segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Denuncias de corrupção na Petrobras: eu escolho saber


Meu sogro - queridíssimo – dizia, antes de partir deste mundo, que tinha uma saúde ótima até começar a frequentar médicos.

- Esse negócio de ir ao médico acabou com minha saúde – me disse certa vez.

Obviamente que ele dizia isso em tom de brincadeira, mas não sem uma certa dose de sarcasmo. Talvez, já no fim, imaginasse como teria sido viver o resto de sua vida na ignorância, sem saber sobre a doença que o fez enfrentar rotinas de tratamento tristes, desgastantes e até desumanas.

Mas ao contrário do meu sogro, esta lógica invertida é utilizada por muita gente, não como chiste, mas por ignorância e, muitas vezes ainda, por má fé. Vejamos o caso relativo às denuncias de corrupção sobre a Petrobras. Diante do escancarar do diagnóstico que corrói a estatal, certamente há muitos anos, define-se que a causa de todo mal é o fato dele ter se tornado público, ao menos desta vez. Nesse caso, o responsável pela doença só pode ser, claro, o atual governo. Eu não vou tecer um rosário de teorias da conspiração para tentar explicar porque somente agora tal diagnóstico foi colocado na mesa. Prefiro acreditar que estamos dando passos largos em direção ao combate à doença da corrupção no âmbito geral, como uma mudança de cultura, e não apenas para este governo em particular.

Vale lembrar ainda que a doença da corrupção é a mesma que degenera todas as grandes corporações, e não apenas as públicas. A corrupção segue o dinheiro (público ou privado) aonde quer que ele vá. “Siga o dinheiro” é a recomendação básica para se investigar qualquer ato de corrupção. Sendo assim, outro equívoco comum ao tratar o tema é acreditar que ele seja um defeito intrínseco das empresas públicas, como se as empresas e corporações privadas fossem imunes a este mal. Não são! Todas as grandes crises do capitalismo financeiro, por exemplo, tiveram como atores importantes bancos, corporações e empresas do setor privado. Desvios, fraudes, má gestão, promiscuidade, operações de risco, calote, são alguns dos eufemismos utilizados para nomear a corrupção quando ela acontece no campo privado. Ah! – vocês podem dizer – mas a corrupção no âmbito privado só traz prejuízo ao campo privado! Ah é? Me digam então quem foram os reais prejudicados na quebra do Lehman Brothers nos EUA em 2008? Me digam quem foi que pagou a conta da crise mundial desencadeada por este evento? Os donos deste banco com certeza é que não foram...

Mas há sim uma diferença descomunal entre a corrupção na esfera pública e a corrupção na esfera privada. É que, ao contrário do que a grande maioria imagina, é apenas na esfera pública que ela se torna realmente visível. No campo privado, a putrefação (sinônimo de corrupção) só é percebida quando o cadáver já se instalou. A maquiagem financeira e o manejo de dados e informações são muito menos visíveis, muito mais fáceis de esconder em empresas privadas, por razões óbvias. É fácil exemplificar. Esconda uma bolsinha de moedas no seu quarto e esconda a mesma bolsinha numa praça pública da sua cidade. Se sua intenção for a de que ninguém encontre as moedas, onde haverá menor risco?

Por isso, neste momento no qual a Petrobras se encontra fragilizada – talvez muito mais simbolicamente do que de fato – temos que ter muito cuidado com os que se utilizam da lógica invertida que eu citei no início do texto. Cuidado com os que gostam de defender a tese de que a Petrobras era um poço de virtudes até começarem a pipocar as atuais denuncias. E que se foi neste governo que tudo veio a tona, então, o problema só pode ser este governo ou o fato da empresa ser gerenciada por um governo. Seguindo tal raciocínio torpe, as soluções para o problema só poderiam ser duas: suspender este governo ou defender que a Petrobras não seja gerenciada por nenhum governo; seja privatizada.

Como eu disse antes, não sei por que todos esses malfeitos vieram à tona agora. Alguns vão dizer que é pelo fato das falcatruas estarem beneficiando outros que não aqueles que, tradicionalmente, mamavam na estatal; como se isso fizesse alguma diferença. Outros vão dizer que é por que agora a corrupção atingiu níveis insustentáveis, era uma pequena ferida e agora é um câncer; como se isso fizesse alguma diferença. O fato é que o governo e nós todos, já que a Petrobras é uma empresa pública, estamos tendo a oportunidade de diagnosticar e tratar a doença que se infiltrou no corpo de um dos nossos maiores patrimônios. Podemos optar por enfrentar este mal de frente, entendendo que só podemos tratar daquilo que somos capazes de ver. Ou podemos preferir não ter enxergado nada isso, ou ainda, defender a privatização e cessar de vez a oportunidade de continuar enxergando.

Eu compreendo profundamente meu sogro, a ignorância pode ser mesmo uma benção. Quem sabe Mas eu ainda prefiro saber. E você?

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Sobre a tragédia do Charlie Hebdo: Humor X Fundamentalismo


Ao ingressar na linguagem o ser humano perdeu para sempre o paraíso. A linguagem como recurso simbólico - nosso instrumento para lidar com o mundo - não é capaz de alcançar o real ou a “coisa em si”, sendo assim, a verdade que alcançamos em qualquer aspecto, será sempre uma meia verdade. Isso quer dizer que no campo da linguagem, qualquer tipo de discurso que se utilize produz alguma espécie de mal-entendido. Em resumo: somos seres condenados ao mal-estar.

Mas o que cada um fará com este mal-estar é diverso e singular. Entretanto, para efeito deste ensaio vou agrupá-los em dois tipos. Há formas discursivas que assumem e acolhem o mal-estar e outras que negam ou rejeitam o mal-estar e que representam, basicamente, duas maneiras de lidar com a verdade. No primeiro grupo estão as formas discursivas que entendem que não existe uma verdade única ou A Verdade, o que existe são meias verdades, ou seja, diferentes maneiras de enxergar uma mesma coisa. No segundo grupo estão as formas discursivas que acreditam que exista um saber universal e imutável. Neste modo de lidar com a realidade acredita-se ser possível se livrar do mal-estar buscando A Verdade; uma única verdade totalizadora capaz de responder todas as questões e, consequentemente, anular todas as diferenças.

No evento ocorrido na França onde religiosos fundamentalistas atacaram o jornal Charlie Hebdo, ao que parece, em retaliação às charges de humor que estes publicavam sobre o Islamismo, temos representantes dessas duas maneiras de lidar com o mal-estar. O humor é uma forma discursiva que acolhe e assume o mal-estar. O humor não nega o mal-estar, pelo contrário, ele sobrevive do mal-estar. Sua intenção é exatamente provocar riso a partir do mal-entendido. Ao avacalhar e desmoralizar o mal-estar, o humor denuncia-o e ao mesmo tempo lhe da leveza, tornando-o acessível ou suportável.

Já o discurso religioso - especialmente no caso das religiões fundamentalistas - tem a pretensão de rejeitar o mal-estar. Acreditam que exista uma verdade totalitária e imutável - exatamente a que professam ou que acreditam - única capaz de dar conta de todo e qualquer mal-estar. A proposta neste caso é: “Aceitem a minha Verdade – a única – e se livrem do mal-estar”. E certos de que estão diante dA Verdade, esses “religiosos” por vezes se tornam capazes de quaisquer atos extremos em nome dela. Em nome desta Verdade Universal pretendem apagar as diferenças, mesmo que para isso precisem fazer uso de medidas violentas.

Jacques Lacan, psicanalista francês, chamou este modo discursivo que tenta encontrar o Todo Saber ou o Saber Universal, de Discurso Universitário. Sua intenção ao levantar tal tema em 1969, era fazer uma crítica ao que a ciência e a própria psicanálise vinham se tornando, especialmente nas Universidades: saberes dogmáticos, engessados e duros.

Sendo assim, o fundamentalismo ou dogmatismo não é privilégio das religiões, apesar de ficar mais obvio enxergar nelas este tipo de visão de mundo. Há fundamentalismos erigidos em nome da ciência e da psicanálise. Há fundamentalismos nos movimentos sociais e políticos. Há fundamentalismos no discurso ecológico e no feminista. E há fundamentalismos de esquerda e de direita.

Leonardo Pandura, no livro O Homem que Amava Cachorros, narra os últimos dias do revolucionário russo Leon Trotsky e parte do desenrolar da revolução comunista na Europa. O que mais me chamou a atenção no livro é de como os ideais da Revolução Comunista e da filosofia Marxista foram transformados num dogma burocrático, tão duro e engessado, como o de qualquer religião fundamentalista. A revolução comunista, que tem como princípio rejeitar o discurso religioso por considerá-lo reacionário, vai se tornando ela mesma, com o caminhar da revolução, um emaranhado de dogmas e burocracias que acabam por pretender o mesmo que qualquer fundamentalismo religioso pretende: perseguir uma verdade única e acabar com todas as diferenças. Trotsky, inclusive, é assassinado por este motivo.

O que quero dizer é que nenhum tipo de saber: científico, político, religioso ou filosófico, está imune ao fundamentalismo. Basta que se pretenda negar o mal-estar, perseguindo uma verdade única e acabando com as diferenças.

Voltando ao caso Charlie Hebdo, podemos até questionar o bom gosto do humor que produziam. Podemos até concluir que suas charges incitaram sim o ódio e a revolta de fundamentalistas religiosos. Mas não podemos de maneira nenhuma acreditar que, por causa disso, não deveriam ter produzido humor que produziram durante todos esses anos. Porque o humor não pode ser covarde, não pode evitar o mal-estar. E por rejeitar uma verdade que seja toda ou um único modo de enxergar o que nos cerca, o humor é sempre revolucionário. Mesmo que seja de mau gosto, mesmo que pise em minorias, mesmo que reforce estigmas, o que o humor tem a seu favor é sempre o fato rejeitar uma verdade única. O humor é capaz de aceitar o mal-estar como parte integrante da vida e das nossas relações, o que é fundamental para arejar o conjunto de verdades que vamos construindo sobre as coisas.

Isso não quer dizer que o humor esteja acima da lei, ou acima do bem e do mal. Se o humor ultrapassa limites legais estabelecidos deve responder e ser responsabilizado por isso, este é o preço que arriscam pagar por evidenciarem o mal-estar, faz parte do jogo. Mas, quando falamos do limite do humor, não é possível pensarmos que tal limite possa ser estabelecido à priori. Se burocratizarmos ou dogmatizarmos o humor, ditando normas e regras para que ele aconteça, iremos mata-lo, pois será mais um discurso cheio de verdades estabelecidas.

Os cartunistas da Charlie Hebdo, possivelmente, preferiram assumir o risco do humor que produziram. Mesmo não achando nenhuma graça de algumas charges que vi circulando por aí (quem sabe influenciada pela tragédia ocorrida) acredito que eles estavam certos em não se acovardarem diante da missão do humor: denunciar verdades únicas e imutáveis, desconstruir visões de mundo estreitas e fundamentalistas, desmontar dogmas e debochar de certezas.

Já temos gente demais vomitando certezas neste mundo. Já temos teorias, instituições, seitas, religiões, regras e livros de autoajuda suficientes para nos dizer como encontrar A Verdade, Verdade essa capaz de acabar com todo o mal-estar que não cessa de se impor sobre nós. Temos gente demais empunhando suas certezas como se fossem armas, e eles não recuam se precisarem atirar. E o humor será sempre um bom antídoto contra isso.

Eu não vou escolher um lado no caso Charlie, porque não tenho conhecimento suficiente da situação para fazê-lo. Não sei se eles foram longe demais, se ultrapassaram algum limite ético ou legal. Eu não sei como vivem as minorias islâmicas na França. E também não acho que empunhar uma caneta seja um ato inocente, e nesse caso, não havia nenhuma pretensão que fosse. Mas se eu tiver que escolher entre o fanatismo religioso ou qualquer outro tipo de fundamentalismo e o humor, eu fico com o humor. Sempre.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Sobre o Deus que precisamos para atravessarmos o milênio

por Rita Almeida

O interesse que hoje tenho por Deus é mais filosófico do que religioso. Sendo assim, entendo que o conceito que se tem de Deus não é unívoco, ele vem se modificando de acordo com o tempo e as diversas culturas e sociedades. É como se cada tempo e cada sociedade tivesse o Deus (ou os deuses) que precisasse ou desejasse.

Se tomarmos o cristianismo, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento era uma espécie de grande líder tirano e cruel, que vigiava e castigava seu povo sempre que lhe conviesse. Suas normas e regras eram rígidas e, muitas vezes, sem qualquer sentido ético, moral ou prático. O único sentido parecia ser deixar bem claro quem era o Todo Poderoso.

Já o Deus do Novo Testamento é um Deus que desceu do seu pedestal e da sua arrogância para se tornar um meio-irmão, um semelhante, que mesmo depois de morto promete ficar entre nós. Esta é exatamente a mensagem final de Jesus na Última Ceia, horas antes de ser crucificado e morto. Mas em algum momento, o Deus do cristianismo que prometeu estar entre nós passou cada vez mais a estar dentro, “habitar o coração do homem”.

Sabemos que o Deus do protestantismo, que nasce no século XV, serviu muito bem à disseminação e ao desenvolvimento do capitalismo. Ao que parece, a noção de um Deus que está dentro de cada um, tem servido muito bem à sociedade capitalista-ocidental em sua versão cada vez mais individualista e narcisista. E o Deus que produzimos neste caldeirão me parece assustador. É uma espécie de Deus-portátil, Deus-de-bolso ou um Deus-I fone; aquele que possui todos os aplicativos, conexões, contatos e arquivos que eu preciso para ser feliz.

O Deus que encontramos na sociedade capitalista-narcisista atual é um Deus que serve cada vez mais para resolver os meus problemas individuais, mesmo os mais egoístas. É um Deus capaz de atender a um pedido meu, mesmo que isso implique em sabotar o pedido de outrem. O Deus do narcisismo me permite agradecer pelo sucesso num concurso, numa seleção de trabalho ou a conquista de uma vaga na faculdade, sem questionar o fato de que isso aconteceu apenas porque alguém foi preterido. Somente o Deus do narcisismo me permite colocar aquele tradicional adesivo no carro: “Foi Deus que me deu”, mesmo quando o digno presente é mais um a poluir o ambiente já a beira do completo caos. O Deus do narcisismo é capaz de me fazer vencedor numa disputa, ainda que do outro lado esteja alguém que fracassou, como se o meu Deus fosse melhor ou mais poderoso que o dele.

Mas que tipo de Deus é este que tolera um pedido de salvação, cuidado ou proteção para apenas eu ou meus familiares e amigos mais próximos? Que tipo de Deus me permite agradecer por ter escapado viva de um acidente em que muitos outros se tornaram vítimas fatais? Que tipo de Deus me autoriza fazer um pedido de mesa farta nas festas de fim de ano, quando a miséria e a fome devasta milhões mundo afora?

O conceito de Deus que vemos hoje é tão narcisista que até quando um desejo meu não é atendido, a explicação é: “porque Deus sabe o que é melhor para mim”.

Enfim, lamentavelmente, o Deus que nos resta atualmente é aquele que atende aos apelos do Eu, o Deus- I fone. É o Deus que promete a tão sonhada felicidade individual. Um Deus que nos demanda louvores, adoração e glorificação, além de uma prova de sua devoção e fé por meio de doação financeira. Somente um Deus narcisista e egocêntrico precisaria deste tipo de devoção ou reconhecimento.

“Meu Deus!” Aí está a exclamação que usamos em nossas orações ou sempre quando o desespero bate e tudo parece perdido. Entretanto, o Deus do indivíduo não será capaz de cumprir sua missão de nos salvar, especialmente porque nosso tempo precisa urgentemente se livrar do individualismo.
No cristianismo é preciso se livrar do Deus que se ocupa das nossas misérias egoístas e individuais e resgatar o “Pai Nosso”, aquele capaz de nos ajudar a reparar as nossas mazelas coletivas. Não aquelas que estão dentro de nós, mas as que estão entre nós; a fome, as injustiças sociais, a degradação do meio ambiente, a falta de água e saneamento básico, as guerras.

É bem provável que não seja possível ou desejável um Deus único para toda a humanidade. A diversidade de culturas e religiões pelo mundo não possibilitaria isso, mas é fundamental e urgente perseguirmos a ética de um Deus para Todos, e não só para todos os seres humanos, mas para todos os seres que habitam este planeta, animados ou não.

Resumindo, se a função de Deus é nos salvar, nos libertar e nos proteger, o Deus do narcisismo, se é que realmente precisamos dele algum dia, não nos serve mais. O Deus que irá permitir à humanidade fazer sua travessia em direção ao próximo milênio precisa ser um outro Deus. Precisamos parar de orar a Deus para curar nossa unha encravada, proteger nossa prole, melhorar nossa vida financeira ou sustentar nosso amor-próprio. Nossas orações (representantes autênticas do nosso desejo) precisam se livrar do narcisismo e do egoísmo e alcançar o campo da alteridade. Caso não modifiquemos nossas orações, o abismo narcísico do EU irá nos engolir em breve.

Sendo assim, o Deus que precisamos ou que deveríamos desejar não é mais o Deus que está dentro, mas o Deus que está entre nós. O Deus que nos une, que nos enlaça, que possibilita o amor, que nos faz irmãos porque habitantes do mesmo planeta. O Deus que precisamos invocar não é o “Meu Deus”. O Deus que nos permitirá sobreviver é o "Nosso Deus", ou o "Pai Nosso" o Deus da alteridade.

O Deus que precisaremos para não sucumbirmos como espécie não poderá ser tolerante com a ideia de salvação individual, seja ela de que tipo for. O Deus que rogaremos, caso haja futuro, é aquele que exige que respeitemos o seguinte mandamento: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A inacreditável passeata pelo golpe militar ou sobre porque precisamos passar a limpo nossa história.

O Brasil viveu nesta semana um episódio inacreditável. Uma passeata em São Paulo que carregava, dentre outras bandeiras, o pedido de intervenção e golpe militar, ou seja, a reedição de um dos períodos mais sombrios da nossa história.

Pasma com a tal passeata, postei algo no feicebuque sobre a necessidade dos professores brasileiros pararem tudo que programaram durante a semana para se dedicarem a discutir em suas salas de aula os anos de ditadura militar no Brasil, a fim de conscientizar e alertar nossos jovens. Pois mais pasma ainda fiquei com um comentário ao meu post que pedia para que os professores trabalhassem o tema de forma neutra, a fim de que os alunos tirassem suas próprias conclusões sobre o episódio, além de salientar a importância das obras públicas feitas na época da ditadura e destacar que as organizações de esquerda também tiveram sua parcela de responsabilidade no episódio. E o mais triste: o comentário tem, até o momento, uma defesa e 22 curtidas.

Esse tipo de passeata que ocorreu em São Paulo, assim como o comentário que apareceu no meu post - e que ouvimos por aí toda hora - é um sintoma da falta que fez não termos acertado as contas com esse pedaço da nossa história, tal como souberam fazer nossos vizinhos Argentinos e Uruguaios, por exemplo. Precisamos urgentemente rasgar essas cicatrizes que ainda não se fecharam a fim de fazer com que a ditadura militar brasileira seja, irremediavelmente, tratada como aquilo que realmente foi: um crime bárbaro.

Não há nenhuma obra construída, nenhuma justificativa, nenhuma versão, nenhum romantismo, nenhuma suposta neutralidade que seja capaz de fazer com que tiremos outra conclusão sobre esse período que não seja: crime e barbárie. Se existe uma versão dos militares para o que ocorreu nos porões da ditadura ela é criminosa e, assim sendo, não pode ser considerada como possível ou plausível. Assim como, se existe uma versão dos brancos sobre a escravidão imposta aos negros ela é criminosa; se existe uma versão nazista para o genocídio dos judeus, ela é criminosa; se existe uma versão europeia para o que se fez com os povos que viviam nas Américas, ela é criminosa; e ponto final, nada mais.

Mas o fato de não termos passado a limpo esse nosso passado sombrio é que exatamente abre a possibilidade de que alguém diga: "A ditadura militar também não foi tão ruim assim como dizem!" Este tipo de discurso sustenta argumentos do tipo: “A ditadura militar foi terrível, mas, e as obras que foram feitas nesta época, não valeram?” Isso seria o mesmo que dizer: “A escravidão a que foram submetidos os negros no Brasil foi terrível sim, mas e a nossa produção de cana-de-açúcar e café no século XVII, não conta?” Ou: “Os povos nativos nas Américas foram dizimados sim, mas e os países Americanos que daí surgiram, não fizeram tudo valer a pena?”

Este tipo de desmemoria, misturada com ignorância histórica ou até má fé, também produz argumentos desse tipo: “Eu concordo que os militares foram horríveis, mas os militantes de esquerda também não eram flor-que-se-cheira não é?”. Isso seria o mesmo que dizer: “As torturas e castigos a que foram submetidos os negros na escravidão foram um horror, mas os negros também não colaboravam: fugiam, resistiam, desobedeciam...” Ou: “Tá certo que os nazistas perseguiam e matavam os judeus, mas esses também não facilitavam não é? Mudavam de nomes, se escondiam, escondiam seus bens...”

Outra forma de tentar camuflar a realidade terrível do que foi o período de ditadura no Brasil, também é utilizada para justificar outras atrocidades ao longo da história. É a velha justificativa: “Fizemos o mal, mas foi para o bem”. Esta é a forma mais perversa de impingir mal ao outro, tentando convencê-lo de que foi o melhor que se pôde fazer por ele. Assim, os portugueses dizimaram os índios que aqui viviam para lhes salvar a alma. Assim os EUA matam milhares em guerras estúpidas e desumanas com a desculpa de que estão promovendo a paz. No caso do golpe militar, a justificativa era nos salvar do comunismo.

Desarquivar a ditadura brasileira é urgente!

Não podemos mais aceitar que ela seja romantizada pelo efeito, supostamente positivo, das obras feitas na época. Se não podemos demolir o que foi construído tendo como matéria prima a humilhação, o sangue e a dor de muitos brasileiros, então que, pelo menos, nada do que foi construído na ocasião nos seja motivo de orgulho.

Não podemos mais aceitar que os que bravamente lutaram - muitos deles com suas vidas - para tentar resistir a essa barbárie, sejam responsabilizados por não se curvarem ao desmando e a opressão. E sabemos que não era preciso uma bomba ou um revólver para ser considerado um subversivo. A arma poderia ser apenas uma caneta e o território de ocupação uma folha de papel.

Não podemos mais aceitar que se justifique todo o horror que foi produzido nesta época como um bem para o Brasil e os brasileiros, ou como algo inevitável.

Sendo assim, os anos de ditadura do Brasil não podem estar sujeitos a uma espécie de interpretação pessoal de quem lê a história. Alguém teria, hoje, coragem de dar outra interpretação para o genocídio dos judeus que não a de um crime bárbaro? Alguém teria coragem de dar outra interpretação para a escravidão dos povos africanos, que não a de um crime bárbaro? Do mesmo modo, a ditadura brasileira, precisa se tornar urgentemente aquilo que realmente foi: um crime bárbaro, sem possibilidade de outra interpretação. Foi humilhação, cerceamento, censura, prisão, desespero, dor, silêncio imposto, abandono, exclusão, perda, desumanidade, desamor, ignorância, tristeza, depressão, alienação, emburrecimento, embrutecimento, doença, tortura e morte. Nada que tenha acontecido de bom nesta época pode mudar ou romantizar isso. Nenhuma opinião pessoal que se tenha sobre esta passagem da nossa história pode mudar tal realidade! E nenhuma estupidez ou alienação pode permitir que alguém possa desejar ou clamar por ela novamente!

O genocídio do povo judeu foi um crime, portanto, clamar pelo seu retorno não é uma questão de opinião é crime também.
A escravidão dos negros foi um crime, portanto, clamar pela sua volta não é uma questão de opinião, é crime também.
Então é preciso que fique muito bem claro: A ditadura militar no Brasil foi criminosa, portanto, clamar por ela não é uma questão de opinião, é crime também. Simples assim.

domingo, 19 de outubro de 2014

Para debater o bom debate

por Rita Almeida

Quem me conhece sabe que eu não fujo de um bom debate. E gosto especialmente de discutir os três temas que muitos acreditam que se deva evitar: religião, futebol e política. Mas o exercício que eu mais prezo em um bom debate é o uso da razão, do intelecto; argumentar racionalmente é o que me move numa discussão. Admito que seja bem difícil fazer isso quando é a seleção ou o flamengo que estão em campo, mas, eu juro que me esforço.

Nesse segundo turno das eleições presidenciais sinto muita falta de um bom debate, aquele travado no campo das ideias. Sinto falta de argumentos elaborados no cérebro e não no fígado. O discurso de ódio ao PT, infelizmente colou e o PSDB está deitando e rolando nele para tentar eleger Aécio. Então, todo argumento que escuto para votar no Aécio se resume ao #foraPT.

Na verdade tive apenas um bom debate nesse segundo turno, e foi com um amigo que sempre foi eleitor do PSDB. A coerência do seu discurso e de seus argumentos me fez respeitar sua escolha e apertar sua mão. Resumidamente o que ele me disse foi: “Tudo bem! Nós tivemos por 12 anos governos que se dedicaram aos pobres, investindo em políticas públicas e programas sociais, mas agora é hora de fazer a economia crescer!”

Antônio Prata outro dia em sua coluna na Folha, “O chapeiro e o dono da padaria”, usou uma metáfora muito interessante para falar das diferenças entre o Governo Dilma e um provável Governo Aécio, partindo do discurso dos seus respectivos economistas: Guido Mantega e Armínio Fraga. Me apropriando de tal metáfora eu diria o seguinte: Os governos Lula e Dilma melhoraram muito a vida do chapeiro (trabalhador da padaria). Seu salário teve aumento real, ele passou a ter mais acesso a políticas públicas, conseguiu credito para adquirir sua casa própria ou até um carro. O poder de compra do chapeiro aumentou tanto que ele, possivelmente, tem hoje uma TV de tela plana igualzinha à do dono da padaria. Além disso, seus filhos terão, pela primeira vez, a oportunidade de quebrar o ciclo de chapeiros da família pois, sendo mais escolarizados que o pai e com chances até de entrar até no curso superior, poderão escolher uma outra profissão. Mas o problema é que o dono da padaria está preocupado. Com o aumento do poder de compra dos assalariados ele até tinha aumentado as vendas e, por isso, ampliou a padaria e abriu novas filiais. Mas nos últimos tempos ele está percebendo que este crescimento esgotou e ele precisa de um governo que o socorra, ainda que isso implique em interromper ou reduzir os benefícios dirigidos aos chapeiros. Até porque ele acredita que se sua padaria minguar o chapeiro poderá ficar desempregado.

Diante do argumento feito pelo viés dos donos de padaria, eu não posso deixar de respeitar a justificativa do meu amigo em votar no Aécio, mesmo não concordando com ela. Isso sim é um argumento plausível, racional, coerente e corretíssimo visto por esse ângulo. E sua argumentação me ajudou ainda mais a reafirmar minha posição, pois, por mais que eu compreenda a preocupação do dono da padaria e do meu amigo, eu ainda voto em nome do chapeiro, é com ele que me preocupo mais. Até porque eu não acredito que uma melhoria nas finanças na padaria vá refletir automaticamente na melhoria das condições de vida do chapeiro sem que o Estado e as leis intervenham.

Então, meus caros, se alguém vai votar no Aécio pensando no dono da padaria, tem todo o meu respeito, aceito e vou adorar travar um bom debate. Mas quando o argumento é apenas precisamos tirar o PT para acabar com a corrupção, para afastar o comunismo ou o risco de nos tornarmos uma Venezuela (!), porque azul é mais bonito que vermelho ou porque a Dilma é uma vaca estúpida e o Lula um analfabeto, esqueça, não vou me dignar em discutir. Também não concordo quando o argumento em favor de Aécio é que ele irá governar para o chapeiro. É mentira! Basta assistir o debate entre Fraga e Mantega, lá está muito claro quem governa pra quem e por que. E eu até conheço chapeiros que estão votando pelo dono da padaria, se estão cientes disso também respeito, é uma escolha.

Resumindo, meu voto é pelo chapeiro! Quem quiser votar pelo dono da padaria que vote, mas que pelo menos tenha a honestidade de assumir isso. Ah! E não me venha com esse papinho mole que o Brasil é um só e que, portanto, os interesses do dono da padaria são iguais aos do chapeiro! Como disse Antônio Prata: você não precisa ser marxista-leninista pra saber que as necessidades do dono da padaria não são as mesmas do chapeiro, né?