sábado, 7 de abril de 2012

Drogas e situação de rua: o “Consultório de Rua” como estratégia.

Por: Rita de Cássia Araújo Almeida

Trabalhadora da Rede de Saúde Mental - SUS

Esta semana tive a grata satisfação de participar de uma reunião entre o Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora e a Secretaria de Assistência Social, cujo objetivo era apresentar o “Consultório de Rua”: modalidade de intervenção implantada no município há cerca de dois meses, com o propósito de ofertar ações de proteção, promoção, cuidado e prevenção em saúde para população em situação de rua.

O “Consultório de Rua” é uma experiência que surgiu no final da década de 90, em Salvador, com a finalidade de atender a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social, agravados pelo do uso ou dependência de drogas. A ideia é a de um consultório a céu aberto, itinerante, provido de equipe multiprofissional, que ofereça atendimento no contexto de vida do sujeito em situação de rua, promovendo acessibilidade a serviços de saúde e assistência, garantindo cidadania e exercício de direitos, e resgatando os laços familiares, comunitários e/ou sociais. Os princípios que norteiam tal estratégia são os mesmos do SUS – universalidade, equidade e integralidade – e outros não menos importantes: respeito ao modo de vida do sujeito, respeito aos direitos humanos e a utilização da estratégia de redução de danos.

Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a eles: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado genericamente de “cracolândia”. Muitos municípios estão optando por estratégias meramente higienistas para intervir nesses espaços, sendo que elas podem ser de dois tipos: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação.

Os resultados dessas estratégias higienistas são semelhantes àqueles que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória. As intervenções baseadas no recolhimento se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde: é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma "doença" onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?

Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. No caso das drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).

Os “Consultórios de Rua”, por sua vez, apostam nas pontes. Pontes que acolhem ao invés de recolher e aproximam ao invés de espantar. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.

Mas, enfim, se estamos procurando as estratégias mais eficientes, estruturadas e duradouras não podemos recuar diante das dificuldades e fico feliz que meu município não tenha recuado. E espero, ansiosamente, que muito mais pontes como essa sejam construídas.

sábado, 24 de março de 2012

"Incêndios"

Por Rita de Cássia Araújo Almeida
Psicanalista

Ao acessar a palavra o ser humano perdeu o paraíso para sempre, ou seja, a realidade tornou-se a partir de então, inacessível. E uma das conseqüências do acesso humano à dimensão simbólica da palavra é que toda história de vida é sempre uma ficção. Sempre. Não habitamos o mundo real, habitamos a palavra. E na medida em que é uma ficção, toda história de vida pode ser recontada, até o último momento, ou até mesmo depois da morte.

“Incêndios”, filme de Denis Villeneuve, trata desse tema de maneira brilhante, tão brilhante que quase nos sufoca (talvez seja esse o motivo do título do filme)

A psicanálise se baseia exatamente nessa premissa: a de que a ficção na qual existência de um sujeito se sustenta pode ser reelaborada, redimensionada, reconstruída, reinventada, recontada, sem, obviamente jamais perder a condição de uma ficção. Mas afinal, qual o motor responsável por possibilitar que uma história possa ser recontada? Freud chamou isso de transferência. Propôs então, uma técnica onde o analista se colocaria na condição de suportar a transferência do analisando, que poderia, nessa posição, recontar a própria história. A transferência freudiana, no entanto, nada mais é que um outro nome para o amor. E o que é o amor? A melhor definição de amor para nosso propósito aqui é a de Lacan: “o amor é dar o que não se tem”. Em outras palavras, só é capaz de amar aquele que acredita que alguma coisa lhe falta, ou seja, quem acredita estar completo, pronto e acabado, é incapaz de amar.

Temos assim que o amor é profundamente revolucionário, apenas ele pode dar ao sujeito possibilidade de mudar sua própria história e a história daqueles que o cercam, porque somente por meio amor nos mantemos incompletos, no entendimento de que a nossa história de vida ainda não está pronta, acabada e definida. É somente o amor que nos abre a possibilidade de que alguma coisa ainda está por vir. Pode haver algo mais revolucionário que isso?

Voltando ao filme,“Incêndios” conta a história de uma mulher, Nawal Marwan, que tem sua história recontada com a ajuda dos filhos, Jeanne e Simon, e cujo ponto de partida é a leitura do seu testamento. Nawal Marwan é movida pelo amor, ou seja, por uma falta: a perda de um filho que passou a vida procurando. Ao viabilizar esse reencontro com o filho perdido pela mão de seus filhos, já que ela mesma está morta, nossa heroína provoca uma revolução tão intensa que é capaz de modificar não apenas a sua própria história, mas a que é contada antes dela e a que será contada depois de sua morte, por seus filhos e netos, e todas as gerações que lhe sucederem. Nawal Marwan nos faz entender que a história de uma vida não inicia com um nascimento biológico e nem termina com a morte, já estava sendo contada antes e, certamente, continuará sendo contada depois. A tragédia que o filme aborda, trata da limitação da nossa existência biológica, e ao mesmo tempo toca na dimensão da eternidade que pode ser alcançada no plano simbólico, quando o amor cria uma falta suficiente para impedir que uma história seja completada, ou seja, chegue ao seu fim.

Nawal Marwan afirma, em certo momento, que o amor foi capaz de arrebentar a corrente do ódio. O ódio ao qual ela se refere é aquele que alimenta os conflitos e guerras em sua terra natal, a Palestina, ódio no qual sua própria história está incrustada. Enquanto o ódio apenas lhe permitia repetir uma história que já havia antes dela mesma, o amor produz em Nawal Marwan um movimento libertador e revolucionário, o de que sua história não está pronta e definida, não está completa, podendo, por isso, ser modificada.

“Incêndios” nos arrebata de muitas maneiras diferentes. A partir dele entendemos que nenhuma tragédia, por mais desgraçada e vil, nunca fica impassível diante do amor. O amor é capaz de reinventar qualquer história, é capaz de sustentar até mesmo uma operação matemática que nos parece absurda; movido pelo amor 1+1 pode ser igual a 1, como nos faz concluir o filme. Enfim entendemos que a morte não é o fim de uma história, a morte chega quando o amor acaba.

Para encerrar, só me resta aplaudir este filme de pé e recomenda-lo. Mas, cuidado, para entrar nesse “Incêndio” recomendo um balão de oxigênio.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Porqué yo apoyo a Cuba.

Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicoanalista

Traducción Franco López Marín
Periodista

Texto em português: http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com/2012/02/sobre-ultimos-soldados-da-guerra-fria-e.html


”Os Últimos Soldados da Guerra Fria” de Fernando Morais es un libro extraordinario. Si no supiéramos que está siendo contado por el autor, tras un fruto de años de trabajo e investigación, podríamos considerarlo como un excelente romance de espías. Sin embargo, no se trata de ficción. La intención del autor es retratar (partiendo de evidencias, registros, documentos, noticias de diarios y relatos de los propios personajes) el escenario político mundial al final de la Guerra Fría. Siendo Cuba y Estados Unidos los protagonistas, lo que vuelve aún más cautivante la obra.

Cuenta la historia que, después de la caída de la Unión Soviética, Cuba se dedicó a estimular el turismo, como una forma de aminorar la crisis económica que se agravaba en la isla, ya que aquel país era su principal socio económico. Durante ese período, grupos anticastristas radicales de Floridad aprovecharon para promover atentados terroristas contra Cuba, con la clara intención de asustar a los turistas, debilitando el gobierno de Fidel Castro. En cinco años, fueron 127 ataques y a pesar de las decenas de reclamos oficiales enviados por Cuba al gobierno estadounidense, ninguna medida fue tomada para reprimirlos.

Fidel llegó a enviar una carta a Bill Clinton, entonces presidente, denunciando organizaciones de extrema derecha que funcionaban en territorio americano, teniendo incluso como ‘palomo mensajero’ a nada menos que Gabriel García Márquez. En esa carta, Fidel da prácticamente una profecía. Al pedir que Clinton se empeñe en abortar las acciones terroristas que estaban siendo maquinada en EE.UU. Fidel defendía que si las medidas no iban a ser tomadas, ‘cualquier país del mundo podrá ser víctima de tales actos’. Años más tarde, como sabemos, EE.UU. serían víctima de atentados terroristas. Sin el apoyo de los EE.UU. y de las organizaciones internacionales, Cuba decir tomar providencias por si misma y crea la Red Vespa: un grupo selecto de doce hombres y dos mujeres que reciben la misión de infiltrarse en algunas de las 41 organizaciones terroristas de extrema derecha en los Estados Unidos, a fin de recoger informaciones que pudiesen anticipar posibles ataques. El libro cuenta, justamente, la increíble historia de esos “soldados” enviados por Fidel a EE.UU., todos travestidos de desertores del régimen cubano.

El libro de Morais nos provoca innumerables emociones, siendo que algunas de ellas nos afectarán con mayor fuerza a nosotros, militantes o partidarios de Izquierda. Y el mayor mérito del libro es contar la historia de las relaciones entre EE.UU. y Cuba de otra perspectiva, diferente de la estadounidense que la gran mayoría acepta como única, sólo por ser considerada la versión oficial. Terminada la lectura, incluso los menos críticos o poco entendidos de política internacional, van a comprender mejor los motivos de algunas conducciones del gobierno cubano y el Bloqueo estadounidense a Cuba les parecerá aún más insano y cruel.

El libro también lanza a la luz una pregunta que intriga a muchos de nosotros: ¿por qué esa pobre y minúscula isla del Caribe, sin ningún poder en el escenario político internacional incomoda tanto al poderoso Estados Unidos?. Y que nadie venga a decir que es el interés americano por ‘la defensa de la democracia’.
Todos sabemos que ese mismo gobierno defendió y sustentó, durante mucho tiempo la cruel dictadura de Fulgencio Batista en la isla caribeña, así como lo hizo con otras dictaduras por el mundo.

Después de leer “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, mi respeto por Cuba y por la Revolución Cubana aumentó aún más. Aún con todos los errores que el Gobierno Cubano pueda haber cometido, no se puede dejar de respetar un país minúsculo, pobre y desprovisto de poder político en el escenario mundial, que aunque con toda la presión y persecución sufrida y víctima de un Bloqueo de medio siglo, haya conseguido mantener índices de desarrollo humano que provocan la envidia de cualquier país del mundo. Para quien no sabe: Cuba tiene una tasa de alfabetización 99,8% (la mayor del mundo según las Naciones Unidas), una tasa de mortalidad infantil de uno para cada 5.000.000 de nacidos (inferior a la de EE.UU) y una expectativa de vida media de 78 años (mayor que la de EE.UU). 98% de los cubanos reciben energía eléctrica y tienen acceso al agua potable y saneamiento básico, el acceso a la salud y a la educación es universal y gratuito. Si la medición del Índice de Desarrollo Humano no lleva en cuenta el PIB per cápita (producto interno bruto) (en ese caso, Cuba pierde puntuación por tener un PIB bajo), Cuba estaría entre los primeros en IDH. O sea, aún tiene el mérito de conseguir hacer más que el propio EE.UU., con mucho, mucho menos.

Después de algunos días necesarios para digerir el impacto de ese libro sobre mis convicciones, lo que puedo decir hoy es que yo apoyo inmensamente a Cuba. Soy hincha de un país que se ha mantenido como único punto de resistencia al capitalismo liberal, prácticamente hegemónico en el mundo actual.Apoyo al pueblo cubano que ha soportados con fuerza y altivez medio siglo de embate y un embargo, luchando contra un Imperio. Hincho para que Cuba continúe en la búsqueda de mejores condiciones para su pueblo, y que lo haga como siempre lo ha hecho, con su propio modo, a partir de sus convicciones e ideologías y no por la influencia de otros. Marx concebía el Comunismo como un movimiento que reacciona a los antagonismos del capitalismo y no como un modelo de sociedad ideal. Siendo así, mientras el capitalismo exista, con sus contradicciones y desigualdades, la ‘hipótesis comunista’, como dice Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma aún más: “si esa hipótesis tiene que ser abandonada, entonces no vale más la pena hacer nada en la orden de la acción colectiva. (...) Cada individuo puede cuidar de su vida y no se habla más de eso”.

Es importante aclarar que no se puede confundir ‘hipótesis comunista’ con cualquier atrocidad cometida en nombre del comunismo. También, vale recordar que innumerables atrocidades fueron cometidas a lo largo de la historia en nombre de las más nobles causas: en nombre de la paz, en nombre de Dios o Alá, en nombre de la democracia... la lista es larga.
Siendo así, no existe sociedad ideal, todas, a su modo, poseen sus virtudes y pecados. Pero, la mayor virtud de Cuba, a mi modo de ver, es aún mantener su resistencia; una “piedra en el zapato” del capitalismo mundial. Cuba cumple la misión de aún mantener viva la hipótesis de un mundo en el cual somos considerados seres humanos y no apenas consumidores, donde la naturalez sea vista como una Madre generosa y no como materia prima para ser molida en la máquina consumista (según la WWF, Cuba es el único país del mundo con desarrollo sustentable), y en el cual la noción de solidaridad no es tragada por su versión pervertida: la caridad –quien tiene más (dinero) da a quien tiene menos (los Medios no divulgan, pero después del terremoto que devastó Haití en 2008, a pesar de que las naciones más ricas del mundo prometieron misiones humanitarias monumentales, después de algunos meses, sólo continúan allá, “Médicos sin Fronteras” y la brigada de 1.200 médicos cubanos, especializada en desastres de emergencia, brigada que fue rechazada por los norteamericanos, después de del Huracán Katrina y la primera en llegar y la última en salir de Pakistán, después del terremoto de 2005).
Es por todo eso que refuerzo aqui mi apoyo por Cuba, soy hincha para que ese minúsculo y grandioso país continúe librándonos de un mundo donde el capitalismo sea la única hipótesis posible.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Sobre "Os Últimos Soldados da Guerra Fria" e sobre porque eu torço por Cuba

por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Os Últimos Soldados da Guerra Fria de Fernando Morais é um livro extraordinário. Caso não soubéssemos que tudo que está sendo contado nele é fruto de anos de trabalho de campo feito pelo autor, poderíamos considerá-lo apenas um excelente romance de espionagem. Entretanto, não se trata de uma ficção. A intenção do autor é retratar (partindo de evidências, registros, documentos, notícias de jornal e relatos dos próprios personagens) o cenário político mundial no final da Guerra Fria, tendo Cuba e Estados Unidos como protagonistas, o que torna a obra ainda mais cativante.

Conta a história que, após a queda da União Soviética, Cuba se dedicou a estimular o turismo, numa tentativa de minorar a crise econômica que se agravava na ilha, já que aquele país era seu principal parceiro comercial. Durante esse período, grupos anticastristas radicais da Flórida aproveitaram para promover atentados terroristas a Cuba com a clara intenção de assustar os turistas enfraquecer o Governo de Fidel Castro. Em cinco anos foram 127 ataques e apesar das dezenas de reclamações oficiais enviados por Cuba ao Governo Americano, nenhuma medida foi tomada para reprimi-los. Fidel chega a enviar uma carta a Bill Clinton, então presidente, denunciando organizações de extrema direita que funcionavam em território americano, tendo como pombo-correio ninguém menos que Gabriel Garcia Marques. Nesta carta Fidel faz praticamente uma profecia. Ao pedir que Clinton se empenhe em abortar as ações terroristas que estão sendo maquinadas em território americano, Fidel defende que se medidas não forem tomadas, “em breve qualquer país do mundo poderá ser vítima de tais atos”. Anos mais tarde, como sabemos, os Estados Unidos seriam a vítima de atentados terroristas.

Sem o apoio dos EUA e das organizações internacionais, Cuba decide tomar providências por si e cria a Rede Vespa: um grupo seleto de doze homens e duas mulheres que recebem a missão de se infiltrarem em algumas das 41 organizações terroristas de extrema direita nos EUA, a fim de colherem informações que pudessem antecipar possíveis ataques. O livro conta, justamente, a incrível história desses “soldados” enviados por Fidel aos EUA, todos travestidos de desertores do regime cubano.

O livro de Morais nos provoca inúmeras emoções, sendo que algumas delas atingirão com mais força a nós, militantes ou partidários de esquerda. E o maior mérito do livro é contar a história das relações entre EUA e Cuba de uma outra perspectiva, diferente da americana que a grande maioria acredita ser a única versão, apenas por ser considerada a versão oficial. Terminada a leitura, mesmo os menos críticos ou pouco entendedores de política internacional, vão compreender melhor os motivos de algumas conduções do Governo Cubano, e o bloqueio americano a Cuba lhes soará ainda mais insano e cruel.

O livro também lança luz sobre uma questão que intriga a muitos de nós: porque essa pobre e minúscula ilha do caribe, sem nenhum poder no cenário político internacional incomoda tanto o poderoso EUA? E que ninguém venha me dizer que o interesse americano é pela “defesa da democracia”. Todos sabemos que esse mesmo governo defendeu e sustentou, durante muito tempo, a ditadura cruel de Fulgêncio Batista na ilha caribenha, assim como fez por outras ditaduras pelo mundo.

Depois de ler Os Últimos Soldados da Guerra Fria, meu respeito por Cuba e pela Revolução Cubana aumentou ainda mais. A despeito de todos os erros que o Governo Cubano possa ter cometido, não podemos deixar de respeitar um país minúsculo, pobre e desprovido de poder político no cenário mundial que, mesmo com toda a pressão e perseguição sofrida e vítima de um bloqueio econômico de meio século, tem conseguido manter índices de desenvolvimento humano de fazer inveja a qualquer país do mundo. Pra quem não sabe: Cuba tem uma taxa de alfabetização de 99,8% (a maior do mundo segundo as Nações Unidas), uma taxa de mortalidade infantil de um para cada 5.000.000 nascidos (inferior a do EUA) e uma expectativa de vida média de 78 anos (maior que a dos EUA). 98% dos cubanos recebem energia elétrica e tem acesso a água potável e saneamento básico, e o acesso à saúde e a educação é universalizado e gratuito. Não fosse a medição do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) levar em conta o PIB per capta (e nesse caso, Cuba perde pontuação por ter um PIB baixo), Cuba estaria entre os primeiros no IDH. Ou seja, ainda tem o mérito de conseguir fazer mais que o próprio EUA, com muito, muito menos.

Depois de alguns dias necessários para digerir o impacto desse livro sobre minhas convicções o que posso dizer hoje é que eu torço imensamente por Cuba. Torço por esse país que tem se mantido como o único ponto de resistência ao capitalismo liberal, praticamente hegemônico no mundo atual. Torço pelo povo cubano que tem suportado com força e altivez meio século de embate e embargo, lutando contra um império. Torço para que Cuba continue na sua busca por melhores condições para seu povo, e que o faça como tem feito, a seu próprio modo, a partir de suas próprias convicções e ideologias e não por influência de outrem.

Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal. Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso.”

É importante esclarecer que não se pode confundir a “hipótese comunista” com quaisquer atrocidades cometidas em nome do comunismo. Também, vale lembrar que inúmeras atrocidades têm sido cometidas ao longo da história em nome das mais nobres causas; em nome da paz, em nome de Deus ou Alá, em nome da democracia...a lista é longa.

Sendo assim, não existe sociedade ideal, todas, a seu modo, possuem suas virtudes e pecados. Mas a maior virtude de Cuba, a meu ver, é a de ainda se manter como esse ponto de resistência; uma “pedra no sapato” do capitalismo mundial. Cuba cumpre a missão de ainda manter acesa a hipótese de um mundo no qual somos considerados seres humanos e não apenas consumidores, onde a natureza seja vista como uma Mãe Generosa e não como matéria prima para ser moída na máquina consumista (segundo o último relatório do WWF Cuba é o único país do mundo com desenvolvimento sustentável), e no qual a noção de solidariedade não seja engolida pela sua versão pervertida: a caridade – quem tem mais (dinheiro) dá a quem tem menos (a mídia não divulga, mas, depois do terremoto que devastou o Haiti em 2008, apesar das nações mais ricas do mundo prometerem missões humanitárias monumentais, depois de alguns meses, só continuaram por lá os Médicos Sem Fronteiras e a brigada de 1.200 médicos cubanos, especializada em desastres e emergência, brigada que foi rejeitada pelos norteamericanos após o furacão Katrina e a primeira a chegar e última a sair do Paquistão, após o terremoto de 2005).

É por tudo isso que reforço aqui minha torcida por Cuba, torço para que esse minúsculo e grandioso país continue nos livrando de um mundo onde o capitalismo seja a única hipótese possível.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A epidemia de doenças mentais

Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
psicanalista

Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.

Mas a novela Machadiana - publicada pela primeira vez em 1882 - nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.

Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud - considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas - dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.

É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.