domingo, 28 de agosto de 2011

Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos.

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
trabalhadora do lar e fora do lar

A década de 60 inaugurou a “queima de sutiãs” como ato simbólico da luta das mulheres contra a opressão. Décadas depois podemos dizer que nós mulheres tivemos muitos êxitos, conquistamos espaço e direitos, especialmente no espaço “fora do lar”. No entanto, dentro dos nossos lares a coisa não mudou muito, continuamos sendo oprimidas, principalmente pelo que chamamos de dupla ou até tripla jornada de trabalho. Para as que trabalham fora e não podem pagar por uma empregada (e a tendência é que este seja cada vez mais um artigo de luxo) o trabalho doméstico é uma sobrecarga que oprime e restringe as liberdades femininas. Por isso, decidi escrever um esboço do que deveria ser a Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos. Sugiro que, num ato simbólico, queimemos dessa vez, vassouras, rodos, panos de chão, palhas de aço e afins, para declarar, de uma vez por todas, que as tarefas do lar NÃO são de responsabilidade exclusiva das mulheres.

Declaração pela Libertação Feminina dos Trabalhos Domésticos

Considerações:

Considerando que historicamente o trabalho doméstico e o cuidado das crianças pequenas tem sido uma responsabilidade atribuída eminentemente às mulheres.

Considerando que a dupla e a tripla jornada de trabalho tornou-se uma realidade comum para as mulheres brasileiras, que causa sobrecarga e restringe as liberdades das mesmas.

Considerando a prevalência de uma educação machista que não valoriza ou estimula o aprendizado das tarefas domésticas e de puericultura para meninos, rapazes ou homens.

Princípios:

Existem alguns princípios básicos que regem o trabalho doméstico, fundamentais para a compreensão das diretrizes desta declaração. São eles:

Primeiro princípio: Se alguém não fez não está feito

Segundo princípio: Se alguém não limpou não está limpo

Terceiro princípio: Se alguém na guardou não está guardado

Quarto princípio: Se alguém não comprou não está disponível para consumo

Tais princípios merecem destaque porque, em geral, as pessoas que não tem o costume de se ocuparem do trabalho doméstico acreditam que ele é executado automaticamente, sem que alguém o faça. Outros tendem a pensar que o mesmo é diariamente executado por alguma entidade sobrenatural, o que declaramos não ser verdade.


Partindo de tais considerações e princípios, declaramos:

Artigo I

As tarefas do lar são de responsabilidades de todos os que nele residem; homens e mulheres sejam eles adultos ou jovens.

Parágrafo único: ao executar uma tarefa doméstica o executante NÃO está fazendo um favor para a mulher ou mulheres que ali residem.

Artigo II

Meninos e meninas, sem distinção de gênero, serão educados desde criança para executarem tarefas domésticas, além de aprenderem noções de puericultura.

Parágrafo 1°: pais, mães ou responsáveis ensinarão gradativamente tais atividades às crianças, sempre respeitando o nível de compreensão, responsabilidade e maturidade de cada idade.

Parágrafo 2°: fica declarado proibido ensinar tais tarefas de maneira diferenciada por distinção de gênero.

Artigo III

Eletrodomésticos tais como máquina de lavar roupa, forno de microondas, freezer, secadora, aspirador de pó ou outros que comprovem sua eficácia na facilitação do trabalho doméstico, passam a ser considerados gêneros de primeira necessidade para o lar.

Parágrafo único: tais produtos deverão ser alvo de investimento nas políticas a fim de possuírem preços acessíveis e garantia total de reposição imediata em caso de roubo ou defeito.

Artigo IV

Empresas públicas e privadas devem investir em tecnologias para o trabalho doméstico.

Parágrafo 1°: Deve-se estimular a produção de tecnologias que, comprovadamente, reduzam a penosidade e o tempo gasto com o trabalho doméstico, como por exemplo: tecidos que não amarrotem e não manchem; panelas que realmente não agarrem sujeira; pisos, tecidos e tapetes que absorvam a sujeira; aspiradores de pó inteligentes; brinquedos que se encaminhem automaticamente para caixa após determinado tempo em desuso; fogões, fornos e geladeiras que sejam de fato autolimpantes; e outros.

Parágrafo 2°: Deve-se investir também em tecnologias avançadas para estimular a execução dos trabalhos domésticos, como por exemplo, sistema de alarme que impeça que a TV, o computador, o microondas ou chuveiro elétrico funcionem se a pia estiver cheia de louça ou as camas estiverem desarrumadas ou o cesto de roupa suja ou varal estiverem cheios (o mesmo sistema de alarme poderá também trancar portas e janelas até que o trabalho devido seja executado).

Artigo V

Fica declarada proibida a produção de pisos e móveis que precisem ser encerados, acessórios de cozinha que precisem ser areados e tecidos que precisem ser passados a ferro.

Parágrafo único: As empresas interessadas terão 8 meses para se adequarem, a contar da publicação desta declaração.

Artigo VI

Fica instituído que o termo “totalmente branco” para qualificar os tecidos é preconceituoso e discriminatório, sendo assim, todas as tonalidades de branco serão respeitadas e aceitas igualmente, sem distinção.

Artigo VII

Toda mulher terá o direito de se desfazer (jogar no lixo), sem nenhuma culpa ou qualquer ônus, de panelas com substâncias agarradas demais ou queimadas e roupas ou sapatos sujos de barro, tinta ou graxa, sempre que ficar para ela o trabalho de limpeza dos mesmos.

Parágrafo 1°: Sugerimos que a mulher que se sinta prejudicada com a execução desse tipo de tarefa dê ao dono do objeto em questão 24 horas, não prorrogáveis, para limpar ou se livrar ele mesmo do referido objeto.

Parágrafo 2°: Caso a mulher tenha que se livrar do objeto não será de sua responsabilidade a reposição do mesmo, caso não lhe pertença. No caso de objetos da casa, todos deverão arcar com os custos.

Artigo VIII

A educação e o cuidado dos filhos também NÃO é tarefa exclusiva das mulheres ou mães.

Artigo único: Com exceção da amamentação, e por motivos óbvios, os homens poderão e deverão executar quaisquer outras tarefas concernentes aos cuidados e a educação dos bebês e crianças pequenas.

Artigo IX

O vaso sanitário passa a ser território de responsabilidade única e exclusiva do sexo masculino ou daqueles que, na residência, urinem de pé.

Parágrafo 1°: Todos os meninos passarão por um ritual de iniciação assim que adquirirem altura para urinar de pé no vaso sanitário. A partir deste ritual aprenderão a urinar dentro do vaso e também adquirirão noções básicas e avançadas de como cuidar da limpeza e desinfecção diária do mesmo.

Parágrafo 2°: O ensino e a manutenção dos rituais de cuidado com o vaso sanitário deverão ficar sob responsabilidade exclusiva dos homens; adultos ou jovens.

Parágrafo 3°: Uma mulher só poderá executar tais funções se e somente se não houver nenhum homem, adulto ou jovem, no lar.

Artigo X

Toda mulher que se sentir prejudicada pela não execução das tarefas do lar em conseqüência do desrespeito aos termos desta declaração terá o direito de:

Parágrafo 1°: reclamar, gritar ou proferir palavras de baixo calão sem culpa e sem que lhe seja imputada nenhuma pena ou sanção.

Parágrafo 2°: jogar no lixo, arremessar pela janela (guardando os devidos cuidados para evitar acidentes) ou queimar (guardadas as prerrogativas de segurança para evitar incêndio) os objetos que ficarem fora do seu lugar devido por mais de 24 horas, sem justificativa plausível e expressa.

Parágrafo 3°: se ausentar do lar por período de até 3 dias, sem que se caracterize abando do lar ou de incapaz, ou até que as tarefas sejam executadas e o fato seja oficialmente comunicado a ela por meio de telefonema, e-mail ou mensagem de celular. Se até no terceiro dia as tarefas não forem executadas cabe a mulher contratar uma diarista que assuma a execução das tarefas.

Parágrafo 4°: todas as medidas autorizadas neste artigo não devem resultar em nenhum ônus financeiro para a mulher que as executou. Reposição de objetos e pagamento de diarista, por exemplo, devem ser de responsabilidade dos demais moradores da casa que não executaram as tarefas devidas. Para os que não recebem salário o pagamento deve ser feito com mesada ou afins.

Artigo XI

Toda mulher terá o direito de se negar a fazer atividades ou favores sempre que se sentir exigida em excesso, desrespeitada no seu descanso ou sobrecarregada. Neste caso terá o direito de:

Parágrafo 1°: responder “agora NÂO”, “hoje NÂO” ou simplesmente “NÂO”, sem culpa e sem que lhe seja imputada nenhuma pena ou sanção.

Parágrafo 2°: responder “NÂO sei”, “NÂO vi”, ou “está onde você deixou”, quando interrogada sobre a localização de objetos que não lhe pertencem.

Parágrafo 3°: fingir não ter escutado, quando repetidamente lhe pedirem favores sem noção do tipo: “pegue minha toalha”, “pegue minha cueca”, “me traga um copo d’água”, “me traga uma cerveja” ou “frite um ovo pra mim”, especialmente quando não forem associados às palavras: “por favor” e “meu amor”, “mãezinha querida”, “minha rainha”, “melhor mãe do mundo”, “dona do meu coração” ou afins.

Artigo XII

Para os casos onde a dependência da mulher para executar o trabalho doméstico é grave, baseados nos princípios que norteiam esta declaração, esclarecemos:

Parágrafo 1°: Roupas e sapatos não se encaminham automaticamente para o armário, para o cesto de roupa suja ou para a máquina de lavar.

Parágrafo 2°: A água na geladeira não é fruto de geração espontânea, assim como, papel higiênico e sabonete também não nascem espontaneamente nos seus respectivos suportes.

Parágrafo 3°: Geladeira e despensa precisam ser continuamente abastecidas, por meio de idas freqüentes e rotineiras a padarias, açougues, quitandas e/ou supermercados. Alguns imaginam que ao retirarmos algum item daqueles lugares outro assume imediatamente seu lugar. Reiteramos que essa teoria não possui nenhum fundamento científico que lhe dê sustentação, portanto, não é plausível a sua defesa.

Parágrafo 4°: Apesar de defendermos este tipo de tecnologia no Artigo IV, ainda não contamos com alguma que faça com que pisos, tapetes e mobiliários absorvam imediatamente água ou sujeira.

Parágrafo 5°: Animais domésticos não conseguem se alimentar sem contar com o auxílio de um ser humano. Isso vale também para os cuidados de higiene (excetuando os gatos) e a limpeza dos seus dejetos.


Artigo XIII


Todos os artigos desta declaração têm o objetivo de reduzir a sobrecarga de trabalho imputada às mulheres, especialmente às mães de família que também trabalham fora do lar. Sendo assim, todas as sugestões encaminhadas com a finalidade de aperfeiçoar e melhorar esta declaração serão estudadas para possível inclusão no texto final.


28 de agosto de 2011.

domingo, 17 de julho de 2011

O que fazer com as cracolândias?

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista
trabalhadora da rede de saúde mental do SUS

Responder a esta questão tem sido um desafio. E as respostas, em geral, têm se sustentado num discurso meramente higienista, cuja pretensão é, simplesmente, limpar certos locais do que a sociedade atual enxerga como lixo: certos usuários de droga, especialmente os de crack. A decisão de vários municípios, seja por intermédio da justiça ou por mera intervenção do poder público, tem sido a de promover a retirada das pessoas desses lugares sob as mais diversas alegações: de que estão infringindo a lei, perturbando a ordem pública ou de que precisam ser deslocadas para locais de assistência e tratamento.

Sabemos, no entanto, que a maior parte das intervenções feitas até o momento, apesar de muitas vezes travestidas dos mais dignos e decentes atos "humanos" e "cristãos", na verdade, só cumprem a função de limpar nossas cidades daquilo que a "sociedade de bem" não deseja ver; daquilo que lhe parece incômodo, inútil e sem valor.

E não é a primeira vez que esse tipo de estratégia é utilizada. Num passado não muito distante, que coincide com o início da era capitalista, loucos, bêbados, mendigos, aleijados, e todos aqueles que não serviam para movimentar a roda do sistema capitalista, que não podiam vender sua força de trabalho, foram recolhidos das ruas e encarcerados no Hospital Geral; instituição criada para esse fim. A ordem era sanear as cidades. Não estaríamos propondo a mesma coisa para as cracolândias?

Mas há uma outra pergunta desafiadora que talvez seja mais interessante que a que intitula este artigo, capaz de produzir respostas mais potentes para o fenômeno das cracolândias. Foi um amigo que me presenteou com esta reflexão: Porque exitem cracolândias? Porque não ouvimos falar de maconholândias, cocainolândias ou ecstasyitolândias?

Trata-se de uma pergunta realmente intrigante que me fez pensar, dentre outras coisas, sobre o lugar social que o crack vem ocupando no Brasil. Apesar de sabermos que o uso do crack está presente nas diversas classes sociais, é no abandono social e nas ruas que ele tem mostrado sua face mais perversa. Não há justificativa para defendermos a tese de que as cracolândias são formadas apenas pelo poder devastador e desagregador da química do crack, com se o crack fosse o único responsável pelas cracolândias. É muito mais realista pensar que um certo tipo de população já excluída pela sociedade, seja pela miséria, pelo abandono, pelo alcoolismo ou pela dependência de outras drogas, fez do crack "a sua droga", numa tentativa de remediar o próprio sofrimento, e para isso precisaram criar um lugar delimitado na pólis. As cracolândias, na verdade, são frutos de políticas preconceituosas, excludentes, moralistas e da tão anunciada "guerra contra as drogas". Enquanto continuarmos em "guerra contra as drogas", as cracolândias funcionarão como um território de refugiados, como um gueto para os excluídos.

É de Slavo Zizek a seguinte afirmação: "É bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto outros ficam com o risco". Na questão do uso de drogas isso fica muito claro. Apenas a "sociedade de bem" fica com as escolhas, mesmo que porventura arriscadas. Ela pode escolher entre vodka ou cerveja, se vai tomar remédios para dormir ou para se livrar do pânico cotidiano, se sua balada vai ser movida a "doce" ou "bala". Mas os frequentadores das cracolândias ou os que estão caminhando para ela, são exatamente os que perderam suas possibilidades de escolha e ficaram apenas com o risco.

Diante dessa realidade, o único caminho sensato para se pensar as cracolândias seria no sentido de reduzir os riscos que seus frequentadores enfrentam e possibilitar-lhes escolhas, sem esquecer que oferecer-lhes escolhas não é escolher por eles. Entretanto, sabemos que em muitos casos, a degradação subjetiva pode ter lhes prejudicado severamente a capacidade de fazer escolhas. Podemos, nesses casos, criar estratégias que nos possibilitem escolher com eles, mas jamais à revelia deles, como se tem feito. Também não devemos ofertar a essas pessoas apenas dois caminhos possíveis: com drogas ou sem drogas. É fundamental também considerar possibilidades que incluam viver - com dignidade, com todas as suas potencialidades e contradições - apesar das drogas. E sem nenhuma hipocrisia, tal como faz a maioria de nós.

domingo, 5 de junho de 2011

Satisfação Garantida

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Zapeando com o controle da TV, passei por um canal no qual um garoto propaganda apresentava seu produto e fazia a seguinte afirmação: “- Garantimos sua satisfação”. Num primeiro momento, achei graça da pretensão do fabricante do produto ou do idealizador da propaganda em garantir a satisfação do cliente, mas depois fiquei pensando que o ideal dessa nossa sociedade de consumo é mesmo esse: satisfação garantida. Nosso projeto de consumo é adquirir objetos, saberes ou bens que nos completem; que nos satisfaçam plenamente.
A economia marxiana se baseia na teoria da mais-valia, que diz mais ou menos o seguinte: No sistema capitalista, o trabalhador vende sua força de trabalho para o capitalista, entretanto, existe um quanto de trabalho que jamais será remunerado, ou seja, a força de trabalho despedida pelo trabalhador nunca será totalmente paga por meio do seu salário; a isso Marx chamou de mais-valia (o que ficará para sempre impagável). Estender o conceito de mais-valia na economia de nossas relações com as pessoas ou com os objetos-mercadoria é compreender que a tal satisfação garantida é algo que não se pode prometer.
Freud também dizia algo semelhante em sua teoria psicológica. Nesse caso, utilizou o conceito de impossibilidade para traduzir a economia das relações humanas. Freud afirmou certa vez que educar, governar, psicanalisar são tarefas impossíveis. O que ele quis dizer com essa afirmação é que mesmo com todos os nossos esforços e tentativas de obter pleno sucesso, ou satisfação garantida nessas tarefas, ainda sim, haverá algo que nunca ficará plenamente satisfeito; que é ineducável, ingovernável ou inanalisável.
Tanto Marx quanto Freud nos avisavam que essa idéia de satisfação garantida é um engodo. A sociedade de consumo, no entanto tenta nos vender, a todo tempo, esse engano; de que a satisfação garantida pode ser comprada e tem um preço e se ainda não a conquistamos é, tão somente, porque ainda não pudemos pagar por ela.
Assim, seguimos nesse ideal da sociedade de consumo, almejando-o em todos os campos. Exigimos satisfação garantida nas nossas relações familiares, amorosas, e sociais. Exigimos satisfação garantida em nosso trabalho e na nossa vida escolar ou de nossos filhos. Esperamos satisfação garantida até mesmo em situações de doença, separação e perda, ainda que a tal garantia de satisfação signifique assegurar alguma indenização em espécie. Seguimos acreditando que não há nada que não possa ser remendado, reparado, medicalizado, solucionado ou curado. Perdemos cada vez mais a capacidade de lidar com nossas insatisfações; tanto as pequenas e quanto as grandes.
Depois nos queixamos da incapacidade de nossas crianças e jovens em lidar com frustrações e fracassos. Estranhamos porque são violentos e impulsivos quando recebem um não. Não percebemos o quanto prometemos a eles um mundo de satisfação garantida, ou seja, que não os educamos para lidarem com seus fracassos e limitações, com as impossibilidades nossas de cada dia.
E ainda nos perguntamos: porque o uso de drogas se tornou tão problemático atualmente? Se em décadas anteriores tal comportamento tinha uma conotação revolucionária, de crítica social, hoje se tornou basicamente, um modo de responder a esse imperativo que nos governa. O uso de drogas dos nossos tempos, não é um ato rebelde, de busca de novas experiências ou transcendência psíquica, mas principalmente, uma busca desenfreada por satisfação garantida, transformando tal comportamento, não por acaso, num dos mais bem adaptados à sociedade de consumo. As drogas de hoje prometem: satisfação garantida e, além de tudo, imediata.
Mas porque será então que nunca estivemos tão insatisfeitos? Porque a promessa de satisfação garantida carrega consigo um paradoxo. Como se imagina que ela pode ser alcançada, o que é um engano, ficamos sempre com essa sensação de insatisfação, numa busca frenética por mais e mais. Consumir cada vez mais, objetos, bens, drogas ou saberes, na busca do tão sonhado ideal que garantiria plenamente nossa satisfação
Proponho que inauguremos uma nova ética, que eu chamaria de ética da satisfação contingente. Entenderíamos com essa nova ética que qualquer satisfação nunca poderá ser plenamente garantida, o que não quer dizer que ela não possa ser perseguida ou desejada, mas dessa vez com a consciência de que sempre será contingente, ou seja, duvidosa, eventual e incerta. Compreender que toda satisfação é apenas contingente, nos libertaria do mundo idealizado que perseguimos e abriria nossos olhos para aquelas satisfações que geralmente não nos contentam - imperfeitas, fugazes, às vezes estranhas – mas, dessa vez, repletas do mundo real, de possibilidades reais e, sobretudo, de pessoas reais.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Bullying e judicialização das relações pessoais

por Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista

Bullying é o tema do momento. A palavra é inglesa e originária da palavra bully cuja tradução é valentão. Naturalmente que valentões e valentonas sempre existiram. E acredito que todos nós pelo menos em algum momento na vida fomos vítimas de algum valentão e/ou já nos comportamos como um. Mas porque será que o bullying se tornou um problema com tanto destaque nos últimos tempos, a ponto de parecer que ele só surgiu recentemente? Não tenho respostas formuladas para esta questão, mas acredito que haja um caldeirão favorável que faz com que o bullying esteja tão em voga.

Freud dizia que a fonte de maior sofrimento para nós é resultante de nossas relações com os outros já que, inevitavelmente e invariavelmente elas produzem alguma espécie de fracasso ou mal-estar. Vivemos, no entanto, numa era onde fracassos e mal-estares são completamente abominados. Então, se não há espaço para os mal-entendidos tudo precisa ficar sempre bem-entendido e, uma das formas que encontramos para aplacar os mal-entendidos da atualidade tem sido convocar rotineiramente o discurso judiciário para mediar nossas relações. A isso chamamos judicialização das relações pessoais. Mas, o perigo de sempre recorrer a este tipo de discurso para solucionar nossos problemas interpessoais é o de nos colocarmos sempre em lugares estanques e cristalizados; ou somos as vítimas ou somos seus algozes.

Permeado por um discurso fortemente judicializado torna-se preocupante a maneira como tem sido tratada a questão do que aprendemos a chamar de bullying. A exploração do tema tem se ocupado em dar voz a um exército infindável de pessoas que afirmam sofrerem ou terem sofrido esta forma de violência e que não se cansam de reafirmarem o lugar que foi definido para elas; o de vítimas. Os algozes por sua vez são os demônios do momento, execrados em suas condutas violentas e opressoras, mas que, afinal, apenas reproduzem as relações de poder que nossa sociedade semeia e reforça.

Tenho um filho adolescente. Certa vez, quando ele contava com uns 8 anos de idade, me relatou que havia um garoto em sua sala que o intimidava constantemente, com palavras e pequenas agressões. A meu pedido, ele me apontou o garoto na saída da escola que, como eu já suspeitava, tinha o dobro seu do tamanho. Me lembro que na hora em que vi o garoto, tive ímpetos de abordá-lo e tirar satisfações ou procurar os pais dele ou ainda me reportar à direção da escola. Ao contrário do que a grande maioria das pessoas pensa, mães psicólogas ou psicanalistas não pautam suas intervenções em teorias e fórmulas científicas. Educam como a maioria dos pais, baseados em seus saberes inconscientes, ou seja, saberes não teorizáveis e que foram adquiridos ao longo da vida. Sendo assim, com meu coração apertado e sem saber se estava tomando a melhor decisão, apenas disse ao meu filho algo mais ou menos assim: – Sei que este garoto tem o dobro do seu tamanho e sei que você está com medo dele, eu também teria se estivesse no seu lugar, mas também sei que você é muito mais inteligente que ele e vai saber resolver este problema. Passaram-se os dias e meu filho não se queixou mais do valentão. Certo dia, perguntei a ele se o garoto ainda o importunava e ele me disse: - Tudo bem, mãe. Eu já resolvi. Agora somos amigos. Perguntei como isso tinha acontecido e ele me disse com simplicidade: - Eu perguntei se ele queria ser meu amigo e ele aceitou.

Obviamente que ao fazer esta intervenção com meu filho eu jamais poderia imaginar o seu desdobramento, ainda mais um tão inusitado. Minha fantasia de solução transitava entre o final do filme Karatê-kid (onde o menino franzino finalmente dá uma surra no valentão) e uma revolução coletiva dos magrelos contra os fortões, liderada pelo meu filho, é claro. Hoje eu sei que a maneira que ele encontrou para resolver sua diferença com o valentão da sala foi invenção dele, mas também sei que ela só pôde acontecer porque eu, mesmo sem saber, permiti com minha maneira de intervir, que ele deixasse de ser apenas uma vítima dessa cena para também protagonizá-la. Se eu tivesse abordado o tal valentão, por exemplo, poderia até conseguir que ele deixasse de ser o algoz do meu filho, mas este jamais deixaria de ser a vítima.

Este é o problema das intervenções baseadas no discurso judicializado, elas apenas reforçam os papéis que já foram estabelecidos, sendo assim, as mudanças só ocorrem numa provável inversão de posições – como aconteceu no caso de Casey Haynes o menino gordinho que se tornou febre na internet depois de cansar de ser saco de pancadas e revidar em seu agressor – o que não modifica em nada o produto da relação, neste caso, violência.

Não pretendo de maneira nenhuma fazer deste relato uma receita para lidar com o bullying, pois, não acredito em receitas para educar e muito menos em receitas para resolver nossos mal-estares quotidianos. Mas, creio que devemos evitar intervenções que sirvam apenas para cristalizar e reforçar as pessoas em determinados lugares, dando a falsa impressão de que estamos tratando do problema. Sendo assim, coibir e punir os agressores pode até inibi-los em determinadas situações, mas não os fará questionar suas atitudes e sua posição perante o outro. Da mesma maneira, ter piedade e proteger as vítimas, não as fará experimentar posições subjetivas mais potentes e proativas.

Meu filho me ensinou muito em nossa experiência com o tal bullying, que na época nem tinha esse nome. Aprendi que muito além de agressores e agredidos, de vítimas e algozes, esta forma de mal-estar pode produzir algo muito mais interessante e positivo: amigos. E porque não? Sem esquecer que mesmo os amigos às vezes se desentendem.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

“O SUS que não se vê”

por Rita de Cássia de Araújo Almeida

trabalhadora e usuária do SUS

Este mês a Revista Radis da Fiocruz publicou excelente matéria intitulada: “O SUS que não se vê” que trata de mostrar o real tamanho e abrangência do Sistema Único de Saúde. O ensaio se baseia em dados colhidos por pesquisa do IPEA, publicados em fevereiro. Segundo tais dados cerca de 34% da população afirma nunca ter utilizado o SUS e também revelam um dado curioso: o sistema de saúde brasileiro é mais bem avaliado por aqueles que costumam utilizá-lo. Partindo de tais dados a publicação propõe algumas discussões interessantes que desmistificam equívocos e preconceitos relacionados à idéia que a maioria de nós faz do nosso sistema público de saúde.

O primeiro, e possivelmente o maior equívoco deles, é acreditar ser possível que algum brasileiro não seja usuário do SUS. O sistema faz parte do dia a dia de todos nós, mesmo que, às vezes, de maneira invisível. Utilizamos o SUS ao almoçarmos em um restaurante e ao adquirimos produtos alimentícios e medicamentos, por exemplo, pois todas as ações de vigilância sanitária são atribuições do SUS. As campanhas de vacinação para controle e erradicação de doenças, propagandas e campanhas educativas para prevenção de doenças e agravos à saúde, pesquisa e produção de medicamentos e terapêuticas, além de acesso a tratamentos de alta complexidade, especialmente aqueles que não interessam ao sistema privado, são algumas das ações do SUS que a maioria desconhece. Sendo assim, ao contrário do que se imagina, o SUS não se limita aos atendimentos oferecidos nos postos de saúde ou hospitais públicos, sua abrangência é de tal proporção que é impossível que algum brasileiro possa dizer que nunca tenha utilizado o sistema.

Quando discute o nível de satisfação dos brasileiros com o SUS a pesquisa é ainda mais reveladora: o índice de satisfação do brasileiro é maior entre os que se dizem usuários do sistema, enquanto que o percentual dos que o consideram ruim ou muito ruim é maior entre os que afirmam não fazerem uso dele. Partindo desta constatação a matéria abre uma discussão importante sobre a influência da mídia na opinião da população a respeito do SUS. A revista denuncia uma “má vontade” da grande imprensa para com o SUS, na medida em que se interessa preferencialmente por relatos e imagens de pessoas afetadas pelas falhas do sistema, ao mesmo tempo em que não atribui ao mesmo as ações que dão certo e os indicadores positivos resultantes de tais ações.

O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, invejado por outros países como os EUA, por exemplo. Tem um programa de imunização de doenças que é um sucesso, sendo o responsável pela erradicação de várias delas. O impacto do SUS na redução da mortalidade infantil é indiscutível. O Brasil tem um sistema de tratamento e prevenção de HIV/aids exemplar e é o sistema público que mais faz transplantes e hemodiálises no mundo todo, incluindo a manutenção de uma rede de doadores com excelência em tecnologia. Grande parte das intervenções de alta complexidade, especialmente aquelas que não são de interesse do sistema privado, por serem muito dispendiosas, ficam a cargo do SUS. A Farmácia Popular não beneficia apenas os que têm acesso à medicação gratuita, ao impulsionar a expansão do mercado, promove também a queda dos preços para os demais consumidores. Essas são algumas das informações positivas a respeito do SUS que são pouco divulgadas na mídia, ou quando são divulgadas não são atribuídas como ações do SUS.

A matéria defende que essa propaganda negativa do SUS se deve, em parte, por uma orientação ideológica neoliberal, cujo interesse é sustentar o discurso de que o público não funciona. Seduzida por tal discurso a classe média vem cada vez mais procurando pelos planos de saúde, acreditando que desta maneira não precisará utilizar o SUS e reforçando uma idéia que precisa perder força: a de que “o SUS é para os pobres”.

Sabe-se, no entanto, que a cobertura dos planos de saúde se dedica basicamente a consultas e exames ou tratamentos de baixo custo, ou seja, aqueles procedimentos que trazem mais lucros para as seguradoras. Os demais, por necessitarem de maior abrangência ou complexidade, e que obviamente os planos não cobrem por serem muito caros, ficam a cargo do SUS. Para se ter uma idéia, segundo o Ministério da Saúde, há uma estimativa de que cerca de 20% dos usuários de planos de saúde se utilizam dos serviços hospitalares do SUS, o que equivale a um custo que pode chegar a 1 bilhão por ano, custo que não é ressarcido ao SUS pelas seguradoras.

A idealização do SUS tem raízes numa concepção de saúde integral, solidária, humanitária, democrática e que não seja objeto das leis do mercado. Esse diferencial já seria suficiente para defendermos o SUS como patrimônio nacional, estabelecendo com ele uma noção maior de pertencimento e agregando-lhe o valor que realmente merece. Entender que “o SUS é nosso” se faz fundamental para militarmos em sua defesa, a fim de lhe garantir financiamento adequado e melhoria na qualidade de seus serviços e ações. Por isso, se lhe perguntarem se você é usuário do SUS não se envergonhe em dizer que sim. O Brasil agradece.