terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Adeus ao pai

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
filha de Missias Braz de Almeida

Meu pai faleceu esta semana e deixou em nós um vazio inenarrável.

Quem o conheceu sabia o cara incrível que ele era. De uma sabedoria, muitas vezes, cortante, apesar da pouquíssima instrução. E no seu ato final, quando as cortinas se fecharam eu tive mais clara ainda a dimensão de tal sabedoria. Pois só uma pessoa muito sábia é capaz de construir seu próprio epitáfio e tem serenidade para transmiti-la a outra pessoa, meses antes da sua morte, ainda que esta morte, dada a sua saúde e vitalidade, parecesse estar ainda muito distante.

Meses atrás meu pai me chamou reservadamente e me disse. “Minha filha, quando eu morrer, quero que você diga pras pessoas presentes no meu enterro que eu quero todas elas alegres e sorrindo, porque eu fui um homem muito alegre. Quero que você diga assim: aqui foi um homem muito alegre que amou muito a vida.”

Meu pai era um exímio contador de piadas e “causos” (como se diz aqui em Minas). Muitos desses “causos” e piadas ele contava repetidamente, mas a gente sempre ria do mesmo jeito, ainda que sabendo o enredo e o final. Ele sempre tinha um trejeito diferente, um personagem diferente, tinha mania de adicionar detalhes que não faziam a menor diferença ao contexto narrado, também sabia com mestria mudar o final da história, quando esquecia a original. Aprendi com meu pai que não importa a história que aconteceu, o que vale mesmo é a história que a gente conta.

Estar com meu pai era a certeza de boas risadas. Mesmo quando tudo parecia desesperador, terrível e trágico, ele sempre se lembrava de nos fazer rir. Sendo assim, no dia da despedida, ao cumprir a nobre missão que ele me deu, dizendo a todos o que ele me pediu para dizer, também fiz questão de contar uma de suas piadas, que é a seguinte:

Um bêbado chega a um velório no qual não conhece ninguém e pergunta a uma mulher que está chorando:
- Morreu de quê? E ela responde:
- Ah! Morreu como um passarinho...
O bêbado parece satisfeito com a resposta e continua mais um tempo velando o morto desconhecido. Logo chega uma pessoa e pergunta ao bêbado:
- Morreu de quê? E o bêbado responde:
- Não sei ao certo... ou foi pedrada ou falta de alpiste.

Meu pai morreu como um passarinho... Não foi pedrada, nem falta de alpiste. Na verdade, ao que parece, alguém abriu a gaiola e ele simplesmente voou, leve e alegre como sempre foi.

Algumas pessoas acreditam que sabedoria é sofisticação, complexidade e excesso, mas ao contrário, sabedoria é simplicidade. Mais sábio é aquele que consegue resumir e apreender toda a complexidade da própria vida em poucas palavras. E meu pai soube fazer isso ao me dizer seu epitáfio. E se eu pedisse a todas as pessoas que conheceram meu pai que o representasse em uma só palavra com certeza todos diriam: ALEGRIA.

Em psicanálise dizemos que o que se alcança num processo de análise é a eliminação da profusão de significantes que nos representa (e que, em geral, não ajudam, só atrapalham) para que nos reste apenas alguns poucos, os significantes que realmente são importantes. Talvez nossa existência seja apenas para isso, para termos tempo de complicar a vida e depois de descomplica-la. Felizes dos que conseguem se livrar dos excessos e resumir sua vida em poucos atos, obras e palavras. Meu pai soube fazer isso com mestria: ALEGRIA foi sua única palavra no final, sua maior obra. E pensando assim, ele só poderia morrer do jeito que morreu, sem doença, sem sofrimento, se preparando para assistir sua neta, minha filha, desfilar no carnaval de nossa cidade.

Meu pai nunca leu Nietzsche, mas sabia muito bem da força e da potência revolucionária e reveladora da alegria. Para usar o termo nietzschiano: meu pai foi pura afirmação da vida. Gostava de rir, fazer os outros rirem e dançar. Nietzsche dizia: “Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!” Meu pai não perdeu um dia sequer e nos disse todas as verdades.

Em seu leito de morte tudo que pude prometer ao meu pai é que enquanto estivéssemos de passagem nessa vida nós continuaríamos a nos reunir para relembrar e recontar suas histórias e rir, rir muito. Ele nos fez rir a vida toda e, com certeza, continuaremos a rir dele depois da sua partida.

Depois de ter dito isso no velório de meu pai, um amigo muito antigo dele me chamou e disse que queria me contar a última piada que meu pai contou para ele. Achei aquilo de uma beleza infinita e só consegui pensar que foi meu pai quem soprou aquela piada em seu ouvido. E mais uma vez pude sorrir em meio as lágrimas.

Obrigada, pai. Você fez por merecer nosso sorriso e nosso aplauso!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Socialismo e comunismo, modo de uso - manual didático.


por Rita de Cássia A Almeida

Ainda me surpreendo com gente que afirma repudiar os ideais comunistas ou socialistas porque eles “não deram certo” em parte alguma. Em resposta a essa afirmação o que me vem em mente é uma pergunta: Então o capitalismo deu certo?

Bom, parece que segundo matéria recente publicada nO Globo, o capitalismo deu muito certo. Pelo menos para as 85 pessoas mais ricas do mundo ou cerca de 1% da população. Segundo a pesquisa citada, essa elite de 85 pessoas acumula a mesma riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres do planeta. A matéria afirma ainda que cerca de 1% da população detém a metade da riqueza mundial. Sendo assim, minha pergunta também pode ser feita de outro modo: Se é que o capitalismo deu certo, deu certo pra quem?

Suspeito que, quando se supõe que o capitalismo tenha “dado certo”, se queira dizer que o capitalismo trinfou. Infelizmente, disso eu não tenho dúvidas. Se é eticamente permitido que ao dividirmos uma pizza gigante ao meio, metade dela seja fatiada para 85 pessoas e a outra metade seja fatiada para 3,5 bilhões de pessoas, então só podemos confirmar que o capitalismo triunfou. Ou seja, os melhores e maiores pedaços de pizza serão sempre para quem pode pagar por eles. E o mais cruel é que se você quiser um pedaço melhor de pizza, terá que disputa-lo competindo com os que, como você, têm acesso à segunda metade da pizza. Ou você acredita mesmo que poderá alcançar uma migalha que seja da primeira metade? Esqueceu? Estamos falando de capitalismo. Os tais 1% que desfrutam da primeira metade da pizza têm dinheiro suficiente para não deixar que você nem mesmo sinta o cheio dela. E melhor, eles têm poder suficiente para fazer você acreditar que essa história de comunismo ou socialismo são ideias retrógradas de gente do mal que não sabe respeitar o pedaço de pizza alheio. Ou seja, para protegerem seus pedaços de pizza eles precisam nos fazer acreditar que é ultrapassada a ideia de compartilharmos de maneira mais igualitária essa pizza gigante. Cada um tem o pedaço de pizza que lhe cabe e ponto. Se alguns têm um pedaço de pizza bem maior que do outro, e outros não têm nenhum pedaço de pizza, paciência! Ao invés de ficarmos fomentando essa coisa de socialismo ou comunismo, lendo Marx ou citando Badiou, tratemos de trabalhar com dedicação e persistência para conseguirmos nosso próprio pedação da pizza, fazendo assim que o capitalismo também dê certo para nós.

Sintetizando: Se o capitalismo não deu certo pra você é apenas por culpa sua. Porque se ele deu certo para alguns pode dar certo para você também, basta que você tenha fé e trabalhe.

No entanto, existe um grande problema com essa teoria do capitalismo, chamada de meritocracia, que é um problema matemático. Vamos supor que essa teoria funcione e que 99% da população mundial resolva, com fé e trabalho, conquistar o mesmo pedaço de pizza que o seleto grupos dos 1%. Matematicamente, para que isso seja possível, teríamos que aumentar essa pizza (inteira) pelo menos 99 vezes, só assim todos teriam a possibilidade de ter pedaços de pizza parecidos com as dos 1%, não é mesmo? Entretanto, tal estratégia tem dois problemas graves. Primeiro: a pizza, por uma limitação ecológica, jamais poderá ser ampliada 99 vezes sem que entremos em colapso. Para se ter uma ideia, se todos os habitantes da terra consumissem como um americano médio (eu disse médio), nos seriam necessários quatro planetas Terra. Segundo: na medida em que a pizza cresce e as mesmas regras capitalistas são mantidas, o mais provável é que os pedaços extras de pizza fiquem para os que já têm pizza suficiente, afinal, eles são os mesmos que têm recursos de sobra para adquiri-los. Não é obvio?

Se você ainda não desistiu do texto e acompanhou meu raciocínio até aqui, já começou a entender o que move os ideais comunistas ou socialistas. Eles pensam em estratégias para que nossa pizza gigante seja dividida de forma mais equânime, para que não tenhamos distorções tão injustas como as que vemos. Mas aí vem outra questão importante para socialistas e comunistas. Como faremos para que a riqueza que está acumulada nas mãos dos 1% mais ricos ou dos 85 (os mais ricos dentre os mais ricos), seja melhor distribuída, chegando especialmente, aos mais pobres e miseráveis? Antes de tentar responder esta pergunta, preciso abrir outro parágrafo.

Suspeito que o que chamei antes de triunfo do capitalismo, se deu por um motivo bastante simples. O capitalismo é um modelo econômico que repete o nosso modo mais primitivo de existência que é a chamada Lei da Selva, onde os mais fortes e mais aptos sobrevivem. Uma vez regidos pela Lei da Selva (daí o termo “capitalismo selvagem”) os mais frágeis, incapazes de vencer a luta pela sobrevivência, simplesmente não merecem viver, essa é a ordem natural das coisas. Isso faz com que a sustentação ideológica mais forte do capitalismo seja sua naturalização. Digamos, então, que o socialismo e o comunismo vieram para subverter a ordem natural das coisas. Vieram para desnaturalizar a Lei da Selva e inventar uma nova ordem, a de que todos merecem ter uma chance de sobreviver, mesmo os mais frágeis. Pensando na nossa pizza gigante, a utopia socialista-comunista é que todos deveriam ter acesso a pedaços dignos de pizza, de forma mais igualitária possível e ninguém deveria poder esbanjar pizza, enquanto outros não recebem uma migalha sequer.

Voltando à nossa última pergunta: Quais as maneiras que socialistas e comunistas imaginam que sejam eficazes para redistribuir melhor essa pizza riqueza?

Socialismo e comunismo - modo de usar

Existem inúmeros teóricos e teorias que pensaram e pensam sobre o modo de uso do socialismo e do comunismo. Algumas teorias acreditam que um governo comprometido com os mais frágeis só surgirá por meio da chamada Revolução, onde os mais pobres (a maioria) se unem e tomam para si o poder e a responsabilidade de repartir a pizza riqueza. Em nome do bem comum, estatizarão a pizza, assim ela deixará de ser um bem privado, que beneficia uma minoria, para ser socializada em benefício da coletividade. Outras teorias defendem a presença do chamado Estado Forte, ou seja, um Estado que seja responsável por regular a economia, para que ela proteja os mais frágeis e redistribua de forma mais igualitária a riqueza circulante. Algumas correntes acreditam que seja possível implantar os ideais comunistas e socialistas por meios de leis mais justas, serviços públicos de qualidade, programas sociais e de redistribuição de renda. E há ainda os que, em nome do comunismo ou socialismo, cometem equívocos e abusos, alguns deles absurdos e contraditórios. Mas, vale lembrar, que isso não é uma particularidade do comunismo ou do socialismo. Todo tipo de atrocidade já foi cometida em nome das mais nobres causas. Guerras estúpidas são travadas em nome da democracia. Assistimos recentemente a violação da privacidade de pessoas e Nações, tudo feito em nome da paz. Ao longo da história, povos inteiros já foram escorraçados e dizimados em nome de Jeová, Jesus Cristo, de Alá... A lista de absurdos é vasta.

Apesar das várias correntes e nuances comunistas e socialistas, o que elas têm em comum é que todas buscam evitar que a Lei da Selva do capitalismo prevaleça sem intervenções, tal como desejaria o capitalismo liberal (liberado de qualquer intervenção do governo), ou sua forma mais moderna, o neoliberal. Por isso, a concepção de Estado Mínimo – um Estado que tenha o mínimo de influência na sociedade, especialmente na economia – é a que mais favorece que o capitalismo floresça em toda a sua plenitude, alcançando toda a crueldade e selvageria que lhe seja permitido.

Mas você pode agora estar se perguntando se poderíamos ter um capitalismo mais humanizado, menos competitivo e cruel. Citando Marx, o capitalismo se fundamenta na mais-valia e no exercito de reserva. Simplificando, é necessário que sempre haja pobres (o maior número possível a fim de baratear o preço da mão de obra) dispostos a trabalhar para sobreviver (exercito de reserva), para que a riqueza possa, então, ser deles extraída (mais-valia) e se acumule nas mãos de alguns poucos. Sendo assim, não há humanismo no capitalismo, é o homem sendo o lobo do homem.

Para quem perdeu as aulas de história, vale lembrar que socialismo e comunismo são irmãos gêmeos do capitalismo, nasceram juntos. De fato, o socialismo e o comunismo nasceram para questionar e problematizar as contradições impostas pelo capitalismo. Em última análise, vieram para injetar humanismo no capitalismo. Por exemplo, sabemos que nas primeiras fábricas capitalistas os trabalhadores (homens, mulheres e até crianças) mantinham jornadas de até 16 horas diárias e sem direito a descanso semanal, férias e qualquer outra garantia trabalhista ou proteção social. Sendo assim, todas as conquistas dos trabalhadores desde o início do capitalismo, foram alcançadas pelo jogo de forças que impediam – não sem muita luta – que a ordem natural do capitalismo seguisse seu fluxo. Foram os ideais comunistas e socialistas que sempre fizeram, e sempre farão, contraponto ao desejo capitalista de acumular mais e mais à custa da exploração de outro ser humano e da miséria de muitos outros.

Socialismo e Comunismo fracassaram?

Lanço agora uma outra pergunta: Se acreditamos que o capitalismo triunfou em certa medida, isso quer dizer que socialismo e comunismo fracassaram ou sucumbiram? Na minha opinião, não, e vou explicar. Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal. Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso”.

Um dado curioso é que os defensores do Estado Mínimo, em geral adeptos do capitalismo, criticam os governos socialistas e comunistas por nutrirem um Estado Forte que intervém constantemente na economia, na política e nas corporações. Todavia, quando em 2009 a economia americana entra em colapso (mais uma vez), é nas portas desse mesmo Estado que os banqueiros americanos vêm bater pedindo socorro. O que quer dizer mais ou menos o seguinte: “Nós, que fazemos parte da elite dos 1% que detém a metade pizza estamos tendo problemas em administrar nossa metade e estamos temerosos em perde-la por completo, sendo assim, precisamos da ajuda do governo para que possam usar da sua parte da pizza, a que serve para socorrer os que tem pouca pizza ou pizza alguma, para nos reerguermos.” É quando os ideais comunistas e socialistas servem, desta vez, para socializar o prejuízo, já que o lucro é sempre privatizado.

Socialismo e comunismo abrigam uma sociedade ideal?

Já ficou claro que capitalismo, comunismo ou socialismo são modos de organização econômica, são maneiras diferentes de pensar a divisão da pizza, sendo que, todos eles podem florescer em diferentes formas de governos, mais ou menos democráticos, mais ou menos corruptos, mais ou menos agressivos, mais ou menos estúpidos, mais ou menos sanguinários e mais ou menos paranoicos. Não existe um ideal de sociedade. Capitalismo, socialismo e comunismo podem abrigar virtudes e mazelas.

Por outro lado, sempre haverá uma tensão intransponível entre o individual e o coletivo, entre o privado e o público, entre o singular e o universal. Freud afirmava que a civilização só foi possível porque o ser humano foi capaz de abrir mão da satisfação de suas pulsões egoístas em nome da coletividade. Todavia, sabemos que essa renuncia não se dá sem angústias e tensões. Digamos então que os ideais socialistas e comunistas nos auxiliam a pensar o mundo para além do nosso próprio umbigo. Investem na constante construção de um mundo onde os interesses individuais precisam ser considerados, entretanto jamais poderão ser maiores ou mais importantes que os interesses da coletividade.

Eu não acredito numa sociedade ideal, num sistema de governo ideal, num sistema econômico ideal. No entanto, eu não posso viver num mundo onde 85 pessoas tenham mais importância do que 3, 5 bilhões, sobretudo se eu sei que muitos desses últimos não vivem, apenas sobrevivem, quando sobrevivem. E é por isso, que eu me recuso terminantemente a abandonar os ideais socialistas e comunistas, pois são essas bandeiras que me permitem ter esperança. Se eu não puder ao menos me envergonhar e me indignar por tanta injustiça e desigualdade e acreditar que temos rotas de fuga possíveis em direção a um outro mundo, duvido que conseguisse levantar da cama todos os dias pela manhã.




quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Vai Ter Copa X Não Vai Ter Copa

Por Rita Almeida

Acho legítimas as manifestações contrárias a Copa do Mundo no Brasil. É natural que existam pessoas e organizações que não concordem que devamos sediar um evento desportivo deste porte. E, acredito eu, todos os países democráticos que já sediaram Copas do Mundo tiveram manifestações contrárias semelhantes. Numa “googlada” rápida, encontrei notícias de manifestações pelo menos nos dois últimos países sede: Alemanha (2006) e África do Sul (2010). Na Alemanha, inclusive, as manifestações foram duramente coibidas pelo governo porque tinham cunho neonazista, com palavras de ordem racistas e xenófobas contra os visitantes.

Para citar outro fato histórico similar, Nelson Mandela sofreu críticas e sanções até mesmo de aliados, quando propôs que a África do Sul sediasse a Copa do Mundo de Rúgbi, em 1995. Um esporte considerado de brancos, um símbolo do Apartheid que a África do Sul ainda tentava superar após a eleição de Mandela, em 1994. (O filme Invictus (2009) é imperdível pra quem quiser conhecer um pouco mais essa história).

O que quero dizer é que não podemos esperar unanimidade quando eventos desse porte entram na pauta de um país: haverá críticas, descontentamento, manifestações, nada de extraordinário, nada a se temer. O que me preocupa é quando as manifestações ou discursos contra a Copa nos parecem menos uma crítica e mais um desejo de ela que não se realize, seja lá a que preço for. Ouço gente por aí que secretamente ou declaradamente torce, no mínimo, pela implosão do Maracanã. No meu dicionário, gente desse tipo não quer manifestar para criticar ou provocar mudanças, quer apenas ter razão, quer que a carnificina aconteça pra depois se refestelar com os cadáveres. Isso me horroriza!

Mas na minha modesta e completamente tendenciosa opinião (posto que sou uma apaixonada por esportes e mais ainda por futebol) acredito que “Vai Ter Copa”, ou pelo menos, eu gostaria muito que tivesse. E não apenas porque amo futebol, mas também porque acredito piamente que quaisquer eventos nacionais ou internacionais, sejam eles desportivos, culturais, musicais, artísticos, científicos ou políticos, podem ser terreno propício para construir laços, laços entre nós e de nós com os outros e com o mundo. Os esportes, as artes, a política, aproximam, criam novas formas de linguagem, de afeto e de contato humano, que entendo como fundamentais, especialmente no mundo de hoje.

Eu, sinceramente, não estou interessada no quanto de retorno financeiro a Copa pode trazer, meu interesse é pelo retorno humano, pelo movimento novo que será criado, pela potência da presença de outras pessoas, outras línguas, outras culturas. Quero que a diferença e a diversidade de outros povos e culturas invadam nosso espaço para que por alguns dias o Brasil contenha em si o mundo todo. Quero que a Copa seja um acontecimento, e que como todo acontecimento, seja rico de sentidos e significados. Só lamento que o evento não seja tão democrático quanto eu gostaria que fosse, dado o valor dos ingressos e o custo das viagens, mas ainda sim me simpatizo muito com essas invasões pacíficas. Acredito sinceramente que se tivéssemos mais eventos deste porte transitando pelo mundo, teríamos muito menos guerras e invasões violentas.

Mas preciso esclarecer que, quando digo que defendo a Copa no Brasil, não quero dizer que concordo com os abusos que possam ou que supostamente estejam sendo feitos em nome dela. Não concordo com obras superfaturadas, com corrupção, com distorções nos gastos públicos, e, aliás, eu não concordo com isso em nenhuma outra situação. Nem com Copa e nem sem Copa.

Também faço minhas críticas à FIFA. Acredito que um outro mundo é possível inclusive no futebol. Persigo a utopia do saudoso Sócrates com sua Democracia Corintiana, que ele sonhava como modelo de gestão para todo o futebol, combatendo os cartolas nacionais e internacionais. Ou seja, desejar que meu país sedie uma Copa do Mundo não me impede de olhar criticamente para as nossas mazelas ou as do futebol.

E eu quero também um país sem fome, com saúde e educação de qualidade, quero que segurança pública seja um direito de todos e não privilégio de alguns, quero um país mais justo, menos desigual, mas também quero esporte, lazer, cultura. Afinal “a gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé” e me permitam, a gente quer futebol também.

Outra justificativa muito comum para os adeptos do, nesse caso, “Não Deveria Ter Copa” é a que afirma que não temos estrutura para tal. Nessa falta de estrutura incluem os problemas do nosso trânsito, da nossa rede de hotéis e restaurantes ou dos próprios locais que sediarão os eventos. Tudo bem, eu concordo. Quando recebemos visitas em nossa casa temos que melhorar ao máximo a estrutura para recebê-las, mas isso não implica mudar para uma outra casa ou deixar de ser o que somos. Sou frequentadora assídua dos debates nos canais esportivos e me dá náuseas quando alguns comentaristas sugerem que o despreparo do Brasil em sediar uma Copa é resultante, por exemplo, da falta de educação ou de cultura dos torcedores brasileiros, em última análise, do nosso povo. É como se precisássemos primeiro nos transformar numa Inglaterra habitada por alemães, para podermos, então, ser dignos de sediar uma Copa de Mundo. Isso pra mim é xenofobia, não tem outro nome.

Então, é o seguinte: A Copa do Mundo de Futebol de 2014 será no Brasil e num Brasil cheinho de brasileiros. Não nos transformaremos de uma hora pra outra num outro país e nem muito menos deixaremos de ser como somos. Receberemos nossos visitantes com nossas virtudes e vícios, foi assim e assim será em todas as Copas. Mas a pergunta é: podemos melhorar enquanto país e enquanto povo por causa da Copa? Na minha opinião, sim. É claro que sim!

O que eu espero é que a presença do outro em nossa casa possa promover em nós questionamentos como povo, nação e cultura. Espero que os olhares do mundo em nossa direção, realce nossas mazelas e dificuldades e nos provoque incômodo e vergonha suficientes para exigirmos mudanças, antes, durante e mesmo depois do fim do evento. Como acontece com aquela teia de aranha que está postada no canto da parede da nossa sala há meses e a gente só repara e se apressa em limpar quando a visita chega. A presença do outro sempre nos causa um movimento interessante, especialmente quando ao invés de estranhar o outro, estranhamos a nós mesmos. É fato que só somos capazes de nos enxergar na diferença.

A Copa e outros eventos internacionais devem ser vistas, a meu ver, como um acontecimento. E um acontecimento é uma oportunidade singular, cheia de potência e vitalidade de laços, encontros, diversidades e movimentos. A Copa poderá nos deixar muitas riquezas, muito mais necessárias e interessantes do que prováveis riquezas econômicas. E apesar de amar o futebol e torcer muito pela nossa seleção, torço mais pelo acontecimento do que pelo hexacampeonato. Sem esquecer que o acontecimento pode implicar em manifestações contrárias a ele. Sejamos serenos quanto a isso.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A estupidez da guerra às drogas “level” 450 kg. Porque estamos em guerra contra Luciano?

Assim como a maioria dos moradores dos milhares de bairros ou comunidades pobres espalhados pelas grandes e médias cidades do Brasil, eu sempre convivi com o comércio de drogas ilegais, seja na porta da minha casa, na esquina da minha rua, na rua de cima ou na rua de baixo.

Com cerca de 8 ou 9 anos, eu já sabia quem era o “traficante” do nosso bairro, aliás, todas as crianças da minha rede de amigos da rua sabiam. No meu tempo de criança, brincar na rua era uma regra sem exceção para meninas e meninos de bairros semelhantes ao meu, por isso, assistíamos diariamente e cotidianamente o movimento das drogas. Víamos quem chegava e quem saía, quem buscava e quem levava. Alguns chegavam em carrões que não costumávamos ver por ali em outras ocasiões. Carrões para os quais tínhamos que dar passagem, afastando nossas traves de gol ou nossas bandeiras de pique bandeira, o que nos aborrecia muito, aliás. Apenas por duas vezes, quando criança, me lembro da polícia invadir o local e fazer alguma intervenção, mas na grande parte do tempo tudo parecia correr na mais profunda paz.

Ainda hoje moro no mesmo bairro e da minha infância pra cá muitas coisas mudaram. As crianças brincam menos na rua, os pontos de comércio de drogas se multiplicaram e a escalada da violência alcançou níveis nunca vistos. Só este ano, que eu me lembro, foram pelo menos 5 assassinatos no entorno da minha casa, todos eles ligados ao comércio de drogas. Outra mudança que observo é o surgimento de um novo personagem nesse movimento. Eles sobem e descem o morro inúmeras vezes ao dia. São usuários, mas também participantes ativos do comércio, muito provavelmente levam e trazem o produto em troca de alguma droga para sustentar o próprio vício. Todos por aqui os chamam de “craqueiros”. Os reconhecemos pela magreza, pelo andar acelerado e pela pouca higiene corporal. Mendigam dinheiro no sinal, nos estacionamentos, pedem comida e lanches nas portas das padarias e lanchonetes e dormem nas calçadas, debaixo das marquises.

Há cerca de quatro anos mais ou menos estabeleci uma relação de proximidade com um desses personagens, conhecido como “Neguinho”. Depois de conversarmos algumas vezes, perguntei o seu nome e ele me disse que era Luciano (para preservar a identidade do nosso personagem, este nome é fictício). Luciano deve ter entre 25 e 30 anos, é usuário de drogas e dado o seu apelido não preciso dizer sua cor. Sobe e desce o morro pelo menos uma dezena de vezes por dia. Pede dinheiro no sinal, nos estacionamentos e aos transeuntes ou moradores do bairro. Ultimamente andava dormindo debaixo da marquise de uma das padarias mais tradicionais do bairro, mas já dormiu numa casa abandonada (onde, certa vez, quase morreu queimado) e debaixo da carroceria de uma carreta enguiçada.

Minha proximidade com Luciano se deu mais por mérito dele do que meu. Ele sempre foi muito educado comigo, me dando bom dia, boa tarde ou boa noite quando que me encontrava, cumprimento que eu também passei a retribuir com o mesmo respeito que ele me dirigia. Diante da sua educação e simpatia, não pude evitar as conversas mais longas. Luciano conheceu meus filhos e meu marido, por isso, passou a cumprimentá-los também e sempre pergunta por eles quando me vê sozinha.

Antes de prosseguir com o texto, preciso abrir um parêntese para relatar uma coisa muito importante que aprendi com Luciano. Anteriormente, minha única questão para com os que me abordavam pedindo esmola, era se eu iria lhes dar dinheiro ou não. E o pior é que sempre me sentia desconfortável em quaisquer das opções que escolhesse. Me sentia mal quando dava esmola e também quando não dava. Luciano me ajudou a resolver definitivamente essa questão. Hoje sei que não importa se eu dou ou não dou a esmola que me pedem, o que faz diferença é o que eu estou disposta a oferecer, ou receber, para além do dinheiro, que dou ou não. Depois de Luciano, minha relação com os moradores de rua, ou os que me pedem dinheiro, mudou profundamente. Às vezes dou dinheiro, às vezes não dou, mas agora, sempre olho no olho, sorrio, cumprimento, pergunto alguma coisa e me coloco aberta a uma conversa. Aprendi isso com Luciano, que nem sempre me aborda pedindo alguma coisa, mas sempre está disposto a me desejar bom dia e me atualizar dos últimos acontecimentos do nosso território. Luciano me ensinou que os moradores de rua e afins, também precisam e merecem muito mais do que só dinheiro ou comida, merecem ser vistos como pessoas que são. Fecho o parêntese.

Sabendo que meus filhos adolescentes transitam pelo bairro à noite, Luciano sempre me tranquiliza dizendo que está cuidando deles pra mim quando chegam tarde. Ele me diz: - Pode deixar que eu fico de olho nos seus moleques, ninguém mexe com eles, eu estou sempre por aqui. O que me comove nessa promessa tão carinhosa de Luciano é a sua ingenuidade, pois eu sei que ninguém corre mais risco do que ele, especialmente nas noites violentas e incertas do meu bairro. Meus filhos são brancos, bem aparentados e usam “roupa da moda”. Numa confusão qualquer, num arrocho da polícia ou qualquer outro mal-entendido, provavelmente vão se safar. Vão poder se esconder no primeiro comércio ou portão que virem aberto sem serem acusados de marginais, terão a oportunidade de ligar para mim ou outro familiar e direito a uma abordagem amena da polícia, ou seja, lhes será garantida uma proteção que eu sei, nós sabemos, que Luciano não terá. Meu coração aperta diante da promessa de Luciano, porque eu sei que é sincera, e me dói saber que, eu, nós, nossa sociedade, não pode lhe garantir essa mesma proteção que ele gentilmente oferece aos meus filhos. Pobre, negro, craqueiro, morador de rua; sobram nele adjetivos e atributos para ser alvo fácil e frágil da violência, especialmente aquela alimentada pela estúpida e cruel política de “guerra às drogas”.

Mas essa “guerra às drogas”, pelo que estamos vendo nas últimas semanas, além de estúpida é também seletiva. Estamos em guerra contra os muito Lucianos que existem por aí, e no máximo, entramos em guerra contra o ”Zezão”, o “Pezão” ou o “Cachorrão”; “os “traficantes” dos bairros ou de comunidades pobres. Metaforizando, a guerra às drogas se limita a eliminar civis e soldados rasos que, sabemos, não produzem armas e nem munição, recebem isso de outrem. E se o tráfico de verdade é internacional, metaforizando de novo, ele só acontece com a participação das grandes corporações, com a complacência e intervenção de membros de alta patente: generais e coronéis. Então eu me pergunto: se vamos continuar com essa guerra estúpida, porque pelo menos não fazemos isso de forma mais inteligente intervindo com os generais, coronéis e grandes corporações, ou seja, com os que fornecem a arma e a munição?

Encontrar com Luciano passou a ser uma rotina nesses últimos 4 anos, tanto que passei a esperar por isso em determinados horários e locais e a sentir falta quando não o via. E já aconteceu como agora, de Luciano sumir por vários meses. A primeira vez que ele sumiu, imaginei que tivesse morto ou preso. Quando o vi de novo, depois de vários meses, perguntei por onde ele andava e ele me respondeu ironicamente: - Estava viajando, de férias. Depois riu da minha cara desconcertada e admitiu que estava “cumprindo cadeia”. Luciano anda sumido nos últimos meses, como não soube de sua morte, imagino que esteja preso novamente e muito provavelmente pelo mesmo motivo anterior: “tráfico de drogas”.

Nos últimos dias soubemos da interceptação de um helicóptero com carregamento de 450 kg pasta base de cocaína. Nesse caso, nenhuma corporação foi acusada, nenhum general ou nenhum coronel foi preso ou interrogado de verdade. Quem está preso é apenas o piloto do avião, outro soldado raso. Luciano, possivelmente está preso outra vez e seu crime deve ter sido carregar algumas gramas de cocaína, algumas pedras de crack ou alguns cigarros de "baseado". Ou seja, algo em quantidade suficiente para fazê-lo perder a condição de usuário (nesse caso não seria preso), mas nada que pudesse ser comparado a um helicóptero com 450kg de matéria prima capaz de fabricar 1 tonelada e meia de cocaína refinada. Temo que o destino do meu amigo seja uma sequencia de prisões, até que morra em combate, vítima dessa guerra que ele não criou e nem alimenta, mas que precisa dele como “bode expiatório”, como “boi de piranha”. Ao contrário do helicóptero abarrotado de munição para o tráfico que apareceu timidamente nos noticiários, é Luciano quem vai aparecer com notoriedade na capa jornal e no noticiário da TV, para ficarmos aliviados e dormirmos mais tranquilos quando anunciarem que ele foi preso ou morto em alguma esquina. Nessa hora seu apelido, “Neguinho”, ficará muito bem nas letras garrafais da manchete ou na voz incisiva do âncora do telejornal. ”Zezão”, “Pezão” e “Cachorrão” também são garantia de audiência.

Vale reforçar que é muito provável que Luciano não morra em consequência do uso de drogas, como se propagandeia por aí, mas sim, pela violência da guerra contra as drogas. Mas, como já disse, numa guerra seletiva, que só é feita nas ruas, de preferencia onde gente pobre mora, raramente nos helicópteros, nos aviões e navios e nunca contra os comandantes de alta patente.

Curiosamente, o comércio ilegal de drogas, que gera milhões e milhões de lucros para generais, coronéis e suas corporações, precisa do “Neguinho” e do “Zezão”. Mas esses personagens são totalmente descartáveis. Eles morrem aos punhados ou cumprem cadeia repetidamente, entretanto, haverá sempre um exército de reserva para cobrir o posto que ficou vago. E ainda tem gente pensando em mudar a legislação e agregar mais estupidez a essa barbárie, criminalizando o porte de qualquer quantidade de droga ilícita, inclusive para consumo! Quanta hipocrisia!

Agora, imaginem, apenas imaginem: e se a nossa política de drogas legislasse com o objetivo de parar de gastar tempo e dinheiro para fazer guerra contra o “Neguinho” e o “Zezão”? Ao invés disso, poderia concentrar esforços e recursos para reduzir a munição que chega até o “Pezão” e oferecer políticas sociais e de tratamento para “Neguinho”. Isso não seria mais inteligente e eficaz?

A política de guerra às drogas não está funcionando. Meu bairro é a prova viva disso. Passaram-se 35 anos desde a minha infância e nós continuamos sabendo quem são os traficantes da região, a droga continua sendo comercializada e a única coisa que a repressão tem produzido é um aumento galopante na escalada da violência. Por isso, se ainda sim vamos manter essa guerra estúpida, que pelo menos façamos guerra nos lugares e com as pessoas que realmente a alimentam e sustentam. Minha sugestão, pra começar, é que se investigue, descubra e prenda o traficante (sem aspas) da meia tonelada de cocaína apreendida do helicóptero dos Perella com combustível pago pela Assembleia Mineira e deixem meu amigo Luciano em paz.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Sobre o rei do camarote: ou sobre o narcisismo de nossos tempos

Por Rita de Cássia A Almeida
psicanalista

(para ler esse texto é necessário antes assistir o vídeo: Os dez mandamentos do rei do camarote)

Na última semana, a mídia e as redes sociais, se dedicaram a noticiar o chamado “rei do camarote” com seus bizarros 10 mandamentos. Alguns saíram em sua defesa, outros o satanizaram, mas grande maioria o transformou em alvo de piada e chacota. Se alguém ainda não tinha entendido o que significa ser trollado nas redes sociais, com certeza, agora já sabe. Acho até que Alexander Almeida, o tal rei do camarote, deve ter se tornado também, o rei da trollagem.

Minha primeira sensação ao ver o vídeo foi de indignação: como alguém pode afirmar que gasta “de R$ 50.000,00 ao infinito” numa noitada, quando tantas pessoas no mundo não chegarão a ter essa quantia nem numa vida inteira? E não venham me dizer que o dinheiro é dele e que, por isso, pode gastá-lo como quiser. Para usar apenas de um racionalismo matemático básico, a minha opinião é a de que se alguém tem o suficiente para esbanjar em “bebida que pisca” é porque outros estão sendo privados de uma vida razoavelmente confortável.

Mas esse meu texto não tratará de fazer uma crítica ao modelo capitalista, apesar de fazê-la sempre que posso, trata, na verdade, de explorar minha segunda sensação ao ver o vídeo: a de que estava assistindo a uma caricatura dos homens e mulheres que se multiplicam nesse nosso século. Um amigo me disse que o vídeo lhe pareceu um documentário do Discovery Chanel, daqueles que mostram as estranhezas e peculiaridades de culturas e tribos estranhas e distantes. Concordo. Depois de assistir algumas vezes o vídeo, fiquei pensando que se um alienígena ou algum membro de uma cultura muito diversa da nossa quisesse entender o tipo de pessoa que nos tornamos, valorizamos ou desejamos ser, “o rei do camarote” cumpriria muito bem a função de nos explicar. Obviamente que Alexander é uma versão exagerada e caricata, tão caricata que alcançou, com sucesso, a comicidade.

Entretanto sabemos desde Freud que o chiste, o cômico, é uma das formas que encontramos para lidar com aquilo que nos causa mal-estar. Na fissura da linguagem que não dá conta de representar tudo, irrompe a piada. E Alexander é uma excelente piada. Mas, para a psicanálise, toda piada carrega também, muitas verdades veladas, ou seja, o cômico é somente uma versão do trágico. E é assim que Alexander, num determinado momento, perde a graça e começa a ser alvo de nossa piedade, torna-se um retrato vivo do ditado “seria cômico se não fosse trágico”.

E a tragédia de Alexander é a mesma de Narciso. Narciso é um personagem da mitologia que apaixonado por si mesmo, se desliga do mundo real e acaba por se afogar, absorto e deslumbrado que está com sua própria imagem refletida no lago.

Nessa nossa cultura do individualismo competitivo, do imediatismo e do desejo desenfreado pela felicidade em forma de gozo, a eliminação do outro tem se tornado um caminho comum. No mundo de Narciso, o outro só serve para lhe “agregar valor” ou para “sentir inveja”, ou seja, em ambos os casos sua posição narcisista se mantém. E a tragédia de Narciso é que sua busca de sucesso, reconhecimento e aprovação do outro, apenas para manter-se enamorado de si, o leva paradoxalmente a intensificar o isolamento do eu. Ou seja, no final das contas, Narciso é um deprimido solitário, que afogado em si mesmo, desistiu de investir em laços reais com os outros e com o mundo.

Sendo assim, a tragédia pessoal de Alexander é também a tragédia de nossa época. Sem os exageros do rei do camarote, certamente inflados pelas suas posses econômicas, multiplicam-se os sujeitos que só enxergam o mundo através do seu próprio umbigo, que só percebem o outro como alimento para seu ego. O núcleo da nossa sociedade narcisista é, sobretudo, a necessidade das imagens. Não importa ser ou ter, se isso não se torna visível para os outros, e esse é claramente o objetivo do vídeo produzido por Alexander. O sujeito que emerge da cultura do narcisismo é aquele que depende dos outros para validar sua precária autoestima, ele precisa de plateia e admiração, sem isso, cresce sua insegurança e seu vazio, que, invariavelmente, irrompe em forma de depressão. Ou seja, não é por acaso que a depressão se tornou um mal do nosso século.

E por fim nos chama a atenção a ingenuidade e a infantilidade de Alexander, desconsiderando quão despropositada e desvinculada da realidade ficaria sua performance. Resta constatarmos que somente um sujeito mergulhado num delírio de encantamento consigo mesmo, seria capaz de se expor a tamanho ridículo. Um ridículo que o levou, afinal, a uma espécie de morte virtual e social. Sim, assistimos a um documentário a cores e com trilha sonora, de Narciso mergulhando para dentro do lago. Deslumbrado consigo mesmo, não conseguiu ver o que estava à sua volta. Se ele conseguir emergir, tomara que tenha aprendido a lição... Tomara que todos nós tenhamos aprendido a lição.