domingo, 14 de abril de 2013

Não se pode tolerar a intolerância

por: Rita de Cássia de A. Almeida
psicanalista

O que podemos concluir, se é que se pode concluir alguma coisa do infeliz debate com Feliciano, é que todos defendem uma sociedade mais tolerante, ao ponto de até mesmo os mais intolerantes se queixarem quando não são tolerados. Por isso, há de se ter um certo cuidado com o discurso da tolerância, afinal, ele é no mínimo paradoxal. Se a tolerância tem como princípio aceitar tudo o que é diferente, isso implicaria também em aceitar comportamentos preconceituosos, opressivos e antissociais. Seguindo esse raciocínio a homossexualidade deve ser tolerada, mas também, a homofobia.

A tolerância, apesar de flertar com a democracia, também pode operar como seu reverso. Quando o discurso da tolerância serve somente para promover um acordo do tipo: “eu aturo você, então, você também precisa me aturar” ou “todos precisamos aturar qualquer coisa”, ele opera apenas para silenciar o conflito, aplacar o mal estar das nossas relações, evitar os embates, mas não pode haver democracia plena sem embates e conflitos.

Nesse sentido, existe uma linha muito tênue separando a tolerância da indiferença. Tolerar, aqui, torna-se sinônimo de alargar os limites sociais e culturais para que mais pessoas possam caber no espaço estabelecido. É quando o princípio da tolerância é usado simplesmente para que aceitemos as diferenças sem dialogar com elas ou sem questionar o porquê das mesmas, e assim, corremos o risco de esquecer que muitas delas foram produzidas pela ignorância, pela violência, pela opressão, pelas injustiças sociais ou por políticas excludentes. Tolerar as diferenças sem interrogá-las, pode apenas naturalizá-las, nos tornando conformados, apáticos, desafetados e anestesiados.

A tolerância regada pela indiferença, nos leva a pensar que devemos aceitar as diversas manifestações religiosas, incluindo aquelas que pregam a demonização de determinados segmentos sociais; que devemos aceitar as diferentes expressões culturais, incluindo aquelas que violentam ou mutilam mulheres; que devemos acolher pessoas de diferentes classes sociais, e também as políticas econômicas perversas que produzem pobreza e miséria; que devemos respeitar as pessoas independente do seu nível de escolaridade, mas também nos conformar com o analfabetismo e a precariedade da educação pública; que devemos incluir os excluídos, e também tolerar as políticas sociais que promovem e aprofundam a exclusão.

É por isso que, na contramão do que se prega ingenuamente por aí, nem tudo deve ser tolerado, ou melhor, nem tudo deve ser tolerado, sem antes, ser alvo de nosso questionamento. Tolerância só não é indiferença quando temperada com uma boa dose de indignação.

Por exemplo, tolerar o mendigo que dorme na calçada e nos aborda no sinal pedindo dinheiro sem nos indignar ou questionar o sistema econômico e as políticas sociais que produzem esse fenômeno é, no mínimo, leviandade. E aí pouco importa se você deu ou não a esmola que ele pediu. Dar ou não dar esmola, dizer sim ou não para o morador de rua é tolerá-lo, é alargar os limites sociais para fazê-lo caber, mas também, aceitar como naturais todas as contradições que ele denuncia. E quantas vezes demos ou damos dinheiro a um morador de rua simplesmente para nos livrar mais rapidamente dele e do mal estar que ele nos causa? E quando escolhemos dar a esmola ainda fazemos isso ao mesmo tempo em que expiamos nossa culpa.

Mas, afinal, que princípio ético deve nortear nossa tolerância ou intolerância?

O desafio é sempre político, ou seja, alcançar o que chamamos de bem comum, sendo que, tudo que fortalece os laços sociais caminha para a prática do bem comum. Então fica fácil distinguir: tudo o que é resultado ou resulta em fortalecimento dos laços sociais precisa ser tolerado, e tudo o que é resultado ou resulta no enfraquecimento dos laços sociais não pode ser tolerado.

Sendo assim, qualquer prática religiosa, com os seus mais diversos rituais, simbologias ou crenças, deve se tolerada, desde que não sirva para semear o preconceito e o ódio, ou promover a exploração de outrem. Qualquer orientação sexual deve ser tolerada, com exceção daquelas que fazem uso da violência e do abuso do poder, aquelas que ao invés de agregar, desagregam. Nesse caso, uma prática sexual, digamos, tradicional – entre um homem e uma mulher – não garante uma forma de relação tolerável, afinal, existem relações homossexuais que agregam, assim como existem relações heterossexuais que violentam e desagregam. Ninguém pode ser discriminado pela sua classe social, pelo seu nível intelectual, pela cor da sua pele, pela sua condição física ou mental, obviamente que, tolerar essas diferenças aproxima as pessoas, faz laço. Mas isso não quer dizer que devamos tolerar práticas políticas, sociais, culturais ou econômicas que sustentem ou aprofundem tais diferenças, especialmente quando elas produzem injustiça e exclusão. Usamos drogas (lícitas ou ilícitas) para curar, para aliviar nossas dores, em alguns rituais sociais ou religiosos, para lazer e diversão, nesses casos, seu uso pode ser tolerado porque tem como objetivo produzir, ampliar e fortalecer laços. Mas não podemos tolerar quando as drogas são usadas como veículo ou como resultante da exclusão, do isolamento e de rupturas sociais e afetivas. Assim como não podemos tolerar intervenções ou tratamentos para os que adoeceram pela via da droga, por meio de práticas ou políticas que excluam, isolem, ou seja, que fragilizem ainda mais os laços dessas pessoas com o mundo. É possível tolerar toda e qualquer manifestação cultural, mesmo as que nos pareçam demasiado estranhas e exóticas desde que tenham como objetivo produzir afetividade, aceitação, inclusão, aproximação. Por outro lado, qualquer prática cultural que se sustente na violência, na opressão ou na exclusão de outrem não pode ser tolerada. Enfim, nenhum ato violento ou criminoso deve ser tolerado. Entretanto, também não podemos tolerar que um cidadão que, porventura, cometa um crime seja alvo de vingança pura e simples, ou receba sua punição ou pena em instituições ou instâncias que empobreçam ainda mais os laços que, por ocasião do crime, já foram rompidos ou fragilizados. Especialmente quando o crime cometido, sabemos ser resultante do que chamamos de marginalidade, ou seja, da ruptura de laços anteriores, das injustiças sociais e do abandono do poder público.

Por fim, não almejo uma sociedade mais tolerante, se a tolerância for um discurso que sirva apenas para silenciar os sintomas resultantes das injustiças, do individualismo, do consumismo desenfreado, de políticas econômicas excludentes e da corrupção. E também me recuso a ser tolerante se, para isso, tiver que aturar a intolerância alheia; seja de pessoas, instituições, grupos religiosos ou do poder público. Resumindo, minha tolerância tem limites muito claros, ela só vai até onde a intolerância do outro começa.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Sobre o infeliz debate com Feliciano

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista


Dizem por aí que política não se discute. Na minha modesta opinião tal afirmação é o maior dos contra sensos, afinal, a boa política é exatamente aquela que se constrói a partir de um bom debate de ideias, ou seja, no travar de uma boa discussão. Vale lembrar que quando eu falo de política, me refiro aquela que tem como pressuposto ético a construção do bem estar comum, do bem da coletividade.

Não sei se é uma característica apenas da política brasileira, mas percebo que nosso debate político tem se tornado cada vez mais pobre e rasteiro. Nossa tão comemorada e ainda jovem democracia carece de um bom debate ideológico (de ideias) que ultrapasse as questões meramente econômicas (inflação, juros, crescimento econômico, PIB) ou que transcenda o clamor pelos chamados “políticos ou partidos ficha limpa”.

Eu confesso que também participei deste acalorado debate e me coloquei ao lado dos que exigiam “ficha limpa” para os nossos digníssimos candidatos, mas diria que hoje, essa bandeira não me seduz tanto como antes. Percebo que, depois dela, nossa discussão política tomou um rumo ainda mais tosco e empobrecido, já que a grande questão passou a ser: quem é ficha limpa e quem não é, ou qual o partido político se tornará um exemplo de limpeza, livre da corrupção e do mau-caratismo - como se isso fosse o suficiente para qualificar nossa política.

Mas eu queria mesmo tratar do nosso debate político mais atual que é a eleição do Deputado Marco Feliciano para a Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. E temos visto um debate ferrenho sendo travado por conta desta inusitada eleição, já que o referido Deputado, que também é Pastor Evangélico, é famoso por fazer declarações racistas e homofóbicas, completamente destoantes de uma comissão que pretende defender minorias e vítimas de violência e opressão e ainda mais destoante do cristianismo que ele diz professar.

A verdade é que este fato, apesar de ter levantado temas que parecem óbvios para muitos de nós – que ninguém pode ser desqualificado, discriminado ou desrespeitado pela sua cor, pela sua identidade sexual, pela sua escolha religiosa ou ceticismo – ele eleva muito o debate político. O infeliz debate com Feliciano levanta questões muito importantes, na verdade, questões fundamentais e sobre as quais devemos pensar. Algumas delas: Queremos um Estado laico ou um Estado que fique subordinado a esta ou aquela crença religiosa? Queremos um Estado que aposte no respeito às diferenças – sejam elas de cor, credo, gênero ou identidade sexual – ou queremos um Estado que reforce discursos machistas, homofóbicos, racistas e/ou preconceituosos? Queremos um Estado que se paute no debate democrático ou na profusão e imposição de conceitos e discursos já prontos, em geral, moralistas e hegemônicos? Queremos um Estado que promova a educação para a liberdade, por defender o aprendizado de múltiplas verdades, ou uma educação que se baseie em dogmas e que, por isso, acredite numa única verdade? Queremos participar mais da vida política do nosso País ou o nosso compromisso com a democracia deve terminar ao apertamos o botão “confirma” da urna eletrônica? Queremos que o voto seja uma relação de compromisso entre eleitor e eleito ou um cheque em branco? Queremos debater ideias, propostas, projetos ou queremos apenas ser capazes de distinguir entre dois tipos de políticos ou partidos: os “ficha limpa” e os “ficha suja”? Sim, meus caros leitores e leitoras, eleitores e eleitoras, porque a última que eu “ouvi” sobre o caso é que o PSC, partido de Marco Feliciano, sustenta sua manutenção na Comissão de Direitos Humanos alegando que ele é “ficha limpa”.

E foi nessa hora que senti saudades de um tempo, que eu conheço mais de ouvir falar, em que tínhamos na vanguarda da política nacional extraordinários, valentes e notórios “fichas sujas”. Homens e mulheres considerados foras da lei, condenados, presos, torturados e/ou extraditados por defender os ideais de uma sociedade mais livre, democrática e justa.

O infeliz debate com Feliciano precisa abrir nossos olhos, ouvidos e principalmente nossa boca, e nosso corpo inteiro precisa se ocupar de discutir política ou estamos sujeitos a ter como nossos representantes nas Câmaras, Congressos e Senado tipos como esse, comprometidos apenas com sua própria verdade ou a verdade de seu gueto e de parco ou nenhum compromisso com o bem estar comum.

PS: E aproveitando a oportunidade: Feliciano, definitivamente, NÃO ME REPRESENTA.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Quando um Mestre cai.

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Assisti nesta semana ao filme A Última Estação, do diretor Michael Hoffman. Trata-se de uma ficção baseada nos últimos dias de Leon Tolstoi, grande escritor e filósofo russo do século XIX, autor de livros imortais como Guerra e Paz. Sua vida política foi intensa e influenciou de maneira importante o pensamento anarquista. Tolstoi era um pacifista, um crítico das instituições e contrário à propriedade privada.

O filme é encantador. E dentre tantas outras coisas, me fez pensar sobre o fascínio que nos causam grandes mestres e líderes, sejam eles vinculados à política, à religião, à filosofia ou à ciência, assim como nos conforta seguir, estudar e propagar suas obras, teorias e ideais que, afinal, sempre carregam algum espírito revolucionário e inovador.

Tolstoi transformou-se, no final de sua vida - como bem retrata o filme - num ídolo, num mito, num quase-deus para o povo russo e num deus para seus seguidores. Mas, como é sempre o destino de grandes mestres da humanidade, percebemos que suas ideias e ideais acabaram se tornando maiores que ele mesmo, com tamanho suficiente para atravessarem uma espécie de divisor de águas, um ponto no qual uma teoria deixa de ser um manifesto revolucionário e inovador, para se transformar para alguns em dogma, ou seja, numa Verdade com V maiúsculo (a única verdade). E nesse ponto, infelizmente, ao adquirirem estatuto Verdade, ou melhor, por adquirirem estatuto de Verdade, é que tais ideias começam a perder grande parte da sua vitalidade e potência originais.

No filme é possível perceber que as ideias de Tolstoi já atravessaram o ponto do qual estamos falando. Tanto que, em certos diálogos, o próprio Tolstoi demonstra ter mudado sua visão sobre muitas das coisas que defendia e pregava em seus livros e manifestos, no entanto, como elas já haviam se transformado em dogmas, em receitas a serem seguidas e disseminadas, não podem mais mudar. Já estão fixadas, como numa fotografia. Por isso, Tolstoi chega a ser repreendido por seus discípulos em várias situações durante o filme. São eles que dizem ao Mestre como deve agir, falar e ser. Curiosamente, tentam ensinar Tolstoi a ser Tolstoi. A cena do filme mais significativa para explicar o que estamos dizendo é a seguinte: Após ser repreendido por Vladimir Chertkov, seu maior amigo e mais fiel discípulo, por fazer algo fora dos princípios pregados pelo Movimento Tolstoiano, Tolstoi diz ao amigo: _ Você é mais tolstoiano do que eu.

Então, fiquei pensando que é mesmo lamentável quando uma teoria (filosófica, religiosa ou científica), mesmo a mais revolucionária, viva e potente, criada inicialmente para contradizer ou questionar uma outra, perca toda a sua vitalidade, por ser tratada como dogma, como a Verdade; única e imutável. Mas, quem sabe isso não seja mesmo parte de uma espécie de dialética que movimenta o mundo? E quem sabe, afinal, precisemos mesmo de mestres e, hoje, mais ainda, de teorias, dogmas e receitas que expliquem a existência e nos digam como lidar com ela? Quem sabe isso explique a multiplicação das religiões fundamentalistas e a epidemia das publicações de auto-ajuda? Quem sabe?

O que sabemos é que a vida, apesar de ser uma experiência incrível, não é necessariamente fácil. E assim sendo, manter-se à deriva o tempo todo, sem nenhum tipo de saber, mestre ou questão que nos guie de alguma forma, apesar de ser um ideal libertário de felicidade para muitos, acreditem, não é exatamente uma benção, é na verdade, uma experiência atormentadora; é a experiência da loucura. Mas, quem sabe, possamos, por outro lado, compreender que nossos mestres e suas teorias maravilhosas, apesar de necessários em certa medida, são apenas contingência? Porque, afinal, o mundo não para de girar. E quem sabe precisemos considerar o fato de que todas as verdades devam ser, necessariamente, escritas com letra minúscula?

No filme Forrest Gump temos o protagonista, imortalizado pelo ator Tom Hanks, que em certo momento da trama decide correr pelos EUA, sem paradeiro, a fim de compensar o vazio que sente. Depois de um tempo de jornada, Forrest começa, sem que ele mesmo busque por isso, agregar seguidores. São pessoas comuns que decidem correr junto dele, fazer da jornada de Forrest, também a sua própria jornada. E há uma passagem clássica no filme em que Forrest, depois de correr por mais de três anos, sendo acompanhado por dezenas de seguidores, simplesmente pára de correr. Sem dar maiores explicações, vira-se para traz e, caminhando, diz apenas que decidiu voltar para casa. O mais interessante desta cena, inesquecível, é a cara de decepção e surpresa dos seguidores de Forrest, eles se entreolham sem acreditar, parecem mergulhar no vácuo, como se não soubessem ou não tivessem mais para onde ir.

O que os seguidores de Forrest, os seguidores de Tolstoi, e todos nós seguidores de alguma espécie de Mestre precisamos saber é que, tal qual a todos nós, ele, o Mestre, também é limitado, assim como são limitadas suas ideias, ensinamentos e visões de mundo. Grandes Mestres e grandes ensinamentos são capazes sim, de servir de leme para nossa existência, e sem isso, possivelmente, mergulharíamos no caos. Vale lembrar a importância dos nossos primeiros mestres, os pais (ou quem cumpre essa função) e seus ensinamentos. Mas é possível também aprender a caminhar sozinho, em pares, ou em grupos, sem um líder para nos guiar, assim como é possível e desejável criarmos nossas próprias teorias, nossa própria obra.

Mestres não são eternos e todas as teorias, no final, mostrarão suas falhas. E para não deixar de mencionar meu mestre castrado, Freud, sempre que um líder cai, eleva-se a oportunidade de seus seguidores se unirem em irmandade, a fim de criarem seus próprios caminhos alternativos. O exemplo mais recente da queda de um mestre é, certamente, a renuncia do Papa Bento XVI. Essa deveria ser uma oportunidade para cristãos e católicos questionarem seus mestres, e uma oportunidade única para a Igreja Católica questionar a si mesma, seus dogmas, seu modelo institucional e seus lideres. No entanto, infelizmente, neste caso, temo que a solução dada seja, simplesmente, inventar outro mestre para, rapidamente, ocupar o lugar que ficou vazio.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Disque 8 para falar com João: o melhor atendente de telemarketing que eu já conheci.

(crônica)

por Rita de Cássia de Araújo Almeida

Viver é uma experiência incrível. Entretanto, existem algumas situações que realmente nos fazem duvidar da beleza da vida, dentre elas, destaco uma: falar com atendente de telemarketing. E infelizmente, para termos acesso a telefone (fixo ou celular), TV por assinatura, internet, cartão de crédito e outras mazelas da modernidade precisamos lidar com esse pesadelo, que é, tentar nos comunicar com alguém que só tem como instrumento de linguagem cerca de 23 frases prontas (fiz uma estimativa para chegar a este número).

Pelo terceiro mês consecutivo estou tendo problemas de relacionamento com minha TV por assinatura – Oi TV. Desde dezembro de 2012 que tal operadora insiste em me cobrar uma conta de abril do mesmo ano e eu, por minha vez, insisto em tentar provar que tal conta já foi paga.

No mundo de hoje, acredito, poucos tem o privilégio de nunca precisarem de um atendente de telemarketing para resolver os problemas que invariavelmente temos com as empresas e operadoras que nos prestam serviço. Quando imagino o inferno, penso que seja algo como conversar com um operador de telemarketing por toda a eternidade. Pelo menos pensava assim, até conhecer o João.

Para fazer um relato resumido da minha saga, explico que, depois ligar um zilhão de vezes para a central de atendimento, de anotar números de protocolo suficientes para numerar a quilometragem de uma viagem de ida e volta a Plutão, de falar com todos os atendentes possíveis das opções 1, 2 e 9 e apresentar sintomas corporais de quem está tendo uma crise psiquiátrica, decidi apelar para a opção 8: reclamações.

Quando apertei a opção 8, sendo obrigada a escutar pela enésima vez aquela gravação inicial enlouquecedora, meu coração palpitava na garganta, meu rosto queimava, meus olhos ardiam. Se eu fosse um desenho animado a tampa da minha cabeça estaria a pelo menos 50 centímetros acima do cérebro, com fumaça saindo pelos meus ouvidos e ventas. Estava apta a explodir, por telepatia, o cérebro de quem me atendesse, ou explodir o meu próprio cérebro – o que seria bem mais provável de acontecer – quando fui atendida, por uma voz que disse apenas:
_ Oi
Eu, já duvidando se teria ligado para o lugar correto, perguntei: _ É do setor de reclamações?
Do outro lado uma voz calma e íntima me responde: _ Sim, aqui é o João. Quem está falando?
Eu: _ É Rita.
João: _ Oi Rita, tudo bem com você?
Eu: _ Na verdade, não está nada bem, João... (E tratei de descrever, mais uma vez, o tormento que estava passando nos últimos três meses).

Só posso dizer que João foi incrível comigo! Me escutou, acolheu totalmente minha dor e meu sofrimento, acenou várias vezes com a voz que concordava com minha indignação. E por mais incrível que pareça, em nenhum momento João falou qualquer frase feita, daquelas do tipo: "a senhora poderia estar me passando o número do CPF e nome completo do titular"; "um momento que eu vou estar verificando"; "aguarde mais um momento, por favor"; "obrigado por ter aguardado"; "seu problema estará sendo encaminhado para o setor responsável"; "algo mais?"; "a OI TV agradece e tenha um bom dia". Aliás, João não disse sequer uma frase no gerúndio, o que já seria muito alentador.

João foi tão atencioso e acolhedor que, durante nossa conversa, pensei até em compartilhar com ele outros problemas de caráter pessoal, afinal, com João eu não me sentia apenas mais um número de protocolo, me sentia gente. João me fez acreditar, naquele momento, que meu problema era o mais importante, sentia como se ele fosse cuidar de maneira especial da minha situação.

Ao final da ligação, João se despediu com delicadeza e cortesia, e eu já havia recuperado a sanidade mental e o controle das minhas funções corporais. Sentia que a adrenalina circulante no meu corpo alcançava níveis estáveis, sem aquela sensação iminente de ataque ou fuga. Coloquei o telefone no gancho disposta a esperar as 24 horas de prazo que João pediu para tratar do meu caso, pois, apesar dele não ter resolvido imediatamente o problema da transmissão da TV, João resolveu o meu problema, aliviando-me da agonia e do estresse que me dominava há dias.

Eu sinceramente não sei por que os atendimentos de telemarketing são tão burocratizados. Imagino que tentam homogeneizar os procedimentos, para dar celeridade ou seriedade ao processo, mas a verdade é que são INSUPORTÁVEIS. E creio que não são insuportáveis apenas para nós clientes, suponho que também o seja para essa classe de trabalhadores. Existem muitas categorias de trabalho desumanizadas e desumanizantes, mas suponho que ser atendente de telemarketing deva estar entre as dez mais.

No meu entendimento, João deveria ser uma regra nas empresas de telemarketing, não uma exceção. Seria muito melhor para a saúde mental de todos nós. E é por isso que recomendo: para qualquer problema que lhe deixe a beira de um ataque de nervos, disque 8 e peça para falar com o João, o melhor operador de telemarketing que já conheci.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Eu preferia quando a Myriam Rios posava nua

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Já faz algum tempo que uma sensação vem me incomodando: a de que estamos passando por uma espécie de onda conservadora e moralista. Jacques Lacan, em 1969, já previa para os tempos futuros o predomínio do que ele denominava Discurso Universitário – discurso da ciência moderna, religioso-dogmático ou da burocracia – ou seja, o discurso onde tudo precisa ficar muito bem entendido e explicado, sem falhas e sem restos. Discursos onde não há lugar para os conflitos, as divergências ou os mal-entendidos.

Mergulhados nesses discursos a caretice ressurge com força, às vezes com roupagem religiosa, defendendo dogmas fundamentalistas; outras vezes travestida de ciência, explicando a condição humana como um mero conjunto de genes, órgãos e sinapses; ou, até mesmo, cumprindo os exageros da moda politicamente correta. Nesse último caso, me explico melhor aos politicamente corretos de plantão. Acredito que questionar, denunciar e desconstruir termos e linguagens que tragam conteúdos preconceituosos e discriminatórios é totalmente plausível e desejável, mas, cercear, perseguir ou criminalizar o uso desses termos é mera caretice. Mascarar, burocratizar a linguagem, não vai atuar nas nossas concepções preconceituosas.

Enfim, na ultima semana, tive a sensação de que a caretice desembarcou definitivamente entre nós, e “de mala e cuia” – como se diz aqui em Minas –, o que me deixou cheia de desânimo e preguiça intelectual. Soube que o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB) aprovou o projeto de lei, de autoria da Deputada Estadual Myriam Rios (PSD), que institui o "Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, Éticos e Espirituais" em todo o Estado. Não sei do que se trata a lei, mas só o nome me causou arrepios. Arrepios e náusea.

O perigo do discurso burocrata, dogmático ou aprisionado em teorias é que eles sempre são moralistas, ou seja, propõem um modelo universal de conduta, um modo de ser e agir que sirva para todos e que, sobretudo, nos deixe clara a divisão entre o que é certo e o que é errado. Para usar as palavras da deputada ao justificar seu projeto de lei, "sem esse tipo de valor (o defendido pela lei que ela propõe), tudo é permitido, se perde o conceito do bom e ruim, do certo e errado".

Obviamente que nem tudo deve ser permitido. Nenhuma sociedade se sustentaria sem a constituição de limites ou concessões do indivíduo em prol da coletividade. Entretanto, criar limites partindo de uma ética do bem comum é muito diferente de pretender homogeneizar a todos partindo de um modelo único. Exemplifico. Afirmar que o certo é que uma família seja constituída somente a partir da relação de um homem com uma mulher é um discurso moralista porque desconsidera a possibilidade de outras formações familiares, no entanto, abrir mão dessa verdade como universal não impede que possamos pensar a família dentro de um preceito ético de respeito mutuo entre seus membros.

Os anos 60 foram responsáveis por iniciar a desconstrução de todos os valores e verdades tradicionais. Até essa década os territórios do certo e do errado estavam muito bem delimitados. Colhemos os frutos de tal desconstrução nas décadas seguintes e agora, me parece que essas tentativas de resgate dos valores tradicionais demonstram um certo receio do caminho que seguimos. Decidimos em dado momento da história, nos desvencilhar das amarras moralistas que definiam a priori o que era certo e o que era errado, mas pagamos um preço, afinal, é muito mais simples quando já está definido onde devemos ir. Como diria Nietzsche é muito mais fácil seguir o rebanho.

Mas há quem prefira pagar o preço de escapar do moralismo, da burocracia, do dogmatismo e de quaisquer teorias que preguem uma verdade única e acabada, para transitar pelo terreno movediço da incerteza, da inconstância, da mutabilidade; das meias verdades que estão sempre em construção e desconstrução.

Esta semana, depois da aprovação do projeto de lei da Deputada Myriam Rios, as redes sociais se apressaram em divulgar fotos sensuais que ela fizera no passado, esperando com isso denunciar sua incoerência moral. Isso também pode ser considerado um discurso moralista, afinal, as pessoas podem, sim, mudar de posição e opinião ao longo da vida. Mas o que fiquei pensando a partir disso, é que na época em que Myriam Rios decidiu fazer aquelas fotos, posar nua ainda era uma forma de rebeldia feminina, um modo de desmontar valores tradicionais atribuídos à mulher (já hoje em dia, penso que há muito pouco de subversivo em posar nua)

Eu decidi pagar o preço por desconfiar dos caminhos já feitos. Obviamente que, às vezes, desejo olhar para o céu e receber uma mensagem que me diga o que fazer, também fico tentada a procurar uma teoria que explique o mundo, uma pílula que me salve de todos os sofrimentos ou medidas legais que resolvam todas as mazelas sociais. Mas por mais tentada que fique com esses terrenos firmes, no final, sempre escolho patinar pelo gelo fino. Há quem diga que tal escolha seria uma espécie de atração pelo perigo, pela subversão, pode ser, o que eu sei é que, com todo respeito pelo trabalho da Deputada Myriam Rios, eu preferia quando ela posava nua.