Eu devia estar escrevendo tese, eu sei, mas a louca do textao aparece sem ser convidada e toma a cena. Se eu fosse espírita chamaria de psicografia, mas eu prefiro pensar que foi meu Eu Lírico que escreveu esta carta. Não é pra ninguém exatamente, mas é sobre tudo que entendi sobre o amor até então.
A última carta
Minha mania de comer macarrão gelado do dia anterior nunca combinou com o seu paladar refinado e caro. E sua lentidão matinal nunca combinou com minha disposição para ler ou escrever um livro a cada manhã. Me irritava profundamente sua capacidade de me escutar sem dizer uma palavra; me sentia uma tola e isso me enlouquecia. E eu te irritava por não conseguir me concentrar, por passar horas mudando o canal da TV - assistindo tudo e nada - e por ter a memória tão débil para as tarefas do dia a dia. Eu tinha ímpetos homicidas com sua demora em passar uma camisa e você me odiava por eu conseguir me socializar com qualquer um, em qualquer lugar.
Mas eu sei que não foi nenhum desses motivos que fez você desistir de nós. Na verdade, tenho quase certeza de que, ao contrário, era isso que nos mantinha ligados. O incômodo e a irritação que eu te causava, dizia, sobretudo, do quanto você se importava com quem eu era. Tanto que eu percebi que acabou quando você me viu comendo macarrão com ovo mexido no café da manhã e me olhou com total indiferença.
Acho que você nunca soube, mas por muito tempo eu odiei sua capacidade de organização e orientação, creio que ela evidenciava a minha estupidez para as duas coisas. E desconfio que você odiava Juliana, minha amiga, apesar de sempre negar. Suportava-a por consideração a mim e, talvez, por elegância – sua maior qualidade. Também acho que nunca gostou tanto assim da minha torta de palmito com queijo. Imagino que tenha mentido a primeira vez para me deixar feliz, e teve que manter a mentira pelos quatro anos que se seguiram.
Mas, afinal, você não foi o único que mentiu, eu admito. Ao contrario do que você sempre achou não gosto de ganhar flores, acho piegas e sem criatividade. E aquela aventura dramática que te contei quando estive em Petrópolis no nosso primeiro ano nunca aconteceu. Aquela viagem sem você foi um erro, tédio absoluto. Só não quis admitir.
Enfim, agora que você se foi, podemos nos livrar das mentiras que inventamos para ficarmos juntos. Mas quem pode nos culpar? Que casal sobreviveria se fossem ditas todas as verdades? Ah! Já que estou sendo totalmente sincera, confesso: Eu sempre soube que você nunca leu Dostoievski. Você não suportaria um capítulo – eu sei. Apaixonado demais para o seu ceticismo. Mas sempre me encantou o seu esforço em acompanhar meus assuntos infindáveis regados a Crime e Castigo, Irmãos Karamazov, O Eterno Marido, Diário do Subsolo e vinho. Você era bom em debater comigo! Suponho que lia resenhas no Google. Eu adorava aquelas noites, pelo menos até você ficar bêbado. Então...preciso te dizer mais uma coisa, você acha que fica divertido quando está bêbado, mas não. Fica insuportável!
Escancarando as mentiras que cuidamos de esconder com tanto zelo e carinho nesses anos, me veio o medo de que tudo tenha sido só uma invenção nossa. No entanto, apesar da profunda tristeza que me habita agora, e que me faz enxergar quase tudo pelo prisma da amargura e da decepção, eu sei muito bem das verdades essenciais que nunca pudemos ludibriar com uma mentira singela de ocasião. Eu sei bem o que não pudemos camuflar. Sei bem onde nossa capacidade de nos proteger um do outro fracassou e nos atravessou a ambos. Eu sei bem sobre a sua verdade que ficou enterrada em mim, talvez para sempre.
Todas as vezes que rimos juntos: era verdade. O quanto nossos corpos se entendiam: era verdade. Nossa sede por aquela música que ainda nem tínhamos ouvido: era verdade. Nossa promessa de fugir desse mundo: era verdade. Sua admiração pelo que eu escrevia: era verdade. Minha fascinação pelo seu cheiro (que eu ainda alucino): era verdade. E essa dor insuportável que eu sinto agora é a única verdade que resta, e à qual tento não me apegar.
Eu olho pela janela – a do passado – e percebo com exatidão do que minha vida esteve vazia antes de você. Eu vejo nela todas as coisas que você me trouxe e que vão continuar aqui, mesmo agora que você partiu. De fato, você não levou quase nada, nem mesmo os livros que me emprestou um dia, e que eu nunca devolvi. Tudo o que você me deu continua aqui comigo, inclusive essa saudade – seu ultimo presente – que eu espero um dia conseguir emoldurar, pregar na parede da sala e suportar ver diariamente sem sentir vontade de chorar.
Lamento profundamente que você tenha decidido ir, mas não posso pedir que fique, nem mesmo para esperar a colheita da próxima estação. E não posso por dois motivos. Primeiro porque minha noção de fidelidade não tem a ver com exclusividade ou monogamia, tem a ver com o fato de entender que ninguém deve se sentir obrigado ou coagido a estar onde não quer estar. E depois, porque tenho entendido que o amor acontece no espaço vazio que se forma entre dois, pelo menos dois. Amar sozinho é sempre amor próprio, mesmo quando se está afogado na tristeza, na culpa e na auto piedade. E amor próprio, que me perdoem as frases de autoajuda, não me interessa. Na minha idade já estou enfadada o suficiente de mim mesma, só me interesso pelo que me leva para além do ego, ainda que esse lugar seja um abismo desconhecido.
Também deixo para os tolos a lição de que no amor não vale mudar quem se é para caber no desejo do outro. Eu fui sim, durante esse tempo, a mulher que você, de algum modo desejou que eu fosse, e você também se dispôs a ser o homem que eu queria pra mim. Não fosse assim não duraríamos mais que três pores de sol. É assim que se permite ser atravessado pelo amor. Quem nunca fez isso, me desculpe, nunca amou ninguém além de si mesmo.
Dizem que a guerra é lugar para os corajosos. Eu discordo. A guerra é para os covardes, aqueles que só sobrevivem eliminando o outro, afastando o outro. O amor sim é para os corajosos. Para os que se permitem atravessar pelo outro. Nós fomos absurdamente corajosos nesses últimos anos, permitindo que esse espaço que inventamos entre nós nos modificasse a ponto de não podemos mais ser os mesmos de antes. E eu sinto orgulho da nossa coragem.
Não sei por que você se foi, mas espero que não tenha sido por medo. Prefiro pensar que nosso tempo tenha passado e que tenha sido o suficiente para o que ambos precisávamos. Prefiro pensar que você tenha apenas enxergado isso antes de mim e que eu, em breve, vá enxergar isso também. Talvez seja hora de eu, mais uma vez, ser a mulher que você precisa que eu seja, e entenda o que você já entendeu. Mas também me passa pela cabeça que você possa não estar entendendo nada, mas eu não te julgo. Nada no amor foi feito pra entender mesmo. O amor é uma espécie de aposta no futuro, eu acho, mas não um futuro muito distante. Ele mora sempre há uns poucos segundos adiante do agora. E como a gente só entende no passado, amor não foi feito pra entender.
Acho que foi isso que aconteceu, afinal. Você parou de pensar em nós dois habitando seu minuto seguinte. Talvez eu habite apenas o seu passado agora. E eu tenho tentado fazer o mesmo desde que você se foi. Parar de te considerar como parte do meu daqui a pouco e acomodá-lo com carinho no meu ontem. Mas não tem sido fácil.
Interessante que desde que você se foi eu nunca mais comi macarrão dormido e perdi totalmente o fetiche pelo controle da TV. Acho que perdeu o sentido. Desconfio que foram manias que mantive apenas pelo fato de te irritarem. Nessas bobagens é que eu tentava me manter dona das minhas vontades, quando as essenciais estavam sob sua guarda.
Tenho me esforçado muito para não me livrar de você fazendo uso da raiva. Seria bem mais fácil, eu sei, mas isso não seria digno da nossa história. Uma das muitas coisas que aprendi nessa vida é que a preciosidade do belo está no fato de que ele é algo muito raro e, portanto, merece ser preservado como um tesouro. A vida, em geral, é um acúmulo de coisas comuns, mas só as coisas raras nos fazem saber o quanto ela vale a pena. Você foi raro demais para eu estragar com minha raiva. Seria simples de fazer isso, mas também estúpido.
Não sei o que dizer para encerrar esta carta. Adeus talvez fosse o mais adequado, mas suponho que grandes e belos amores nunca se vão definitivamente. Melhor, então, seria agradecer ao Universo pelo privilégio de amar e me sentir amada mais uma vez.
Noite passada, sonhei que plantávamos tomate em algum lugar ermo desse vasto mundo. Gosto de pensar que num universo paralelo nossa plantação cresce vívida e forte.
Rita Almeida
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