domingo, 21 de junho de 2015

O que a “treta” Boechat x Malafaia diz de nossos tempos sob a égide da moral politicamente correta ou sobre porque todos nós poderíamos “procurar uma rola”.

por Rita Almeida

Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar. Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras, a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha, nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa casa.

Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em dar conta do real.

O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se consume. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, porque foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta, que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo.

Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a resposta para todas as nossas mazelas.

Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto, toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM (inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço, produzindo discurso.

Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a todos a fim de evitar o mal-estar.

Esta perseguição desenfreada por um ideal de linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É obvio que se estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente. Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus caros! Não somos unívocos!

Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou notícia ao fazer uma intervenção inflamada contra o Pastor Silas Malafaia e seu já tradicional discurso de ódio. Em programa ao vivo na rádio BandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação de Malafaia no tuíter e o aconselha a “procurar uma rola”.

As manifestações na internet foram imediatas e junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos também os que denunciaram a própria fala do jornalista como machista e homofóbica. “Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.

É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção, dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse sentido ela não se dispõe a silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao invés de eliminá-lo.

Já proposta do discurso politicamente correto é silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas diferenças e que evite os conflitos.

Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, este tipo de discurso consegue apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitário temos medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns dos outros ou criarmos uma tendência muito comum nas redes sociais que é a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças, nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de Chalie Hebdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou mal-entendido.

Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra os mal-estares da linguagem. É obvio que podemos destacar o equívoco na fala de alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de conforto.

Mas o que a polícia politicamente correta pretende é tentar evitar o equivoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.

Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta Universal para todas as situações semelhantes.

O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz “procurar uma rola” poderia lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola” neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo é necessário admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria castração aceita a do outro também.

Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para “procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, só me resta repetir o conselho de Boechat: - Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria muito bem a você assim como pode fazer muito bem a qualquer um de nós.

domingo, 17 de maio de 2015

18 de maio: Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Sobre os muros que ainda precisamos derrubar


Semanas atrás eu soube que a maneira mais rápida de fazer um ovo apodrecer é envernizando-o. A explicação é a seguinte: o ovo, apesar de parecer um sistema fechado, não é. O ovo é totalmente poroso, o que faz dele um sistema completamente permeável ao mundo externo, ou seja, o que está dentro da casca se comunica com o que está fora e é isso que mantém sua saúde, digamos. É por isso que um ovo dura, sem apodrecer, até 15 dias fora da geladeira. Entretanto, se você cobre sua casca com verniz, impede a comunicação do que está dentro do ovo com o mundo externo e ele apodrece em algumas horas.

O resultado de tal experiência se dá por causa de um princípio da biologia que rege todos os sistemas. Segundo tal princípio todo sistema fechado tende a uma maior entropia, ou seja, tende a uma perda progressiva de energia, o que leva a morte daquele sistema. Por outro lado, todo sistema aberto é autossustentável, na medida em que é capaz de buscar energia do ambiente externo e assim, atingir as condições de estabilidade necessárias para a sustentação da vida.

Não é difícil transpor este princípio da biologia para explicar o que tem acontecido com os hospitais psiquiátricos brasileiros nas últimas décadas. É fácil entender que o que aconteceu com tais estabelecimentos – sistemas fechados por estrutura – foi exatamente a perda de energia e de vitalidade internas, que provocaram o seu adoecimento, seu apodrecimento e sua morte.

É fato que os muros dos nossos manicômios foram descontruídos de fora para dentro pelo movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ainda em curso, mas depois de saber sobre esta experiência com o ovo, estou certa de que os hospícios também morreram de dentro para fora. Antes que quebrássemos sua casca já estavam apodrecidos por dentro.

O desafio que temos hoje ao pensar nossos dispositivos de saúde mental, portanto, é o de sustentarmos sistemas abertos, permeáveis, arejados, comunicantes. Os serviços que inventamos para substituir o modelo manicomial – CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e quaisquer outros – precisam estar avisados de que estar aberto ao mundo externo e suas vicissitudes, se faz fundamental para a saúde dos mesmos e daqueles que lá estão sob nossos cuidados. Se não estivermos atentos a isso corremos o risco que envernizar nossos serviços, acreditando que ao fazê-lo estamos protegendo-os ou lhes oferecendo um cuidado extra. Impermeabilizar nossos serviços, todavia, é condená-los a morte.

Mas apesar de tudo que fizemos para descontruir a arquitetura manicomial, muitas vezes ainda mantemos a mesma mentalidade manicomial de antes. Quando acreditamos, por exemplo, que oferecer cuidados é sinônimo de fechar, trancar, prender. O que se impõe a nós, portanto, é um desafio tremendo: Cuidar sem fechar. Proteger sem trancar. Acolher sem prender. E as estratégias para cumprir tais desafios são bem mais difíceis que as de outrora. Obviamente que era muito mais fácil, pelo menos para nós cuidadores e profissionais da saúde mental, quando tínhamos a chave da porta.

Entretanto, quem escolheu trabalhar no campo da saúde mental pelo modo não manicomial não está à procura de caminhos fáceis. O que queremos são os caminhos melhores e mais humanos, em geral, bem mais difíceis de pensar e articular. Queremos aqueles caminhos que permitam que a gente siga juntos, se esbarrando por aí nesse mundo, que tem lá suas mazelas e perigos, mas que é lindo, porque é vivo e cheio de energia. Ninguém, mesmo aquele sob o tormento da loucura extrema, deseja apodrecer dentro de um ovo. Aliás, todos os esforços dos nossos queridos, que chamamos pacientes, são para ficarem melhores, mais saudáveis, menos atormentados. Desejam saúde, e é o que nós também desejamos.

Sendo assim, cuidemos para que nossos serviços sejam os mais abertos possíveis, cada vez mais capazes de colher a vitalidade e a energia do seu ambiente, do seu território. A força dos novos dispositivos que inventamos, precisamos entender, não está na força de sua arquitetura ou na sua capacidade de proteger e guardar, pelo contrário, está na sua permeabilidade, na sua flexibilidade e nos seus buracos abertos para exterior. O mundo externo, nesse caso, não serve para nos contaminar ou amedrontar, na verdade é o que nos mantém saudáveis e vivos.

Recentemente tivemos um pedido inusitado numa assembleia do CAPS Leste – onde eu trabalho – um familiar solicitava que fechássemos o portão do serviço para evitar que os pacientes ficassem à mercê dos perigos da rua. É interessante que quando os manicômios foram inventados a justificativa era a de que era necessário proteger os cidadãos dos chamados loucos, ou proteger os loucos de si mesmos. A loucura era enclausurada quando oferecia risco para si e para terceiros. Interessante que o pedido agora venha no sentido inverso. O portão deve ser fechado porque o mundo lá fora é que oferece riscos às pessoas com problemas mentais. Ao que parece, esse desejo de manicômio tende a sempre a retornar quando se trata de lidar com o sofrimento mental. Seja pelo lado de fora ou pelo lado dentro, “fechar portas” ainda é visto como uma opção possível nesse campo de intervenção.

Mais uma vez comemoramos no 18 de maio, o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Há quem diga que não há mais motivo para levantarmos bandeiras já que a Reforma Psiquiátrica está num curso sem volta. Eu não penso assim, porque o desejo de manicômio ainda se faz presente. Mesmo que seu aparato arquitetônico esteja quase todo desmontado, ainda escorregamos em intervenções com este modelo. Nossa sociedade ainda fica seduzida com instituições que isolam e cerceiam a liberdade como resposta para nossos mal-estares, individuais ou sociais. Basta olhar para as prisões, para os argumentos que defendem a redução da maioridade penal, para as demandas de tratamento para pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas.

A nossa ilusão com os sistemas fechados ainda persiste, por isso, é importante fazer circular a ideia de que tais sistemas, se é que já não estão podres, não irão se sustentar por muito tempo sem apodrecer. E avisados disso, neste 18 de maio, precisamos radicalizar ainda mais a experiência de abertura de nossos serviços de saúde mental para o mundo, para o nosso território, para a rede. Afinal, derrubar muros para auxiliar as pessoas a fazer laço continua sendo a nossa mais importante missão.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Minhas impressões sobre “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty. PARTE III


O livro se baseia no resultado de uma pesquisa histórica sobre as rendas e os patrimônios de vários países do mundo, a relação disso com a desigualdade social e a distribuição da riquezas. Piketty faz um trajeto de pesquisa com informações colhidas da Belle Époque até o início do século XXI.

Todos os dados levantados por Piketty demonstram que a herança é, de longe, o fator mais determinante para o enriquecimento, tanto que, taxação das grandes fortunas e imposto sobre a herança, são algumas de suas propostas para caminharmos em direção a um mundo economicamente mais justo.

Piketty cita duas grandes fortunas da atualidade para exemplificar: Bill Gates – conhecido fundador da Microsoft – e Liliane Bettencourt – herdeira da Loreal. Entre 1990 e 2010 Bill Gates multiplicou sua fortuna de 4 bilhões para 50 bilhões de dólares. Liliane Bettencourt, no mesmo período, viu a fortuna que herdou do pai passar de 2 bilhões para 25 bilhões de dólares. Isso resulta numa progressão média de mais de 13% ao ano para ambas as fortunas, mesmo que no caso de Bettencourt ela jamais tenha trabalhado. Isso posto, temos que “uma vez lançada a fortuna, a dinâmica da riqueza segue sua lógica própria e um capital pode continuar avançando a um ritmo sustentado por décadas apenas por conta do seu tamanho” (p. 429)

Piketty aproveita para citar a crítica ostensiva que a Europa fez à fortuna feita por Lakshumi Mittal, indiano dono da Acelor e por Teodorim Obiang filho do ditador da Guiné Equatorial (aquele que financiou o desfile de carnaval da Beija Flor em 2014). Piketty afirma não ter dúvida de que as críticas que se fez e faz à riqueza desses dois sujeitos se deve muito mais a cor da sua pele do que exatamente pelos meios pelos quais enriqueceram. Ele afirma que a propriedade privada é um pouco menos sagrada que se diz, quando assim se deseja. E que também em Paris ou em Londres não seria difícil encontrar outras fortunas feitas a partir da exploração privada de recursos naturais, ou por meios ilícitos, mesmo que à vista de todos pareçam menos roubo do que no caso de Teodorim, por exemplo. Sendo assim, enquanto os meios judiciais não são suficientes para resolver todos os problemas de fortunas indevidas e ilícitas, então o imposto sobre o capital permitiria dar a essa questão um tratamento mais justo, sistemático e pacífico.

O autor levanta outro problema gravíssimo que precisa ser enfrentado se quisermos uma sociedade mais justa. Todos sabemos que uma das coisas que determina a saúde financeira de um país é a quantidade de dinheiro que entra nele para se transformar em riqueza. A princípio, a dinâmica simplificada seria a seguinte: teríamos os países ricos que têm mais entrada do que saída de riqueza e os países pobres, num caminho inverso, que têm mais saída de riqueza do que entrada. Nesse sentido, nossa grande preocupação seria que os países ricos terminem por possuir cada dia mais os países pobres.

No entanto, Piketty revela um dado assombroso e que, segundo ele, tem se agravado cada vez mais nos últimos anos. Ele afirma que todos os países, em menor ou maior escala, apresentam balanço negativo, ou seja, todos estão perdendo riqueza. Como essa tese é financeiramente impossível, ele sugere, ironicamente, que seja Marte quem esteja adquirindo a riqueza perdida por todos os países do nosso planeta.

Mas obviamente que não é Marte quem está recebendo esta riqueza que se estima ser de 10% a 30% do PIB mundial. Os paraísos fiscais são os destinatários dessa riqueza que os entes privados estão sorrateiramente extraindo de seus países e, obviamente, minando destes sua capacidade de manter um nível de bem estar social – responsabilidade do poder público desses países. Isso quer dizer que as diferenças de riquezas oligárquicas (privadas) é infinitamente mais problemática que as diferenças de riqueza entre países, além de ser muito mais difícil de combater, afinal, demandaria união de países que, em geral, estão acostumados a competir.

A partir de seus estudos o autor propõe, obviamente, algumas saídas para que caminhemos em direção a uma sociedade menos desigual, sem que precisemos de guerras ou grandes revoluções. Além do imposto sobre o capital e herança, Piketty reforça a importância de um “Estado Social”, capaz de oferecer a seus cidadãos um aporte mínimo de saúde e educação públicas, além de um sistema eficiente de previdência. Ou seja, o autor não aposta na redução do tamanho do Estado, ao contrário, por outro lado aposta na sua modernização, como veremos adiante. Outra estratégia que ele acredita ser simples e fundamental para uma justiça social é possibilitar que todos sejam proprietários de sua própria residência. Esta é uma forma efetiva de reduzir o poder das heranças imobiliárias (ninguém precisaria alugar uma casa para morar) ao mesmo tempo em que protege o trabalhador da inflação sobre o aluguel. Piketty avalia que o proprietário de sua própria residência é capaz de obter um retorno real de rendimento de 3 a 4% ao ano.

Para retornar ao assunto do tamanho que o Estado deve ter na economia, parto da afirmação de Piketty de que a crise de 2008 foi a responsável pelo retorno do Estado. Segundo ele, a crise de 2008 só não reproduziu uma depressão grave como a de 1929 porque o Estado interviu nos sistemas financeiros. Por outro lado, a crise de 1929, apesar de levar o mundo à beira do abismo, teve o mérito de provocar mudanças radicais em termos de política fiscal. Permitiu ao presidente Roosevelt, por exemplo, criar uma taxa 80% de imposto para as rendas mais altas. Resumindo, Piketty só comprova aquilo que já suspeitávamos: a economia capitalista advoga pelo Estado Mínimo e pelo mercado livre até que isso seja do seu interesse, pois, diante do abismo recorre à intervenção do Estado.

Piketty não tem dúvidas sobre importância do Estado para intervir nas contradições e sandices do capitalismo financeiro, por outro lado entende que o Estado, ao atingir determinada proporção e complexidade, apresenta sérios problemas de organização, eficácia e inteligibilidade. Sendo assim ele defende que ambas as posições: antimercado e anti-Estado tem sua parte de verdade. Isso posto, o desafio que se impõe para o futuro é partir dessas duas verdades, a princípio inconciliáveis. Desse modo, acredita que o Estado não deve ser desmantelado, mas sim, transformado, modernizado e descentralizado. Defende que uma das saídas seja que a produção dos serviços ofertados pelo Estado possa executada por outras vias que não apenas a via direta. Além disso, entente que para o futuro novas formas de organização e propriedade estão para ser inventadas.

A arrecadação justa de impostos é, segundo Piketty, uma das melhores maneiras de reduzir as desigualdades. O desenvolvimento de um Estado fiscal e social é fundamental para o futuro do planeta. O objetivo é melhor dividir a riqueza já existente, na medida em que chegamos num limite ecológico que nos impossibilita de fazer a riqueza crescer mais. A aquisição deste Estado fiscal e social é o que, segundo seus estudos, tem atuado minimizando os efeitos da desigualdade para os mais desprotegidos socialmente.

A Europa, por exemplo, mantém um índice de arrecadação pública da ordem de 45 a 50% da renda nacional, chegando a uma arrecadação de 55% na Suécia. Esses são percentuais mínimos aceitáveis para a promoção de razoável bem estar social da população, segundo ao autor. Todas as experiências históricas sugerem que com 10 ou 15% de receita fiscal seja suficiente apenas para manter polícia e justiça, não sobrando nada para saúde e educação. Os EUA possui um nível de arrecadação fiscal da ordem de 30%, mas é importante lembrar que nesse país o sistema de saúde e a educação superior - em geral, os mais caros para o Estado - são eminentemente privados.

Encerro esta parte com uma citação que denota a importância que o autor dá para o imposto:
“O imposto não é uma questão apenas técnica, mas eminentemente política e filosófica, e sem dúvida a mais importante de todas. Sem impostos a sociedade não pode ter um destino comum e a ação coletiva é impossível”.

(texto em construção, em breve publico a IV e última parte)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Minhas impressões sobre “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty. PARTE II


O livro se baseia no resultado de uma pesquisa histórica sobre as rendas e os patrimônios de vários países do mundo, a relação disso com a desigualdade social e a distribuição da riquezas. Piketty faz um trajeto de pesquisa com informações colhidas da Belle Époque até o início do século XXI.

No final do primeiro terço do livro Piketty trata com mais cuidado das contradições do capitalismo. Segundo ele “o capital em excesso mata o retorno do capital”, ou seja, à medida que o estoque acumulado do capital aumenta sua produtividade diminui. Exemplificando: se um produtor agrícola tem a sua disposição milhares de hectares de terra, o rendimento adicional resultante do acréscimo de 1 hectare ao que ele já possui é muito limitado. Mas se este mesmo hectare for colocado a disposição de um produtor que tenha apenas 1 hectare de terra, o rendimento adicional proporcionará um adicional de capital muito mais elevado. Ou seja, a distribuição de capital e riqueza é importante até mesmo para a sobrevivência do capital.

A partir deste entendimento é bastante compreensível o efeito em cadeia que R$ 240,00 – valor médio do bolsa família – produziu na economia brasileira nos últimos anos. Enquanto R$ 240,00 não faria quase nenhuma diferença para as classes mais privilegiadas, faz e fez muita diferença para as classes mais pobres, mas não apenas para elas, mas para toda a economia brasileira, porque fez girar e dinamizar o capital.

Segundo Piketty a concentração de riqueza atual atingiu níveis insustentáveis, e ele acredita que seja difícil que a população aceite tal nível desigualdade por muito tempo. O autor afirma ainda que manter um nível de desigualdade como o que temos hoje no mundo, se sustenta sim, pela eficácia do aparato repressivo, mas, sobretudo, pela eficácia das diversas justificativas que se arranja para ela. A meritocracia seria, portanto, uma dessas justificativas; os mais ricos são ricos porque escolheram trabalhar mais e de forma mais competente. Outra justificativa muito usada é que impedir os mais ricos de ficarem mais ricos é prejudicar os pobres que dependem dele. Mas obviamente que esses dois exemplos são meras justificativas ideológicas, já que, pela pesquisa de Piketty não se sustentam.

Já caminhando para o final da terceira parte do livro Piketty escreve um parágrafo que seria um pecado não reproduzir literalmente:
“A racionalidade econômica e tecnológica nada tem a ver com a racionalidade democrática. O iluminismo engendrou a democracia, e é muito comum pensar que a economia acompanharia essa lógica democrática naturalmente, como que por encantamento. Ora, a democracia real e a justiça social exigem instituições específicas, que não são apenas as do mercado e também não podem ser reduzidas às instituições parlamentares e democráticas formais.” (p.413)

Resumindo, a força que alimenta a desigualdade nada tem a ver com uma imperfeição do mercado e não será, portanto resolvida com mercados mais livres e competitivos. A livre concorrência e a meritocracia são ilusões perigosas e mais, a igualdade de direitos e oportunidades não é suficiente para produzir igualdade de riquezas. Sem intervenção política, veremos, não há saída possível.

(texto em construção, em breve publico a PARTE 3)

sábado, 11 de abril de 2015

Minhas impressões sobre o livro: “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty. PARTE I


O livro se baseia no resultado de uma pesquisa histórica sobre as rendas e os patrimônios de vários países do mundo e a relação disso com a desigualdade social e a distribuição das riquezas. Piketty faz um trajeto de pesquisa com informações colhidas do final do século XIX até o início do século XXI.

As perguntas que o autor faz são: será que a dinâmica da acumulação do capital privado conduz de modo inevitável a uma concentração cada vez maior da riqueza e do poder em poucas mãos, como acreditava Marx? Ou será que as forças equilibradoras do crescimento, da concorrência e do progresso tecnológico levam espontaneamente a uma redução da desigualdade e a uma organização harmoniosa das classes como pensava Kuznets?

Ao que parece as respostas de Piketty estão mais próximas das previsões de Marx, apesar de pareceram menos drásticas do que o marxismo pregou, mas não por causa das intervenções próprias do capitalismo, como veremos. Segundo Piketty, a promessa de um mundo mais justo, em termos de distribuição de renda, nunca esteve tão distante. Em 2010 os 10% mais ricos possuíam entre 80% e 90% do patrimônio mundial, enquanto que a metade inferior da população divide menos de 5% dessa riqueza.

Piketty conclui ainda que toda a história de distribuição da riqueza no mundo é fundamentalmente política, não sendo explicável por preceitos meramente econômicos como muitos tendem a pensar. Ou seja, a desigualdade é fruto do jogo de forças que se apresenta na sociedade e não o resultado de índices e fatores econômicos. Outra conclusão importante do autor é que as forças que promovem a desigualdade tendem a prevalecer, ou seja, se não há intervenção política, o capital tende a se concentrar de forma cada vez mais intensa e perversa, levando até mesmo o próprio capitalismo a se autodestruir. Ele afirma, por exemplo, que não tem dúvidas de que o aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro americano e contribuir para e eclosão da crise de 2008.

O autor afirma que a democratização do acesso a educação, o desenvolvimento tecnológico da produção, que prometia uma melhoria na qualificação e no valor do capital humano, ou a racionalidade democrática, que prometia um maior acesso das massas de trabalhadores a direitos fundamentais, pouco ou nada fizeram em termos de melhorar a distribuição da riqueza no mundo. Tragicamente ele chega a conclusão com seus dados que, na verdade, foram as guerras as responsáveis pelo retorno ao zero na contagem da acumulação do capital, promovendo o que ele chamou de rejuvenescimento das fortunas, dando a ilusão de uma superação estrutural das contradições do capitalismo. Em outras palavras, nada foi mais eficaz do que as guerras para minimizar o efeito da desigualdade no mundo e, consequentemente, para mascarar as contradições do capitalismo.

Outra ilusão que ele coloca em cheque é a de que o crescimento econômico possa solucionar o problema das desigualdades, na medida em que ele é responsável por uma melhoria em tais índices, assim como aconteceu no Brasil recentemente, especialmente nos governos Lula. É aquela ideia de que aumentar o bolo melhora a qualidade de sua divisão, o que é verdade, no entanto, trata-se de uma estratégia limitada, pelo próprio limite de crescimento populacional. Vejamos: a taxa de crescimento econômico mundial segundo os dados do livro foi em média 1,6% ao ano entre 1700 e 2012, sendo que, 0,8% deste crescimento foi resultado do crescimento populacional neste mesmo período. Almejamos crescimentos de 4% e 5% como soluções para a redução da pobreza nos países só que esses são índices totalmente ilusórios e impossíveis de se sustentar a longo prazo, segundo Piketty.

Para se ter uma ideia apenas 0,8% de crescimento ao ano ao longo de 3 séculos só foi possível porque o mundo passou de 600 milhões de habitantes em 1700, para 7 bilhões em 2012. Para mantermos esse índice de crescimento econômico precisaríamos manter este índice de crescimento populacional, que faria com que em 2300 tenhamos 70 bilhões de pessoas no planeta. Sendo assim, o fôlego que o mundo ganhou de um crescimento de 3% nos últimos anos, especialmente em decorrência dos chamados “países emergentes”, tende a perder o vigor, tal como já está acontecendo no Brasil, porque é impossível de se sustentar a longo prazo. Na verdade, um crescimento considerado parco de apenas 1% ao ano já é insustentável. Resumindo: o crescimento econômico também não é uma saída para a crise do capitalismo.

O autor também desmonta a falácia da meritocracia, que segundo ele serve apenas para dar um sentido para as desigualdades nas sociedades democráticas modernas. A possibilidade de mobilidade social pela via do mérito, do trabalho ou do estudo é uma ilusão que os sistemas democráticos modernos sustentam apenas para justificar suas contradições. Os estudos feitos demonstraram que não existe nada mais determinante na riqueza do que a herança. Os exemplos de superação e ascensão social por mérito são insignificantes em termos estatísticos globais e só servem para sustentar o discurso da meritocracia, além de não produzem nenhum efeito direto na distribuição da riqueza. E com a estagnação do crescimento econômico mundial, que é uma tendência, o fator determinante da herança vai se tornar ainda maior nas próximas décadas, se nada for feito para minimizá-lo.

Outra discussão interessante que ele faz é sobre a questão da inflação. Eu, que não entendo nada de economia, sempre acreditei que a inflação é o demônio seja lá da maneira que se apresente. Mas Piketty traduz a inflação sob outros termos já que ela é capaz de dilapidar as grandes heranças intocáveis, ao criar alguma insegurança para aqueles que vivem de acumular bens e riqueza. Em situações de inflação alta os detentores de grandes posses se vêem impelidos a entrar na dinâmica da produção e do mercado já que, se ficarem apenas a “esconder dinheiro debaixo do colchão” verão sua riqueza se esvair. O que eu entendi é que apesar da inflação ser muito ruim para a classe trabalhadora ela não tem tanto efeito de dilapidação de riqueza como tem para os muito ricos, já que o trabalhador tende a gastar quase que imediatamente suas economias. Entretanto, o autor não concorda com o método da inflação para intervir na desigualdade, apesar de acreditar que exista uma taxa que é necessária e saudável para manter a dinâmica da economia.

(texto em construção, em breve publico a PARTE 2)