quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A estupidez da guerra às drogas “level” 450 kg. Porque estamos em guerra contra Luciano?

Assim como a maioria dos moradores dos milhares de bairros ou comunidades pobres espalhados pelas grandes e médias cidades do Brasil, eu sempre convivi com o comércio de drogas ilegais, seja na porta da minha casa, na esquina da minha rua, na rua de cima ou na rua de baixo.

Com cerca de 8 ou 9 anos, eu já sabia quem era o “traficante” do nosso bairro, aliás, todas as crianças da minha rede de amigos da rua sabiam. No meu tempo de criança, brincar na rua era uma regra sem exceção para meninas e meninos de bairros semelhantes ao meu, por isso, assistíamos diariamente e cotidianamente o movimento das drogas. Víamos quem chegava e quem saía, quem buscava e quem levava. Alguns chegavam em carrões que não costumávamos ver por ali em outras ocasiões. Carrões para os quais tínhamos que dar passagem, afastando nossas traves de gol ou nossas bandeiras de pique bandeira, o que nos aborrecia muito, aliás. Apenas por duas vezes, quando criança, me lembro da polícia invadir o local e fazer alguma intervenção, mas na grande parte do tempo tudo parecia correr na mais profunda paz.

Ainda hoje moro no mesmo bairro e da minha infância pra cá muitas coisas mudaram. As crianças brincam menos na rua, os pontos de comércio de drogas se multiplicaram e a escalada da violência alcançou níveis nunca vistos. Só este ano, que eu me lembro, foram pelo menos 5 assassinatos no entorno da minha casa, todos eles ligados ao comércio de drogas. Outra mudança que observo é o surgimento de um novo personagem nesse movimento. Eles sobem e descem o morro inúmeras vezes ao dia. São usuários, mas também participantes ativos do comércio, muito provavelmente levam e trazem o produto em troca de alguma droga para sustentar o próprio vício. Todos por aqui os chamam de “craqueiros”. Os reconhecemos pela magreza, pelo andar acelerado e pela pouca higiene corporal. Mendigam dinheiro no sinal, nos estacionamentos, pedem comida e lanches nas portas das padarias e lanchonetes e dormem nas calçadas, debaixo das marquises.

Há cerca de quatro anos mais ou menos estabeleci uma relação de proximidade com um desses personagens, conhecido como “Neguinho”. Depois de conversarmos algumas vezes, perguntei o seu nome e ele me disse que era Luciano (para preservar a identidade do nosso personagem, este nome é fictício). Luciano deve ter entre 25 e 30 anos, é usuário de drogas e dado o seu apelido não preciso dizer sua cor. Sobe e desce o morro pelo menos uma dezena de vezes por dia. Pede dinheiro no sinal, nos estacionamentos e aos transeuntes ou moradores do bairro. Ultimamente andava dormindo debaixo da marquise de uma das padarias mais tradicionais do bairro, mas já dormiu numa casa abandonada (onde, certa vez, quase morreu queimado) e debaixo da carroceria de uma carreta enguiçada.

Minha proximidade com Luciano se deu mais por mérito dele do que meu. Ele sempre foi muito educado comigo, me dando bom dia, boa tarde ou boa noite quando que me encontrava, cumprimento que eu também passei a retribuir com o mesmo respeito que ele me dirigia. Diante da sua educação e simpatia, não pude evitar as conversas mais longas. Luciano conheceu meus filhos e meu marido, por isso, passou a cumprimentá-los também e sempre pergunta por eles quando me vê sozinha.

Antes de prosseguir com o texto, preciso abrir um parêntese para relatar uma coisa muito importante que aprendi com Luciano. Anteriormente, minha única questão para com os que me abordavam pedindo esmola, era se eu iria lhes dar dinheiro ou não. E o pior é que sempre me sentia desconfortável em quaisquer das opções que escolhesse. Me sentia mal quando dava esmola e também quando não dava. Luciano me ajudou a resolver definitivamente essa questão. Hoje sei que não importa se eu dou ou não dou a esmola que me pedem, o que faz diferença é o que eu estou disposta a oferecer, ou receber, para além do dinheiro, que dou ou não. Depois de Luciano, minha relação com os moradores de rua, ou os que me pedem dinheiro, mudou profundamente. Às vezes dou dinheiro, às vezes não dou, mas agora, sempre olho no olho, sorrio, cumprimento, pergunto alguma coisa e me coloco aberta a uma conversa. Aprendi isso com Luciano, que nem sempre me aborda pedindo alguma coisa, mas sempre está disposto a me desejar bom dia e me atualizar dos últimos acontecimentos do nosso território. Luciano me ensinou que os moradores de rua e afins, também precisam e merecem muito mais do que só dinheiro ou comida, merecem ser vistos como pessoas que são. Fecho o parêntese.

Sabendo que meus filhos adolescentes transitam pelo bairro à noite, Luciano sempre me tranquiliza dizendo que está cuidando deles pra mim quando chegam tarde. Ele me diz: - Pode deixar que eu fico de olho nos seus moleques, ninguém mexe com eles, eu estou sempre por aqui. O que me comove nessa promessa tão carinhosa de Luciano é a sua ingenuidade, pois eu sei que ninguém corre mais risco do que ele, especialmente nas noites violentas e incertas do meu bairro. Meus filhos são brancos, bem aparentados e usam “roupa da moda”. Numa confusão qualquer, num arrocho da polícia ou qualquer outro mal-entendido, provavelmente vão se safar. Vão poder se esconder no primeiro comércio ou portão que virem aberto sem serem acusados de marginais, terão a oportunidade de ligar para mim ou outro familiar e direito a uma abordagem amena da polícia, ou seja, lhes será garantida uma proteção que eu sei, nós sabemos, que Luciano não terá. Meu coração aperta diante da promessa de Luciano, porque eu sei que é sincera, e me dói saber que, eu, nós, nossa sociedade, não pode lhe garantir essa mesma proteção que ele gentilmente oferece aos meus filhos. Pobre, negro, craqueiro, morador de rua; sobram nele adjetivos e atributos para ser alvo fácil e frágil da violência, especialmente aquela alimentada pela estúpida e cruel política de “guerra às drogas”.

Mas essa “guerra às drogas”, pelo que estamos vendo nas últimas semanas, além de estúpida é também seletiva. Estamos em guerra contra os muito Lucianos que existem por aí, e no máximo, entramos em guerra contra o ”Zezão”, o “Pezão” ou o “Cachorrão”; “os “traficantes” dos bairros ou de comunidades pobres. Metaforizando, a guerra às drogas se limita a eliminar civis e soldados rasos que, sabemos, não produzem armas e nem munição, recebem isso de outrem. E se o tráfico de verdade é internacional, metaforizando de novo, ele só acontece com a participação das grandes corporações, com a complacência e intervenção de membros de alta patente: generais e coronéis. Então eu me pergunto: se vamos continuar com essa guerra estúpida, porque pelo menos não fazemos isso de forma mais inteligente intervindo com os generais, coronéis e grandes corporações, ou seja, com os que fornecem a arma e a munição?

Encontrar com Luciano passou a ser uma rotina nesses últimos 4 anos, tanto que passei a esperar por isso em determinados horários e locais e a sentir falta quando não o via. E já aconteceu como agora, de Luciano sumir por vários meses. A primeira vez que ele sumiu, imaginei que tivesse morto ou preso. Quando o vi de novo, depois de vários meses, perguntei por onde ele andava e ele me respondeu ironicamente: - Estava viajando, de férias. Depois riu da minha cara desconcertada e admitiu que estava “cumprindo cadeia”. Luciano anda sumido nos últimos meses, como não soube de sua morte, imagino que esteja preso novamente e muito provavelmente pelo mesmo motivo anterior: “tráfico de drogas”.

Nos últimos dias soubemos da interceptação de um helicóptero com carregamento de 450 kg pasta base de cocaína. Nesse caso, nenhuma corporação foi acusada, nenhum general ou nenhum coronel foi preso ou interrogado de verdade. Quem está preso é apenas o piloto do avião, outro soldado raso. Luciano, possivelmente está preso outra vez e seu crime deve ter sido carregar algumas gramas de cocaína, algumas pedras de crack ou alguns cigarros de "baseado". Ou seja, algo em quantidade suficiente para fazê-lo perder a condição de usuário (nesse caso não seria preso), mas nada que pudesse ser comparado a um helicóptero com 450kg de matéria prima capaz de fabricar 1 tonelada e meia de cocaína refinada. Temo que o destino do meu amigo seja uma sequencia de prisões, até que morra em combate, vítima dessa guerra que ele não criou e nem alimenta, mas que precisa dele como “bode expiatório”, como “boi de piranha”. Ao contrário do helicóptero abarrotado de munição para o tráfico que apareceu timidamente nos noticiários, é Luciano quem vai aparecer com notoriedade na capa jornal e no noticiário da TV, para ficarmos aliviados e dormirmos mais tranquilos quando anunciarem que ele foi preso ou morto em alguma esquina. Nessa hora seu apelido, “Neguinho”, ficará muito bem nas letras garrafais da manchete ou na voz incisiva do âncora do telejornal. ”Zezão”, “Pezão” e “Cachorrão” também são garantia de audiência.

Vale reforçar que é muito provável que Luciano não morra em consequência do uso de drogas, como se propagandeia por aí, mas sim, pela violência da guerra contra as drogas. Mas, como já disse, numa guerra seletiva, que só é feita nas ruas, de preferencia onde gente pobre mora, raramente nos helicópteros, nos aviões e navios e nunca contra os comandantes de alta patente.

Curiosamente, o comércio ilegal de drogas, que gera milhões e milhões de lucros para generais, coronéis e suas corporações, precisa do “Neguinho” e do “Zezão”. Mas esses personagens são totalmente descartáveis. Eles morrem aos punhados ou cumprem cadeia repetidamente, entretanto, haverá sempre um exército de reserva para cobrir o posto que ficou vago. E ainda tem gente pensando em mudar a legislação e agregar mais estupidez a essa barbárie, criminalizando o porte de qualquer quantidade de droga ilícita, inclusive para consumo! Quanta hipocrisia!

Agora, imaginem, apenas imaginem: e se a nossa política de drogas legislasse com o objetivo de parar de gastar tempo e dinheiro para fazer guerra contra o “Neguinho” e o “Zezão”? Ao invés disso, poderia concentrar esforços e recursos para reduzir a munição que chega até o “Pezão” e oferecer políticas sociais e de tratamento para “Neguinho”. Isso não seria mais inteligente e eficaz?

A política de guerra às drogas não está funcionando. Meu bairro é a prova viva disso. Passaram-se 35 anos desde a minha infância e nós continuamos sabendo quem são os traficantes da região, a droga continua sendo comercializada e a única coisa que a repressão tem produzido é um aumento galopante na escalada da violência. Por isso, se ainda sim vamos manter essa guerra estúpida, que pelo menos façamos guerra nos lugares e com as pessoas que realmente a alimentam e sustentam. Minha sugestão, pra começar, é que se investigue, descubra e prenda o traficante (sem aspas) da meia tonelada de cocaína apreendida do helicóptero dos Perella com combustível pago pela Assembleia Mineira e deixem meu amigo Luciano em paz.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Sobre o rei do camarote: ou sobre o narcisismo de nossos tempos

Por Rita de Cássia A Almeida
psicanalista

(para ler esse texto é necessário antes assistir o vídeo: Os dez mandamentos do rei do camarote)

Na última semana, a mídia e as redes sociais, se dedicaram a noticiar o chamado “rei do camarote” com seus bizarros 10 mandamentos. Alguns saíram em sua defesa, outros o satanizaram, mas grande maioria o transformou em alvo de piada e chacota. Se alguém ainda não tinha entendido o que significa ser trollado nas redes sociais, com certeza, agora já sabe. Acho até que Alexander Almeida, o tal rei do camarote, deve ter se tornado também, o rei da trollagem.

Minha primeira sensação ao ver o vídeo foi de indignação: como alguém pode afirmar que gasta “de R$ 50.000,00 ao infinito” numa noitada, quando tantas pessoas no mundo não chegarão a ter essa quantia nem numa vida inteira? E não venham me dizer que o dinheiro é dele e que, por isso, pode gastá-lo como quiser. Para usar apenas de um racionalismo matemático básico, a minha opinião é a de que se alguém tem o suficiente para esbanjar em “bebida que pisca” é porque outros estão sendo privados de uma vida razoavelmente confortável.

Mas esse meu texto não tratará de fazer uma crítica ao modelo capitalista, apesar de fazê-la sempre que posso, trata, na verdade, de explorar minha segunda sensação ao ver o vídeo: a de que estava assistindo a uma caricatura dos homens e mulheres que se multiplicam nesse nosso século. Um amigo me disse que o vídeo lhe pareceu um documentário do Discovery Chanel, daqueles que mostram as estranhezas e peculiaridades de culturas e tribos estranhas e distantes. Concordo. Depois de assistir algumas vezes o vídeo, fiquei pensando que se um alienígena ou algum membro de uma cultura muito diversa da nossa quisesse entender o tipo de pessoa que nos tornamos, valorizamos ou desejamos ser, “o rei do camarote” cumpriria muito bem a função de nos explicar. Obviamente que Alexander é uma versão exagerada e caricata, tão caricata que alcançou, com sucesso, a comicidade.

Entretanto sabemos desde Freud que o chiste, o cômico, é uma das formas que encontramos para lidar com aquilo que nos causa mal-estar. Na fissura da linguagem que não dá conta de representar tudo, irrompe a piada. E Alexander é uma excelente piada. Mas, para a psicanálise, toda piada carrega também, muitas verdades veladas, ou seja, o cômico é somente uma versão do trágico. E é assim que Alexander, num determinado momento, perde a graça e começa a ser alvo de nossa piedade, torna-se um retrato vivo do ditado “seria cômico se não fosse trágico”.

E a tragédia de Alexander é a mesma de Narciso. Narciso é um personagem da mitologia que apaixonado por si mesmo, se desliga do mundo real e acaba por se afogar, absorto e deslumbrado que está com sua própria imagem refletida no lago.

Nessa nossa cultura do individualismo competitivo, do imediatismo e do desejo desenfreado pela felicidade em forma de gozo, a eliminação do outro tem se tornado um caminho comum. No mundo de Narciso, o outro só serve para lhe “agregar valor” ou para “sentir inveja”, ou seja, em ambos os casos sua posição narcisista se mantém. E a tragédia de Narciso é que sua busca de sucesso, reconhecimento e aprovação do outro, apenas para manter-se enamorado de si, o leva paradoxalmente a intensificar o isolamento do eu. Ou seja, no final das contas, Narciso é um deprimido solitário, que afogado em si mesmo, desistiu de investir em laços reais com os outros e com o mundo.

Sendo assim, a tragédia pessoal de Alexander é também a tragédia de nossa época. Sem os exageros do rei do camarote, certamente inflados pelas suas posses econômicas, multiplicam-se os sujeitos que só enxergam o mundo através do seu próprio umbigo, que só percebem o outro como alimento para seu ego. O núcleo da nossa sociedade narcisista é, sobretudo, a necessidade das imagens. Não importa ser ou ter, se isso não se torna visível para os outros, e esse é claramente o objetivo do vídeo produzido por Alexander. O sujeito que emerge da cultura do narcisismo é aquele que depende dos outros para validar sua precária autoestima, ele precisa de plateia e admiração, sem isso, cresce sua insegurança e seu vazio, que, invariavelmente, irrompe em forma de depressão. Ou seja, não é por acaso que a depressão se tornou um mal do nosso século.

E por fim nos chama a atenção a ingenuidade e a infantilidade de Alexander, desconsiderando quão despropositada e desvinculada da realidade ficaria sua performance. Resta constatarmos que somente um sujeito mergulhado num delírio de encantamento consigo mesmo, seria capaz de se expor a tamanho ridículo. Um ridículo que o levou, afinal, a uma espécie de morte virtual e social. Sim, assistimos a um documentário a cores e com trilha sonora, de Narciso mergulhando para dentro do lago. Deslumbrado consigo mesmo, não conseguiu ver o que estava à sua volta. Se ele conseguir emergir, tomara que tenha aprendido a lição... Tomara que todos nós tenhamos aprendido a lição.

sábado, 28 de setembro de 2013

Democracia não é opinião pública ou sobre as implicações éticas de curtir e compartilhar nas redes sociais.

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista real e virtual


A palavra DEMOCRACIA anda um tanto quanto desgastada. E em tempo de redes sociais então, esse desgaste tem produzido uma confusão terrível; a confusão entre democracia e opinião pública. O perigo desse tipo de confusão é o processo de simplificação e empobrecimento do discurso democrático. Nas redes sociais todos sentem necessidade de se apropriarem de uma posição política que, em geral, se resume em ser contra ou a favor, criando um terreno fértil para a banalização do maniqueísmo. Sem espaço para discussão, o aprofundamento dos temas e o debate de ideias – tão fundamentais para o fortalecimento da democracia – a “manifestação democrática” nas redes se faz num clique: curtir e compartilhar.

Obviamente que, numa sociedade democrática, é esperado e louvável que as pessoas se manifestem e opinem, todavia, é preocupante quando percebemos que tais opiniões são, muitas vezes, exploradas pelas redes sociais de maneira tendenciosa, parcial e até com certa dose de má fé, com o objetivo claro e explícito de manipular e distorcer uma informação e influenciar a tomada de posição das pessoas.

A grande febre do feicebuque, por exemplo, são as postagens com uma foto e uma frase pequena, de fácil entendimento. São postagens que se multiplicam diariamente, minuto a minuto na linha do tempo virtual, com a função precípua de seduzir os navegantes virtuais e receberem um curtir e um compartilhar (quanto mais, melhor). Tais publicações não têm a menor intenção de levar o interlocutor a pensar, a pesquisar, compreender ou questionar o tema em questão e, muitas vezes, o induzem ao erro. Além disso, produzem e reforçam a ideia de que um mero curtir e compartilhar possam ser formas efetivas e contundentes de participação democrática, quando na verdade o que elas mais fazem é influenciar a opinião pública.

Vou citar um exemplo aqui, mas poderia enumerar centenas deles. Cito esse exemplo porque se trata de um tema presente na minha vida acadêmica e profissional, e sobre o qual acredito ter certa autoridade para defender uma posição, que é técnica e política.

Meses atrás, apareceram várias publicações no feicebuque nos alertando que o governo federal pretendia fechar as APAES. Algumas chegavam a acusar diretamente a presidenta Dilma ou seu partido pelo fim dessas associações. Uma dessas publicações, a que me chamou mais atenção, trazia a foto de uma criança portadora de síndrome de down com uma pergunta: Você quer que as crianças especiais fiquem sem educação e tratamento? Se sua resposta é NÃO, então curta e compartilhe, para que o Governo Federal não feche as APAES.

A postagem em questão foi baseada no temor relacionado ao relatório do senador José Pimentel (PT-CE) referente ao Plano Nacional da Educação (PLC 103/2012), aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos. Segundo o relatório, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou superdotação deve ser universalizado na rede regular de ensino. Sendo assim, a meta é que até 2018, a escolaridade de crianças especiais seja feita integralmente e obrigatoriamente no ensino regular, reforçando a diretriz de uma política de educação que seja inclusiva, ou seja, que garanta o direito de acesso de TODAS as crianças na escola regular, sem nenhuma distinção. Fala a favor dessa proposta a promoção de uma política de educação universal, não excludente, que respeite e acolha as diversidades dos alunos. Fala a favor dessa proposta a construção de uma diretriz pedagógica que trabalhe contra noções preconceituosas e equivocadas de que a criança especial seria apenas mais um peso ou problema para escola ou educadores, quando na verdade, poderia ser - se assim permitíssemos - uma oportunidade única e rica de humanizarmos nossas escolas, torna-las mais democráticas, acessíveis, sensíveis às diferenças e tolerantes com aquilo que diverge de nós ou que nos cause estranheza.

Sendo assim, essa diretriz política, retiraria de entidades como Apaes e Pestalozzis a necessidade de oferecer uma escolarização especial que substitua a educação regular, como pode ser feito hoje em dia. Além disso, como se sabe, Apaes e Pestalozzis não são instituições públicas, mas pelo fato de hoje substituírem a escola publica para muitas crianças, fazem jus o recebimento de recursos e repasses do governo, fundamentais para a sua manutenção e sobrevivência. Obviamente que, na medida em que a escola pública assume as crianças especiais, poderá também se desobrigar do envio de recursos públicos para essas associações. Mas ainda que a federação se esquive do repasse financeiro a essas instituições – o que ainda não está definido – e que isso signifique o enfraquecimento ou até a extinção das mesmas, não se pode dizer que o governo irá fechar Apaes e Pestallozzis, simplesmente pelo fato delas serem organizações da sociedade civil, não submetidas a uma intervenção da União.

Depois desses esclarecimentos, somos capazes de enxergar com alguma crítica a postagem que eu citei sobre as Apaes. Em primeiro lugar podemos analisar melhor a pergunta que é feita, e ela é feita para seduzir emocionalmente o interlocutor, afinal, quem em sã consciência será capaz de se colocar contrário ao atendimento e escolarização de crianças especiais? Todavia, em nenhum momento é dito que a proposta não é retirar o atendimento a essas crianças, mas sim, propor um outro tipo de atendimento; teoricamente mais inclusivo, menos excludente. A segunda indução ao erro é dizer que o governo tem como proposta fechar as Apaes, quando na verdade, ele não tem nenhuma ingerência para fazê-lo.

Isso não quer dizer que todas as pessoas que leram este meu texto devem, a partir de agora, concordar com a proposta inclusiva do Plano Nacional de Educação. Muitas podem defender que deva mesmo haver escolas especiais para crianças especiais, podem argumentar que as escolas regulares não têm condições de receber alunos diferentes, que os professores não têm preparo para este tipo de trabalho, que o governo deve continuar mantendo essas instituições, sob o risco de que elas sucumbam por falta de recursos, ou podem defender que tais instituições mereçam recurso público para que possam fazer um trabalho paralelo à escolarização regular. Todas essas argumentações, e outras, podem ser usadas em defesa das Apaes, mas é importante que elas sejam sustentadas por uma discussão que realmente enriqueça o debate sobre o tema e não no parco resultado de uma curtida no feicebuque.

Por meio dessas postagens toscas e de fácil manipulação, associou-se a famosa PEC 37 à impunidade dos nossos políticos. Se manifestar contra a PEC 37 virou sinônimo de acabar com a corrupção, mesmo quando a própria OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) denunciava o falso debate sobre tal proposta, fazendo, inclusive, a defesa da mesma. PEC que, no final, diante da pressão das ruas, foi derrotada. Mais recentemente os tais “embargos infringentes” (que a maioria da população, assim como eu, não tem a menor noção do que seja) caíram na rede e foram execrados. Todo mundo se sentiu impelido a ser contra, e muitos se manifestaram de luto pelas redes sociais quando foram mantidos. Eu não tenho duvidas de que muitas dessas manifestações ocorreram porque a sobrevivência dos tais embargos ficou vinculada exclusivamente à possível absolvição dos chamados “mensaleiros”, que já foram condenados pela opinião pública mesmo sem terem sidos condenados definitivamente pela justiça.

As redes sociais são capazes dos entrelaçamentos mais incríveis e improváveis, porque superam as barreiras do tempo, do espaço, da distância, das limitações físicas e até sensoriais. Assim como esses enlaçamentos abrem possibilidades ricas e infinitas de articulação, organização, aprendizado, afetividade, mobilização, empoderamento, participação, abrem na mesma proporção uma fenda que, esvaziada de sabedoria, de crítica, de conteúdo, de sentido e/ou de ética, torna-se um espaço fecundo para abrigar o “estouro da boiada”; quando todos seguem cegamente uma direção sem questionamento, embalados pela maioria.

Entendo que seja urgente compreendermos a distância que existe entre opinião pública e debate democrático. Precisamos fortalecer as instancias de participação social, os conselhos, os partidos, as organizações civis, os movimentos sociais e de classe, se quisermos uma democracia robusta e viva. Plebiscitos, pesquisas de opinião, consultas públicas, curtidas no feicebuque têm sim sua função, mas, em geral, servem mais para polarizar e empobrecer a discussão do que para favorecer tomadas de posição maduras que realmente demonstrem a necessidade e o desejo da população.

Também é urgente que vejamos com mais responsabilidade uma atitude aparentemente inofensiva, de curtir e compartilhar uma postagem. Vejo todo dia nas redes sociais, temas importantes sendo simplificados, pessoas e instituições sofrendo linchamento público e informações sendo distorcidas ou até mesmo inventadas, e o que é pior, vejo pessoas curtindo e compartilhando tais postagens sem a menor crítica. Me assusta muito, por exemplo, quando vejo publicadas fotos de pessoas com uma frase do tipo: esta pessoa maltrata idosos ou é estupradora ou ladra ou assassina: quem encontrá-la denuncie. Será que não devemos considerar a hipótese de uma postagem dessas ser falsa ou equivocada?

É famosa uma fotografia que circula pelas redes sociais de uma mulher com uma criança no colo do lado esquerdo e uma arma na mão direita apontando para a criança. No entanto, trata-se de uma montagem. Na foto original a mulher segura um pássaro e não uma arma. Então devemos perguntar: Que tipo de consequência essa foto pode ou poderá trazer para essa mulher? E será que uma possível reparação poderá ser feita na mesma medida do estrago? São questionamentos que, no meu entendimento, precisamos fazer antes de mostrarmos nosso polegar para cima, concordando com alguma postagem e fazendo-a se multiplicar por aí, acreditando que estamos, com isso, exercitando nossa liberdade de expressão ou a veia democrática da nossa sociedade. Democracia sem ética também pode produzir distorções e barbárie. Sim, a simplicidade deste ato de clicar o polegar para cima, especialmente quando feito coletivamente, me parece, às vezes, tão bárbaro e cruel como aquele utilizado nas arenas romanas no início da era cristã, quando o povo presente era conclamado a mostrar o polegar para cima ou para baixo para absolver ou condenar os julgados. Apesar de ser uma forma que os Imperadores Romanos utilizavam para acolher a decisão da maioria, isso não me parece em nada com o que poderíamos chamar de uma decisão democrática.

Mas alguém pode argumentar ingenuamente que é exagero comparar um linchamento ou execução real de um linchamento ou execução na esfera virtual. Para mim, quem diz isso não entendeu nada do mundo virtual, ou nunca assistiu Matrix. O mundo virtual não é um mundo de mentirinha ou de fantasia. Real e virtual apesar de serem universos distintos, participam de uma mesma realidade, se entrelaçam e se influenciam o tempo todo. Assim como em Matrix, morrer no mundo virtual pode significar a morte no mundo real. Por isso, devemos exercitar mais nossa ética e nossa responsabilidade ao curtir e compartilhar no mundo virtual. E pensando bem, agora eu entendo porque Mark Zuckerberg – criador do feicebuque – não instituiu por lá o polegar para baixo. Melhor não.

Minha humilde sugestão é que a gente se preocupe, pelo menos, em se informar um pouco mais antes de curtir e compartilhar uma notícia, especialmente quando ela vier simplificada demais. Na dúvida, prefira curtir e compartilhar fotos de animais fofos. Eu prefiro as de gatinhos.

domingo, 1 de setembro de 2013

Delirar é fundamental!


Delirar é fundamental! Tão fundamental que se eu fosse uma filósofa importante mudaria a máxima cartesiana para: "Deliro, logo existo". É comum que se diga que só os loucos deliram, mas isso não é verdade. Todos nós deliramos. Quem não delira ou é pedra ou é planta. Todas as pequenas e grandes realizações humanas iniciaram com um delírio, ou seja, numa invenção da cabeça de alguém.

Quando começamos a trabalhar na saúde mental, temos muito medo do delírio. Mas depois de um tempo, entendemos que o que difere uns delírios de outros, é o simples fato de alguns deles conseguirem nos convencer de que são uma verdade possível e outros não. Ou seja, tememos o delírio quando acontece de não conseguirmos compartilhar de sua verdade. É um medo do desconhecido, apenas.

Portanto, o grande desafio enfrentado pelo delírio, ou por quem delira, é conseguir convencer outras pessoas da verdade daquele delírio. Assim também deve ter sido para Copérnico no século XV, quando afirmou que o Sol, e não a Terra, seria o centro do nosso Universo. Também foi considerado delírio quando alguns disseram ser possível tratar da loucura entre nós: sem muros, sem trancas, sem isolamento, sem exclusão. Hoje vemos que isso é totalmente possível. Isso quer dizer que um delírio é capaz de se tornar uma verdade quando, e se, tem a chance de ser compartilhado por um determinado número de pessoas; quando consegue fazer laço e lastro.

Mas ai daquele que não consegue compartilhar seu delírio! Ai daquele que não consegue fazer laço com seu delírio! Assim sendo, a missão dos novos serviços de saúde mental não manicomiais, inventados pela Reforma Psiquiátrica, tem sido, exatamente, tornar possível o delírio de muitas pessoas, aquelas que tinham seu delírio silenciado, desvalorizado e desacreditado.

E assim se resume o meu trabalho nos últimos anos: eu acredito nos delírios que ouço. Em todos eles. Porque o que aprendi nesses meus 17 anos de trabalho na saúde mental, nos vários CAPS que já trabalhei e com os inúmeros delírios que ouvi é que: não existe delírio que não possa se tornar uma verdade. Todo e qualquer delírio pode adquirir valor de verdade quando compartilhado por outras pessoas, afinal o que distingue a verdade do delírio é que a verdade é o delírio que a gente acredita e compartilha.

Então, deliremos! E botemos fé no delírio!

Rita de Cássia de A Almeida
Coordenadora do CAPS CasAberta de Lima Duarte MG
Texto em comemoração aos 10 anos do CAPS CasAberta.
30 de agosto de 2013

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Quando as Feras Selvagens chegam...

Por Rita de Cássia de A Almeida

psicanalista e mãe de três filhos

“Deixa eu lhe dizer uma coisa. Quando somos crianças as pessoas dizem que nossa vida será feliz, que será maravilhosa e tal. Mas fique sabendo que não é assim. Então, tire isso da cabeça agora. Porque a vida pode ser um banquete, mas você poderá ser apenas uma garçonete idiota. Um dia, a comida do seu prato vai cair no chão e ninguém vai estar lá para pegá-la para você. Um dia você vai ter que se virar sozinha. Entende o que eu estou dizendo? Então, sorria garota. Sorria. Porque ninguém gosta de uma mulher que vive se lamentando.”.

Este trecho é parte do diálogo entre uma (provável) mãe e sua filha de seis anos, que compõe uma, entre muitas outras cenas belas e inesquecíveis, do filme: Indomável Sonhadora (péssima tradução para o original Beasts of the Southern Wild). A primeira vista, especialmente pra quem não assistiu ao filme, trata-se apenas de uma fala cruel, cruel demais para uma garotinha. No entanto, a avaliação a ser feita da cena não pode ser tão simples, quando vista dentro de todo o contexto narrativo.

Eu traduziria o título do filme como “As Feras Selvagens que chegam do Sul”, já que a grande questão suscitada pelo filme é aquela que persegue cotidianamente a todos nós, pais e mães: devemos proteger nossos filhos das feras selvagens ou ensiná-los a enfrentar tais feras selvagens?

O mundo idealizado pelo cineasta e no qual Hushpuppy, a garotinha que protagoniza a história, vive, é demasiadamente bruto e atroz, e as feras que ela precisa enfrentar são grandes, feias e cruéis. Os adultos dessa história sabem disso, e parecem não fazer questão de esconder tal realidade das crianças, especialmente o pai de Hushpuppy, que dedica seus últimos dias a ensinar a filha a sobreviver sozinha, já que ele é vítima de uma doença terminal e a mãe os abandonou há alguns anos.

No nosso mundo real, no entanto, sinto que cada vez menos educamos nossos filhos para lidar e enfrentar as feras selvagens que invariavelmente virão. Percebo um demasiado exagero na proteção de nossas crianças, que nos parecem cada dia mais frágeis e indefesas, incapazes de lidar com qualquer pequena frustração, com um minúsculo não, um desagrado, uma rejeição. Vejo jovens imaturos e inseguros, que enxergam uma besta fera horrenda, onde muitas vezes, existe apenas um pequeno inseto esquisito e fedorento. E para lidar com tal inseto demandam um arsenal de guerra, quando lhes bastaria apenas, tapar o nariz. Ao contrário do mundo de Hushpuppy, o nosso, acredita ser capaz de evitar todas as feras selvagens que porventura virão. Mas a tragédia que se abate sobre nós é que não podemos evitá-las completamente. E jamais poderemos.

Hushpuppy, por sua vez, apesar dos seus parcos seis anos, é capaz de encarar as feras que lhe perseguem olho no olho, e no fim, as chama de “quase amigas”. Na sua jovem sabedoria, e posto que seu pai soube cumprir devidamente a missão de educá-la para suportar as adversidades do seu mundo, Hushpuppy sabe que as feras que precisou enfrentar também se tornaram parte de quem ela é. Ela já compreendeu que as feras nos atemorizam e podem até nos devorar se não formos fortes, espertos ou sábios o suficiente, mas ela também entendeu que somente as feras, sobretudo as grande e feias, são capazes de extrair de nós, o melhor que podemos ser.

Por isso, eu lamento muito quando vejo pais e mães galgando esforços sobre-humanos para evitar que seus filhos enfrentem e encarem as feras que habitam nosso mundo. Não percebem que estão criando louças frágeis que vão se quebrar ao menor arranhão. Não compreendem que os demasiadamente frágeis, os vitimados, os higienizados, os mimados e os melindrados terão muito mais dificuldade em lidar com as feras; as que vêm do norte, do sul ou as que vêm de dentro. Vejo pais e mães que se desdobram com a pretensão de “dar tudo de bom para os filhos” ou “dar tudo aquilo que não tiveram”, por não entenderem que o grande desafio de educar talvez seja, exatamente, resistir à tentação de dar, e não dar, mesmo tendo condições de fazê-lo.

Na teoria psicanalítica de Winnicott, uma mãe deve ser suficientemente boa, ou seja, suficientemente boa para amar seu bebê e possibilitar seu desenvolvimento. Mas o que nos interessa na teoria winicotiana é que ser boa apenas o suficiente, também implica em ser necessariamente má. E assim eu descreveria os pais que sabem cumprir sua missão de educadores: suficientemente bons e necessariamente maus.

Numa leitura psicanalítica, as feras selvagens que aparecem no filme representam o real. O real é aquilo que se impõe sobre nós e sobre o qual não temos nenhum controle; é o inominável, o indecifrável, o indizível. O real, portanto, é o que nos causa desespero, espanto ou horror. A psicanálise acredita que existem inúmeras formas de lidar com o real que não seja padecendo dele, mas em todas elas é necessário que o sujeito assuma a existência do real, e também sua própria limitação diante dele. Fica paralisado diante do real quem insiste em acreditar que seja possível um mundo ou uma vida sem ele.

Talvez seja isso que a (provável) mãe de Hushpuppy tenta lhe dizer: que as feras selvagens existem e podem, sim, ser tão horrendas quanto más, mas ficar apenas lamentando o fato delas existirem não vai adiantar nada, o melhor é enfrentá-las e seguir sorrindo.