Por: Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista
Nasci em uma família católica praticante. Meu nome, inclusive, é resultado da devoção de meu pai por Santa Rita de Cássia. Fui educada sob preceitos religiosos, mas hoje, não me considero uma pessoa religiosa. Os dogmas religiosos me incomodam, assim como me incomoda qualquer tipo de saber dogmático que se defina como A Verdade, já que não acredito numa verdade única ou num modo único de ver e conceber o mundo. Por outro lado, não advogo em favor dos que acreditam que o discurso religioso é um discurso menor que o discurso científico ou filosófico, por exemplo. Acredito que são apenas modos diferentes de compreender o mundo e de dar respostas para as perguntas que nos inquietam, e por isso mesmo, o saber científico, ou qualquer outra forma de saber, dependendo da maneira como é tratado, também pode se tornar tão dogmático quanto o religioso.
Meu conceito de Deus, hoje, é muito mais filosófico que religioso. Penso que a angústia provocada pela nossa incapacidade de acessar o real da existência nos impele a recorrer a Deus ou a religião, afinal, é mesmo difícil suportar a ideia de “não saber”. Ou seja, Deus existe sim, penso eu, porque precisamos Dele. Se eu rezo? Sim, às vezes. Mas, hoje, muito mais para reafirmar a força de um desejo do que por acreditar que um Ser Superior vai me dar o que preciso ou me salvar de alguma intempérie.
Creio ter resumido nesses dois parágrafos minha visão metafísica da existência. Mas mesmo não professando uma religião específica, me interesso pelo tema. Penso na religião como uma das muitas formas de manifestação da cultura humana e quando serve para reduzir a angústia e a dor de existir e, sobretudo, para promover a vida, o amor, a solidariedade o respeito pelo outro e pela natureza, pode ser muito útil e saudável para a humanidade. Muitas religiões foram e são capazes de revolucionar positivamente o modo de pensar de uma sociedade. O Cristianismo, por exemplo, provocou uma revolução quando pregou o “amai-vos uns aos outros” no lugar do “dente por dente, olho por olho” do Antigo Testamento. A luta pacífica de Gandhi contra a opressão Inglesa é outro exemplo de ética religiosa que reformulou positivamente os paradigmas de uma sociedade. Algumas teses religiosas me agradam. Gosto, por exemplo, da ideia dos Santos inventada pelo Catolicismo. Os Santos nos fazem pensar que pessoas comuns, limitadas, imperfeitas, humanas ou pecadoras – como dizem os cristãos – também são capazes de atos extraordinários, nobres e heroicos. Também me interesso pelas religiões re-encarnacionistas, mas as que acreditam – como o Budismo – que o espírito pode encarnar também em animais e outros seres vivos. Agrada-me a ideia de pensar que a espécie humana não é a única a ter alma e, portanto, tão importante como as demais formas de existência. Religiões que possuem entidades femininas também me agradam. O Judaísmo e o Cristianismo são religiões extremamente patriarcais. Dentre as religiões cristãs, apenas o catolicismo, a meu ver, tenta incluir a mulher, ainda que muito timidamente, através da divinização de Maria, a mãe de Jesus, e na figura das Santas, o que acho interessante.
Resumindo, defendo o discurso religioso apenas quando ele serve como agente transformador de uma sociedade, melhorando-a, potencializando suas virtudes, inventado e promovendo princípios éticos que nos ajudem a viver melhor em comunidade. Um bom exemplo é a chamada Teologia da Libertação, movimento religioso genuinamente latino-americano, nascido dentro do catolicismo, cujo expoente brasileiro é o frei Leonardo Boff, e que promove um cristianismo em favor dos excluídos e contra todas as formas de injustiça e opressão. Movimento que, aliás, foi lamentavelmente abafado pelo Vaticano.
Por outro lado, há um tema que muito me incomoda no discurso religioso que é o dA Salvação, especialmente, da maneira como tem sido tratado nas religiões cristãs mais fundamentalistas. A ideia dA Salvação como uma conquista individual é, no meu entendimento, a pior forma de individualismo que pode existir e, associada ao discurso capitalista, produz uma moral ou ética existencial degradada, excludente e perversa. Segundo tal preceito o mundo ficaria dividido entre os que "estão salvos" e os que "não estão salvos", cabendo aos que foram agraciados com a salvação, ou seja, os “donos da verdade”, convencerem os demais a partilhar desta mesma verdade. E infelizmente, as formas de persuasão para aceitar tal verdade podem ser as mais degradadas e degradantes. Uma delas é o convencimento pela produção do medo (do Diabo, do Inferno ou de outro tipo de castigo divino). Além da estratégia do medo, também muito usada para sustentar outras formas de poder, fica implícita (ou explicita) em muitas religiões, a ideia de que a aceitação de certa verdade religiosa está diretamente relacionada com o que se está disposto a investir financeiramente na instituição que, supostamente, a representa. É como se O Paraíso estivesse com seus ingressos à venda em vários locais, sendo que, cada um deles propagandeia sobre a veracidade do seu ingresso e a falsidade do ingresso do outro.
No bairro onde moro é muito comum sermos abordados por religiosos em missão de evangelização, como dizem, e sempre me interesso em conversar com eles, obviamente, que tentando abalar suas certezas. Um dia desses, para meu desespero, ou desespero da missionária, o tema abordado foi A Salvação. Ela me garantiu que estava salva e me perguntou se eu também não gostaria de alcançar essa benesse. Perguntei a ela o que eu deveria fazer para tal e ela, notadamente satisfeita com a minha pergunta, tratou de traduzir para mim um sem número de citações bíblicas que falavam da necessidade de que eu aceitasse A Palavra de Deus. Depois de algum tempo escutando-a fiz o meu papel de advogada do diabo e perguntei: “Você está salva porque aceitou A Palavra de Deus ou aceitou A Palavra de Deus somente para ser salva?”. Ela gaguejou, titubeou e não respondeu. Espero tê-la feito pensar...
Estamos hoje diante da ameaça real de aniquilação da vida na Terra pelo esgotamento dos seus recursos naturais, resultado do nosso modo de vida individualista, imediatista e consumista. E então eu me pergunto? De que vale a salvação individual de uma alma post mortem se não garantirmos a salvação do nosso Planeta em vida? E fazendo uso do discurso religioso, se a Terra e toda a Natureza que ela guarda foram criadas por Deus, estaria Ele satisfeito com o propósito de que cada um salve a si mesmo ainda que não salvemos Sua Criação como um todo? Penso eu que o discurso ecológico genuíno (e não aquele travestido de ecológico só para nos fazer consumir mais, dessa vez, os produtos ecologicamente corretos) que busca novos paradigmas éticos e morais que garantam a salvação do nosso planeta e seus habitantes, inaugura uma ética diferente e que muito me agrada: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.
A tragédia que se anuncia nesse novo mundo que nos espera – ou que já se faz presente – nos faz pensar que o conceito religioso de salvação individual precisa ser superado, para dar lugar a uma nova ética na qual o fundamento primeiro seja a coletividade, e não apenas de humanos, mas, de todas as espécies viventes. Enfim, o que quero dizer é que nenhum projeto de salvação individual me interessa, porque não me faz uma pessoa melhor e porque também não será capaz de inventar um mundo melhor, menos individualista e mais solidário.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
domingo, 26 de agosto de 2012
Elucubrações sobre a morte
Por: Rita de Cássia de A. Almeida
psicanalista
Esta semana estava às voltas com os Deveres de Casa (as tarefas passadas pela escola) da minha filha caçula, que acabou de completar 6 anos. Ela, dizendo que não precisava fazê-los e eu, tentando convencê-la do contrário. Usei inúmeros argumentos para incitá-la a fazer a tarefa até que, por fim, cansada de tantos porquês, apelei para o seu senso de responsabilidade e disse: “Você precisa fazer o Dever de Casa porque ele é muito importante”. E ela sem pestanejar, numa exclamação enfática, saiu com essa: “Mãe, muito importante é não morrer!”.
Bom, obviamente que a discussão acabou ali. Que poderia eu responder diante do seu argumento? O jeito foi apelar para o velho e bom: “Você vai fazer esse dever porque eu mandei e pronto!”. Isso encerrou o assunto... Para ela, mas não para mim. Sua resposta ficou fazendo ecos na minha mente, atormentada por natureza.
Tomada por elucubrações a respeito da morte, concluí que concordo plenamente com minha filha: não há nada mais importante que não morrer. E concordo por dois motivos. Primeiro, pela afirmação em si e segundo, por uma concepção filosófica importante que a afirmação dela carrega e da qual eu também compartilho: a de que vida é uma espécie de resistência à morte. Nesse sentido, não morrer seria um ato de rebeldia, de relutância, já que a tendência natural seria morrer, retornar ao nada, à quietude, ou ao Nirvana, como acredita o principio Budista. (Freud também se valia de tal princípio).
Seguindo esta forma de pensar, a morte não é ausência de vida ou um evento trágico que interrompe o que seria uma tendência natural: viver. Ao contrário. A vida é que é uma não morte, um acontecimento, um milagre, uma explosão entre duas mortes. A morte, sim, é a tendência natural das coisas, o real que invariavelmente se abate ou se abaterá sobre tudo que vive.
Então é verdade que não há nada mais importante que não morrer. Não há nada mais importante do que defender, perdurar e fortalecer esse impulso revolucionário que faz da vida um verdadeiro milagre, quase que improvável. (A improbabilidade da vida é, inclusive, a conclusão da maioria dos cientistas que discursam sobre a teoria da criação da vida e do Universo).
Tomada por esses pensamentos me lembrei de uma conferência do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que assisti recentemente na internet, intitulada “A morte como quase acontecimento”, que trata de diferentes concepções de morte em culturas diversas. Dentre os vários temas levantados pelo antropólogo, um me chamou a atenção. Ele aponta que na visão ocidental moderna, como nos apegamos à questão da linhagem familiar, nossos inimigos se encontram fora de nossa família ou clã, podendo eles estarem mortos ou vivos.
Tal visão fica bem ilustrada na tragédia Shakespeareana – Romeu e Julieta. Nela o conflito se dá na luta entre Montecchios x Capuletos. Conflito este perpetuado por gerações e resultando em intenso ódio e inúmeras mortes. Em resumo temos: Montecchios (mortos e vivos) de um lado contra Capuletos (mortos e vivos) de outro. Eventualmente ampliamos este conceito de família ou clã para entrarmos em conflito com os outros. Nos unimos numa comunidade, num partido, numa religião ou numa nação, mas sempre teremos: mortos e vivos de um lado contra mortos e vivos de outro.
Mas este modo de pensar não é universal, segundo Eduardo Viveiros. Existem tribos indígenas que se organizam de um modo bem diferente. Numa delas os grandes inimigos são os mortos. Ainda que se trate de sua mãe, seu pai, seu filho ou seu melhor amigo, ao morrer todos eles se transformam no seu pior inimigo, inimigo a ser evitado, combatido e temido. Seria a mesma idéia que sustenta os filmes e seriados de zumbis: “todos os vivos” contra “todos os mortos”. Toda a energia social, neste caso, é canalizada para evitar a morte, ou seja, evitar que o exército dos mortos amplie e se fortaleça.
Tal concepção, pelo que compreendi, também muda toda a forma de relação social. Nessa tribo não é concebível, por exemplo, qualquer tipo de luta ou conflito entre vivos que possa resultar em risco de morte. Assassinatos, por exemplo, seriam atos impensáveis, afinal, porque alguém iria querer fortalecer o inimigo? Imagino que este raciocínio valha também para os suicídios. No caso das doenças ou atividades que envolvam risco, elas são sempre interpretadas como armadilhas dos mortos para levar os vivos para o outro lado, exigindo sempre cuidado extra dos membros da tribo. E não um cuidado individual, mas um cuidado coletivo, já que a morte de um membro torna-se um risco para todos.
Adorei pensar sob a perspectiva desta tribo e agora, depois do argumento da minha pequena sabida, tal perspectiva faz ainda mais sentido. Entendo que a grande ética que deve sustentar a existência humana seria aquela capaz de investir todos os nossos esforços - sociais, culturais ou tecnológicos - para não morrer. Mas fazendo uso do modo de pensar da tribo citada, não se trata apenas de evitar a morte individual (nisso nossa sociedade é especialista). Também não se trata de evitar a morte apenas dos nossos pares, os membros da nossa comunidade, nossos compatriotas ou aliados políticos e religiosos. A idéia central seria todos os vivos combatendo toda a espécie de morte, o que implicaria numa ética que procurasse fazer de tudo para que todos os seres vivos (humanos ou não) pudessem ter o mais plenamente possível a possibilidade de não morrer, enquanto indivíduo, enquanto corpo social, enquanto comunidade ou enquanto espécie, ainda que saibamos que se trata apenas de um adiamento, um esforço para protelar o inevitável. Não morrer e não deixar morrer - seria este o princípio maior.
Voltando à discussão filosófica levantada pela minha caçula, já disse que concordamos que não há nada mais importante que não morrer. Mas o que talvez ela não saiba, e, certamente aprenderá, comigo inclusive, é que não morrer não é o mesmo que sobreviver. Não morrer é muito mais complexo. Por isso, fazer ou não fazer o Dever de Casa, assim como fazer ou deixar de fazer tantas outras coisas, se tornam também, ao longo de nossas vidas, formas de não morrer. Um exercício cotidiano, contínuo e persistente de resistir à morte ainda que estejamos todos, invariavelmente, caminhando para ela. E se aprendermos com nossos sábios irmãos índios, entenderemos que esse exercício de não morrer só funciona se o fizermos pensando na coletividade.
(A quem possa interessar, segue o link da conferência citada: http://www.youtube.com/watch?v=Zdz8U9_8YVU )
psicanalista
Esta semana estava às voltas com os Deveres de Casa (as tarefas passadas pela escola) da minha filha caçula, que acabou de completar 6 anos. Ela, dizendo que não precisava fazê-los e eu, tentando convencê-la do contrário. Usei inúmeros argumentos para incitá-la a fazer a tarefa até que, por fim, cansada de tantos porquês, apelei para o seu senso de responsabilidade e disse: “Você precisa fazer o Dever de Casa porque ele é muito importante”. E ela sem pestanejar, numa exclamação enfática, saiu com essa: “Mãe, muito importante é não morrer!”.
Bom, obviamente que a discussão acabou ali. Que poderia eu responder diante do seu argumento? O jeito foi apelar para o velho e bom: “Você vai fazer esse dever porque eu mandei e pronto!”. Isso encerrou o assunto... Para ela, mas não para mim. Sua resposta ficou fazendo ecos na minha mente, atormentada por natureza.
Tomada por elucubrações a respeito da morte, concluí que concordo plenamente com minha filha: não há nada mais importante que não morrer. E concordo por dois motivos. Primeiro, pela afirmação em si e segundo, por uma concepção filosófica importante que a afirmação dela carrega e da qual eu também compartilho: a de que vida é uma espécie de resistência à morte. Nesse sentido, não morrer seria um ato de rebeldia, de relutância, já que a tendência natural seria morrer, retornar ao nada, à quietude, ou ao Nirvana, como acredita o principio Budista. (Freud também se valia de tal princípio).
Seguindo esta forma de pensar, a morte não é ausência de vida ou um evento trágico que interrompe o que seria uma tendência natural: viver. Ao contrário. A vida é que é uma não morte, um acontecimento, um milagre, uma explosão entre duas mortes. A morte, sim, é a tendência natural das coisas, o real que invariavelmente se abate ou se abaterá sobre tudo que vive.
Então é verdade que não há nada mais importante que não morrer. Não há nada mais importante do que defender, perdurar e fortalecer esse impulso revolucionário que faz da vida um verdadeiro milagre, quase que improvável. (A improbabilidade da vida é, inclusive, a conclusão da maioria dos cientistas que discursam sobre a teoria da criação da vida e do Universo).
Tomada por esses pensamentos me lembrei de uma conferência do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que assisti recentemente na internet, intitulada “A morte como quase acontecimento”, que trata de diferentes concepções de morte em culturas diversas. Dentre os vários temas levantados pelo antropólogo, um me chamou a atenção. Ele aponta que na visão ocidental moderna, como nos apegamos à questão da linhagem familiar, nossos inimigos se encontram fora de nossa família ou clã, podendo eles estarem mortos ou vivos.
Tal visão fica bem ilustrada na tragédia Shakespeareana – Romeu e Julieta. Nela o conflito se dá na luta entre Montecchios x Capuletos. Conflito este perpetuado por gerações e resultando em intenso ódio e inúmeras mortes. Em resumo temos: Montecchios (mortos e vivos) de um lado contra Capuletos (mortos e vivos) de outro. Eventualmente ampliamos este conceito de família ou clã para entrarmos em conflito com os outros. Nos unimos numa comunidade, num partido, numa religião ou numa nação, mas sempre teremos: mortos e vivos de um lado contra mortos e vivos de outro.
Mas este modo de pensar não é universal, segundo Eduardo Viveiros. Existem tribos indígenas que se organizam de um modo bem diferente. Numa delas os grandes inimigos são os mortos. Ainda que se trate de sua mãe, seu pai, seu filho ou seu melhor amigo, ao morrer todos eles se transformam no seu pior inimigo, inimigo a ser evitado, combatido e temido. Seria a mesma idéia que sustenta os filmes e seriados de zumbis: “todos os vivos” contra “todos os mortos”. Toda a energia social, neste caso, é canalizada para evitar a morte, ou seja, evitar que o exército dos mortos amplie e se fortaleça.
Tal concepção, pelo que compreendi, também muda toda a forma de relação social. Nessa tribo não é concebível, por exemplo, qualquer tipo de luta ou conflito entre vivos que possa resultar em risco de morte. Assassinatos, por exemplo, seriam atos impensáveis, afinal, porque alguém iria querer fortalecer o inimigo? Imagino que este raciocínio valha também para os suicídios. No caso das doenças ou atividades que envolvam risco, elas são sempre interpretadas como armadilhas dos mortos para levar os vivos para o outro lado, exigindo sempre cuidado extra dos membros da tribo. E não um cuidado individual, mas um cuidado coletivo, já que a morte de um membro torna-se um risco para todos.
Adorei pensar sob a perspectiva desta tribo e agora, depois do argumento da minha pequena sabida, tal perspectiva faz ainda mais sentido. Entendo que a grande ética que deve sustentar a existência humana seria aquela capaz de investir todos os nossos esforços - sociais, culturais ou tecnológicos - para não morrer. Mas fazendo uso do modo de pensar da tribo citada, não se trata apenas de evitar a morte individual (nisso nossa sociedade é especialista). Também não se trata de evitar a morte apenas dos nossos pares, os membros da nossa comunidade, nossos compatriotas ou aliados políticos e religiosos. A idéia central seria todos os vivos combatendo toda a espécie de morte, o que implicaria numa ética que procurasse fazer de tudo para que todos os seres vivos (humanos ou não) pudessem ter o mais plenamente possível a possibilidade de não morrer, enquanto indivíduo, enquanto corpo social, enquanto comunidade ou enquanto espécie, ainda que saibamos que se trata apenas de um adiamento, um esforço para protelar o inevitável. Não morrer e não deixar morrer - seria este o princípio maior.
Voltando à discussão filosófica levantada pela minha caçula, já disse que concordamos que não há nada mais importante que não morrer. Mas o que talvez ela não saiba, e, certamente aprenderá, comigo inclusive, é que não morrer não é o mesmo que sobreviver. Não morrer é muito mais complexo. Por isso, fazer ou não fazer o Dever de Casa, assim como fazer ou deixar de fazer tantas outras coisas, se tornam também, ao longo de nossas vidas, formas de não morrer. Um exercício cotidiano, contínuo e persistente de resistir à morte ainda que estejamos todos, invariavelmente, caminhando para ela. E se aprendermos com nossos sábios irmãos índios, entenderemos que esse exercício de não morrer só funciona se o fizermos pensando na coletividade.
(A quem possa interessar, segue o link da conferência citada: http://www.youtube.com/watch?v=Zdz8U9_8YVU )
sábado, 30 de junho de 2012
Discurso na inauguração da nova sede do CAPS CasAberta Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado"
Lima Duarte, 29 de junho e 2012
Este é um dia muito especial para todos nós aqui presentes, especialmente para os que, de alguma maneira, contribuíram para a realização deste sonho. O CAPS de Lima Duarte foi construído a muitas mãos. Participaram de sua construção não apenas aqueles que ergueram essas paredes, que lhe deram forma, textura, luz e colorido. Ele também não é fruto apenas dos seus idealizadores aqui do município de Lima Duarte. Este sonho, aqui materializado, carrega consigo uma história longa, intensa e muito bonita. História de muita luta, engajamento e trabalho árduo. História de homens e mulheres que acreditaram na utopia de um mundo melhor, mais solidário, mais igualitário e menos excludente. Portanto, cada tijolo que aqui foi erguido começou a tomar forma há muito tempo atrás, ainda na década de 70, quando as atrocidades e desumanidades cometidas nos manicômios começaram a ser questionadas e enfrentadas, dando forma a um dos maiores movimentos sociais que o Brasil já conheceu: o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial.
Engana-se quem acredita que esses tijolos são feitos apenas de barro. São tijolos feitos de fé e esperança, mas também com o sofrimento e a agonia daqueles doentes mentais e de suas famílias que não puderam partilhar da felicidade de serem tratados com zelo, carinho, respeito e humanidade. As vigas e estruturas que sustentam esta casa foram feitas com materiais inventados nos idos de 1987, na criação do primeiro CAPS do Brasil. As paredes que contornam esta casa não levam apenas água areia e cimento. Na verdade, o cimento que faz a liga dessas paredes é amor muito amor, amor que une, que aproxima, que agrega, que fortalece e que cria laços. O telhado que protege este CAPS, hoje batizado com o nome do Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado, é feito com a força, o empenho e a dedicação de todos aqueles que como ele, não mediram esforços para que a Saúde Pública do nosso país tivesse êxito. Dedicação como a de Pedro Gabriel (aqui presente) e Paulo Delgado, que tanto fizeram pela Saúde Mental brasileira e que temos a honra e o orgulho de chamarmos de filhos desta terra mineira. As cores que iluminam este que será o novo lar da Saúde Mental da nossa região foram conseguidas a partir de muito trabalho intelectual, tecidos dentro dos próprios serviços de saúde mental e nas várias instituições de ensino e pesquisa espalhados pelo Brasil. Estudos que inventaram novos conceitos, estratégias e metodologias de cuidado e tratamento. E o chão que caminharemos no dia a dia do nosso trabalho como técnico de saúde mental na nossa nova casa é um chão já trilhado por muitos outros técnicos de saúde mental que como nós fizeram dessa causa, a causa de sua vida.
Falta ainda dizer o motivo pelo qual tudo isso foi construído e idealizado. Falta mencionar os que provocaram todo esse movimento e que acabaram por nos possibilitar vivenciar este e tanto outros momentos ímpares. Alguns os chamam de loucos, outros os chamam de doentes mentais, mas na verdade trata-se apenas de homens e mulheres, que assim como todos nós, estão procurando entender esse mundo, ora encantador, ora estranho e ameaçador. Esses homens e mulheres quase sempre acreditam que participam do cotidiano do CAPS para aprender, mas o fato é que nós também aprendemos muito nesse compartilhar. Buscamos por dinheiro, beleza, sabedoria, conforto, poder, fama, prazeres, mas aprendemos com essas pessoas que nada disso tem valor se não tivermos o essencial: amor, afeto e carinho. Aprendemos com eles que sem a força do laço que nos une numa família, numa comunidade, numa rede de amigos, ou em qualquer outra forma de relação coletiva, adoecemos e enlouquecemos todos. Então toda essa obra só foi possível porque decidimos caminhar lado a lado para aprendermos uns com os outros, porque decidimos entender as diferenças como riqueza e não como impedimento para estarmos juntos, porque compreendemos que o mundo sem as loucuras nossas de cada dia ficaria mais pobre e cinza.
Mas esta obra ainda não está pronta, porque ela também carrega o anseio de tudo que ainda temos por fazer no âmbito das políticas de saúde mental, e todo desejo que temos de que o SUS, nosso valioso sistema de saúde público, continue a sustentar o sonho de promover uma saúde que não tenha preço e que não esteja à venda. Trata-se, portanto, de uma obra inacabada que a sociedade como um todo precisa manter em processo de construção.
Encerro minha fala com a contribuição de um dos nossos usuários que traduziu como ninguém qual é a função e o lugar de um CAPS no seu território de abrangência. Certa vez ao perguntar por que estava sumido ele me disse algo mais ou menos assim: “É Dra. Rita eu já vim muito aqui no CAPS, mas agora venho só de vez em quando porque estou bem. Mas eu fico tranqüilo só de saber que o CAPS continua aqui, porque se eu pirar de novo é pra cá que eu quero vir.” Então eu digo a vocês que agora, mais do que nunca, o CAPS “Geninho” está plantado aqui e se acaso alguém de vocês enlouquecer de alguma maneira, nossas portas estarão abertas para recebê-los.
Rita de Cássia de A. Almeida
Coordenadora de Saúde Mental de Lima Duarte
Coordenadora do CAPS CasAberta Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado “Geninho”
Este é um dia muito especial para todos nós aqui presentes, especialmente para os que, de alguma maneira, contribuíram para a realização deste sonho. O CAPS de Lima Duarte foi construído a muitas mãos. Participaram de sua construção não apenas aqueles que ergueram essas paredes, que lhe deram forma, textura, luz e colorido. Ele também não é fruto apenas dos seus idealizadores aqui do município de Lima Duarte. Este sonho, aqui materializado, carrega consigo uma história longa, intensa e muito bonita. História de muita luta, engajamento e trabalho árduo. História de homens e mulheres que acreditaram na utopia de um mundo melhor, mais solidário, mais igualitário e menos excludente. Portanto, cada tijolo que aqui foi erguido começou a tomar forma há muito tempo atrás, ainda na década de 70, quando as atrocidades e desumanidades cometidas nos manicômios começaram a ser questionadas e enfrentadas, dando forma a um dos maiores movimentos sociais que o Brasil já conheceu: o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial.
Engana-se quem acredita que esses tijolos são feitos apenas de barro. São tijolos feitos de fé e esperança, mas também com o sofrimento e a agonia daqueles doentes mentais e de suas famílias que não puderam partilhar da felicidade de serem tratados com zelo, carinho, respeito e humanidade. As vigas e estruturas que sustentam esta casa foram feitas com materiais inventados nos idos de 1987, na criação do primeiro CAPS do Brasil. As paredes que contornam esta casa não levam apenas água areia e cimento. Na verdade, o cimento que faz a liga dessas paredes é amor muito amor, amor que une, que aproxima, que agrega, que fortalece e que cria laços. O telhado que protege este CAPS, hoje batizado com o nome do Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado, é feito com a força, o empenho e a dedicação de todos aqueles que como ele, não mediram esforços para que a Saúde Pública do nosso país tivesse êxito. Dedicação como a de Pedro Gabriel (aqui presente) e Paulo Delgado, que tanto fizeram pela Saúde Mental brasileira e que temos a honra e o orgulho de chamarmos de filhos desta terra mineira. As cores que iluminam este que será o novo lar da Saúde Mental da nossa região foram conseguidas a partir de muito trabalho intelectual, tecidos dentro dos próprios serviços de saúde mental e nas várias instituições de ensino e pesquisa espalhados pelo Brasil. Estudos que inventaram novos conceitos, estratégias e metodologias de cuidado e tratamento. E o chão que caminharemos no dia a dia do nosso trabalho como técnico de saúde mental na nossa nova casa é um chão já trilhado por muitos outros técnicos de saúde mental que como nós fizeram dessa causa, a causa de sua vida.
Falta ainda dizer o motivo pelo qual tudo isso foi construído e idealizado. Falta mencionar os que provocaram todo esse movimento e que acabaram por nos possibilitar vivenciar este e tanto outros momentos ímpares. Alguns os chamam de loucos, outros os chamam de doentes mentais, mas na verdade trata-se apenas de homens e mulheres, que assim como todos nós, estão procurando entender esse mundo, ora encantador, ora estranho e ameaçador. Esses homens e mulheres quase sempre acreditam que participam do cotidiano do CAPS para aprender, mas o fato é que nós também aprendemos muito nesse compartilhar. Buscamos por dinheiro, beleza, sabedoria, conforto, poder, fama, prazeres, mas aprendemos com essas pessoas que nada disso tem valor se não tivermos o essencial: amor, afeto e carinho. Aprendemos com eles que sem a força do laço que nos une numa família, numa comunidade, numa rede de amigos, ou em qualquer outra forma de relação coletiva, adoecemos e enlouquecemos todos. Então toda essa obra só foi possível porque decidimos caminhar lado a lado para aprendermos uns com os outros, porque decidimos entender as diferenças como riqueza e não como impedimento para estarmos juntos, porque compreendemos que o mundo sem as loucuras nossas de cada dia ficaria mais pobre e cinza.
Mas esta obra ainda não está pronta, porque ela também carrega o anseio de tudo que ainda temos por fazer no âmbito das políticas de saúde mental, e todo desejo que temos de que o SUS, nosso valioso sistema de saúde público, continue a sustentar o sonho de promover uma saúde que não tenha preço e que não esteja à venda. Trata-se, portanto, de uma obra inacabada que a sociedade como um todo precisa manter em processo de construção.
Encerro minha fala com a contribuição de um dos nossos usuários que traduziu como ninguém qual é a função e o lugar de um CAPS no seu território de abrangência. Certa vez ao perguntar por que estava sumido ele me disse algo mais ou menos assim: “É Dra. Rita eu já vim muito aqui no CAPS, mas agora venho só de vez em quando porque estou bem. Mas eu fico tranqüilo só de saber que o CAPS continua aqui, porque se eu pirar de novo é pra cá que eu quero vir.” Então eu digo a vocês que agora, mais do que nunca, o CAPS “Geninho” está plantado aqui e se acaso alguém de vocês enlouquecer de alguma maneira, nossas portas estarão abertas para recebê-los.
Rita de Cássia de A. Almeida
Coordenadora de Saúde Mental de Lima Duarte
Coordenadora do CAPS CasAberta Dr. Luiz Eugênio Godinho Delgado “Geninho”
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Porque amamos os super-heróis?
Por Rita de Cássia de A Almeida
Psicanalista
Eu também adoro os super-heróis, especialmente os atormentados, os que têm dúvidas sobre os próprios poderes, os humanos o suficiente para nunca estarem totalmente certos se tais poderes são uma benção ou uma maldição.
Ultimamente têm se produzido muitos filmes protagonizados pelos clássicos heróis dos quadrinhos. Gosto particularmente, daqueles que vão além dos efeitos especiais e da eterna e manjada luta do bem contra o mal e se dedicam a nos revelar a mente atormentada do protagonista, suas fragilidades e, sobretudo, o ônus imposto pelos poderes que receberam, quase sempre, sem o direito de escolha.
A trilogia do Homem-Aranha é um bom exemplo do tipo de filme que sabe explorar muito bem esse aspecto. Demonstra a contradição vivida pelo herói, da leveza ao saltar pelos prédios da cidade para o peso da responsabilidade que lhe recai sobre os ombros: “grandes poderes, grandes responsabilidades”.
Wolverine, o herói mutante, também tem um perfil bastante interessante e bem trabalhado nos filmes da série X-Man. Sempre pouco a vontade na sua condição de herói, tem ainda uma característica peculiar: não consegue usar seus poderes sem sentir dor. É capaz de curar-se rapidamente de qualquer ferimento, mas não é imune a dor, sendo assim, todas as vezes que aciona suas garras de adamantium elas rasgam sua carne e provocam uma dor lancinante, que ele apenas aprendeu a suportar. Carregar satisfação e dor no mesmo pacote também é humano, demasiado humano. Não é incomum que aquilo que nos cause muita satisfação carregue consigo, acesso a dores insuportáveis.
Mas de todos os heróis atormentados Hulk é o meu preferido. Uma pena os últimos filmes deste herói terem explorado mais seus músculos que sua mente atribulada, quase esquizóide. Prefiro o Hulk da década de 80, estrela do seriado Incrível Hulk, de muito sucesso na época. No seriado, Dr. Bruce Banner é um médico cientista que, depois de uma superexposição aos raios gama experimenta uma transformação intensa no corpo - acompanhada de força, resistência e vigor sobre-humanos - sempre que fica com raiva. Raiva essa que nosso herói sempre tenta, mas, nunca consegue controlar. Sendo assim, os atos heróicos do monstro verde, que sempre surge após um acesso de ira, sempre são vistos por Dr. Banner como um erro, um fracasso na tentativa de controlar-se. Fracasso que ele tenta resolver se mudando de uma cidade para outra sempre que Hulk se revela, numa tentativa, também fracassada, de fugir de si mesmo. No final de todo episódio da série, repetia-se a cena de Banner pedindo carona na estrada em direção incerta, cena embalada por uma musiquinha melancólica, aliás, inesquecível.
O que torna Hulk tão especial, a meu ver, é que, diferentemente dos demais heróis, a natureza de seus poderes é involuntária, ou seja, Banner tem muito pouco ou nenhum controle sobre eles. Hulk é para Banner um outro, um estranho. Neste caso, Banner não goza do poder que lhe foi dado, ao contrário, é o poder de Hulk que goza dele, do seu corpo e da sua vida. Nada mais humano que isso, não?
É dito que somos animais racionais, o que supostamente nos possibilitaria ter o controle sobre nossos instintos, paixões e emoções, mas a verdade é que, a todo momento, somos tomados, atropelados por um outro que nossa razão é incapaz de controlar. O tal monstro verde invariavelmente rouba a cena e aí falamos ou fazemos o que não queríamos, poderíamos ou deveríamos falar ou fazer. Mas existe uma pergunta que Banner certamente se faz e que torna seu tormento ainda mais especial e interessante: sua verdade está em Hulk ou no Dr. Banner? Será ele é um Hulk reprimido por Banner ou um Banner atormentado por Hulk? Essa também é uma dúvida que sempre nos atormenta. Quando falamos ou fazemos algo que não queríamos, onde está o nosso eu? No que estava controlado pela razão ou no que conseguiu escapar dela?
O que me provocou a escrever este texto foi o filme - Os Vingadores - lançado nas últimas semanas, e que eu gostei muito, aliás. Gostei, em especial, pelo Hulk do filme, porque ficou psicologicamente mais parecido com aquele do seriado da década de 80. Dr. Banner, antes de ser convidado para compor o grupo dos Vingadores, encontra-se recluso na Índia, exercendo caridosamente a medicina, evitando assim os estresses que trazem Hulk para a superfície. Fica claro no filme que Banner só aceita se unir aos Vingadores porque lhe garantem que o interesse deles é por seu conhecimento a respeito dos raios gama, ou seja, Hulk não será necessário. Neste momento fica evidente: é Banner negando Hulk.
Mas a maior sacada do filme começa numa conversa entre Tony (o Homem de Ferro) e Dr. Banner, na qual este último, ao tratar de sua condição, se refere ao Hulk como “o outro cara”. Tony, por sua vez, ao perceber o incômodo que Hulk é para Banner, relata a este sua própria experiência de também possuir um estranho em seu corpo, no seu caso, o pequeno dispositivo eletrônico que carrega no peito e que mantém seu coração batendo. O que Tony quer mostrar a Banner é que o mesmo estranho responsável por lhe tornar uma aberração, também é o que lhe possibilitou estar vivo. O médico então conclui: - Você está dizendo que Hulk foi o quem me salvou de sucumbir aos raios gama? Tony não responde... Nem é necessário.
O filme segue e, mais tarde, como era previsível, Hulk irrompe no corpo de Dr. Banner depois que este fica perigosamente preso sob uma viga. E após dar vazão a toda a sua ira, destruindo tudo por onde passa, Hulk se retira para longe, a fim de se acalmar e permitir, então, que Banner retorne. Durante sua ausência, o filme segue e chega ao seu clímax: a aguardada luta do bem contra o mal. E é quando os demais Vingadores já se ocupam desta batalha que Banner aparece entre eles, numa motocicleta. Ao vê-lo chegar em sua frágil forma humana, o Homem de Ferro sabiamente recomenda: - Acho bom você começar a ficar com raiva. E a resposta de Banner é genial, e a meu ver, vale por todo o filme. Ele diz: - Vou te contar meu segredo, (e diz isso enquanto vai se transformando no temível monstro verde e parte com sua fúria para socar o inimigo que avança sobre todos), eu sinto raiva o tempo todo. A cena é genial, porque esta frase é iniciada por Banner e finalizada por Hulk. É possível enxergar nela nosso herói atravessando seu fantasma, se apropriando de sua raiva, aquela que vinha tentando de toda maneira negar e esconder. Vemos Banner convocando e assumindo Hulk, e Hulk raciocinando e falando como Banner. Ali não se trata mais de Banner ou Hulk, mas de uma síntese que inclui Banner e Hulk.
Freud, com seu conceito de inconsciente, nos fez compreender que, ao contrário do que tendemos a crer, o eu não é o senhor em sua própria casa. Lacan, em sua releitura de Freud, também vai tratar desta divisão do sujeito afirmando que o sujeito pensa onde não está e está onde não pensa, nos fazendo concluir que o sujeito, na verdade, está nos dois lugares. Partindo dessa premissa da psicanálise poderíamos então concluir que a verdade do meu herói preferido está em Banner e em Hulk, ou seja, ambos são importantes e necessários. A força de Banner está na ira incontrolável de Hulk e a razão de Hulk provavelmente está na inteligência racional de Banner.
Possivelmente amamos os heróis porque nos identificamos com eles. Também recebemos nossos poderes, não tão extraordinários, é bem verdade, mas igualmente perturbadores. Poderes que, às vezes, nos parecem ser nosso maior defeito, mas ao mesmo tempo os responsáveis por nossos maiores êxitos e vitórias. E como fazer se nossa mais potente força é também, nossa pior maldição? O Hulk dos Vingadores nos dá a dica.
Psicanalista
Eu também adoro os super-heróis, especialmente os atormentados, os que têm dúvidas sobre os próprios poderes, os humanos o suficiente para nunca estarem totalmente certos se tais poderes são uma benção ou uma maldição.
Ultimamente têm se produzido muitos filmes protagonizados pelos clássicos heróis dos quadrinhos. Gosto particularmente, daqueles que vão além dos efeitos especiais e da eterna e manjada luta do bem contra o mal e se dedicam a nos revelar a mente atormentada do protagonista, suas fragilidades e, sobretudo, o ônus imposto pelos poderes que receberam, quase sempre, sem o direito de escolha.
A trilogia do Homem-Aranha é um bom exemplo do tipo de filme que sabe explorar muito bem esse aspecto. Demonstra a contradição vivida pelo herói, da leveza ao saltar pelos prédios da cidade para o peso da responsabilidade que lhe recai sobre os ombros: “grandes poderes, grandes responsabilidades”.
Wolverine, o herói mutante, também tem um perfil bastante interessante e bem trabalhado nos filmes da série X-Man. Sempre pouco a vontade na sua condição de herói, tem ainda uma característica peculiar: não consegue usar seus poderes sem sentir dor. É capaz de curar-se rapidamente de qualquer ferimento, mas não é imune a dor, sendo assim, todas as vezes que aciona suas garras de adamantium elas rasgam sua carne e provocam uma dor lancinante, que ele apenas aprendeu a suportar. Carregar satisfação e dor no mesmo pacote também é humano, demasiado humano. Não é incomum que aquilo que nos cause muita satisfação carregue consigo, acesso a dores insuportáveis.
Mas de todos os heróis atormentados Hulk é o meu preferido. Uma pena os últimos filmes deste herói terem explorado mais seus músculos que sua mente atribulada, quase esquizóide. Prefiro o Hulk da década de 80, estrela do seriado Incrível Hulk, de muito sucesso na época. No seriado, Dr. Bruce Banner é um médico cientista que, depois de uma superexposição aos raios gama experimenta uma transformação intensa no corpo - acompanhada de força, resistência e vigor sobre-humanos - sempre que fica com raiva. Raiva essa que nosso herói sempre tenta, mas, nunca consegue controlar. Sendo assim, os atos heróicos do monstro verde, que sempre surge após um acesso de ira, sempre são vistos por Dr. Banner como um erro, um fracasso na tentativa de controlar-se. Fracasso que ele tenta resolver se mudando de uma cidade para outra sempre que Hulk se revela, numa tentativa, também fracassada, de fugir de si mesmo. No final de todo episódio da série, repetia-se a cena de Banner pedindo carona na estrada em direção incerta, cena embalada por uma musiquinha melancólica, aliás, inesquecível.
O que torna Hulk tão especial, a meu ver, é que, diferentemente dos demais heróis, a natureza de seus poderes é involuntária, ou seja, Banner tem muito pouco ou nenhum controle sobre eles. Hulk é para Banner um outro, um estranho. Neste caso, Banner não goza do poder que lhe foi dado, ao contrário, é o poder de Hulk que goza dele, do seu corpo e da sua vida. Nada mais humano que isso, não?
É dito que somos animais racionais, o que supostamente nos possibilitaria ter o controle sobre nossos instintos, paixões e emoções, mas a verdade é que, a todo momento, somos tomados, atropelados por um outro que nossa razão é incapaz de controlar. O tal monstro verde invariavelmente rouba a cena e aí falamos ou fazemos o que não queríamos, poderíamos ou deveríamos falar ou fazer. Mas existe uma pergunta que Banner certamente se faz e que torna seu tormento ainda mais especial e interessante: sua verdade está em Hulk ou no Dr. Banner? Será ele é um Hulk reprimido por Banner ou um Banner atormentado por Hulk? Essa também é uma dúvida que sempre nos atormenta. Quando falamos ou fazemos algo que não queríamos, onde está o nosso eu? No que estava controlado pela razão ou no que conseguiu escapar dela?
O que me provocou a escrever este texto foi o filme - Os Vingadores - lançado nas últimas semanas, e que eu gostei muito, aliás. Gostei, em especial, pelo Hulk do filme, porque ficou psicologicamente mais parecido com aquele do seriado da década de 80. Dr. Banner, antes de ser convidado para compor o grupo dos Vingadores, encontra-se recluso na Índia, exercendo caridosamente a medicina, evitando assim os estresses que trazem Hulk para a superfície. Fica claro no filme que Banner só aceita se unir aos Vingadores porque lhe garantem que o interesse deles é por seu conhecimento a respeito dos raios gama, ou seja, Hulk não será necessário. Neste momento fica evidente: é Banner negando Hulk.
Mas a maior sacada do filme começa numa conversa entre Tony (o Homem de Ferro) e Dr. Banner, na qual este último, ao tratar de sua condição, se refere ao Hulk como “o outro cara”. Tony, por sua vez, ao perceber o incômodo que Hulk é para Banner, relata a este sua própria experiência de também possuir um estranho em seu corpo, no seu caso, o pequeno dispositivo eletrônico que carrega no peito e que mantém seu coração batendo. O que Tony quer mostrar a Banner é que o mesmo estranho responsável por lhe tornar uma aberração, também é o que lhe possibilitou estar vivo. O médico então conclui: - Você está dizendo que Hulk foi o quem me salvou de sucumbir aos raios gama? Tony não responde... Nem é necessário.
O filme segue e, mais tarde, como era previsível, Hulk irrompe no corpo de Dr. Banner depois que este fica perigosamente preso sob uma viga. E após dar vazão a toda a sua ira, destruindo tudo por onde passa, Hulk se retira para longe, a fim de se acalmar e permitir, então, que Banner retorne. Durante sua ausência, o filme segue e chega ao seu clímax: a aguardada luta do bem contra o mal. E é quando os demais Vingadores já se ocupam desta batalha que Banner aparece entre eles, numa motocicleta. Ao vê-lo chegar em sua frágil forma humana, o Homem de Ferro sabiamente recomenda: - Acho bom você começar a ficar com raiva. E a resposta de Banner é genial, e a meu ver, vale por todo o filme. Ele diz: - Vou te contar meu segredo, (e diz isso enquanto vai se transformando no temível monstro verde e parte com sua fúria para socar o inimigo que avança sobre todos), eu sinto raiva o tempo todo. A cena é genial, porque esta frase é iniciada por Banner e finalizada por Hulk. É possível enxergar nela nosso herói atravessando seu fantasma, se apropriando de sua raiva, aquela que vinha tentando de toda maneira negar e esconder. Vemos Banner convocando e assumindo Hulk, e Hulk raciocinando e falando como Banner. Ali não se trata mais de Banner ou Hulk, mas de uma síntese que inclui Banner e Hulk.
Freud, com seu conceito de inconsciente, nos fez compreender que, ao contrário do que tendemos a crer, o eu não é o senhor em sua própria casa. Lacan, em sua releitura de Freud, também vai tratar desta divisão do sujeito afirmando que o sujeito pensa onde não está e está onde não pensa, nos fazendo concluir que o sujeito, na verdade, está nos dois lugares. Partindo dessa premissa da psicanálise poderíamos então concluir que a verdade do meu herói preferido está em Banner e em Hulk, ou seja, ambos são importantes e necessários. A força de Banner está na ira incontrolável de Hulk e a razão de Hulk provavelmente está na inteligência racional de Banner.
Possivelmente amamos os heróis porque nos identificamos com eles. Também recebemos nossos poderes, não tão extraordinários, é bem verdade, mas igualmente perturbadores. Poderes que, às vezes, nos parecem ser nosso maior defeito, mas ao mesmo tempo os responsáveis por nossos maiores êxitos e vitórias. E como fazer se nossa mais potente força é também, nossa pior maldição? O Hulk dos Vingadores nos dá a dica.
sábado, 7 de abril de 2012
Drogas e situação de rua: o “Consultório de Rua” como estratégia.
Por: Rita de Cássia Araújo Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental - SUS
Esta semana tive a grata satisfação de participar de uma reunião entre o Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora e a Secretaria de Assistência Social, cujo objetivo era apresentar o “Consultório de Rua”: modalidade de intervenção implantada no município há cerca de dois meses, com o propósito de ofertar ações de proteção, promoção, cuidado e prevenção em saúde para população em situação de rua.
O “Consultório de Rua” é uma experiência que surgiu no final da década de 90, em Salvador, com a finalidade de atender a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social, agravados pelo do uso ou dependência de drogas. A ideia é a de um consultório a céu aberto, itinerante, provido de equipe multiprofissional, que ofereça atendimento no contexto de vida do sujeito em situação de rua, promovendo acessibilidade a serviços de saúde e assistência, garantindo cidadania e exercício de direitos, e resgatando os laços familiares, comunitários e/ou sociais. Os princípios que norteiam tal estratégia são os mesmos do SUS – universalidade, equidade e integralidade – e outros não menos importantes: respeito ao modo de vida do sujeito, respeito aos direitos humanos e a utilização da estratégia de redução de danos.
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a eles: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado genericamente de “cracolândia”. Muitos municípios estão optando por estratégias meramente higienistas para intervir nesses espaços, sendo que elas podem ser de dois tipos: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação.
Os resultados dessas estratégias higienistas são semelhantes àqueles que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória. As intervenções baseadas no recolhimento se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde: é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma "doença" onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. No caso das drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Os “Consultórios de Rua”, por sua vez, apostam nas pontes. Pontes que acolhem ao invés de recolher e aproximam ao invés de espantar. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Mas, enfim, se estamos procurando as estratégias mais eficientes, estruturadas e duradouras não podemos recuar diante das dificuldades e fico feliz que meu município não tenha recuado. E espero, ansiosamente, que muito mais pontes como essa sejam construídas.
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental - SUS
Esta semana tive a grata satisfação de participar de uma reunião entre o Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora e a Secretaria de Assistência Social, cujo objetivo era apresentar o “Consultório de Rua”: modalidade de intervenção implantada no município há cerca de dois meses, com o propósito de ofertar ações de proteção, promoção, cuidado e prevenção em saúde para população em situação de rua.
O “Consultório de Rua” é uma experiência que surgiu no final da década de 90, em Salvador, com a finalidade de atender a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social, agravados pelo do uso ou dependência de drogas. A ideia é a de um consultório a céu aberto, itinerante, provido de equipe multiprofissional, que ofereça atendimento no contexto de vida do sujeito em situação de rua, promovendo acessibilidade a serviços de saúde e assistência, garantindo cidadania e exercício de direitos, e resgatando os laços familiares, comunitários e/ou sociais. Os princípios que norteiam tal estratégia são os mesmos do SUS – universalidade, equidade e integralidade – e outros não menos importantes: respeito ao modo de vida do sujeito, respeito aos direitos humanos e a utilização da estratégia de redução de danos.
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a eles: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado genericamente de “cracolândia”. Muitos municípios estão optando por estratégias meramente higienistas para intervir nesses espaços, sendo que elas podem ser de dois tipos: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação.
Os resultados dessas estratégias higienistas são semelhantes àqueles que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória. As intervenções baseadas no recolhimento se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde: é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma "doença" onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. No caso das drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Os “Consultórios de Rua”, por sua vez, apostam nas pontes. Pontes que acolhem ao invés de recolher e aproximam ao invés de espantar. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Mas, enfim, se estamos procurando as estratégias mais eficientes, estruturadas e duradouras não podemos recuar diante das dificuldades e fico feliz que meu município não tenha recuado. E espero, ansiosamente, que muito mais pontes como essa sejam construídas.
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