por Rita Almeida
Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar. Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras, a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha, nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa casa.
Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em dar conta do real.
O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se consume. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, porque foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta, que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo.
Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a resposta para todas as nossas mazelas.
Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto, toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM (inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço, produzindo discurso.
Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a todos a fim de evitar o mal-estar.
Esta perseguição desenfreada por um ideal de linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É obvio que se estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente. Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus caros! Não somos unívocos!
Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou notícia ao fazer uma intervenção inflamada contra o Pastor Silas Malafaia e seu já tradicional discurso de ódio. Em programa ao vivo na rádio BandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação de Malafaia no tuíter e o aconselha a “procurar uma rola”.
As manifestações na internet foram imediatas e junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos também os que denunciaram a própria fala do jornalista como machista e homofóbica. “Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.
É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção, dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse sentido ela não se dispõe a silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao invés de eliminá-lo.
Já proposta do discurso politicamente correto é silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas diferenças e que evite os conflitos.
Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, este tipo de discurso consegue apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitário temos medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns dos outros ou criarmos uma tendência muito comum nas redes sociais que é a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças, nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de Chalie Hebdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou mal-entendido.
Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra os mal-estares da linguagem. É obvio que podemos destacar o equívoco na fala de alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de conforto.
Mas o que a polícia politicamente correta pretende é tentar evitar o equivoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.
Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta Universal para todas as situações semelhantes.
O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz “procurar uma rola” poderia lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola” neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo é necessário admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria castração aceita a do outro também.
Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para “procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, só me resta repetir o conselho de Boechat: - Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria muito bem a você assim como pode fazer muito bem a qualquer um de nós.