sexualidade. Acredito assim que, nós mulheres, ao interpretarmos o estupro com ato sexual, podemos cair na armadilha de acreditar que possamos ter contribuído com ele através de algum tipo de sinal ou aceno sedutor.
Apesar do resultado da pesquisa do Ipea ser lamentável, traz a tona um tema importante para ser discutido na sociedade, especialmente por nós mulheres. Por que se por um lado não podemos mais ser culpabilizadas pelo estupro, também não podemos nos tornar vítimas passivas desta violência tão abominável. O estupro não é nossa culpa, mas é nossa responsabilidade por fim a essa mazela. Um bom começo seria conversar com nossas filhas sobre o tema. Eu começaria dizendo o seguinte: ato sexual, sexo ou sexualidade, implica numa entrega íntima que só pode acontecer com consentimento pleno das partes implicadas, qualquer coisa, além disso, não é sexo, é violência, a mais vil das violências e deve ser tratada como tal.
psicanalista
Esta semana o Ipea divulgou o estudo: “Tolerância social à violência contra as mulheres”. Os resultados são lamentáveis: 58,5% dos entrevistados concordam totalmente ou parcialmente com a frase "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros". Quando a frase é: "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas", o resultado ainda é mais assustador: 65,1% dos pesquisados concordam inteiramente ou parcialmente com tal afirmativa. A pesquisa ouviu 3.810 pessoas entre maio e junho do ano passado em 212 cidades do Brasil e (pasmem!) do total de entrevistados, 66,5% eram mulheres.
Coincidentemente, na ocasião da divulgação da pesquisa, estava lendo o livro, Longe da Árvore, de Andrew Solomon, exatamente no capítulo do livro dedicado ao tema do estupro. O autor estudou, especificamente, casos de estupros que resultaram em gravidez. Entrevistou mulheres estupradas, filhos gerados de estupro e familiares das mulheres vítimas. O estudo de Solomon foi feito basicamente nos EUA, mas ele colheu dados de outros países também.
Fica evidente no estudo de Solomon que a situação das sociedades que ele pesquisou não está muito diferente da nossa: a mulher é sempre culpabilizada pelo estupro. Solomon também aponta que a forma como a mulher se veste ou se comporta são apenas meios de escamotear a seguinte verdade: a grande maioria acredita que o que causa o estupro é a mulher, é ela quem provoca o desejo sexual no homem, independente do que ela faça ou de como ela seja.
O estupro tem raízes profundas na cultura machista que domina a maior parte das sociedades, isso é fato. O estupro é, sobretudo, um ato de dominação. No entanto, o fato de se conceber o estupro como um tipo de intercurso sexual, abre sempre essa dúvida sobre o desejo e a implicação da vítima: Será que ela realmente não queria? Será que ela não estava pedindo?
Talvez uma saída para esse problema seja destituir o estupro de seu conteúdo sexual. Partindo dessa premissa, o estupro não pode ser considerado ato sexual violento ou forçado, porque nem mesmo é um ato sexual. O ato sexual só pode existir com o consenso das partes implicadas. Sendo assim, estupro não é sexo, não é sexual, não é sexualidade. Estupro é violência pura e simples, e da pior espécie, porque é violência física, moral, emocional, espiritual e psicológica. A mais simbólica das violências. A mais impregnada de sentidos.
O estudo de Solomon também se aproxima do nosso quando conclui que as próprias mulheres se culpam e culpam as outras mulheres pelo estupro. Talvez exatamente porque, ao pensarmos no estupro, ainda entendamos o mesmo como uma modalidade de ato sexual. Ao longo da historia das sociedades, a sedução tem sido uma das armas mais eficientes e importantes do universo feminino, especialmente quando entramos no terreno da sexualidade. Acredito assim que, nós mulheres, ao interpretarmos o estupro com ato sexual, podemos cair na armadilha de acreditar que possamos ter contribuído com ele através de algum tipo de sinal ou aceno sedutor.
Apesar do resultado da pesquisa do Ipea ser lamentável, traz a tona um tema importante para ser discutido na sociedade, especialmente por nós mulheres. Por que se por um lado não podemos mais ser culpabilizadas pelo estupro, também não podemos nos tornar vítimas passivas desta violência tão abominável. O estupro não é nossa culpa, mas é nossa responsabilidade por fim a essa mazela. Um bom começo seria conversar com nossas filhas sobre o tema. Eu começaria dizendo o seguinte: ato sexual, sexo ou sexualidade, implica numa entrega íntima que só pode acontecer com consentimento pleno das partes implicadas, qualquer coisa, além disso, não é sexo, é violência, a mais vil das violências e deve ser tratada como tal.
quinta-feira, 6 de março de 2014
Saudade
por Rita de Cássia A Almeida
Um dia acreditei que o amor estaria mais presente nas coisas grandes e belas, nos grandes feitos e ensinamentos, nos momentos marcantes... Mas não. Aprendi, na dor, que o amor aparece com toda sua força é nos minúsculos detalhes, nas minúcias. O amor se encrusta é nos interstícios, nas pequenas fendas e frestas do cotidiano, lá onde poucos vão enxergar e perceber.
Meu pai se foi e eu sinto seu amor por toda parte, mas este amor se torna ainda mais forte nos pequeninos detalhes, lá onde eu jamais pensava que ele seria fundamental: num certo jeito de segurar o controle da TV e na mania de cutucar o dedo do pé assistindo futebol (que eu assimilei dele), no alpiste espalhado pelo chão, ao ouvir alguém assoviando uma conversa com um passarinho ou contando uma piada, no giro de um casal dançando, no desenho do pica-pau... São tantos detalhes...
Entendi também que o conceito de infinito para o amor se difere do infinito do Universo ou do horizonte. O infinito do amor é pra dentro. É puro emaranhado de lembranças e marcas tão fortes, tão misturadas com o aquilo que somos, que nem mesmo sabemos mais a diferença entre o que é nosso e o que é do outro que amamos... E isso sequer importa.
Aprendi, mais uma vez, que a infiniteza (infinidade + beleza) do amor é o único laço que nos salva do desespero e do vazio. Sendo assim, morrer não é deixar de ser, morrer é ser de outro modo. Morrer é ser junto e a partir dos outros com os quais se compartilhou a vida e os afetos. Morrer é o fim de uma história, mas é o início de outra que contém a primeira. Então a morte é fim e começo.
Acreditava que a morte era ausência e separação, mas hoje a morte me parece mais com presença e reparação. Ninguém pode ficar tão presente quanto aquele a quem amamos, após sua morte. E algumas reparações só são possíveis de se fazer à posteriori.
Enfim, o fato é que a morte não é mesmo capaz de matar o amor. Então, quando se ama, o outro nome para a morte não pode ser perda, dor ou desespero. Quando se ama, o outro nome para a morte só pode ser saudade.
Um dia acreditei que o amor estaria mais presente nas coisas grandes e belas, nos grandes feitos e ensinamentos, nos momentos marcantes... Mas não. Aprendi, na dor, que o amor aparece com toda sua força é nos minúsculos detalhes, nas minúcias. O amor se encrusta é nos interstícios, nas pequenas fendas e frestas do cotidiano, lá onde poucos vão enxergar e perceber.
Meu pai se foi e eu sinto seu amor por toda parte, mas este amor se torna ainda mais forte nos pequeninos detalhes, lá onde eu jamais pensava que ele seria fundamental: num certo jeito de segurar o controle da TV e na mania de cutucar o dedo do pé assistindo futebol (que eu assimilei dele), no alpiste espalhado pelo chão, ao ouvir alguém assoviando uma conversa com um passarinho ou contando uma piada, no giro de um casal dançando, no desenho do pica-pau... São tantos detalhes...
Entendi também que o conceito de infinito para o amor se difere do infinito do Universo ou do horizonte. O infinito do amor é pra dentro. É puro emaranhado de lembranças e marcas tão fortes, tão misturadas com o aquilo que somos, que nem mesmo sabemos mais a diferença entre o que é nosso e o que é do outro que amamos... E isso sequer importa.
Aprendi, mais uma vez, que a infiniteza (infinidade + beleza) do amor é o único laço que nos salva do desespero e do vazio. Sendo assim, morrer não é deixar de ser, morrer é ser de outro modo. Morrer é ser junto e a partir dos outros com os quais se compartilhou a vida e os afetos. Morrer é o fim de uma história, mas é o início de outra que contém a primeira. Então a morte é fim e começo.
Acreditava que a morte era ausência e separação, mas hoje a morte me parece mais com presença e reparação. Ninguém pode ficar tão presente quanto aquele a quem amamos, após sua morte. E algumas reparações só são possíveis de se fazer à posteriori.
Enfim, o fato é que a morte não é mesmo capaz de matar o amor. Então, quando se ama, o outro nome para a morte não pode ser perda, dor ou desespero. Quando se ama, o outro nome para a morte só pode ser saudade.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
Adeus ao pai
por Rita de Cássia de Araújo Almeida
filha de Missias Braz de Almeida
Meu pai faleceu esta semana e deixou em nós um vazio inenarrável.
Quem o conheceu sabia o cara incrível que ele era. De uma sabedoria, muitas vezes, cortante, apesar da pouquíssima instrução. E no seu ato final, quando as cortinas se fecharam eu tive mais clara ainda a dimensão de tal sabedoria. Pois só uma pessoa muito sábia é capaz de construir seu próprio epitáfio e tem serenidade para transmiti-la a outra pessoa, meses antes da sua morte, ainda que esta morte, dada a sua saúde e vitalidade, parecesse estar ainda muito distante.
Meses atrás meu pai me chamou reservadamente e me disse. “Minha filha, quando eu morrer, quero que você diga pras pessoas presentes no meu enterro que eu quero todas elas alegres e sorrindo, porque eu fui um homem muito alegre. Quero que você diga assim: aqui foi um homem muito alegre que amou muito a vida.”
Meu pai era um exímio contador de piadas e “causos” (como se diz aqui em Minas). Muitos desses “causos” e piadas ele contava repetidamente, mas a gente sempre ria do mesmo jeito, ainda que sabendo o enredo e o final. Ele sempre tinha um trejeito diferente, um personagem diferente, tinha mania de adicionar detalhes que não faziam a menor diferença ao contexto narrado, também sabia com mestria mudar o final da história, quando esquecia a original. Aprendi com meu pai que não importa a história que aconteceu, o que vale mesmo é a história que a gente conta.
Estar com meu pai era a certeza de boas risadas. Mesmo quando tudo parecia desesperador, terrível e trágico, ele sempre se lembrava de nos fazer rir. Sendo assim, no dia da despedida, ao cumprir a nobre missão que ele me deu, dizendo a todos o que ele me pediu para dizer, também fiz questão de contar uma de suas piadas, que é a seguinte:
Um bêbado chega a um velório no qual não conhece ninguém e pergunta a uma mulher que está chorando:
- Morreu de quê? E ela responde:
- Ah! Morreu como um passarinho...
O bêbado parece satisfeito com a resposta e continua mais um tempo velando o morto desconhecido. Logo chega uma pessoa e pergunta ao bêbado:
- Morreu de quê? E o bêbado responde:
- Não sei ao certo... ou foi pedrada ou falta de alpiste.
Meu pai morreu como um passarinho... Não foi pedrada, nem falta de alpiste. Na verdade, ao que parece, alguém abriu a gaiola e ele simplesmente voou, leve e alegre como sempre foi.
Algumas pessoas acreditam que sabedoria é sofisticação, complexidade e excesso, mas ao contrário, sabedoria é simplicidade. Mais sábio é aquele que consegue resumir e apreender toda a complexidade da própria vida em poucas palavras. E meu pai soube fazer isso ao me dizer seu epitáfio. E se eu pedisse a todas as pessoas que conheceram meu pai que o representasse em uma só palavra com certeza todos diriam: ALEGRIA.
Em psicanálise dizemos que o que se alcança num processo de análise é a eliminação da profusão de significantes que nos representa (e que, em geral, não ajudam, só atrapalham) para que nos reste apenas alguns poucos, os significantes que realmente são importantes. Talvez nossa existência seja apenas para isso, para termos tempo de complicar a vida e depois de descomplica-la. Felizes dos que conseguem se livrar dos excessos e resumir sua vida em poucos atos, obras e palavras. Meu pai soube fazer isso com mestria: ALEGRIA foi sua única palavra no final, sua maior obra. E pensando assim, ele só poderia morrer do jeito que morreu, sem doença, sem sofrimento, se preparando para assistir sua neta, minha filha, desfilar no carnaval de nossa cidade.
Meu pai nunca leu Nietzsche, mas sabia muito bem da força e da potência revolucionária e reveladora da alegria. Para usar o termo nietzschiano: meu pai foi pura afirmação da vida. Gostava de rir, fazer os outros rirem e dançar. Nietzsche dizia: “Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!” Meu pai não perdeu um dia sequer e nos disse todas as verdades.
Em seu leito de morte tudo que pude prometer ao meu pai é que enquanto estivéssemos de passagem nessa vida nós continuaríamos a nos reunir para relembrar e recontar suas histórias e rir, rir muito. Ele nos fez rir a vida toda e, com certeza, continuaremos a rir dele depois da sua partida.
Depois de ter dito isso no velório de meu pai, um amigo muito antigo dele me chamou e disse que queria me contar a última piada que meu pai contou para ele. Achei aquilo de uma beleza infinita e só consegui pensar que foi meu pai quem soprou aquela piada em seu ouvido. E mais uma vez pude sorrir em meio as lágrimas.
Obrigada, pai. Você fez por merecer nosso sorriso e nosso aplauso!
filha de Missias Braz de Almeida
Meu pai faleceu esta semana e deixou em nós um vazio inenarrável.
Quem o conheceu sabia o cara incrível que ele era. De uma sabedoria, muitas vezes, cortante, apesar da pouquíssima instrução. E no seu ato final, quando as cortinas se fecharam eu tive mais clara ainda a dimensão de tal sabedoria. Pois só uma pessoa muito sábia é capaz de construir seu próprio epitáfio e tem serenidade para transmiti-la a outra pessoa, meses antes da sua morte, ainda que esta morte, dada a sua saúde e vitalidade, parecesse estar ainda muito distante.
Meses atrás meu pai me chamou reservadamente e me disse. “Minha filha, quando eu morrer, quero que você diga pras pessoas presentes no meu enterro que eu quero todas elas alegres e sorrindo, porque eu fui um homem muito alegre. Quero que você diga assim: aqui foi um homem muito alegre que amou muito a vida.”
Meu pai era um exímio contador de piadas e “causos” (como se diz aqui em Minas). Muitos desses “causos” e piadas ele contava repetidamente, mas a gente sempre ria do mesmo jeito, ainda que sabendo o enredo e o final. Ele sempre tinha um trejeito diferente, um personagem diferente, tinha mania de adicionar detalhes que não faziam a menor diferença ao contexto narrado, também sabia com mestria mudar o final da história, quando esquecia a original. Aprendi com meu pai que não importa a história que aconteceu, o que vale mesmo é a história que a gente conta.
Estar com meu pai era a certeza de boas risadas. Mesmo quando tudo parecia desesperador, terrível e trágico, ele sempre se lembrava de nos fazer rir. Sendo assim, no dia da despedida, ao cumprir a nobre missão que ele me deu, dizendo a todos o que ele me pediu para dizer, também fiz questão de contar uma de suas piadas, que é a seguinte:
Um bêbado chega a um velório no qual não conhece ninguém e pergunta a uma mulher que está chorando:
- Morreu de quê? E ela responde:
- Ah! Morreu como um passarinho...
O bêbado parece satisfeito com a resposta e continua mais um tempo velando o morto desconhecido. Logo chega uma pessoa e pergunta ao bêbado:
- Morreu de quê? E o bêbado responde:
- Não sei ao certo... ou foi pedrada ou falta de alpiste.
Meu pai morreu como um passarinho... Não foi pedrada, nem falta de alpiste. Na verdade, ao que parece, alguém abriu a gaiola e ele simplesmente voou, leve e alegre como sempre foi.
Algumas pessoas acreditam que sabedoria é sofisticação, complexidade e excesso, mas ao contrário, sabedoria é simplicidade. Mais sábio é aquele que consegue resumir e apreender toda a complexidade da própria vida em poucas palavras. E meu pai soube fazer isso ao me dizer seu epitáfio. E se eu pedisse a todas as pessoas que conheceram meu pai que o representasse em uma só palavra com certeza todos diriam: ALEGRIA.
Em psicanálise dizemos que o que se alcança num processo de análise é a eliminação da profusão de significantes que nos representa (e que, em geral, não ajudam, só atrapalham) para que nos reste apenas alguns poucos, os significantes que realmente são importantes. Talvez nossa existência seja apenas para isso, para termos tempo de complicar a vida e depois de descomplica-la. Felizes dos que conseguem se livrar dos excessos e resumir sua vida em poucos atos, obras e palavras. Meu pai soube fazer isso com mestria: ALEGRIA foi sua única palavra no final, sua maior obra. E pensando assim, ele só poderia morrer do jeito que morreu, sem doença, sem sofrimento, se preparando para assistir sua neta, minha filha, desfilar no carnaval de nossa cidade.
Meu pai nunca leu Nietzsche, mas sabia muito bem da força e da potência revolucionária e reveladora da alegria. Para usar o termo nietzschiano: meu pai foi pura afirmação da vida. Gostava de rir, fazer os outros rirem e dançar. Nietzsche dizia: “Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!” Meu pai não perdeu um dia sequer e nos disse todas as verdades.
Em seu leito de morte tudo que pude prometer ao meu pai é que enquanto estivéssemos de passagem nessa vida nós continuaríamos a nos reunir para relembrar e recontar suas histórias e rir, rir muito. Ele nos fez rir a vida toda e, com certeza, continuaremos a rir dele depois da sua partida.
Depois de ter dito isso no velório de meu pai, um amigo muito antigo dele me chamou e disse que queria me contar a última piada que meu pai contou para ele. Achei aquilo de uma beleza infinita e só consegui pensar que foi meu pai quem soprou aquela piada em seu ouvido. E mais uma vez pude sorrir em meio as lágrimas.
Obrigada, pai. Você fez por merecer nosso sorriso e nosso aplauso!
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
Socialismo e comunismo, modo de uso - manual didático.
por Rita de Cássia A Almeida
Ainda me surpreendo com gente que afirma repudiar os ideais comunistas ou socialistas porque eles “não deram certo” em parte alguma. Em resposta a essa afirmação o que me vem em mente é uma pergunta: Então o capitalismo deu certo?
Bom, parece que segundo matéria recente publicada nO Globo, o capitalismo deu muito certo. Pelo menos para as 85 pessoas mais ricas do mundo ou cerca de 1% da população. Segundo a pesquisa citada, essa elite de 85 pessoas acumula a mesma riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres do planeta. A matéria afirma ainda que cerca de 1% da população detém a metade da riqueza mundial. Sendo assim, minha pergunta também pode ser feita de outro modo: Se é que o capitalismo deu certo, deu certo pra quem?
Suspeito que, quando se supõe que o capitalismo tenha “dado certo”, se queira dizer que o capitalismo trinfou. Infelizmente, disso eu não tenho dúvidas. Se é eticamente permitido que ao dividirmos uma pizza gigante ao meio, metade dela seja fatiada para 85 pessoas e a outra metade seja fatiada para 3,5 bilhões de pessoas, então só podemos confirmar que o capitalismo triunfou. Ou seja, os melhores e maiores pedaços de pizza serão sempre para quem pode pagar por eles. E o mais cruel é que se você quiser um pedaço melhor de pizza, terá que disputa-lo competindo com os que, como você, têm acesso à segunda metade da pizza. Ou você acredita mesmo que poderá alcançar uma migalha que seja da primeira metade? Esqueceu? Estamos falando de capitalismo. Os tais 1% que desfrutam da primeira metade da pizza têm dinheiro suficiente para não deixar que você nem mesmo sinta o cheio dela. E melhor, eles têm poder suficiente para fazer você acreditar que essa história de comunismo ou socialismo são ideias retrógradas de gente do mal que não sabe respeitar o pedaço de pizza alheio. Ou seja, para protegerem seus pedaços de pizza eles precisam nos fazer acreditar que é ultrapassada a ideia de compartilharmos de maneira mais igualitária essa pizza gigante. Cada um tem o pedaço de pizza que lhe cabe e ponto. Se alguns têm um pedaço de pizza bem maior que do outro, e outros não têm nenhum pedaço de pizza, paciência! Ao invés de ficarmos fomentando essa coisa de socialismo ou comunismo, lendo Marx ou citando Badiou, tratemos de trabalhar com dedicação e persistência para conseguirmos nosso próprio pedação da pizza, fazendo assim que o capitalismo também dê certo para nós.
Sintetizando: Se o capitalismo não deu certo pra você é apenas por culpa sua. Porque se ele deu certo para alguns pode dar certo para você também, basta que você tenha fé e trabalhe.
No entanto, existe um grande problema com essa teoria do capitalismo, chamada de meritocracia, que é um problema matemático. Vamos supor que essa teoria funcione e que 99% da população mundial resolva, com fé e trabalho, conquistar o mesmo pedaço de pizza que o seleto grupos dos 1%. Matematicamente, para que isso seja possível, teríamos que aumentar essa pizza (inteira) pelo menos 99 vezes, só assim todos teriam a possibilidade de ter pedaços de pizza parecidos com as dos 1%, não é mesmo? Entretanto, tal estratégia tem dois problemas graves. Primeiro: a pizza, por uma limitação ecológica, jamais poderá ser ampliada 99 vezes sem que entremos em colapso. Para se ter uma ideia, se todos os habitantes da terra consumissem como um americano médio (eu disse médio), nos seriam necessários quatro planetas Terra. Segundo: na medida em que a pizza cresce e as mesmas regras capitalistas são mantidas, o mais provável é que os pedaços extras de pizza fiquem para os que já têm pizza suficiente, afinal, eles são os mesmos que têm recursos de sobra para adquiri-los. Não é obvio?
Se você ainda não desistiu do texto e acompanhou meu raciocínio até aqui, já começou a entender o que move os ideais comunistas ou socialistas. Eles pensam em estratégias para que nossa pizza gigante seja dividida de forma mais equânime, para que não tenhamos distorções tão injustas como as que vemos. Mas aí vem outra questão importante para socialistas e comunistas. Como faremos para que a riqueza que está acumulada nas mãos dos 1% mais ricos ou dos 85 (os mais ricos dentre os mais ricos), seja melhor distribuída, chegando especialmente, aos mais pobres e miseráveis? Antes de tentar responder esta pergunta, preciso abrir outro parágrafo.
Suspeito que o que chamei antes de triunfo do capitalismo, se deu por um motivo bastante simples. O capitalismo é um modelo econômico que repete o nosso modo mais primitivo de existência que é a chamada Lei da Selva, onde os mais fortes e mais aptos sobrevivem. Uma vez regidos pela Lei da Selva (daí o termo “capitalismo selvagem”) os mais frágeis, incapazes de vencer a luta pela sobrevivência, simplesmente não merecem viver, essa é a ordem natural das coisas. Isso faz com que a sustentação ideológica mais forte do capitalismo seja sua naturalização. Digamos, então, que o socialismo e o comunismo vieram para subverter a ordem natural das coisas. Vieram para desnaturalizar a Lei da Selva e inventar uma nova ordem, a de que todos merecem ter uma chance de sobreviver, mesmo os mais frágeis. Pensando na nossa pizza gigante, a utopia socialista-comunista é que todos deveriam ter acesso a pedaços dignos de pizza, de forma mais igualitária possível e ninguém deveria poder esbanjar pizza, enquanto outros não recebem uma migalha sequer.
Voltando à nossa última pergunta: Quais as maneiras que socialistas e comunistas imaginam que sejam eficazes para redistribuir melhor essa pizza riqueza?
Socialismo e comunismo - modo de usar
Existem inúmeros teóricos e teorias que pensaram e pensam sobre o modo de uso do socialismo e do comunismo. Algumas teorias acreditam que um governo comprometido com os mais frágeis só surgirá por meio da chamada Revolução, onde os mais pobres (a maioria) se unem e tomam para si o poder e a responsabilidade de repartir a pizza riqueza. Em nome do bem comum, estatizarão a pizza, assim ela deixará de ser um bem privado, que beneficia uma minoria, para ser socializada em benefício da coletividade. Outras teorias defendem a presença do chamado Estado Forte, ou seja, um Estado que seja responsável por regular a economia, para que ela proteja os mais frágeis e redistribua de forma mais igualitária a riqueza circulante. Algumas correntes acreditam que seja possível implantar os ideais comunistas e socialistas por meios de leis mais justas, serviços públicos de qualidade, programas sociais e de redistribuição de renda. E há ainda os que, em nome do comunismo ou socialismo, cometem equívocos e abusos, alguns deles absurdos e contraditórios. Mas, vale lembrar, que isso não é uma particularidade do comunismo ou do socialismo. Todo tipo de atrocidade já foi cometida em nome das mais nobres causas. Guerras estúpidas são travadas em nome da democracia. Assistimos recentemente a violação da privacidade de pessoas e Nações, tudo feito em nome da paz. Ao longo da história, povos inteiros já foram escorraçados e dizimados em nome de Jeová, Jesus Cristo, de Alá... A lista de absurdos é vasta.
Apesar das várias correntes e nuances comunistas e socialistas, o que elas têm em comum é que todas buscam evitar que a Lei da Selva do capitalismo prevaleça sem intervenções, tal como desejaria o capitalismo liberal (liberado de qualquer intervenção do governo), ou sua forma mais moderna, o neoliberal. Por isso, a concepção de Estado Mínimo – um Estado que tenha o mínimo de influência na sociedade, especialmente na economia – é a que mais favorece que o capitalismo floresça em toda a sua plenitude, alcançando toda a crueldade e selvageria que lhe seja permitido.
Mas você pode agora estar se perguntando se poderíamos ter um capitalismo mais humanizado, menos competitivo e cruel. Citando Marx, o capitalismo se fundamenta na mais-valia e no exercito de reserva. Simplificando, é necessário que sempre haja pobres (o maior número possível a fim de baratear o preço da mão de obra) dispostos a trabalhar para sobreviver (exercito de reserva), para que a riqueza possa, então, ser deles extraída (mais-valia) e se acumule nas mãos de alguns poucos. Sendo assim, não há humanismo no capitalismo, é o homem sendo o lobo do homem.
Para quem perdeu as aulas de história, vale lembrar que socialismo e comunismo são irmãos gêmeos do capitalismo, nasceram juntos. De fato, o socialismo e o comunismo nasceram para questionar e problematizar as contradições impostas pelo capitalismo. Em última análise, vieram para injetar humanismo no capitalismo. Por exemplo, sabemos que nas primeiras fábricas capitalistas os trabalhadores (homens, mulheres e até crianças) mantinham jornadas de até 16 horas diárias e sem direito a descanso semanal, férias e qualquer outra garantia trabalhista ou proteção social. Sendo assim, todas as conquistas dos trabalhadores desde o início do capitalismo, foram alcançadas pelo jogo de forças que impediam – não sem muita luta – que a ordem natural do capitalismo seguisse seu fluxo. Foram os ideais comunistas e socialistas que sempre fizeram, e sempre farão, contraponto ao desejo capitalista de acumular mais e mais à custa da exploração de outro ser humano e da miséria de muitos outros.
Socialismo e Comunismo fracassaram?
Lanço agora uma outra pergunta: Se acreditamos que o capitalismo triunfou em certa medida, isso quer dizer que socialismo e comunismo fracassaram ou sucumbiram? Na minha opinião, não, e vou explicar. Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal. Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso”.
Um dado curioso é que os defensores do Estado Mínimo, em geral adeptos do capitalismo, criticam os governos socialistas e comunistas por nutrirem um Estado Forte que intervém constantemente na economia, na política e nas corporações. Todavia, quando em 2009 a economia americana entra em colapso (mais uma vez), é nas portas desse mesmo Estado que os banqueiros americanos vêm bater pedindo socorro. O que quer dizer mais ou menos o seguinte: “Nós, que fazemos parte da elite dos 1% que detém a metade pizza estamos tendo problemas em administrar nossa metade e estamos temerosos em perde-la por completo, sendo assim, precisamos da ajuda do governo para que possam usar da sua parte da pizza, a que serve para socorrer os que tem pouca pizza ou pizza alguma, para nos reerguermos.” É quando os ideais comunistas e socialistas servem, desta vez, para socializar o prejuízo, já que o lucro é sempre privatizado.
Socialismo e comunismo abrigam uma sociedade ideal?
Já ficou claro que capitalismo, comunismo ou socialismo são modos de organização econômica, são maneiras diferentes de pensar a divisão da pizza, sendo que, todos eles podem florescer em diferentes formas de governos, mais ou menos democráticos, mais ou menos corruptos, mais ou menos agressivos, mais ou menos estúpidos, mais ou menos sanguinários e mais ou menos paranoicos. Não existe um ideal de sociedade. Capitalismo, socialismo e comunismo podem abrigar virtudes e mazelas.
Por outro lado, sempre haverá uma tensão intransponível entre o individual e o coletivo, entre o privado e o público, entre o singular e o universal. Freud afirmava que a civilização só foi possível porque o ser humano foi capaz de abrir mão da satisfação de suas pulsões egoístas em nome da coletividade. Todavia, sabemos que essa renuncia não se dá sem angústias e tensões. Digamos então que os ideais socialistas e comunistas nos auxiliam a pensar o mundo para além do nosso próprio umbigo. Investem na constante construção de um mundo onde os interesses individuais precisam ser considerados, entretanto jamais poderão ser maiores ou mais importantes que os interesses da coletividade.
Eu não acredito numa sociedade ideal, num sistema de governo ideal, num sistema econômico ideal. No entanto, eu não posso viver num mundo onde 85 pessoas tenham mais importância do que 3, 5 bilhões, sobretudo se eu sei que muitos desses últimos não vivem, apenas sobrevivem, quando sobrevivem. E é por isso, que eu me recuso terminantemente a abandonar os ideais socialistas e comunistas, pois são essas bandeiras que me permitem ter esperança. Se eu não puder ao menos me envergonhar e me indignar por tanta injustiça e desigualdade e acreditar que temos rotas de fuga possíveis em direção a um outro mundo, duvido que conseguisse levantar da cama todos os dias pela manhã.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Vai Ter Copa X Não Vai Ter Copa
Por Rita Almeida
Acho legítimas as manifestações contrárias a Copa do Mundo no Brasil. É natural que existam pessoas e organizações que não concordem que devamos sediar um evento desportivo deste porte. E, acredito eu, todos os países democráticos que já sediaram Copas do Mundo tiveram manifestações contrárias semelhantes. Numa “googlada” rápida, encontrei notícias de manifestações pelo menos nos dois últimos países sede: Alemanha (2006) e África do Sul (2010). Na Alemanha, inclusive, as manifestações foram duramente coibidas pelo governo porque tinham cunho neonazista, com palavras de ordem racistas e xenófobas contra os visitantes.
Para citar outro fato histórico similar, Nelson Mandela sofreu críticas e sanções até mesmo de aliados, quando propôs que a África do Sul sediasse a Copa do Mundo de Rúgbi, em 1995. Um esporte considerado de brancos, um símbolo do Apartheid que a África do Sul ainda tentava superar após a eleição de Mandela, em 1994. (O filme Invictus (2009) é imperdível pra quem quiser conhecer um pouco mais essa história).
O que quero dizer é que não podemos esperar unanimidade quando eventos desse porte entram na pauta de um país: haverá críticas, descontentamento, manifestações, nada de extraordinário, nada a se temer. O que me preocupa é quando as manifestações ou discursos contra a Copa nos parecem menos uma crítica e mais um desejo de ela que não se realize, seja lá a que preço for. Ouço gente por aí que secretamente ou declaradamente torce, no mínimo, pela implosão do Maracanã. No meu dicionário, gente desse tipo não quer manifestar para criticar ou provocar mudanças, quer apenas ter razão, quer que a carnificina aconteça pra depois se refestelar com os cadáveres. Isso me horroriza!
Mas na minha modesta e completamente tendenciosa opinião (posto que sou uma apaixonada por esportes e mais ainda por futebol) acredito que “Vai Ter Copa”, ou pelo menos, eu gostaria muito que tivesse. E não apenas porque amo futebol, mas também porque acredito piamente que quaisquer eventos nacionais ou internacionais, sejam eles desportivos, culturais, musicais, artísticos, científicos ou políticos, podem ser terreno propício para construir laços, laços entre nós e de nós com os outros e com o mundo. Os esportes, as artes, a política, aproximam, criam novas formas de linguagem, de afeto e de contato humano, que entendo como fundamentais, especialmente no mundo de hoje.
Eu, sinceramente, não estou interessada no quanto de retorno financeiro a Copa pode trazer, meu interesse é pelo retorno humano, pelo movimento novo que será criado, pela potência da presença de outras pessoas, outras línguas, outras culturas. Quero que a diferença e a diversidade de outros povos e culturas invadam nosso espaço para que por alguns dias o Brasil contenha em si o mundo todo. Quero que a Copa seja um acontecimento, e que como todo acontecimento, seja rico de sentidos e significados. Só lamento que o evento não seja tão democrático quanto eu gostaria que fosse, dado o valor dos ingressos e o custo das viagens, mas ainda sim me simpatizo muito com essas invasões pacíficas. Acredito sinceramente que se tivéssemos mais eventos deste porte transitando pelo mundo, teríamos muito menos guerras e invasões violentas.
Mas preciso esclarecer que, quando digo que defendo a Copa no Brasil, não quero dizer que concordo com os abusos que possam ou que supostamente estejam sendo feitos em nome dela. Não concordo com obras superfaturadas, com corrupção, com distorções nos gastos públicos, e, aliás, eu não concordo com isso em nenhuma outra situação. Nem com Copa e nem sem Copa.
Também faço minhas críticas à FIFA. Acredito que um outro mundo é possível inclusive no futebol. Persigo a utopia do saudoso Sócrates com sua Democracia Corintiana, que ele sonhava como modelo de gestão para todo o futebol, combatendo os cartolas nacionais e internacionais. Ou seja, desejar que meu país sedie uma Copa do Mundo não me impede de olhar criticamente para as nossas mazelas ou as do futebol.
E eu quero também um país sem fome, com saúde e educação de qualidade, quero que segurança pública seja um direito de todos e não privilégio de alguns, quero um país mais justo, menos desigual, mas também quero esporte, lazer, cultura. Afinal “a gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé” e me permitam, a gente quer futebol também.
Outra justificativa muito comum para os adeptos do, nesse caso, “Não Deveria Ter Copa” é a que afirma que não temos estrutura para tal. Nessa falta de estrutura incluem os problemas do nosso trânsito, da nossa rede de hotéis e restaurantes ou dos próprios locais que sediarão os eventos. Tudo bem, eu concordo. Quando recebemos visitas em nossa casa temos que melhorar ao máximo a estrutura para recebê-las, mas isso não implica mudar para uma outra casa ou deixar de ser o que somos. Sou frequentadora assídua dos debates nos canais esportivos e me dá náuseas quando alguns comentaristas sugerem que o despreparo do Brasil em sediar uma Copa é resultante, por exemplo, da falta de educação ou de cultura dos torcedores brasileiros, em última análise, do nosso povo. É como se precisássemos primeiro nos transformar numa Inglaterra habitada por alemães, para podermos, então, ser dignos de sediar uma Copa de Mundo. Isso pra mim é xenofobia, não tem outro nome.
Então, é o seguinte: A Copa do Mundo de Futebol de 2014 será no Brasil e num Brasil cheinho de brasileiros. Não nos transformaremos de uma hora pra outra num outro país e nem muito menos deixaremos de ser como somos. Receberemos nossos visitantes com nossas virtudes e vícios, foi assim e assim será em todas as Copas. Mas a pergunta é: podemos melhorar enquanto país e enquanto povo por causa da Copa? Na minha opinião, sim. É claro que sim!
O que eu espero é que a presença do outro em nossa casa possa promover em nós questionamentos como povo, nação e cultura. Espero que os olhares do mundo em nossa direção, realce nossas mazelas e dificuldades e nos provoque incômodo e vergonha suficientes para exigirmos mudanças, antes, durante e mesmo depois do fim do evento. Como acontece com aquela teia de aranha que está postada no canto da parede da nossa sala há meses e a gente só repara e se apressa em limpar quando a visita chega. A presença do outro sempre nos causa um movimento interessante, especialmente quando ao invés de estranhar o outro, estranhamos a nós mesmos. É fato que só somos capazes de nos enxergar na diferença.
A Copa e outros eventos internacionais devem ser vistas, a meu ver, como um acontecimento. E um acontecimento é uma oportunidade singular, cheia de potência e vitalidade de laços, encontros, diversidades e movimentos. A Copa poderá nos deixar muitas riquezas, muito mais necessárias e interessantes do que prováveis riquezas econômicas. E apesar de amar o futebol e torcer muito pela nossa seleção, torço mais pelo acontecimento do que pelo hexacampeonato. Sem esquecer que o acontecimento pode implicar em manifestações contrárias a ele. Sejamos serenos quanto a isso.
Acho legítimas as manifestações contrárias a Copa do Mundo no Brasil. É natural que existam pessoas e organizações que não concordem que devamos sediar um evento desportivo deste porte. E, acredito eu, todos os países democráticos que já sediaram Copas do Mundo tiveram manifestações contrárias semelhantes. Numa “googlada” rápida, encontrei notícias de manifestações pelo menos nos dois últimos países sede: Alemanha (2006) e África do Sul (2010). Na Alemanha, inclusive, as manifestações foram duramente coibidas pelo governo porque tinham cunho neonazista, com palavras de ordem racistas e xenófobas contra os visitantes.
Para citar outro fato histórico similar, Nelson Mandela sofreu críticas e sanções até mesmo de aliados, quando propôs que a África do Sul sediasse a Copa do Mundo de Rúgbi, em 1995. Um esporte considerado de brancos, um símbolo do Apartheid que a África do Sul ainda tentava superar após a eleição de Mandela, em 1994. (O filme Invictus (2009) é imperdível pra quem quiser conhecer um pouco mais essa história).
O que quero dizer é que não podemos esperar unanimidade quando eventos desse porte entram na pauta de um país: haverá críticas, descontentamento, manifestações, nada de extraordinário, nada a se temer. O que me preocupa é quando as manifestações ou discursos contra a Copa nos parecem menos uma crítica e mais um desejo de ela que não se realize, seja lá a que preço for. Ouço gente por aí que secretamente ou declaradamente torce, no mínimo, pela implosão do Maracanã. No meu dicionário, gente desse tipo não quer manifestar para criticar ou provocar mudanças, quer apenas ter razão, quer que a carnificina aconteça pra depois se refestelar com os cadáveres. Isso me horroriza!
Mas na minha modesta e completamente tendenciosa opinião (posto que sou uma apaixonada por esportes e mais ainda por futebol) acredito que “Vai Ter Copa”, ou pelo menos, eu gostaria muito que tivesse. E não apenas porque amo futebol, mas também porque acredito piamente que quaisquer eventos nacionais ou internacionais, sejam eles desportivos, culturais, musicais, artísticos, científicos ou políticos, podem ser terreno propício para construir laços, laços entre nós e de nós com os outros e com o mundo. Os esportes, as artes, a política, aproximam, criam novas formas de linguagem, de afeto e de contato humano, que entendo como fundamentais, especialmente no mundo de hoje.
Eu, sinceramente, não estou interessada no quanto de retorno financeiro a Copa pode trazer, meu interesse é pelo retorno humano, pelo movimento novo que será criado, pela potência da presença de outras pessoas, outras línguas, outras culturas. Quero que a diferença e a diversidade de outros povos e culturas invadam nosso espaço para que por alguns dias o Brasil contenha em si o mundo todo. Quero que a Copa seja um acontecimento, e que como todo acontecimento, seja rico de sentidos e significados. Só lamento que o evento não seja tão democrático quanto eu gostaria que fosse, dado o valor dos ingressos e o custo das viagens, mas ainda sim me simpatizo muito com essas invasões pacíficas. Acredito sinceramente que se tivéssemos mais eventos deste porte transitando pelo mundo, teríamos muito menos guerras e invasões violentas.
Mas preciso esclarecer que, quando digo que defendo a Copa no Brasil, não quero dizer que concordo com os abusos que possam ou que supostamente estejam sendo feitos em nome dela. Não concordo com obras superfaturadas, com corrupção, com distorções nos gastos públicos, e, aliás, eu não concordo com isso em nenhuma outra situação. Nem com Copa e nem sem Copa.
Também faço minhas críticas à FIFA. Acredito que um outro mundo é possível inclusive no futebol. Persigo a utopia do saudoso Sócrates com sua Democracia Corintiana, que ele sonhava como modelo de gestão para todo o futebol, combatendo os cartolas nacionais e internacionais. Ou seja, desejar que meu país sedie uma Copa do Mundo não me impede de olhar criticamente para as nossas mazelas ou as do futebol.
E eu quero também um país sem fome, com saúde e educação de qualidade, quero que segurança pública seja um direito de todos e não privilégio de alguns, quero um país mais justo, menos desigual, mas também quero esporte, lazer, cultura. Afinal “a gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé” e me permitam, a gente quer futebol também.
Outra justificativa muito comum para os adeptos do, nesse caso, “Não Deveria Ter Copa” é a que afirma que não temos estrutura para tal. Nessa falta de estrutura incluem os problemas do nosso trânsito, da nossa rede de hotéis e restaurantes ou dos próprios locais que sediarão os eventos. Tudo bem, eu concordo. Quando recebemos visitas em nossa casa temos que melhorar ao máximo a estrutura para recebê-las, mas isso não implica mudar para uma outra casa ou deixar de ser o que somos. Sou frequentadora assídua dos debates nos canais esportivos e me dá náuseas quando alguns comentaristas sugerem que o despreparo do Brasil em sediar uma Copa é resultante, por exemplo, da falta de educação ou de cultura dos torcedores brasileiros, em última análise, do nosso povo. É como se precisássemos primeiro nos transformar numa Inglaterra habitada por alemães, para podermos, então, ser dignos de sediar uma Copa de Mundo. Isso pra mim é xenofobia, não tem outro nome.
Então, é o seguinte: A Copa do Mundo de Futebol de 2014 será no Brasil e num Brasil cheinho de brasileiros. Não nos transformaremos de uma hora pra outra num outro país e nem muito menos deixaremos de ser como somos. Receberemos nossos visitantes com nossas virtudes e vícios, foi assim e assim será em todas as Copas. Mas a pergunta é: podemos melhorar enquanto país e enquanto povo por causa da Copa? Na minha opinião, sim. É claro que sim!
O que eu espero é que a presença do outro em nossa casa possa promover em nós questionamentos como povo, nação e cultura. Espero que os olhares do mundo em nossa direção, realce nossas mazelas e dificuldades e nos provoque incômodo e vergonha suficientes para exigirmos mudanças, antes, durante e mesmo depois do fim do evento. Como acontece com aquela teia de aranha que está postada no canto da parede da nossa sala há meses e a gente só repara e se apressa em limpar quando a visita chega. A presença do outro sempre nos causa um movimento interessante, especialmente quando ao invés de estranhar o outro, estranhamos a nós mesmos. É fato que só somos capazes de nos enxergar na diferença.
A Copa e outros eventos internacionais devem ser vistas, a meu ver, como um acontecimento. E um acontecimento é uma oportunidade singular, cheia de potência e vitalidade de laços, encontros, diversidades e movimentos. A Copa poderá nos deixar muitas riquezas, muito mais necessárias e interessantes do que prováveis riquezas econômicas. E apesar de amar o futebol e torcer muito pela nossa seleção, torço mais pelo acontecimento do que pelo hexacampeonato. Sem esquecer que o acontecimento pode implicar em manifestações contrárias a ele. Sejamos serenos quanto a isso.
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