segunda-feira, 26 de setembro de 2016
Por que dialogar com o fanatismo é lutar contra ele?
Por: Rita Almeida
Participei esta semana de um evento de psicanálise que discutiu o fanatismo, tema bastante relevante para o momento que vivemos, não apenas do Brasil. E algumas das questões que nortearam o evento foram: O que querem os fanáticos? O que os causa? Que tipo de laço pretendem fazer?
Inicialmente, uma questão importante é desvincular o fanatismo do discurso paranoico, a fim de não cair no engodo de considera-lo como algo próprio da estrutura psicótica. Ou seja, não se pode reduzir o fanatismo a um fenômeno estrito de um diagnóstico psi. O fanatismo não é uma loucura e tem uma estrutura própria: é burrice somada à canalhice. É burro porque aceita incondicionalmente o que lhe aparece sem questionar; sobre o fanático não opera nenhum corte, é surdo. É canalha porque vê, mas não olha; ouve, mas não escuta; encontra e reconhece, mas não quer saber sobre isso. O fanático é um cínico, que não tem nenhum compromisso com a verdade e que não se afeta pelo discurso do outro. Portanto, o fanatismo é a rejeição da filosofia e o avesso do diálogo.
O fanático possui uma fragilidade simbólica. Está a maior parte do tempo todo assujeitado a um discurso que não tem compromisso algum com algo que lhe seja singular, que lhe atravesse, que o faça deslizar de suas certezas. O fanático possui um discurso desabitado de eu – do eu inconsciente, dividido – está preso apenas a uma imagem, que é frágil e, por isso, precisa ser refeita o tempo todo. O eu do fanático se sustenta por meio de uma imagem que ele cria para si e que precisa manter incólume o tempo todo. E ele a constrói a partir de um discurso que considera o “politicamente correto” ou “moralmente correto” e no qual se mantem preso. Nesse sentido, por falta de recurso simbólico, por falta de algo que o faça deslizar de suas certezas prontas e acabadas, é que o fanático alimenta o eu paranoico (na medida em que todo eu é essencialmente paranoico).
Por outro lado, o discurso que o fanático reproduz como sendo o seu, não tem, necessariamente, nenhum compromisso com a verdade, ou seja, trata-se apenas de uma espécie de fé ou crença inabalável. Mas, não sejam ingênuos, não é apenas o discurso religioso que pode se encaixar nessa categoria discursiva. Teorias das mais diversas, dietas, gostos musicais,um time de futebol, movimentos políticos; tudo pode servir para alimentar um fanático. Basta que ele faça uso de tal discurso para obter uma resposta unívoca e definitiva para qualquer pergunta que se faça. Pois o fanático não busca um discurso para transitar no mundo, mas para lhe servir de manual de como agir e se portar. Na medida em que lhe faltam recursos para buscar um modo próprio de se arranjar no laço social, o fanático precisa seguir verdades que já estejam dadas, às quais ele precisa apenas se submeter e obedecer. O que o fanático quer é se tornar o servo ideal de uma teoria.
Depois de participar do evento citado, li um livro indicado que foi: Como curar um fanático? de Amós Oz, que recomendo muito. Oz parte do princípio que o fanatismo é uma semente que está em todos nós. É muito mais velho que todas as ideologias e religiões. É um componente intrínseco à natureza humana. A questão é apenas: alimentá-lo ou não.
Todavia, é obvio que não podemos comparar um vegano fanático com um terrorista fanático. Existem gradações de mal que cada um desses pode causar, e isso faz toda a diferença. A questão é estar atento, pois o fanatismo pode brotar a qualquer momento em nós, e é contagioso. Oz supõe ainda que o crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que o mundo tenha se tornado cada dia mais complexo. E quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples.
Com efeito, o maior problema do fanático é sua tendência ao altruísmo. Ele parece estar mais interessado em você do que nele próprio. O fanático quer, sobretudo, mudar você porque, afinal, é ele quem sabe o que é melhor pra você. Como diria Amos Oz: “Frequentemente o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo. Ele quer salvar sua alma, quer te redimir, quer te livrar do pecado, do erro, de fumar, de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares, ou te curar da bebida ou de sua preferência na hora de votar. O fanático se importa muito com você, ele está sempre pulando em seu pescoço porque te ama de verdade, ou então está em sua garganta caso demonstre ser irrecuperável. E seja qual for o caso, falando topograficamente, pular em seu pescoço e estar em sua garganta é quase o mesmo gesto. De um modo ou de outro, o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo, pela muito simples razão de que o fanático tem muito pouco de “ele mesmo”, ou nenhum “ele mesmo”.”
Mas o que causaria tal insistência de conversão? É que quando um fanático consegue converter o outro ele conquista a garantia de que seu discurso seja validado. Ao enlaçar o outro, o fanático atualiza sua própria imagem e reforça sua paixão por si. O objetivo é transformar o outro em si mesmo, para que assim, não haja nenhum corte, nenhum rompimento no laço. Assim, se apagam todas as diferenças e tudo se mantém igual. De algum modo, o que o fanático deseja é destruir o outro que insiste em se manter como outro; ou tentando transforma-lo no mesmo ou apagando-o. O fanático precisa apagar toda a diferença para que seu eu frágil se reforce entre seus iguais e assim, sobreviva.
Sobretudo, o fanático é um cínico. Afinal, ele sabe que, ainda que seu discurso não possua nenhum compromisso com a verdade, este jamais poderá ser desconstruído ou questionado, afinal, isso significaria sua própria derrocada. Se o eu singular do fanático é frágil e depende da teoria que ele abraça, desmontar tal teoria é fazê-lo experimentar sua própria morte. É por isso que o fanático não fala, ele vocifera. Vocifera porque precisa a todo custo sustentar sua teoria, mesmo que ela seja uma mentira. A outra opção seria sucumbir com ela. Mas como nos lembra Amos Oz, “o sinal indicador do fanatismo não é o volume da sua voz, mas a atitude com as vozes dos outros”, ou seja, a questão não é a altura que o sujeito vocifera, mas a sua intenção. “Conheço antitabagistas que queimariam você vivo por acender um cigarro perto deles! Conheço vegetarianos que comeriam você vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns deles meus colegas no Movimento Israelense pela Paz, que gostariam de dar um tiro na minha cabeça só porque eu defendo uma estratégia um pouco diferente de como chegar à paz com os palestinos.”
Enfim, há fanáticos por todos lados e de todos os tipos e modos. Concordo com Amos Oz que o maior embate global de nossa época é a luta universal contra todos os tipos de fanatismos, ainda que seja apenas para minimizá-los. E alguns antídotos para esta luta são, segundo este autor: o humor, a capacidade de suportar situações onde não há nenhuma certeza e a capacidade de desfrutar da diversidade. O humor é aquilo que nos faz rir de nós mesmos, ou seja, ele relativiza nosso lugar e nossas teorias, pois nos permite que olhemos para nós do modo como o outro nos vê. Quanto mais alguém é capaz de rir de si mesmo e de suas teorias, mais ele está vacinado contra o fanatismo. Outro antídoto é abrir-se para as incertezas, suportar o que está em aberto, o que não tem resposta. Viajar para além de si mesmo é também um exercício eficaz contra o fanatismo. É a capacidade de se imaginar no lugar do outro, mesmo no momento que acreditamos estar totalmente certos. É se deixar afetar pelo outro, de algum modo.
Depois de toda esta reflexão, não pude deixar de pensar no momento político atual do Brasil. De certo modo compreendi porque tem sido tão difícil sustentar o debate. É perceptível que a grande maioria se encontra aprisionada em suas certezas e crenças; não importa a verdade, não importam os fatos, não importa se o outro que está em jogo hoje pode se tornar o eu em jogo de amanhã... Nada disso importa. O que importa é que cada um se mantenha nas suas bolhas de certeza, para sustentar a própria imagem. O que importa é que tal certeza não se abale nunca, mesmo que eu saiba que estou sustentando uma farsa, já que a outra opção seria admitir estar errado e, consequentemente, ter que lidar com a morte daquilo que sou. Tal como as bolhas das redes sociais que formamos e reforçamos cada vez que bloqueamos ou excluímos quem pensa diferente de nós.
Mas, não se enganem, não querer saber para não ter que tomar nenhuma posição diante do que está acontecendo também é uma forma de assujeitamento. O fanático se assujeita a um discurso que ele toma como direção irreparável e o alienado se assujeita a ter que se submeter ao discurso que vencer, seja lá qual ele for.
Não estou pregando um relativismo moral total. É claro que não é possível transigir com genocidas, chauvinistas, terroristas e outros tipos, mas é importante ter a clareza de que eles estão por aí. E por mais paradoxal que seja, é somente na democracia que esses tipos podem ter voz e lugar. E é preciso, sim, combatê-los em seus discursos fanáticos, mas sem criar uma espécie fanatismo reverso, ainda que com as melhores intenções. Não estou dizendo que esta é uma tarefa fácil. Não é! No entanto, se os não fanáticos não se dispuserem a arejar e debater nessas arenas, estarão apenas poupando o trabalho dos fanáticos em silenciar o que diverge deles. Estarão dando a eles tudo que precisam para reforçar suas bolhas e angariar mais adeptos/servos.
Ao escrever este parágrafo me peguei pensando se eu mesma não estou aqui a alimentar o germe do fanatismo, me assegurando da certeza de não ser uma fanática. Mas a dúvida já me deu um consolo, e rir do meu mal-estar com o parágrafo me aliviou mais um pouco, mas não o suficiente, confesso.
Por fim, o que sustento aqui é que mantenhamos uma arena de debate possível. E uma que suporte a ideia de que o laço sempre esta pronto para se desfazer, mas pode ser refeito logo adiante e desfeito novamente. E é saudável e desejável que seja assim. Um laço não pode pretender capturar o outro para sempre, porque o outro também quer estar em outra parte e de outro modo diferente do que eu penso ou quero.
Na fragilidade do laço mora todo mal-estar do mundo, mas também toda a possibilidade daquilo que no senso comum chamamos amor. Que é a capacidade de enlaçar o outro sem prende-lo, ou seja, suportando a sua alteridade e mais ainda, dialogando com ela.
Parabéns! Análise lúcida, aberta, completa. Diria, irretocável. Abs
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