terça-feira, 13 de setembro de 2016
Desculpe o transtorno, mas preciso falar sobre feminismo.
por Rita Almeida
Logo que eu comecei a publicar meus escritos no blog, uma amiga me disse: “Caraca! Você perdeu a inibição de escrever...” Na hora não entendi muito o que ela disse, mas isso ficou ecoando em mim muito tempo e fui entendendo aos poucos. Hoje essa frase me veio de novo aos ouvidos antes de escrever este texto, e por causa dela eu decidi que tinha que escrevê-lo. Vou explicar...
Já faz bastante tempo que quero dizer algo sobre feminismo. Vários textos já chegaram até mim (os textos baixam no meu HD mental vindos de algum lugar e depois eu transcrevo), mas eu jamais tive coragem de botá-los no papel, digo, no notebook. Hoje me dei conta que ficava inibida em escrevê-los. E me chamou a atenção o fato de não ter inibição de escrever sobre nenhum assunto, mas ficar inibida de escrever sobre feminismo. Fui investigar minha inibição e percebi que meu medo, todas às vezes, foi de levar fogo amigo, ou seja, ser atacada pelas próprias mulheres, sobretudo pelo que chamamos de movimento feminista.
Hoje novamente baixou no meu HD um texto inspirado na repercussão da comentadíssima coluna do Duvivier: "Desculpe o transtorno, preciso falar da Clarice". Novamente a inibição iria me segurar, mas, foi ela mesma que me mostrou que eu deveria escrevê-lo para, quem sabe, contribuir para arejar nosso feminismo de cada dia. Pra começo de conversa quero me declarar feminista, e responder essa pergunta aqui: Isso me impede de escorregar no machismo às vezes? Não! Ponto. Dito isso, prosseguimos...
Eu, particularmente, achei lindo o texto de Duvivier pra Clarice. Não sei sobre o romance deles (e não me interessa saber), não faço ideia de como Clarice leu esse texto (e não tenho como saber) e não me dispus a fazer inferências sobre a intenção de Duvivier em usar o texto pra divulgar seu filme. Só sei que aquilo foi escrito com sangue (eu reconheço textos escritos com sangue), e textos assim sempre me comovem. Então, me emocionei sim, e achei que foi uma carta de amor lindíssima, e piegas, e brega, e sentimentalista, e apelativa, assim como devem ser todas as cartas de amor.
No entanto, a repercussão da coluna entre algumas mulheres, a partir do discurso feminista, me assustou bastante. Não vou discorrer sobre todos os argumentos aqui, porque o meu é bem simples e básico, e ele parte da minha própria experiência com o texto. Depois compartilha-lo comecei a ler os comentários e textos de algumas mulheres alertando sobre o machismo contido nas entrelinhas do mesmo e comecei a me sentir envergonhada, oprimida e com uma espécie de arrependimento de ter gostado, e isso me deixou muito angustiada.
No meu entendimento, o feminismo se trata, basicamente, de libertar a nós mulheres do machismo e todas as formas de opressão, ou seja, nos desinibir de algum modo. Então meu argumento é simples: se vamos partir para um discurso feminista que também oprime e inibe as mulheres; que me inibe de escrever, que me inibe de gostar de um texto porque ele tem ou teria uma mensagem machista subliminar, que me faz ter vergonha da minha posição subjetiva, então, a meu ver, precisamos, pelo menos, pensar sobre o feminismo que queremos.
O machismo está dado, está pronto. E o melhor do feminismo, eu penso, é que ele está sendo inventado, está em processo de construção e não podemos, de modo algum, construir o feminismo sob as bases da mesma opressão da qual queremos nos libertar, vomitando regras de como é ser uma mulher feminista ou não-machista. Então, eu entendi o seguinte sobre tudo isso: Não há nenhum problema em achar o texto do Duvivier lindo e tornar o autor seu crush por algumas horas (foi o meu caso), não há o menor problema em não gostar do texto por achá-lo machista ou piegas, e não há problema não ter nenhuma opinião sobre o texto. No entanto, há problema sim, quando alguém decide, em nome de um discurso, no caso o feminista, te fazer se envergonhar do que pensa ou sente. Há problema sim quando tal discurso, em nome de algum purismo (pra não dizer fundamentalismo) te faz ficar inibida de se posicionar, de escrever, mesmo que nesta escrita contenha o próprio machismo que você quer negar.
Nós não somos unívocos. Desde Freud sabemos que não somos uma coisa só; temos um eu que é nossa máscara para estar em sociedade e um outro estranho que nos atravessa sem que tenhamos o controle. Então, Duvivier é feminista e machista sim! Eu sou feminista e machista. Nós todas e todos somos, de algum modo, feministas e machistas. Isso é um fato! Mas não libertaremos ou empoderaremos as mulheres inventando outras regras e normas às quais devam se submeter, ou inventando outras formas de opressão, mesmo que elas sejam de outras mulheres, mesmo que elas se digam autorizadas pelo discurso feminista.
Jacques Lacan afirmou, certa vez, que Copérnico não fez nenhuma revolução, já que apenas mudou o que estava no centro: tirou a terra para colocar o sol, e que isso não mudou em nada nossa concepção de mundo. A novidade de Copérnico ainda manteve um significado central a partir do qual todo o resto gira em torno, mantendo nosso mundo, tal como antes, perfeitamente esférico, disse Lacan. E disse ainda: A verdadeira subversão seria poder substituir o “isso gira, por um isso cai”, ou seja, considerar o significante como contingente e não como uma categoria fixa, provocando assim uma queda, um corte, que permitiria que o movimento discursivo se faça de outra maneira, sem que se reproduza apenas o “girar em torno de”.
Nos queixamos de uma sociedade falocêntrica, que gira em torno do falo masculino, mas não haverá nenhuma revolução se apenas inventarmos outra coisa pra botar no centro, pra servir de eixo, pra ditar novas normas, ainda que neste centro esteja a mulher. Assim sendo, no meu entendimento, o verdadeiro feminismo é aquele que diante do falo e suas verdades e regras prontas, apresentará a fenda, a rachadura, o furo, o buraco; as verdadeiras representantes do nosso sexo, aquelas que podem desconstruir verdades, desinventar semblantes e trazer alguma leveza a este mundo.
Por fim, não quero me sentir intimidada por nenhum falo, mas também não quero me sentir intimidada por nenhuma boceta (me perdoem, mas não encontrei uma palavra mais potente que esta). Quero que o poder da mulher seja verbo e não substantivo. Quero uma revolução que rache e desmonte este mundo e não que simplesmente invente outra coisa pra botar no centro dele.
Para encerrar peço socorro a Adélia Prado: “...ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou”
Por um feminismo desdobrável!
Amei teu texto! Tava numa sofrencia desgraçada com esssa história dessa coluna, sem um pingo de vontade de entrar na problematização. Além da questão da maternidade que levantaram, da romantização, e me diz se a realidade crua não enlouquece? E não é isso que dói na maternidade? Quando ela é crua demais? Romantizar é necessário, o bebê precisa ser fantasiado para que seja investido de desejo, de afeto e dali emergir um sujeito, desejante, por ter sido alvo de desejo dos pais. Não é?
ResponderExcluirAs pessoas leem umas linhas, misturam com suas questões subjetivas, e já querem ser analistas de discurso.
Vi gente chamando ele de abusivo pelo texto, mas gente...
Adorei seu texto, muito bom, clato e objetivo. Parabéns
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