terça-feira, 27 de agosto de 2013

Quando as Feras Selvagens chegam...

Por Rita de Cássia de A Almeida

psicanalista e mãe de três filhos

“Deixa eu lhe dizer uma coisa. Quando somos crianças as pessoas dizem que nossa vida será feliz, que será maravilhosa e tal. Mas fique sabendo que não é assim. Então, tire isso da cabeça agora. Porque a vida pode ser um banquete, mas você poderá ser apenas uma garçonete idiota. Um dia, a comida do seu prato vai cair no chão e ninguém vai estar lá para pegá-la para você. Um dia você vai ter que se virar sozinha. Entende o que eu estou dizendo? Então, sorria garota. Sorria. Porque ninguém gosta de uma mulher que vive se lamentando.”.

Este trecho é parte do diálogo entre uma (provável) mãe e sua filha de seis anos, que compõe uma, entre muitas outras cenas belas e inesquecíveis, do filme: Indomável Sonhadora (péssima tradução para o original Beasts of the Southern Wild). A primeira vista, especialmente pra quem não assistiu ao filme, trata-se apenas de uma fala cruel, cruel demais para uma garotinha. No entanto, a avaliação a ser feita da cena não pode ser tão simples, quando vista dentro de todo o contexto narrativo.

Eu traduziria o título do filme como “As Feras Selvagens que chegam do Sul”, já que a grande questão suscitada pelo filme é aquela que persegue cotidianamente a todos nós, pais e mães: devemos proteger nossos filhos das feras selvagens ou ensiná-los a enfrentar tais feras selvagens?

O mundo idealizado pelo cineasta e no qual Hushpuppy, a garotinha que protagoniza a história, vive, é demasiadamente bruto e atroz, e as feras que ela precisa enfrentar são grandes, feias e cruéis. Os adultos dessa história sabem disso, e parecem não fazer questão de esconder tal realidade das crianças, especialmente o pai de Hushpuppy, que dedica seus últimos dias a ensinar a filha a sobreviver sozinha, já que ele é vítima de uma doença terminal e a mãe os abandonou há alguns anos.

No nosso mundo real, no entanto, sinto que cada vez menos educamos nossos filhos para lidar e enfrentar as feras selvagens que invariavelmente virão. Percebo um demasiado exagero na proteção de nossas crianças, que nos parecem cada dia mais frágeis e indefesas, incapazes de lidar com qualquer pequena frustração, com um minúsculo não, um desagrado, uma rejeição. Vejo jovens imaturos e inseguros, que enxergam uma besta fera horrenda, onde muitas vezes, existe apenas um pequeno inseto esquisito e fedorento. E para lidar com tal inseto demandam um arsenal de guerra, quando lhes bastaria apenas, tapar o nariz. Ao contrário do mundo de Hushpuppy, o nosso, acredita ser capaz de evitar todas as feras selvagens que porventura virão. Mas a tragédia que se abate sobre nós é que não podemos evitá-las completamente. E jamais poderemos.

Hushpuppy, por sua vez, apesar dos seus parcos seis anos, é capaz de encarar as feras que lhe perseguem olho no olho, e no fim, as chama de “quase amigas”. Na sua jovem sabedoria, e posto que seu pai soube cumprir devidamente a missão de educá-la para suportar as adversidades do seu mundo, Hushpuppy sabe que as feras que precisou enfrentar também se tornaram parte de quem ela é. Ela já compreendeu que as feras nos atemorizam e podem até nos devorar se não formos fortes, espertos ou sábios o suficiente, mas ela também entendeu que somente as feras, sobretudo as grande e feias, são capazes de extrair de nós, o melhor que podemos ser.

Por isso, eu lamento muito quando vejo pais e mães galgando esforços sobre-humanos para evitar que seus filhos enfrentem e encarem as feras que habitam nosso mundo. Não percebem que estão criando louças frágeis que vão se quebrar ao menor arranhão. Não compreendem que os demasiadamente frágeis, os vitimados, os higienizados, os mimados e os melindrados terão muito mais dificuldade em lidar com as feras; as que vêm do norte, do sul ou as que vêm de dentro. Vejo pais e mães que se desdobram com a pretensão de “dar tudo de bom para os filhos” ou “dar tudo aquilo que não tiveram”, por não entenderem que o grande desafio de educar talvez seja, exatamente, resistir à tentação de dar, e não dar, mesmo tendo condições de fazê-lo.

Na teoria psicanalítica de Winnicott, uma mãe deve ser suficientemente boa, ou seja, suficientemente boa para amar seu bebê e possibilitar seu desenvolvimento. Mas o que nos interessa na teoria winicotiana é que ser boa apenas o suficiente, também implica em ser necessariamente má. E assim eu descreveria os pais que sabem cumprir sua missão de educadores: suficientemente bons e necessariamente maus.

Numa leitura psicanalítica, as feras selvagens que aparecem no filme representam o real. O real é aquilo que se impõe sobre nós e sobre o qual não temos nenhum controle; é o inominável, o indecifrável, o indizível. O real, portanto, é o que nos causa desespero, espanto ou horror. A psicanálise acredita que existem inúmeras formas de lidar com o real que não seja padecendo dele, mas em todas elas é necessário que o sujeito assuma a existência do real, e também sua própria limitação diante dele. Fica paralisado diante do real quem insiste em acreditar que seja possível um mundo ou uma vida sem ele.

Talvez seja isso que a (provável) mãe de Hushpuppy tenta lhe dizer: que as feras selvagens existem e podem, sim, ser tão horrendas quanto más, mas ficar apenas lamentando o fato delas existirem não vai adiantar nada, o melhor é enfrentá-las e seguir sorrindo.



sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sobre macumbas, marchas, santos, anéis e muros e sobre a força dos símbolos

por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista


Dias atrás ouvi a explicação de um militante do movimento negro - e, diga-se de passagem, uma belíssima explicação – sobre o sentido original das oferendas que as religiões afro-brasileiras utilizam em seus rituais, as que vulgarmente chamamos de macumbas. Ele explicou que, na época da escravidão, muitos negros fugiam para o mato na tentativa de se libertarem do jugo dos seus senhores e, antes de conseguirem fugir para algum Quilombo, ficavam próximos às fazendas, escondidos no meio da mata por dias e até semanas. As mulheres negras, na tentativa de auxiliar esses fugitivos a se manterem vivos até que pudessem partir definitivamente, deixavam tais oferendas pelas margens do caminho ou em locais combinados previamente (em baixo de um cruzeiro, numa encruzilhada, em baixo de uma árvore), oferendas que não eram nada mais do que comida e bebida preparadas para saciar a fome e a sede dos seus entes queridos. No entanto, para disfarçar sua atitude, diziam que os quitutes eram oferendas para os Santos ou Orixás, inventavam rituais e acendiam velas, um modo de sinalizar o local do alimento, especialmente à noite. E por meio dessa estratégia elas sabiam também, se os fugitivos já tinham seguido caminho ou se ainda estavam por ali, bastava observar no dia seguinte como estava o alimento que tinham deixado. O fato é que o que, inicialmente, foi uma estratégia de resistência dos negros escravizados, acabou sendo incorporado pelas religiões afro-brasileiras como ritual.

Eu nunca tinha ouvido essa história e achei de uma poesia infinita. Antes de tal explicação as macumbas não faziam nenhum sentido para mim, não continham nenhum significado, a não ser o de saber que eram significativas para a religião de alguns, o que sempre me impediu de ser desrespeitosa ou intolerante com elas. Mas agora, eu vejo as macumbas de um modo completamente novo. Passei a vê-las com grande respeito e até com reverência, porque agora elas me remetem à sabedoria e ao poder de invenção e resistência dos negros escravizados. As macumbas fazem todo o sentido para mim agora.

E é assim que os símbolos funcionam para nós, humanos. Objetos, palavras, cores, músicas, letras, desenhos, ou seja, qualquer coisa, acrescida de um significado cultural compartilhado, pode se tornar um símbolo para um determinado grupo de pessoas.

A psicanálise entende que o homem, uma vez atravessado pelo inconsciente – que é a linguagem ou o corpo social que se inscreve em nós à revelia de nós mesmos – nunca mais poderá ter acesso à coisa em si; a das ding, para usar o termo freudiano, ou ao real, para usar um termo lacaniano. Ou seja, para nós, seres falantes, a coisa em si nunca poderá ser apreendida, o real nunca poderá ser acessado na medida em que estará sempre configurado pelo sentido e significado que damos a ele.

Fiz essa introdução para tratar do tema que dividiu opiniões na última semana: a quebra e manipulação de imagens de santos católicos por algumas militantes da Marcha das Vadias. Chamou minha atenção a tentativa de alguns em reduzir o peso do impacto que o ato causou em muitas pessoas, buscando descolar das imagens a simbologia que lhes é inerente. O argumento utilizado era que se tratava apenas de pedaços de cerâmica e que, em um local não sacralizado – a rua – perderiam seu significado religioso. Obviamente que, dentro da perspectiva que adotamos aqui, esse argumento carece de fundamento, até porque, se as manifestantes se dispuseram a realizar aquela performance com as imagens, é exatamente por saberem o simbolismo e o sentido que elas carregam. Caso fossem pedaços de cerâmica, o ato delas também não teria sentido algum.

Quem assistiu a queda do Muro de Berlim na década de 80, não duvida do impacto simbólico que foi ver centenas de alemães quebrando aqueles tijolos, simplesmente porque, todos sabíamos que não eram apenas tijolos que estavam sendo quebrados. Foi pelo mesmo motivo que as Torres Gêmeas do World Trade Center foram escolhidas para ser alvo dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, porque eram o símbolo do poderio econômico americano. Em todo mundo, são comuns manifestações em que se queimam bandeiras, que podem ser de países, partidos ou simplesmente de times de futebol. E as mulheres também já queimaram sutiãs, num ato simbólico contra a repressão feminina. Ou seja, a destruição ou profanação de símbolos sempre foi, e é, muito utilizada para desconstruir, questionar, protestar, demonstrar insatisfação e rebeldia, podemos citar um zilhão de exemplos ao longo da história, e não há dúvidas de que tais atos cumprem sua função que também nunca é real, mas sobretudo simbólica.

Num outro sentido de desconstrução de símbolos, nesse caso de uma forma, digamos, pacífica, está a postura do Papa Francisco e que assistimos de perto, também na última semana. Sem entrar no mérito da intenção do Papa, não pretende ser destituído de sentido que o líder máximo da Igreja Católica rejeite a cadeira, o manto, o anel, os sapatos, o tapete vermelho, o carro, a segurança, e todos os aparatos que estavam associados ao status, poderio e riqueza da Igreja e do Vaticano. Por mais que possamos duvidar das reais mudanças que possam ocorrer a partir disso, não dá pra negar a força desse ato simbólico e da sua repercussão.

Sendo assim, o que pretendo dizer é que da mesma maneira que os símbolos são criados, inventados e construídos, também podem – e invariavelmente até devem – ser quebrados, desinventados e destruídos. Então, a meu ver, nossa rejeição ou indignação quando se quebra um símbolo não deveria ser moral, mas estética. Ou seja, o problema não é que se quebrem certos símbolos, mas como isso é feito e por quem.

Por exemplo, imaginemos que o Wold Trade Center não tivesse sido destruído em 2001 e que em 2008 os milhares de americanos, vítimas da chamada bolha imobiliária, que tiveram suas casas hipotecadas tomadas pelos bancos, decidissem invadir o coração financeiro daquele país, ocupá-lo e quebrá-lo, assim como fizeram os franceses na “Tomada da Bastilha” no século XVIII. Obviamente que, esteticamente, esse ato teria um sentido totalmente diverso do que teve os atentados de 11 de setembro. Nesse caso, teria o mesmo sentido estético que teve a derrubada do Muro de Berlim, este porque foi feito por alemães e aquele porque foi feito por americanos. Do mesmo modo, a recusa dos símbolos tradicionais do Papa só tem valor estético porque são feitos por ele mesmo, estética que se perderia caso tais símbolos fossem roubados ou vandalizados por manifestantes de outra religião A queima de sutiãs pelas feministas da década de 60 foi um ato político belíssimo, porque tratava-se de um apetrecho feminino, queimado por mulheres.

Resumindo, entendo que são belos, mesmo os mais violentos atos de destruição de símbolos, desde que aconteçam de dentro para fora e não pela via da intervenção de outrem. Se conseguirmos nos livrar de moralismos tolos, entenderemos a beleza da nudez das mulheres na Marcha das Vadias com seus corpos cheios de inscrições, afinal são mulheres desnudando e escrevendo em seus próprios corpos, estética que se perderia se por acaso se tratasse mulheres obrigadas por outrem a andarem pelas ruas, nuas e pintadas. Sendo assim, caso um dia os católicos desejem questionar a função dos Santos dentro da sua fé religiosa e num ato de rebeldia façam uma procissão em que imagens sejam quebradas e profanadas, teremos um outro padrão estético de violência simbólica. No entanto,a performance das ativistas com os símbolos católicos foi, para mim, um desastre estético. Tão feio quanto o desempenho teatral daquele pastor que chutou a Santa num programa de TV há alguns anos atrás. Tão feia quanto a invasão de Terreiros de Candomblé por alguns evangélicos em Olinda, no ano passado.

Então, é importante, sim, que nós quebremos e queimemos nossos próprios símbolos e com eles os paradigmas e as verdades que precisem ser superadas a fim de fazermos desse mundo um lugar melhor para vivermos. Mas profanar e destruir símbolos alheios, ainda que se cumpra uma função de rebeldia, é de um mau-gosto colossal. E no meu entendimento, todo ato político que perde sua beleza estética perde com ela, muito de sua potência revolucionária.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sobre o Holocausto Brasileiro, livro de Daniela Arbex

Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicóloga/psicanalista
Trabalhadora da rede de saúde mental do SUS

Ainda estou sob o impacto do livro Holocausto Brasileiro, da premiada jornalista do Tribuna de Minas, Daniela Arbex. A realidade contada no livro não era desconhecida para mim, já que sou trabalhadora da Saúde Mental do SUS e militante do Movimento Antimanicomial há 17 anos, mas a riqueza de detalhes, com fotos e documentos e a forma sensível como Daniela tratou tamanha tragédia, me tocaram profundamente.

Há momentos da história da humanidade que todos nós preferiríamos esquecer. Momentos que nos fazem sentir vergonha de pertencer à espécie humana. Ao testemunhar através dos olhos da autora o horror imposto aos “doentes mentais” do Hospital Colônia de Barbacena no século passado, não há como não sentir revolta pela nossa espécie. Porque permitimos tanto descaso, desrespeito e horror? Como pudemos estar tão cegos para aquela realidade, e por tanto tempo?

Dizem que os índios não foram capazes de enxergar as primeiras caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil, simplesmente porque nunca tinham visto nada parecido, sendo assim não tiveram parâmetros para enxergar, mesmo podendo ver. Sendo assim, a única explicação que encontrei para compreender porque tamanha barbárie se sustentou por décadas foi exatamente essa: a de que muitas das testemunhas desse holocausto viam, mas não enxergavam. Afinal, o olhar também precisa aprender a enxergar.

Mas depois que aprendemos a enxergar, fomos capazes de gradativamente desmontar aquela realidade dantesca, apesar de lamentavelmente, alguns daqueles horrores ainda assombrarem nosso presente, aqui e acolá. Através da sua obra, a autora nos convida a enxergar essa tragédia mais uma vez e com mais profundidade, e esse aprendizado não pode ser perdido para que não cometamos os mesmos erros novamente, em outras situações e com novas vítimas. Por isso, mesmo desejando esquecer esse período sombrio da nossa história recente, é muito bom que Daniela refresque nossa memória.

sábado, 13 de julho de 2013

Entre Maria Louca e Maria Maluquinha tem um Bolsa Família.

Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicanalista
Trabalhadora de CAPS da Rede de Saúde Mental do SUS


Este texto tem uma personagem: Maria. Maria é um nome fictício, mas tudo mais é real, tão real que muitos leitores vão pensar que é ficção.

No início da nossa história Maria é pobre, muito pobre, na verdade, Maria é miserável. Sem nenhuma renda, ela e sua única filha vivem da caridade e da boa vontade de pessoas e instituições. Maria também tem pouquíssima escolaridade, parece uma personagem tirada daquele programa de humor que é a cara da pobreza da nossa TV. Maria fala “pobrema” (problema), “risistente social” (assistente social), “conselho titular” (conselho tutelar), “presentivo” (preventivo), “elétrico” (eletroencefalograma) dentre outras pérolas. Além de tudo Maria é louca, e ela geralmente, concordava com este rótulo que lhe davam. Com algumas passagens por hospícios da região, confessava: “nunca tive cabeça boa pra trabalhar”.

Mas atualmente, Maria não aceita mais ser chamada de louca, se considera uma “maluquinha”. Mas para fazer a travessia de louca para maluquinha, passaram-se quase 10 anos, e muita coisa aconteceu nesse caminho, incluindo um abençoado Bolsa Família. Eu sempre tive vontade de escrever um texto sobre o Bolsa Família e achei apropriado usar a história de Maria para fazê-lo.

Em 17 anos de trabalho em serviços de Saúde Mental do SUS (CAPS), lidando diariamente com pessoas, em geral, pobres, muito pobres ou miseráveis, aprendi uma coisa que só a experiência ensina. Existe uma diferença descomunal, abissal, entre ser pobre e ser miserável. Quem não lida cotidianamente com a população mais humilde, talvez conheça os pobres, mas não conhece os miseráveis, já que eles são “invisíveis a olho nu”. E esse seria o mesmo destino de Maria, ser invisível, mas afinal, sua loucura incomodou e obrigou que a enxergássemos. Foi assim que tomamos conhecimento de Maria, a louca, sem pai nem mãe, rejeitada pela família, em sua miséria absoluta, dependendo do que encontrava no lixo, de favores ou da caridade alheia para sobreviver com sua filha.

Quando ouço pessoas que criticam o Bolsa Família ou outro programa de transferência de renda, dizendo que ele acostuma mal as pessoas, estimula a preguiça e desvirtua o caráter, sinto vontade de vomitar. Quem diz isso, definitivamente, não sabe o que é miséria. Quem faz esse tipo de afirmação tosca e preconceituosa, para usar palavras publicáveis, nunca passou pela situação de encontrar em R$ 70,00 algum alento. Com pouquíssima probabilidade de errar, ninguém que está lendo agora este texto sabe, na carne, o real valor de R$ 70,00. Maria sabe. Muitos aqui vão duvidar, mas R$ 70,00 ou R$ 130,00 (média nacional do valor repassado para cada família com o Bolsa Família), é capaz de reduzir o enorme abismo entre a miséria e a pobreza, e com isso, viabilizar um status inicial necessário para acessar qualquer outro tipo possível de justiça social: ser visto.

E R$ 70,00 fez muita diferença na vida de Maria, não só pelo valor, mas porque em mais de 30 anos de vida, esse foi o primeiro dinheiro que ela conseguiu que não fosse por caridade ou proveniente de algum dos homens com os quais, eventualmente, se aventurava a morar. Isso porque o Bolsa Família não é tratado pelos profissionais, não pelos sérios e éticos, como um mero benefício assistencial ou uma esmola do prefeito ou do governo, mas como um direito. Sendo assim, o cartão do Bolsa Família foi o primeiro direito que Maria conquistou, depois dele, como veremos, muitos outros vieram.

Um segundo direito que Maria teve voz e força para exigir depois do primeiro, foi uma pensão alimentícia para filha. O ex-companheiro de Maria era alcoolista, raramente tinha trabalho fixo, e mesmo quando conseguia algum trabalho, não pagava pensão, regularmente. Mas Maria tinha aprendido a exigir seus direitos, e foi até às últimas conseqüências para conseguir que o pai da menina pagasse a pensão, achou até justo quando ele quase foi preso por não cumprir com a obrigação. Hoje ele paga a pensão de R$ 90,00 assiduamente, e ela assina o recibo na nossa frente (como ficou combinado na justiça), com a postura de quem aprendeu a lutar pelo seu lugar no mundo.

A loucura de Maria, que se instalou desde o nascimento da filha, continuava a lhe imputar uma incapacidade real para o trabalho formal. Sua irritabilidade e instabilidade emocionais faziam de qualquer relação possível com o outro, um inferno. Mesmo dentro do CAPS, eram comuns suas agressões verbais e até físicas a técnicos e outros usuários.

Maria, eventualmente, se envolvia com homens com os quais imaginava conquistar alguma segurança, mas em geral, eles obedeciam a um mesmo padrão: alcoolistas ou usuários de drogas, também pobres, com ligações familiares empobrecidas e sem trabalho fixo. Com esses homens, Maria vive relações muito conturbadas e violentas. Assim também vinha caminhando a relação com seu atual companheiro, e com o qual Maria teve um filho, hoje com 3 anos.

Inúmeras vezes tentamos conseguir para Maria o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que assegura um salário mínimo para idosos, ou pessoas com alguma deficiência grave, que não contribuíram com a previdência social, desde que a renda familiar per capta não ultrapasse ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente. Mas, apesar de inúmeras tentativas, Maria não passava na perícia médica, não era considerada suficientemente incapaz para fazer juz ao benefício.

O fato é que, após muita insistência, no final do ano passado, Maria finalmente conseguiu o BPC e assim que teve certeza de que o benefício chegaria, avisou com satisfação, que agora poderia devolver o cartão do Bolsa Família para que ele pudesse ajudar outra pessoa. Era justo que tivesse recebido o benefício por um tempo e agora, com sua nova condição assegurada, era justo que o passasse adiante. Apesar de louca e ignorante, como a maioria a considerava, Maria sabia o exato significado da palavra justiça, mesmo tendo tão pouco acesso a ela.

Com alguns meses recebendo salário mínimo, além de poder atender suas necessidades básicas e a dos dois filhos, Maria teve melhorias subjetivas ainda mais notórias. A vaidade consigo mesma e com seu pequeno barraco (herança dos pais), que mesmo nos tempos de miséria insistiam em manter nela um pouco de orgulho, hoje se destacam e evidenciam cada vez mais seu estilo. Maria sempre gostou de bijuteria, maquiagem, sapato, bolsa e roupas e, tal como antes, ainda depende de doações para atender a esses seus caprichos. Mas hoje ela parece feliz em apenas poder se aventurar em entrar numa loja e perguntar o preço das coisas. Ontem me abordou dizendo que viu uma calça igual a que eu vestia por R$ 90,00, achou muito cara e, por isso, não comprou. Semana passada Maria compartilhou numa reunião com outros usuários do CAPS, com lágrimas nos olhos, que mês que vem irá realizar o sonho da sua vida: comprar um jogo de panelas na loja. “Meu sonho é comprar um jogo de panelas novo e colocar tudo em cima da mesa”. O projeto seguinte é colocar piso na casa, toda de chão batido.

Também existem os preconceituosos de plantão que vão criticar os que, depois de saírem do abismo da miséria, se rendem ao consumo. Então nós vivemos numa sociedade capitalista e consumista, que propagandeia o tempo todo que podemos alcançar felicidade comprando coisas e acusamos de consumistas os que estão tendo a primeira oportunidade de testar se essa teoria é verdadeira? Ah, tá!

Mas, quem acredita que uma renda mensal mínima tem apenas efeito de consumo, também se engana. Cerca de dois meses depois de Maria ter recebido seu primeiro salário mínimo questionei a ela como estava sua relação com o companheiro, perguntei se ainda se estapeavam. E ela me respondeu: “Não, agora eu não deixo mais ele me bater”. Sendo eu uma psicanalista, poderia ter interpretado a frase dela dizendo: “Mas, então, antes você deixava?” Mas não foi necessário, eu sabia exatamente porque Maria aceitava apanhar. Ao contrário do que muitos podem supor essa Maria, e muitas outras, não apanham por gosto ou costume, tampouco são fãs dos “50 tons”. Nossas Marias aceitam a violência porque acreditam que esse é o preço que têm que pagar para manter em casa seu homem e com ele algum respeito, amor próprio ou possibilidade de sustento para si mesma e para os seus filhos, ainda que esses sejam ganhos totalmente ilusórios.

Já concluindo, preciso contar o que aconteceu no último mês de maio, por ocasião da festa do nosso CAPS em comemoração ao dia Nacional de Luta Antimanicomial. Durante os eventos, Maria nos surpreendeu ao pegar o microfone e recitar uma longa poesia feita por ela, na qual tecia, com muito humor, sua trajetória de louca à maluquinha. No seu poema, meio cantado meio falado, “louca” tinha a conotação pejorativa que lhe davam no passado e “maluquinha” falava de como ela se via hoje, do seu jeitinho diferente, meio maluquinho sim, mas também capaz de declarar seu amor pela vida e pelas pessoas que ali estavam. Era o outro com o qual ela “nunca se dava” transformando-se, finalmente, em objeto de seu amor.

Sim, passado o período em que só podia viver no campo da necessidade imediata e urgente de sobreviver junto com seus filhos, Maria alcança o campo da arte. Maria produz cultura. Atualmente está empolgadíssima com a possibilidade de ser atriz em uma peça de teatro produzida pelo CAPS e cuja história poderá ser a sua própria, aquela tecida em seu poema.

Ainda há quem chame Maria de louca. Para mim, louco é quem critica benefícios sociais e programas de transferência de renda sem saber o que é ser invisível. Muitos dirão que Maria é uma analfabeta ignorante. Para mim, ignorante é quem não consegue olhar em torno, é quem só consegue ver o mundo a partir do próprio umbigo.

Para você que insiste em criticar programas sociais, eu deixo Maria no seu encalço. Mas se sua intenção for apenas criticar, com os amigos ou nas redes sociais, algum tipo de benefício pago com recurso público e que você não recebe, tenho algumas sugestões. Numa pesquisa rápida no Google, descobri alguns auxílios concedidos a ministros, vereadores, deputados, senadores, desembargadores, policiais federais, diplomatas, altas patentes do exército, marinha ou aeronáutica e/ou juízes. São eles: Bolsa Moradia, Bolsa Paletó, Bolsa Passagens Aéreas, Bolsa Combustível, Bolsa Telefone, Bolsa Gabinete, Bolsa Alimentação, Bolsa Despesas, Bolsa Creche, Bolsa Indenizatória, Bolsa Estudo, Bolsa Funeral e Bolsa Assistência Médica. Obviamente, que nem todas as categorias citadas recebem todos esses benefícios, mas cada uma delas recebe pelo menos duas ou três “Bolsas” citadas. E, na verdade, esses benefícios não são chamados de “Bolsa”, fui eu quem, propositalmente, os batizei com esse nome. Mas bem que poderiam chamar, não é? (Eu não pesquisei o valor de tais “Bolsas”, se você quiser fazê-lo fique à vontade. Sugiro apenas que tome um antiácido antes)

Então, alguém aí pra tentar me convencer que o Bolsa Família não é um direito justo?

sexta-feira, 28 de junho de 2013

EU NÃO QUERO MAIS DO MESMO

Em tempo de levantar bandeiras, peço licença para levantar as minhas.

Eu não quero mais automóveis, viadutos, estacionamentos, avenidas, sinais de trânsito, pontes ou anéis rodoviários. Eu quero uma cidade que privilegie os caminhantes e os ciclistas, os corredores de rua, os cadeirantes, os deficientes visuais e os que passeiam com seus animais. Quero uma rua tão humanizada que o termo “morador de rua” perca totalmente seu sentido pejorativo.

Eu não quero mais empresas, indústrias, empregos, agências ou mais vagas em concurso público. Eu quero um mundo onde possamos trabalhar menos, para dedicarmos ao ócio, à contemplação, às artes e aos nossos filhos e livros.

Eu não quero mais hospitais, mais métodos terapêuticos, mais especialistas, mais modalidades de exames, mais planos de saúde e técnicas cirúrgicas. Eu quero um mundo onde a gente adoeça menos, se contamine menos, se estresse menos, se desgaste menos, se acidente menos. Um mundo no qual tenhamos tempo suficiente para nossos afetos e nossos jardins.

Eu não quero mais médicos, professores, advogados, burocratas, psicanalistas, jornalistas, comerciantes, policiais ou motoristas de caminhão. Eu quero é gente. Gente que cante e dance, gente que chore, que acolha, que acaricie os gatos, gente que se indigne e que sonhe.

Eu não quero mais velocidade de conexão, mais sites na internet, mais minutos para falar no celular ou mais “largura de banda”. Eu quero encontros, abraços, conversas na calçada, tardes na praça, almoços em família, piqueniques no bosque, viagens sem pressa e papos de botequim.

Eu não quero mais renda, mais salário, mais oportunidades financeiras, mais PIB, mais linhas de financiamento, mais limite no cartão de crédito ou mais crescimento econômico. Eu quero é um mundo onde o dinheiro seja cada vez menos importante pra gente se sentir feliz.

Eu não quero mais hidrelétricas, mais arranha-céus, mais antenas de telefonia, mais shoppings centers e condomínios. Eu quero que a água, os rios e as árvores retomem para nós a importância que tinham para os primeiros habitantes dessa terra; os povos indígenas.

Eu não quero mais tecnologia, mais produção científica, mais obras monumentais, mais eventos espetaculares, mais programa espacial. Eu quero é poesia, arte, futebol de várzea, jabuticaba chupada no pé e entardeceres diante do mar.

Eu não quero mais igrejas, mais templos religiosos, mais padres ou pastores. Eu não quero mais dogmas ou livros de auto-ajuda. Eu quero um mundo que apenas entenda que o amor é a força mais poderosa do Universo.

Eu não quero mais canais de TV, mais variedades de sabor de pizza, mais modelos de celular, mais grifes de roupas, mais drogas ou remédios, mais conteúdo no jornal, mais cursos de pós-graduação, mais marcas de tênis, mais cores de esmalte ou técnicas de embelezamento. Eu quero viver a experiência da simplicidade e do contentamento.

Nosso mundo tem caminhado desesperadamente na direção desse “querer sempre mais”. Desejamos mais direitos, oportunidades e espaços, tal qual desejamos objetos para consumir. E do excesso deste “mais” há um resto produzido, um lixo, que por mais que queiramos, não poderemos reciclar totalmente. Com esse modo de vida estamos alterando perigosamente nosso ecossistema, afundando severamente nas desigualdades sociais e produzindo injustiça e violência.

Através dos movimentos de massa que se espalham pelo mundo atual – talvez não por acaso chamados de Primaveras – estamos tendo a oportunidade de também fazermos uma escolha, fundamental para a sobrevivência desse nosso planeta e seus habitantes. Precisamos urgentemente nos fazer a seguinte pergunta: Vamos continuar querendo mais?

Eu já fiz minha escolha, e sei que muitos também fizeram. Portanto, na minha bandeira está escrito: EU NÃO QUERO MAIS DO MESMO. Eu não quero mais desse mesmo mundo, quero outro mundo. E essa seria a verdadeira revolução para os nossos tempos.