terça-feira, 13 de julho de 2010

Quando a guerra é a pior estratégia

Rita de Cássia de Araújo Almeida
trabalhadora da rede de saúde mental do SUS

Não faz muito tempo que a questão do abuso ou dependência de drogas ilícitas deixou de ser “caso de polícia”, pelo menos no âmbito legal. Para sermos mais específicos é a partir da lei n° 11.343/2006 que traficante e usuário de substâncias ilícitas são colocados em territórios distintos. Enquanto o primeiro continua sendo problema de segurança pública, o último passa a ser preocupação das políticas de saúde.
Lamentavelmente, apesar de contarmos com esse avanço legal importante, que descriminaliza o usuário ou dependente, o uso de drogas ilícitas ainda permanece envolto em uma nuvem de preconceitos e mitos, que contaminam nossa forma de abordar o tema, em especial quando o assunto é tratamento. Infelizmente, ainda enxergamos uma associação direta entre o uso de drogas e delinqüência ou criminalidade, visão exaustivamente reforçada pela mídia.
Isso tem gerado uma certa confusão quando o assunto é oferecer tratamento para o sujeito que se encontra adoecido pelo uso de drogas. Além de vítima da doença, ele se torna também vítima do preconceito e da retaliação da sociedade, o que intensifica os danos, ainda mais quando o sujeito já se encontra em estado de vulnerabilidade social.
O SUS tem sido convocado a dar respostas para tal problemática, que cada vez mais é colocada como evidente e urgente, especialmente com a chamada “epidemia do crack”. Entretanto, a nuvem de preconceitos que envolve o tema precisa ser dissipada, para que não façamos política de saúde utilizando estratégias de guerra. Sabemos que as guerras produzem sempre muitas vítimas e muito poucas soluções, e nesse caso, as vítimas tem sido aqueles para os quais as políticas deveriam oferecer cuidado: os drogadictos.
É importante reiterar: não se faz política de saúde utilizando estratégias de guerra, pelo menos, não quando a intenção é democratizar, humanizar e promover a inserção social, diretrizes fundamentais da política de saúde mental que o SUS vem implementando. Por isso, precisamos abolir formas de tratamento que se utilizem de verbos do tipo: combater, reprimir, tutelar, capturar, aprisionar, perseguir, ameaçar, cercear, coibir, atacar ou amedrontar. Técnicas muito úteis quando se está numa frente de batalha. Por outro lado, precisamos reforçar estratégias de tratamento que façam uso dos verbos: cuidar, acolher, compreender, abrigar, escutar, oferecer, apaziguar, esperar, confiar, apoiar e possibilitar, essas sim, fortalecedoras de laço e produtoras de vida.
Muito se fala sobre a morte como destino do sujeito adoecido pelo uso de drogas, mas o que não se diz é que a morte que realmente ameaça esse sujeito é a “morte social”. Esta sim é a mais perigosa, a que chega primeiro e a que, se não cuidada em tempo, pode provocar a morte do corpo. Isso nos indica que em se tratando de política de saúde não estamos, ou pelo menos não deveríamos estar, em guerra contra as drogas ou contra aqueles que as utilizam, já que esse é o caminho mais rápido para acelerarmos tal “morte social”.
Concluindo, fazer alguma coisa em política de saúde não significa fazer qualquer coisa. Sendo assim, para propormos formas de cuidado e tratamento aos sujeitos adoecidos pelo uso de drogas é fundamental que não esqueçamos que nosso compromisso é com as pessoas e com a vida, coisas que numa guerra possuem o valor de quase nada.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Diretas já!

por Rita de Cássia A Almeida
torcedora brasileira, amante de futebol


Sou a favor de eleições diretas para técnico da Seleção Brasileira de Futebol. Seria o auge da nossa democracia. As plataformas dos candidatos seriam do tipo: “Se eu for eleito, convocarei o Ganso e o Neimar”. “Sob meu comando, os treinos serão abertos e todas as redes de TV terão igualdade de oportunidade na cobertura dos bastidores dos campeonatos”. “Eu prometo nunca mais permitir que elejam Fátima Bernardes como musa da Copa”. E outras promessas desse tipo. Tenho pra mim que a campanha dessa eleição seria sucesso de participação e dedicação do povo brasileiro em escolher o melhor candidato. Imagine se entregaríamos nossa amada seleção na mão de um aventureiro qualquer? O passado dos candidatos seria investigado a exaustão. Discutiríamos seus métodos de trabalho, suas preferências, seus esquemas táticos e disciplinares na condução dos trabalhos.

Dizem que brasileiro não tem memória. Isso não é verdade! Pelo menos, não quando falamos de futebol. Alguém se esquece da escalação da “seleção dos sonhos” de 82, que acabou tropeçando na Itália? E do nome dos nossos maiores carrascos? Rossi, Zidane, Thierry Henry - só pra citar os mais recentes. E da “arrumadinha no meião” do Roberto Carlos, retrato do vexame de 2006? Eu tenho lembranças da copa de 70, só de ouvir meu pai contar e assistindo as reprises na TV, já que tinha apenas 1 ano de idade na ocasião. E se memória nos torna capazes de não cometermos erros repetidos, nossa capacidade de escolher o melhor técnico para a seleção, então, aumenta muito.

Seguindo o estilo Macunaíma também temos fama de sermos um povo moralmente flexível. Tudo é perdoável: traição, corrupção e safadezas das mais diversas. Só não arredamos o pé de nossas convicções morais em certas situações: jogo feio, passe errado, gol perdido e falta de raça. Ah, não! Isso é imperdoável!

Sendo assim, continuo na defesa da consulta popular para escolher o técnico da Seleção. Encerrada a Copa do Mundo, daríamos o pontapé inicial da campanha para as eleições do comandante do nosso exército de chuteiras pelos próximos quatro anos. Ou dois, caso a coisa desande demais. Poderíamos até aproveitar a organização já montada para as eleições de outubro, sempre coincidentes com o ano da Copa do Mundo. A cédula eletrônica ficaria nesta ordem: Técnico da Seleção Brasileira de Futebol, Presidente, Senador, Deputado, e assim por diante. A partir deste dia as eleições poderiam deixar de ser obrigatórias. Quem vai ser o doido ou alienado de não defender suas convicções futebolísticas nas urnas? E depois deste primeiro ensaio verdadeiramente democrático, receio que o povo, consolidando de vez nossa jovem democracia, também exigiria ser consultado para escalar a seleção. Cada um teria a oportunidade de votar em seu time de preferência para nos representar diante do mundo. Seria a gloria! Eu já tenho a minha seleção na ponta da língua. E você?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Não se educa sem traumatizar.

Por: Rita de Cássia de A. Almeida
Psicanalista


Dedico este texto em homenagem e em gratidão à Irmã Estefânia, saudosa diretora do Colégio Santa Catarina de Juiz de Fora/MG.

Cursei o segundo grau em um tradicional colégio de freiras, de 1983 a 1985 e essa semana andei lutando com algumas lembranças daquela época. Lembrei-me especialmente de uma das freiras, a que ocupava o cargo de diretora na ocasião: Irmã Estefânia. Irmã Estefânia era o verdadeiro terror da escola, a quem temíamos e odiávamos. Nosso pior pesadelo era ser alvo de suas repreensões ou mesmo cruzar o seu caminho por algum motivo. Mas na verdade, Irmã Estefânia, era praticamente uma sombra, quase nunca a víamos, não circulava nos corredores, falava pouco e nem era acessível aos pais ou professores. Sua presença só era convocada em situações extremas.

Mergulhada nessas lembranças recordei de uma vez, a única vez na qual eu e minha turma fomos o alvo da ira e rabugice daquela mulher. Alguém da turma – que não me lembro quem – inventara uma tal de “bolinha espacial”. Uma bolinha de papel um pouco mais sofisticada, feita de papel alumínio (reutilizado para tal fim após cumprir a função de embalar um sanduíche para a merenda). O fato é que essa “bolinha espacial” era extremamente poderosa, fazia um estrago quando arremessada na cabeça de alguém (e o propósito era exatamente esse). Portanto, quem se apoderava da tal bolinha, já que todas as outras eram de papel comum, era temido e respeitado pelos demais alunos e podia experimentar, ainda que por alguns instantes, a sensação de ter o poder nas mãos e de expressar sua agressividade contra alguém que elegesse como alvo. Essa brincadeira durou várias semanas, sem grandes contratempos: ninguém reclamou de levar bolada na testa ou no olho, ninguém se sentiu vítima de nenhuma violência ou bullying (como nomeiam agora), ninguém reclamou pra nenhum professor, pro pai, pra mãe e ninguém foi encaminhado ao psicólogo ou psiquiatra. Mas, um belo dia... Alguém errou a pontaria e ao invés acertar um colega, acertou a lâmpada fluorescente da sala, que estourou e se desfez sobre nossas cabeças em mil pedaços. Um silêncio sepulcral tomou conta da sala e a frase que todos nós temíamos foi dita minutos depois: - Chamem a Irmã Estefânia!

O tempo que se passou entre essa frase e a chegada da nossa inquisidora foi um dos piores que talvez eu tenha passado até então, e certamente, por isso, jamais me esqueci. Lembro-me do medo que senti, da dor de barriga e do gosto amargo que me vinha na boca só de pensar que meus pais saberiam do ocorrido. Também me lembro da chegada triunfante de Irmã Estefânia, dos berros que ela dava e de sua feição cruel e ameaçadora. Não me lembro do castigo que com certeza nos foi imposto, me lembro apenas que recebemos uma punição coletiva, porque nos recusamos a acusar o autor da façanha. Ah! E depois, meu castigo em casa foi dobrado porque minha mãe teve que comparecer na escola, para dar explicações... Enfim diria que o episódio da “bolinha espacial” foi um trauma em minha vida.

Numa visada superficial, ou talvez numa visada atual, Irmã Estefânia seria apenas uma mulher cruel, prepotente e mandona, que exercia sua sede de poder e seu sadismo sobre pobres e inocentes adolescentes. Mas, avaliando mais profundamente, a função que ela cumpria foi fundamental para nós. Hoje entendo que Irmã Estefânia, na verdade, não era tão somente uma castradora, mas, sobretudo, uma possibilitadora. Como tínhamos uma figura definida a quem dirigir nosso ódio, nossa repulsa, nosso temor, já que podíamos elegê-la a bruxa ou o demônio que infernizaria nossas vidas – a perseguidora responsável por nossos maiores infortúnios – podíamos, por outro lado viver numa relação de harmonia e irmandade com todos os demais membros da escola, professores, funcionários e alunos. O que ficava claro sem precisar ser dito era: todos submetidos à Irmã Estefânia e todos contra a Irmã Estefânia.

Apesar de citar apenas esse exemplo me recordo de muitas outras figuras da minha infância e juventude que cumpriram função semelhante à de Irmã Estefânia. Figuras temidas, respeitadas e odiadas que invariavelmente nos traumatizavam, facilitando bastante as coisas para nós. De fato, nossos pais também ocupavam em maior ou menor medida tal função, suportavam nossa raiva e não tinham medo de nos traumatizar com suas atitudes ou palavras. Eram também castradores-possibilitadores.

Sou mãe de dois adolescentes e vejo que eles não tem tido a mesma sorte que eu tive, afinal, figuras como Irmã Estefânia não existem mais, já que ninguém mais está autorizado assumir tal função, ou melhor, ninguém mais suporta ocupar essa função. Nós, pais e mães, temos medo de despertar a rebeldia de nossos filhos, professores temem ser alvo da ira de seus alunos e assim por diante. Isso faz com que a necessidade de nossos jovens de serem traumatizados, de terem medo, de sentirem ódio ou repulsa por alguém sem precisar de nenhum fato real para tal, tenha ficado completamente prejudicada. Sim, porque avaliando melhor agora, percebo que Irmã Estefânia na verdade, não fez nada de real que merecesse nosso temor e ódio, ela apenas representava um papel, assumia uma figura simbólica traumática extremamente facilitadora.

No entanto, os manuais de educação atuais dizem que devemos ter muito cuidado para não traumatizar nossos filhos ou alunos. Manuais que nos prometem um mundo totalmente higienizado, livre de todo e qualquer mal-estar. Mas o que tais manuais se esquecem de dizer é que, em última instância, nenhuma educação é feita sem traumas, ou seja, educar é invariavelmente traumático, violento, uma forma de impor os preceitos e normas de uma sociedade a um sujeito que quer apenas e tão somente, fazer o que quer, como quer e na hora que bem entender (todos já devem ter convivido com uma criança de 3 anos). Sendo assim, não é possível educar sem traumas, sem violentar de alguma maneira o querer do outro, assim como também não é possível crescer sem se rebelar contra alguém ou alguma coisa, mostrando assim seu próprio querer.

E foi assim que Irmã Estefânia cumpriu sua função de traumatizar e violentar toda uma geração de crianças e jovens sem precisar lançar mão de artifícios cruéis de verdade, nos possibilitando ainda, que soubéssemos exatamente contra o que ou contra quem nos rebelar. Isso nos permitia um certo bussolamento, pois, nossos “algozes” estavam definidos e os preceitos também definidos, sendo que, era a partir de tais referenciais que nos rebelávamos. E para sermos rebeldes precisávamos de muito pouco, bastava quebrar por acidente a lâmpada da sala de aula. Já meus filhos precisam de muita criatividade e esperteza para serem considerados rebeldes. Dependendo do que fizerem, podem ser considerados as vítimas do episódio (o que de longe é a intenção deles), ou pior, podem ser imediatamente encaminhados para o psicólogo ou psiquiatra. O fato é que se tornou uma tarefa muito difícil ser considerado rebelde hoje em dia, o mais comum é ser considerado vítima de algum tipo de abuso físico ou psicológico, ou portador de algum transtorno psíquico, psiquiátrico ou neurológico. Curiosamente, ao desbancar Irmã Estefânia de sua função – com a justificativa de defender os direitos de crianças e jovens e de impedir que passassem por situações de possível violência e constrangimento – nossa sociedade, ao mesmo tempo, vitimizou excessivamente esses jovens, foi progressivamente, minando a potência e a capacidade deles para lidar e superar traumas e subtraindo deles a capacidade de temer e respeitar, mas também a possibilidade de odiar e de se rebelar.

Enfim, tenho percebido que crescer e adolescer tem sido muito mais difícil e penoso para meus filhos do que foi pra mim. Não costumo ser nostálgica, nem sou das que pensam que “naquele tempo” foi sempre melhor que “hoje em dia”. Também não acredito que seja possível resgatar Irmã Estefânia. Meu texto é apenas um alerta para os que acreditam que seja possível educar sem traumas. Um alerta para os pais que acham que estão facilitando as coisas para os filhos ao dizerem sempre “sim” e ao tratá-los sempre como vítimas de um mundo cruel. Um chamado aos que não dizem “não” para crianças e jovens por temerem ser chamados de castradores por não entenderem que, na verdade, a castração é, ao contrário do que se imagina, uma grande possibilitadora. O fato é que sem a ajuda de Irmã Estefânia, precisamos inventar e reinventar outras estratégias para auxiliar nossos filhos ou alunos a delimitarem esse nosso mundo e o mundo para eles. A promessa de uma vida “sem limites” nos parece bastante sedutora, nos remete à noção de liberdade, tão cara para o mundo moderno ocidental. Todavia, ter liberdade de escolha não é o mesmo que escolher tudo, e sim, conseguir dizer “não” para algumas coisas. Mas, quem não reconhece o “não”, como será capaz de dizê-lo? Sendo assim, especialmente para os jovens, uma existência “sem limites” não tem sido e jamais será vivenciada como uma benção libertadora – podem estar certos – mas sim, como uma maldição, que inviabiliza qualquer escolha desejante.

O desafio das drogas

Por Rita de Cássia de A. Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Publicado no Jornal O Tempo em 14/11/2009


A questão das drogas na atualidade é emblemática – especialmente quando regada pela chamada “epidemia do crack” e seus desdobramentos – e se tornou para a saúde pública um enorme desafio. Sou uma trabalhadora da rede de saúde mental do SUS e vivo cotidianamente esse desafio; minha especialidade é “botar a mão nessa massa”.

É preciso ter coragem para dizer que a questão do tratamento da compulsão pelo álcool e outras drogas é cercada de muitos fracassos, fracassos ainda maiores quando se concebe como única forma de tratamento a abstinência; de qualquer maneira e a qualquer preço. Sabemos que diante de problemas graves e de difícil solução, especialmente em situações novas, é comum que procuremos conforto em soluções que já nos são conhecidas. Assim, sustenta-se a idéia de que a internação involuntária seria a milagrosa e necessária intervenção que resolveria o problema das pessoas adoecidas pelo uso de substâncias psicoativas.

Entretanto, ao desenterrar essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais, o que conseguimos é, tão somente, oferecer respostas velhas para problemas novos. É preciso dizer que as internações involuntárias – outrora utilizadas em doses cavalares com os doentes mentais – não solucionaram o problema deles, nem de suas famílias, pelo contrário. Também é importante que se diga que uma internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses – se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa – possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde a participação da família, o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.

Mas é claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem concordar com medidas extremas como essa (e às vezes concordamos). No entanto, o que nem sempre é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da suposta ‘salvadora’ e ‘milagrosa’ internação, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja da compulsão pelas drogas, e o ciclo então tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.

Defendemos, portanto, que a internação tradicional parece, mas não é a solução para os problemas relacionados à dependência de sustâncias. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples ou baratas, ao contrário, são muito mais complexas e exigem uma grande diversidade de investimentos, aparatos, intervenções, instâncias e estratégias. E nessa direção, muita coisa interessante e verdadeiramente inovadora está acontecendo. Nos CAPS (centros de atenção psicossocial) e nos CAPS AD (álcool e drogas) espalhados pelo país. Pelas mãos dos Redutores de Danos que oferecem cuidado para os que só tem a rua como clínica possível. Nos projetos governamentais e não governamentais que ocupam comunidades carentes para oferecer acesso à educação, esporte, lazer e cultura àqueles com poucas oportunidades de escapar do jugo das drogas.

Concluindo, aumentar a oferta de leitos para a internação e/ou facilitar o mecanismo da internação involuntária é uma resposta simplista demais, pobre demais e, sobretudo ultrapassada quando a intenção é responder de maneira eficiente a esse grave problema de saúde pública. Nosso desafio é muito maior e para enfrentá-lo toda a sociedade precisa “colocar a mão nessa massa”.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O SUS e o desafio imposto pelas drogas

Por Rita de Cássia de A. Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS


Como já era previsível, toma a cena a emblemática questão das drogas, especialmente temperada pela chamada: “epidemia do crack” e seus desdobramentos. As políticas de saúde, por sua vez, têm sido especialmente convocadas a dar respostas para esta realidade que se tornou um enorme desafio para o SUS nas suas diretrizes e práticas de tratamento e cuidado.

O fato que ninguém discute é que o uso e o abuso de substâncias psicoativas em nossa sociedade têm tomado contornos e gerado conseqüências que vem colocando todos diante de um não-saber sobre os rumos e os caminhos a serem tomados, não-saber compartilhado por governos, instituições, políticas públicas e organizações governamentais e não-governamentais no mundo todo. Entretanto, mesmo quando admitimos que há um não-saber que atravessa este tema, é possível ainda sim sustentar alguns saberes, dos quais não podemos recuar, saberes que foram conquistados por meio de experiências e transformados em avanços nas políticas e legislações. Ou seja, mesmo que não saibamos exatamente o que fazer em determinadas situações, quando o assunto é o tratamento e o cuidado dos problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, ainda sim sabemos exatamente o que não fazer na mesma situação.

No entanto, é preciso muita coragem para admitir os fracassos e não-saberes em torno desse desafio que o SUS está enfrentando, como fez publicamente e em horário nobre o coordenador nacional da saúde mental. A posição mais confortável e digamos mais ‘pop’, no entanto, é a dos que se dizem doutores e especialistas no assunto, que do alto da pompa do seu todo-saber apresentam uma ‘inovadora’ e ‘milagrosa’ solução para o problema que se impõe: a internação involuntária.

Ao desenterrar essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais, o que tais ‘especialistas’ conseguem é tão somente oferecer respostas velhas para problemas novos. E o que eles não dizem é que as tais internações involuntárias – antes utilizadas em doses cavalares – não solucionaram o problema dos doentes mentais nem de suas famílias, ou pelo menos não daquelas que pretendiam tratar de seu ente querido e não apenas se ver livre dele. O que também não é dito é que uma internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses, se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa, possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, este sim, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.

Mas é claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem concordar com medidas extremas como essa. No entanto, o que também não é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da internação ‘salvadora’ e ‘milagrosa’, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja definitivamente da compulsão pelas drogas, e o ciclo então, tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.

Sendo assim, o que é preciso ser ressaltado com todas as letras é que a internação involuntária não será o milagre que todos esperamos para salvar nossos filhos, pais, mães, maridos ou esposas das garras do maior 'demônio' da atualidade: as drogas. (frase para ser lida com uma dose grande de ironia)

Também é necessário que se diga que o índice de fracasso se torna muito grande quando se entende que tratar as pessoas que apresentam problemas relacionados ao uso abusivo e nocivo de álcool e outras drogas se resume apenas em promover a abstinência, e a qualquer preço. E que nenhum tratamento ou intervenção que se pretenda humanizada, respeitosa, ética e, portanto eficaz, se conquista à revelia do sujeito, passando por cima de seus desejos, escolhas e singularidades, ainda que a nosso ver, estranhas e atrapalhadas.

Em alto e bom tom é necessário avisar aos desavisados que se os especialistas decidem por desenterrar a desgastada e ineficaz internação involuntária, ou é porque desconhecem os caminhos trilhados pelas políticas de cuidado aos doentes mentais – e, neste caso, devemos duvidar de sua tão honrosa especialidade – ou os motivos são outros que desconhecemos... Ou será que são os mesmos de outrora? Só pra lembrar aos esquecidos ou avisar aos desavisados, as internações involuntárias e indiscriminadas, enriqueceram a chamada “indústria da loucura”, condenando os doentes mentais ao isolamento, ao abandono e à exclusão, tudo, é claro, em nome do ‘tratamento’ e do ‘bem’ deles. (mais ironia, por favor).

Existem alguns avanços conquistados no âmbito das políticas de saúde mental que não podem retroceder, sob nenhuma justificativa, nem mesmo pelo apelo emocionado de pais e mães. Aquilo que foi superado pela sua ineficácia e ineficiência, pela iatrogenia gerada, pela desumanidade e desrespeito a direitos mínimos de dignidade e cidadania e pelo reforçamento de estigmas e preconceitos, não pode ser novamente pensado como uma estratégia possível e plausível. Já vimos este filme antes, o roteiro é o mesmo, agora com outros atores: eram os ‘loucos’ agora os ‘drogadictos’.

Por outro lado, longe dos olhos dos doutores especialistas que sabem tudo e da mídia ávida por nos comover com a desgraça alheia, muita coisa interessante e verdadeiramente inovadora está acontecendo. Os CAPS ad: serviços que se propõem a oferecer tratamento humanizado, aberto, de caráter comunitário, vinculado a uma rede de atenção em saúde e assistência integral, com propostas de apoio familiar, exercício de cidadania e inserção social. Os redutores de danos: que estão nas ruas e esquinas, nos lugares onde ninguém ousa chegar, oferecendo seus ouvidos, seu olhar e seus cuidados para os que só tem a rua como clínica possível. Projetos governamentais e não governamentais: que ocupam comunidades carentes, sobem os morros e as favelas e lidam ‘cara a cara’ com o tráfico e a criminalidade, para oferecer acesso à educação, esporte, lazer e cultura àqueles com poucas oportunidades de escapar do jugo das drogas. E inúmeras outras experiências exitosas, desenvolvidas por entidades e instituições diversas, e que lamentavelmente não aparecerão na mídia em horário nobre, afinal, o que dá audiência e seriedade científica ao desenvolvimento do tema são os doutores especialistas em seus jalecos impecavelmente brancos, e se estão brancos é porque nunca estiveram com a “mão na massa”.

Mas nós, trabalhadores e defensores do SUS e de suas políticas, participantes e atores dessas outras experiências que dificilmente serão colocadas na mídia, nós os especialistas em botar a “mão na massa” esperamos que a sociedade entenda que a internação tradicional parece, mas não é a solução para os problemas relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples, ao contrário, são muito mais complexas e exigem uma grande diversidade de aparatos, intervenções, instâncias e estratégias.

Esperamos que o SUS e seus atores e gestores comprometidos com o fortalecimento e a defesa de uma saúde pública, gratuita e de boa qualidade, consigam enfrentar este enorme desafio com avanços e não retrocessos. Contudo, sabemos que só conseguiremos vencê-lo com muito trabalho, dedicação, esforço, enfrentamentos, estudos e discussões. E sabemos também que os doutores especialistas que sabem tudo não estarão lá para colocar a mão nessa massa.