sexta-feira, 15 de abril de 2016

Madrugada

A madrugada, quando engolida por silêncios
É a morada dos fantasmas
E a dispensa onde guardamos nossos medos
É lá onde o tempo corre demasiadamente lento
E até as minúsculas formigas são capazes de fazer barulho

Pra quem dorme, o sono alimenta
Para os insones, a fome aperta
Fome de entender
Fome de lembrar
Fome de esquecer

A madrugada silenciosa é para os fortes
Ou para os poetas
As palavras chegam sem que a gente precise abrir a janela
Ou acender a luz

Na madrugada,
As dores ganham o dobro do peso
E a angústia - que também não dorme
Nos atravessa com sua lança

É na madrugada que entendemos
Que a vida, afinal, é uma experiência solitária
Pois os que nos acompanham nessa jornada
Também precisam enfrentar suas próprias madrugadas
Do seu próprio modo

Na madrugada,
É cada um com seu silêncio particular
E cada um com seu barulho peculiar

Só o amor nos salva da barbárie

Bem... eu não me considero uma pessoa religiosa, mas isso não me impede de acreditar que só o amor nos salva, não em direção um outro mundo, nos salva da barbárie deste mundo mesmo, e que pode estar logo ali adiante.

Nesta sexta-feira acredito que muitos devam estar mobilizados pela causa da paixão de Cristo, portanto, quero aproveitar para sugerir uma coisa que acho importante nesses tempos de redes sociais. Cuidado ao divulgarem fotos e relatos sobre pessoas que supostamente cometeram algum crime. Por mais que a história pareça verossímil e que você pense que está fazendo um bem alertando as pessoas ou ajudando na busca e condenação de um criminoso, esta não é uma atitude sensata.

Primeiramente nunca sabemos se tais postagens condizem com a verdade e não sabemos quem iniciou a corrente e seus motivos. Toda história tem inúmeras interpretações e a interpretação que você vê nesses casos conta apenas uma versão da história. E pode até mesmo ser uma invenção de alguém para denegrir ou prejudicar uma pessoa inocente. Já pensaram nisso?

E ainda que seja tudo verdade, precisamos estar avisados que o tribunal das Redes e do Whatsaap é cruel e desumano. Qualquer pessoa que tenha cometido um crime, por pior que ele seja, tem direito a julgamento digno, punição proporcional, além de amplo direito de defesa. Já o tribunal das Redes é assustador. Acusa, julga, condena e pune num único post. É irracional e passional. Portanto, o máximo que você pode conseguir divulgando coisas deste tipo é incitar um linchamento: moral ou físico, que pode acontecer inclusive com uma pessoa que não tem nada a ver com a história, só por parecer com o acusado (já vimos histórias deste tipo por aqui).

Pela tradição Cristã, sábado de aleluia é dia de linchar o Judas. Um Judas que reeditamos todos os anos para expiar nosso ódio, nosso desejo de vingança e nossa sede de fazer justiça com as próprias mãos. Mas não esqueçamos que na sexta-feira da paixão o que Jesus sofreu foi também um linchamento. Seus supostos crimes foram colocados à público na praça e os cidadãos de bem da ocasião decidiram que ele era culpado e deveria ser humilhado e espancado até a morte.

No sábado linchamos Judas tentando colocar nele a culpa pelo linchamento de Jesus Cristo, mas na verdade, essa é apenas uma tentativa de negar a verdade: Jesus foi morto pelo coletivo dos cidadãos de bem de seu tempo, que decidiram pela pressa e pela passionalidade de achar um culpado a ser condenado.

Passaram-se mais de 2000 anos e ainda não aprendemos a lição. Ainda achamos que faremos a diferença nesse mundo jejuando na quaresma, comendo peixe na sexta-feira santa e indo à Igreja no domingo de Páscoa.

Como disse, não sou religiosa, mas o que entendi sobre o legado de Jesus Cristo resume-se em uma aforia simples: "ame o teu próximo". E se ele precisou passar por tanta coisa para deixar apenas essa singela mensagem é porque se trata de uma missão extremamente difícil. Sim, é muito difícil amar o próximo, quase impossível, daí o valor e a nobreza deste ato.

Par - tido

Em tempos de criminalização e judicialização da política, talvez seja importante resgatar o sentido da palavra Partido. Partido é o que não é inteiro, assim sendo, um Partido não tem como propósito unificar ou reunir todas as ideias, interesses e propostas. Cada partido representa apenas uma parte dos interesses que transitam na política, e é assim que deve ser. Nesse sentido, essa coisa de "meu Partido é o Brasil" ou "meu Partido é a constituição" é um discurso vazio, que só serve para alienar e enganar, pois supõe que não existam diferentes interesses e posições numa Nação. Esse discurso que se pretende unificado não cabe numa democracia, porque supõe que exista uma forma unificada de pensar e conseqüentemente, uma unica forma de agir.

Acreditar que exista uma unica forma de pensar e agir é fascismo. A riqueza da democracia é exatamente essa: vários Partidos, que são várias partes com suas diferentes concepções e interesses tentando conversar e negociar. Tais negociações podem chegar ou não a um consenso, e não há nenhum problema quando não se chega a um, afinal, as vezes os interesses em jogo são antagônicos. Mas a política é a arte de manter o diálogo aberto mesmo quando as partes são muito diferentes.

Portanto, a ideia de que nós devêssemos nos juntar numa única bandeira para conduzir a crise da política atual parece muito bonita e palatável, mas é pura bobagem. A mesma bobagem que é uma política sustentada na criação de um inimigo comum. Tenho escutado: "não sou de nenhum partido, só quero acabar com a corrupção". Ter a corrupção como inimigo único também é um discurso totalmente vazio para a politica. Até porque, você conhece alguém a favor da corrupção? Então, o desafio que temos pela frente é grande e difícil e se prezamos pela nossa democracia, precisamos aprender que não haverá um discurso único nesse caminho, mas sim discursos partidos, incompletos e imperfeitos. Da muito mais trabalho negociar com essas diferenças, mas é o único modo democrático de faze-lo.

As vezes, também sonhamos com uma receita pronta, um super-herói (Moro, Joaquim Barbosa, Chapolin Colorado), um salvador ( Lula, Aécio, Bolsonaro, Jesus) ou a intervenção de um outro de fora (militar , alienígena, dos EUA) que resolva tudo pra nós. Isso deveria ser uma solução pensada só pelas crianças, a vida adulta requer de nós trabalho e coragem para construir nossas próprias saídas.

Enfim, nesse momento que vive o Brasil é urgente e fundamental tomar partido. Sem esquecer que qualquer partido que você tome, este sera o reflexo de apenas uma parte do contexto, será apenas uma parte da verdade. Melhor dizendo, nenhum Partido está com todas as verdades, está apenas com a verdade que você escolheu defender. Outra coisa importante é entender que aquele que possui interesses diferentes do seu tomará outro tipo de partido e se tornará seu interlocutor político e não seu inimigo.

Vamos ao trabalho, então! E que cada um tome sua parte!

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Declaração

por Rita Almeida

Com toda essa movimentação com a política nacional das últimas semanas, eu estava até esquecendo de fazer minha declaração para o Imposto de Renda. Então, lá vai...

Declaro, primeiramente, Imposto de Renda, que lhe quero bem. Sim, é verdade! Eu gosto de você, assim como o seu pai Imposto e toda a sua família, porque acho que vocês são fundamentais para o funcionamento de qualquer sociedade nos dias de hoje. Então, como conceito, como ideia, eu curto e torço por vocês. Mas o problema é que, aqui no Brasil, vocês agem de uma forma muito injusta, e isso, às vezes me faz ter sentimentos ambíguos. Vou explicar...

Recentemente eu li um livro: O Capital no Século XXI de Thomas Piketty, que me fez compreender melhor a importância de vocês. Compreendi com tal leitura, que a arrecadação justa de impostos é uma das melhores maneiras de reduzir as desigualdades. Que o desenvolvimento de um Estado fiscal e social é fundamental para o futuro do planeta. O objetivo seria melhor dividir a riqueza já existente, na medida em que chegamos num limite ecológico que nos impossibilita fazer a riqueza crescer mais. A aquisição deste Estado fiscal e social (capaz de oferecer a seus cidadãos um aporte mínimo de saúde e educação públicas, além de um sistema eficiente de previdência) é o que, segundo as pesquisas do autor, tem atuado minimizando os efeitos da desigualdade para os mais desprotegidos socialmente.

Também, fiquei sabendo, por exemplo, que seus primos Europeus mantêm um índice de arrecadação pública da ordem de 45 a 50% da renda nacional, chegando a uma arrecadação de 55% na Suécia. E segundo Piketty, esses são percentuais mínimos aceitáveis para a promoção de razoável bem estar social da população. No Brasil, segundo os dados que colhi no site do Jusbrasil, num texto do jurista e professor Luiz Flávio Gomes, cerca de 36% do nosso PIB são destinados a família de vocês. Mas o problema é que vocês são injustos, cobram mais de quem tem menos, pervertendo assim, o que seria a vossa missão primeira, que é distribuir renda.

Veja só o que vocês fazem por aqui: “quem ganha até um salário mínimo (R$ 724 reais) tem carga tributária real de 37%, contra 23% com salário de R$ 6 mil reais e 17% com salário de 22 mil reais”. “Os tributos sobre rendas e ganhos patrimoniais, no Brasil, são metade (19%) do cobrado nas nações desenvolvidas (38%), segundo dados da OCDE.” Já “no item impostos sobre mercadorias, serviços e bens o Brasil (45%) está muito acima da média da OCDE (29%).” (GOMES, 2014, site Jusbrasil)

Resumindo, vocês sobrecarregam o imposto sobre o consumo e privilegiam a renda e ganhos patrimoniais, uma regressividade, que pune os mais pobres e alivia os mais ricos. Eu sei que vocês herdaram essas regras de seus antepassados não republicanos e escravocratas, mas já está na hora reverem isso não?

Outra coisa que aprendi lá com dados citados no Jusbrasil, é que, ao contrario do que a gente ouve nas conversas de esquina, o Brasil não ostenta uma das maiores alíquotas do imposto de renda do mundo. Enquanto vocês arrecadam no máximo 27,5% por aqui, seus parentes estrangeiros arrecadam, só para exemplificar, 40% no Chile, 43% na China, 50% no Japão, 55,9% nos EUA e 57% na Suécia.
Com esses dados só pude concluir que vocês não arrecadam muito, só arrecadam mal (cobrando mais que quem tem menos) e ainda usam mal o que arrecadam para cumprir a missão de vocês que seria reduzir a desigualdade. Pesquisei lá no site do Jusbrasil: “A distribuição para reduzir a desigualdade no Brasil é de 3,6%, comparando-se com União Europeia (32,6%), Reino Unido (34,6%), Finlândia (34,7%), Alemanha (34,9%), Suécia (35,6%) e Dinamarca (40,8%).” E ainda há quem reclame quando se usa o que vocês arrecadam para financiar programas de distribuição de renda como o Bolsa Família! Aff!

Uma curiosidade sobre seus primos americanos, os quais todo mundo enche a boca para falar. Eles chegam a arrecadar a 55,9% de imposto de renda, detendo um nível de arrecadação fiscal geral da ordem de 30% bem mais baixo que o Europeu, é verdade. Mas é importante lembrar que lá o sistema de saúde e a educação superior – em geral, os mais caros para o Estado – são eminentemente privados, então, não fazem tanta vantagem assim.
Outro problema por aqui, nós sabemos, é que muito do que vocês arrecadam, vazam pelo ralo da corrupção. Aí muita gente, equivocadamente, culpa vocês por isso e querem jogar fora a criança com a água da bacia, ou seja, se os impostos são desviados então vamos acabar ou reduzir os impostos. Isso é o mesmo que propor como cura para uma doença cardíaca a extração do coração. Tolice ou cinismo!

Mas, por outro lado, é interessante que ninguém fala da corrupção quando ela serve para que se possa sonegar aquilo que seria devido à família de vocês. Segundo dados que colhi numa reportagem da BBC Brasil, a nossa sonegação e evasão fiscal anuais – que, também soube, fica atrás dos EUA – é quase 5x maior do que o orçamento de 2015 para a saúde, por exemplo.

Piketty também desnuda essa questão da sonegação e da evasão fiscal, que ele considera um problema mundial e gravíssimo. Todos sabemos que uma das coisas que determina a saúde financeira de um país é a quantidade de dinheiro que entra nele para se transformar em riqueza. A princípio, a dinâmica simplificada seria a seguinte: teríamos os países ricos que têm mais entrada do que saída de riqueza e os países pobres, num caminho inverso, que têm mais saída de riqueza do que entrada. Nesse sentido, nossa grande preocupação seria que os países ricos terminem por possuir cada dia mais os países pobres. No entanto, Piketty revela um dado assombroso e que, segundo ele, tem se agravado cada vez mais nos últimos anos. Ele afirma que todos os países, em menor ou maior escala, apresentam balanço negativo, ou seja, todos estão perdendo riqueza. Como essa tese é financeiramente impossível, ele sugere, ironicamente, que seja Marte quem esteja adquirindo a riqueza perdida por todos os países do nosso planeta.

Mas obviamente que não é Marte quem está recebendo esta riqueza que se estima ser de 10% a 30% do PIB mundial. Os paraísos fiscais são os destinatários dessa riqueza que os entes privados estão sorrateiramente deixando de repassar a família de vocês, minando grande parcela da vossa capacidade em distribuir a riqueza produzida. É o que estamos assistindo com o mais recente vazamento de dados sobre paraísos fiscais, o chamado Panamá Papers. Li uma excelente reportagem sobre o caso no El País.

Obviamente que, entre os corruptos e sonegadores que aparecem nessa lista, então apenas os de alta classe e poderio. Ao usarem esse subterfúgio, ricos e poderosos justificam, cinicamente, que o recurso da sonegação e da evasão só são utilizados porque eles precisam proteger o patrimônio das garras maléficas de vocês e seus familiares. São aqueles que, perversamente, se acham no direito de se colocarem acima de um pacto social coletivo, que vocês representariam. Pacto social coletivo que, sem dúvida, aqui no Brasil, vocês precisam aprimorar muito para representar melhor.

Para finalizar, Piketty fala uma coisa bonita sobre vocês que vou transcrever aqui: “O imposto não é uma questão apenas técnica, mas eminentemente política e filosófica, e sem dúvida a mais importante de todas. Sem impostos a sociedade não pode ter um destino comum e a ação coletiva é impossível”.

Então vai assim minha declaração 2015/2016: E gosto e defendo vocês, mas, por favor, melhorem! E rápido.

Fontes:

Jusbrasil http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121933009/quem-paga-menos-impostos-no-brasil

BBCBrasil http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150415_brasil_zelotes_evade_fd

El Pais http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/03/politica/1459714116_802121.html

Pikket, Thomas. O Capital no Século XXI Ed, Intrínseca LTDA, 2013.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A estratégia dos condomínios para lidar com o mal-estar das cidades O que a psicanálise poderia dizer sobre isso?

por Rita Almeida

Sou uma aficionada pela série americana The Walking Dead, que é uma adaptação para a TV da obra homônima dos quadrinhos, criada por Robert Kirkman e desenhada por Tony Moore. Para quem não acompanha, a série, que está na sua 7ª temporada, narra a história de um grupo de pessoas que tenta sobreviver após um apocalipse zumbi. Todavia, a luta cotidiana pela sobrevivência e as cenas de suspense ou terror são apenas pano de fundo para o que é mais interessante na série: o desenrolar de como os sobreviventes vão tentando lidar com o mal-estar que está colocado – no caso, a ameaça zumbi – e que implicações éticas isso desencadeia.

Freud dirá que o mal-estar é constitutivo da cultura humana, ou seja, uma vez que ingressamos no mundo da linguagem, perdemos o paraíso, ou melhor dizendo, o mundo não pode ser para nós aquilo que é em si, será sempre aquilo que representamos, que desejamos ou que imaginamos. Nesse sentido, nossa relação com o mundo e com os outros é sempre de insatisfação, de mal-estar, não importa como estes se apresentem. Mas a questão que sempre intrigou Freud e sua psicanálise foi: O que fazer com este mal-estar para o qual não há cura?

No cenário apocalíptico de The Walking Dead o mal-estar está muito bem circunscrito e definido. O mal-estar são os zumbis, muito facilmente identificáveis por suas roupas maltrapilhas, seus corpos cadavéricos e seus andares claudicantes, e resolver o mal-estar também é algo relativamente simples: atirar, esmagar ou furar seus crânios. Talvez isso explique o grande sucesso da série no mundo todo, o fato de experimentarmos com ela relativo conforto, já que, de certa forma, a vida dos sobreviventes da ficção é muito mais simples que a do nosso mundo real, pois, ao contrário de nós, eles já têm identificados tanto o mal-estar quanto a solução para ele.

Mas o que me aparece genial na série é que, à medida que as temporadas vão avançando, fica cada vez mais evidente que os zumbis não são o maior problema. Para o grupo de sobreviventes que protagoniza a série, mesmo num mundo infestado por zumbis a ameaça mais cruel e perversa vem de outros viventes. É a maneira como alguns grupos e indivíduos vão lidar com o mal-estar instalado que se torna a maior ameaça.

Nesse sentido, as questões éticas discutidas na série são muito interessantes, afinal, diante do caos e da necessidade de sobreviver chega-se a um limite: aquele que vai definir quais viventes vão se manter dentro do espectro ético que definimos como humanos. E exatamente aí se evidencia o conflito trabalhado na obra, porque enquanto os zumbis – os mortos-vivos – são facilmente identificáveis e elimináveis, os vivos-mortos não, o que faz desses últimos mais temíveis e perigosos. Os vivos-mortos são aqueles que mesmo estando entre os sobreviventes, estão mortos, de certa forma, mortos para uma ética compartilhada que caracterizaria aquilo que chamamos de humanidade. Os vivos-mortos são aqueles que não se tornaram zumbis, mas mesmo assim perderam grande parte de sua humanidade.

Isso nos faz pensar que a humanidade, aquilo que nos enlaça a uma comunidade, não é algo dado a nós junto com a existência. Enquanto o João de Barro nasce João de Barro e será João de Barro até o fim, nós não nascemos humanos. Tampouco a humanidade está garantida depois de conquistada, porque não é um dado biológico, é uma construção no campo do simbólico e, como tal, pode se perder. A humanidade não é algo natural para os seres humanos.

Mas quero tratar aqui é do modo como os diferentes grupos lidam com o mal-estar instalado a partir do apocalipse zumbi. Certos grupos ultrapassam alguns limites éticos compartilhados, mas mantém outros, alguns criam novos códigos de conduta próprios, há os que tentam preservar tais limites éticos, e outros, ainda, os perdem significativamente, vivem quase como animais.

A partir da 5ª temporada dois desses grupos vão se cruzar. Ambos optaram por manter preservados os limites éticos humanos, mas cada um de uma maneira diferente. O grupo que protagoniza a série, liderado pelo ex-policial Rick, eventualmente se protege em algum tipo de espaço circunscrito, quando isso é possível e necessário, mas também está sempre se movimentando, buscando novos caminhos e enfrentando “o mundo lá fora”, aquele que está infestado de zumbis. Já o outro grupo, que aparece no final da 5ª temporada, criou no meio do caos uma cidade completamente murada, Alexandria. Em Alexandria tudo deve funcionar como funcionava antes dos zumbis. Trata-se de uma espécie de oásis. O recurso utilizado pela comunidade de Alexandria para lidar com a realidade é evita-la ao máximo, criando uma redoma para si.

É impossível não comparar Alexandria com os condomínios fechados, tão comuns nas cidades brasileiras, especialmente nos centros maiores. Os condomínios surgem também nessa tentativa de criar uma redoma de proteção contra a realidade violenta e insegura. Mas o que podemos dizer sobre esse modo de lidar com a realidade, à luz da psicanálise?

Voltemos a The Walking Dead. Há um momento em que o grupo liderado por Rick encontra a comunidade de Alexandria e, de certa forma, é acolhido por ela. A partir disso, fica evidente a diferença entre o modo de lidar com a realidade de cada um dos grupos. Enquanto o primeiro grupo lida com a realidade de modo a enfrenta-la e se relacionar com ela, o segundo prefere criar uma espécie de mundo paralelo, que faz de tudo para rejeitar e negar a realidade. Para retratar tal diferença, citarei um diálogo muito interessante entre Rick e o marido da líder de Alexandria, o arquiteto Reg, responsável pelo projeto do muro em torno da cidade. No diálogo, Rick elogia Reg, afirmando que ele fez um belíssimo trabalho em seu projeto de cercar a comunidade. Mas Reg responde que foi Rick quem fez um trabalho incrível lá fora, liderando seu grupo para sobreviver em meio ao caos. “O que eu fiz é apenas um muro”, finaliza Reg.

No meu entendimento, Reg tem toda razão. Um muro é apenas um muro, não pode ser considerado um grande feito em se tratando de resolver nossas mazelas. Criar muros para cercar aquilo que nos causa mal-estar, não tem sido uma estratégia de sucesso ao longo da história. Fizemos isso com os loucos (em menor medida ainda fazemos), fazemos isso com os criminosos, e em nenhum dos dois casos temos tido o sucesso esperado, ao contrário.

Já com os condomínios fechados, parece que a ideia seja colocar a nós mesmos entre muros, na ilusão que poderemos deixar o mal-estar do lado de fora. Mas a psicanálise nos ensina que, se existe um modo fracassado para lidar com o real, ou mal-estar que nos assola, é aquele que sempre o evita e rejeita. Criar um mundo fictício, murado, privado dessa relação com o mundo real – ainda que este seja cruel e ameaçador – não nos tornará mais eficientes e capazes de lidar com ele, ao contrário, nos fará cada vez mais frágeis e impotentes diante do mesmo.

Voltando à série, temos a fala de Carl, filho adolescente de Rick que, em poucos dias morando em Alexandria, repara e comenta com o pai: “Eles são fracos”. O rapaz está correto. A cidade sitiada cumpre a função de proteger seus moradores, mas, por outro lado produziu humanos frágeis, débeis, incapazes de lidar com a realidade de onde Carl veio. Carl vive no apocalipse desde a infância, foi educado nele e para sobreviver a ele.

E é claro que a estratégia usada por Alexandria tem duração limitada. O apocalipse zumbi continua em marcha e numa crescente do lado de fora, e não há o que fazer quanto a isso. Por mais que se evite e rejeite o mal-estar, em algum momento ele irá atravessar os muros e invadir a realidade, e é exatamente isso que acontece na série. Por isso, a estratégia dos muros é sempre ruim, pois além de não resolver o problema, ainda debilita e fragiliza os que ficaram ali cercados. Enquanto o grupo liderado por Rick se teceu e se fortaleceu criando estratégias para lidar com a realidade zumbi, os moradores de Alexandria se alienaram em sua redoma. Sendo assim, quando a realidade chegar, e obviamente que ela chegará para todos, nós sabemos exatamente quem terá mais condições de lidar com ela.

Todavia, assim tem sido a estratégia que temos utilizado para lidar com o mal-estar das grandes cidades, especialmente no que toca à violência. Nos cercamos em condomínios, certos de estarmos seguros em nosso oásis belo e feliz. Entretanto, tal ilusão tem seus dias contados, afinal, o mundo do lado de fora continua em marcha. Fechados em suas bolhas os “cidadãos de bem” acreditam estar a salvo do mundo “contaminado pelo mal”, assim, não precisam se dar ao trabalho de lutar ou intervir lá fora. A estratégia dos condomínios está produzindo pessoas cada vez mais alienadas em sua relação com o mundo, incapazes de tomar a cidade, a política e os espaços públicos como de sua responsabilidade. Sob o prisma dos condomínios o outro é sempre tomado como estranho, perigoso e ameaçador.

Mas será que não haveria outra forma de lidar com nossos mal-estares que não seja simplesmente padecendo ou nos protegendo deles? A psicanálise, com sua ética, nos convida a lidar com o mundo a partir do real. O real é aquilo que nos assola, o que não podemos significar completamente, que nos causa mal-estar porque escapa ao contorno do simbólico. Partir do real como ferramenta ética seria, portanto, não recusar e rejeitar o mal-estar, mas se deixar atravessar por ele para, a partir dele, construir caminhos e estratégias. Se o mal-estar é inevitável e permanente, nega-lo apenas nos torna frágeis e impotentes para lidar com ele.

Em The Walking Dead o grupo protagonista escolheu lidar com o real apocalíptico enfrentando-o, se movimentando, criando laços e inventando estratégias, tudo isso sem se furtar aos embates necessários. Obviamente que tais embates não se fazem sem perdas e danos, mas por outro lado, é isso exatamente que vai fortalecendo e tecendo um certo estilo do grupo para lidar com seu mundo decadente. Alexandria, por sua vez, do modo como foi idealizada, teve seus dias contados. Cumpriu, apenas por algum tempo, a função de isolar e proteger seus cidadãos entremuros, além disso, fez deles sujeitos débeis e frágeis para lidar com o mundo real.

Se a vida imita arte, como dizem, a estratégia dos condomínios igualmente fracassará, se é que já não está fracassando. E talvez já estejamos vivendo os reflexos da debilidade que eles têm produzido, quer seja, um descolamento cada vez mais frequente das pessoas da noção de cidadania. Ser cidadão, nesse ponto, é compreender que a cidade também é minha responsabilidade e só pode melhorar com a minha participação política ativa e que, além disso, ela não será boa para mim e o que me é familiar se também não for boa para muitos, inclusive para os que eu considero estranhos. Não trataremos das mazelas da nossa civilização cuidando apenas dos jardins dos nossos condomínios. Aliás, o mosquito transmissor da dengue está aí para não deixar que a gente se esqueça disso. Mas isso já é tema para um outro texto.