(palestra proferida na Semana de Saúde Mental de Ubá /MG, em 21 de maio de 2013)
Atender a demanda por cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas tem sido um grande desafio para as políticas públicas brasileiras nos últimos tempos, especialmente nos casos onde estão associados a ela: situação de rua, miséria social, exclusão, abandono e marginalidade, invariavelmente resultando naquilo que têm se chamado de “epidemia do crack” ou na formação das “cracolândias”.
Responder a esta questão tem sido um desafio. E as respostas, em geral, têm se sustentado num discurso meramente higienista, cuja pretensão é, simplesmente, limpar certos locais do que a sociedade atual enxerga como lixo: certos usuários de droga, especialmente os de crack. A decisão de vários municípios, seja por intermédio da justiça ou por mera intervenção do poder público, tem sido a de promover a retirada das pessoas desses lugares sob as mais diversas alegações: de que estão infringindo a lei, perturbando a ordem pública ou de que precisam ser deslocadas para locais de assistência e tratamento, por meio das internações involuntárias ou compulsórias. Grande parte dessas intervenções, apesar de muitas vezes travestidas dos mais dignos e decentes atos "humanos" e "cristãos", na verdade, só cumprem a função de limpar nossas cidades daquilo que a sociedade não deseja ver; daquilo que lhe parece incômodo, inútil e sem valor.
E não é a primeira vez que esse tipo de estratégia é utilizada. Num passado não muito distante, que coincide com o início da era capitalista, loucos, bêbados, prostitutas, mendigos, aleijados, e todos aqueles que não serviam para movimentar a roda do sistema capitalista, que não podiam vender sua força de trabalho, foram recolhidos das ruas e encarcerados no Hospital Geral; instituição criada para esse fim. A ordem era sanear as cidades. Esse modelo de intervenção gerou, inclusive, o modelo manicomial para o tratamento dos doentes mentais. Modelo que ao longo das décadas se mostrou desumano, iatrogênico e ineficaz. Modelo criticado e desconstruído pelo movimento antimanicomial, que hoje comemoramos neste evento de 18 de maio.
Há um fato que ninguém discute. O uso e o abuso de substâncias psicoativas em nossa sociedade têm tomado contornos e gerado conseqüências que vem colocando todos diante de um não-saber sobre os rumos e os caminhos a serem tomados, não-saber compartilhado por governos, instituições, políticas públicas, serviços de saúde e organizações governamentais e não-governamentais. Entretanto, mesmo quando admitimos que há um não-saber que atravessa este tema, é possível ainda sim sustentar alguns saberes, dos quais não podemos recuar, saberes que foram conquistados por meio de experiências e transformados em avanços nas políticas e legislações. Ou seja, mesmo que não saibamos exatamente o que fazer em determinadas situações, quando o assunto é o tratamento e o cuidado das pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, ainda sim sabemos exatamente o que não fazer na mesma situação.
Ao desenterrar a internação involuntária - essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais - conseguimos tão somente oferecer respostas velhas para problemas novos. Sabemos que as internações involuntárias e compulsórias – antes utilizadas em doses cavalares – não solucionaram o problema dos doentes mentais nem de suas famílias, ou pelo menos não daquelas que pretendiam tratar de seu ente querido e não apenas se ver livre dele. Desenterrar a desgastada internação involuntária é desconsiderar os caminhos trilhados pelas políticas de cuidado aos doentes mentais. Só pra lembrar as internações involuntárias e indiscriminadas, serviram apenas para enriquecer a chamada “indústria da loucura”, condenando os doentes mentais ao isolamento, ao abandono e à exclusão, e ainda sob a justificativa que isso era feito em nome do ‘tratamento’ e do ‘bem’ deles, já que não teriam capacidade de escolha.
Nossa experiência de trabalho tem mostrado que a internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses, se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa, numa situação pontual e específica (observando o caso a caso) possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, este sim, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
É claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem balançar em favor de medidas extremas como essa. No entanto, o que não é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da internação considerada ‘salvadora’, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja definitivamente da compulsão pelas drogas, e o ciclo então, tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Sendo assim, precisamos ressaltar que a internação - involuntária ou compulsória - não será o milagre que todos esperamos para solucionar a questão das drogas. Também é necessário que se diga que o índice de fracasso se torna muito grande quando se entende que tratar as pessoas que apresentam problemas relacionados ao uso de drogas se resume apenas em promover a abstinência, e a qualquer preço. Nenhum tratamento ou intervenção que se pretenda humanizada, respeitosa, ética e, portanto eficaz, se conquista à revelia do sujeito, passando por cima de seus desejos, escolhas e singularidades, ainda que a nosso ver, estranhas e atrapalhadas.
Enfim, existem alguns avanços conquistados no âmbito das políticas de saúde mental que não podem retroceder, sob nenhuma justificativa, nem mesmo pelo apelo emocionado de pais e mães. Aquilo que foi superado pela sua ineficácia e ineficiência, pela iatrogenia gerada, pela desumanidade e desrespeito a direitos mínimos de dignidade e cidadania e pelo reforçamento de estigmas e preconceitos, não pode ser novamente pensado como uma estratégia possível e plausível. Já vimos este filme antes, o roteiro é o mesmo, agora com outros atores. Eram os ‘loucos’, agora os ‘drogadictos’.
Sendo assim, a internação tradicional, especialmente aquelas motivadas por intervenções involuntárias ou compulsórias, apesar de parecer, não é a solução para os problemas relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples, ao contrário, são muito mais complexas e exigem a criação de uma rede de cuidados, com os vários setores das políticas públicas (saúde, educação, assistência social, segurança pública, esporte, lazer, cultura, justiciário) e com diversos tipos de aparatos, intervenções, instâncias e estratégias.
Infelizmente, muitos municípios estão optando pelas estratégias meramente higienistas para intervir na questão do uso de drogas e elas tem se resumido a dois tipos de intervenção: as que espantam e as que recolhem. As que espantam, vão apenas fazer com que essas pessoas migrem para outro lugar, obviamente que para um lugar semelhante ao anterior. As que recolhem (compulsoriamente ou não) também acreditam que o problema é solucionado quando o levamos para outro local, só que dessa vez apostam em instituições de amparo social ou clínicas de recuperação. Mas a verdade é que o resultado dessas estratégias é semelhante àquele que conseguimos ao limpar a sala de estar varrendo a sujeira pra debaixo do tapete, ou seja, maquiagem provisória.
As intervenções baseadas no recolhimento e na internação, seja involuntária ou compulsória, se sustentam num princípio clássico do tratamento em saúde, de que é preciso isolar para tratar. É claro que tal princípio é bem adequado para tratar daquelas doenças onde a contaminação ou o contágio façam parte dos sintomas. Mas em se tratando de uma doença onde o isolamento e o prejuízo social já estão instalados, sendo tão nocivos quanto a própria doença, será que o “isolar para tratar” é tão eficaz?
Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado pontes. E afinal, concluímos que as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. O sucesso dos CAPS, das Residências Terapêuticas, dos CC são a prova disso. Sendo assim, no caso das políticas sobre drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (na verdade, já estão demonstrando).
Precisamos apostar nas pontes e nas redes. Pontes que aproximam ao invés de espantar e redes que acolhem ao invés de recolher. Imagino que em termos arquitetônicos deva ser muito mais difícil construir pontes do que muros, assim como é muito mais difícil aproximar do que espantar. Acolher também é bem mais trabalhoso que recolher, porque acolher leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Voltando ao problema das cracolândias, há uma pergunta desafiadora que talvez seja interessante para pensar este fenômeno. Porque existem cracolândias? Porque não ouvimos falar de maconholândias, cocainolândias ou ecstasyitolândias?
Trata-se de uma pergunta realmente intrigante que nos faz pensar, dentre outras coisas, sobre o lugar social que o crack vem ocupando no Brasil. Apesar de sabermos que o uso do crack está presente nas diversas classes sociais, é no abandono social e nas ruas que ele tem mostrado sua face mais perversa. Não há justificativa para defendermos a tese de que as cracolândias são formadas apenas pelo poder devastador e desagregador da química do crack, com se o crack fosse o único responsável pelas cracolândias. É muito mais realista pensar que um certo tipo de população já excluída pela sociedade, seja pela miséria, pelo abandono, pelo alcoolismo ou pela dependência de outras drogas, fez do crack "a sua droga", numa tentativa de remediar o próprio sofrimento, e para isso precisaram criar um lugar delimitado na pólis. As cracolândias, na verdade, são frutos de políticas preconceituosas, excludentes, moralistas e da tão anunciada "guerra contra as drogas". Enquanto continuarmos em "guerra contra as drogas", as cracolândias funcionarão como um território de refugiados, como um gueto para os excluídos.
Não faz muito tempo que a questão do abuso ou dependência de drogas ilícitas deixou de ser “caso de polícia”, pelo menos no âmbito legal. Para sermos mais específicos é a partir da lei n° 11.343/2006 que traficante e usuário de substâncias ilícitas são colocados em territórios distintos. Enquanto o traficante continua sendo problema de segurança pública, o usuário passa a ser preocupação das políticas de saúde.
Apesar de contarmos com esse avanço legal importante que descriminaliza o usuário ou dependente (e que, infelizmente, corre o risco retroceder) o uso de drogas ilícitas ainda permanece envolto em uma nuvem de preconceitos e mitos, que contaminam nossa forma de abordar o tema, em especial quando o assunto é tratamento. Infelizmente, ainda enxergamos uma associação direta entre o uso de drogas e delinqüência ou criminalidade, visão exaustivamente reforçada pela mídia.
Isso tem gerado uma certa confusão quando o assunto é oferecer tratamento para o sujeito que se encontra adoecido pelo uso de drogas. Além de vítima da doença, ele se torna também vítima do preconceito e da retaliação da sociedade, o que intensifica os danos, ainda mais quando o sujeito já se encontra em estado de vulnerabilidade social.
Essa nuvem de preconceitos que envolve o tema precisa ser dissipada, para que não façamos política de saúde utilizando estratégias de guerra. Sabemos que as guerras produzem sempre muitas vítimas e muito poucas soluções, e nesse caso, as vítimas tem sido aqueles para os quais as políticas deveriam oferecer cuidado: os drogadictos.
É importante reiterar: não se faz política de saúde utilizando estratégias de guerra, pelo menos, não quando a intenção é democratizar, humanizar e promover a inserção social, diretrizes fundamentais da política de saúde mental que o SUS vem implementando ao longo desses anos. Por isso, precisamos abolir formas de tratamento que se utilizem de verbos do tipo: combater, reprimir, tutelar, capturar, aprisionar, perseguir, ameaçar, cercear, coibir, atacar ou amedrontar. Técnicas muito úteis quando se está numa frente de batalha. Por outro lado, precisamos reforçar estratégias de tratamento que façam uso dos verbos: cuidar, acolher, compreender, abrigar, escutar, oferecer, apaziguar, esperar, confiar, apoiar e possibilitar, essas sim, fortalecedoras de laço e produtoras de vida.
Muito se fala sobre a morte como destino do sujeito adoecido pelo uso de drogas, mas o que não se diz é que a morte que realmente ameaça esse sujeito é a “morte social”. Esta sim é a mais perigosa, a que chega primeiro e a que, se não cuidada em tempo, pode provocar a morte do corpo. Isso nos indica que em se tratando de política de saúde não estamos, ou pelo menos não deveríamos estar, em guerra contra as drogas ou contra aqueles que as utilizam, já que esse é o caminho mais rápido para acelerarmos tal “morte social”.
É de Slavo Zizek a seguinte afirmação: "É bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto outros ficam com o risco". Na questão do uso de drogas isso fica muito claro. Apenas os membros da "sociedade de bem" fica com as escolhas, mesmo que porventura arriscadas. Nós podemos escolher entre vodka ou cerveja, se vamos tomar remédios para dormir ou para nos livrar do pânico cotidiano, podemos escolher se nossa balada vai ser movida a "doce" ou "bala". Mas os frequentadores das cracolândias ou os que estão caminhando para ela, são exatamente os que perderam suas possibilidades de escolha e ficaram apenas com o risco.
Diante dessa realidade, o único caminho sensato para se pensar as cracolândias seria no sentido de reduzir os riscos que seus frequentadores enfrentam e possibilitar-lhes escolhas, sem esquecer que oferecer-lhes escolhas não é escolher por eles. Entretanto, sabemos que em muitos casos, a degradação subjetiva pode ter lhes prejudicado severamente a capacidade de fazer escolhas. Podemos, nesses casos, criar estratégias que nos possibilitem escolher com eles, mas jamais à revelia deles, como se tem feito. Também não devemos ofertar a essas pessoas apenas dois caminhos possíveis: com drogas ou sem drogas. É fundamental também considerar possibilidades que incluam viver - com dignidade, com todas as suas potencialidades e contradições - apesar das drogas. E sem nenhuma hipocrisia, tal como faz a maioria de nós.
Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias dos quais não poderemos escapar completamente. A psicanálise admite que ao longo da história, o homem tem se utilizado de substâncias psicoativas, como medidas paliativas para lidar com o mal-estar da existência. Usar drogas, portanto, faz parte da cultura humana desde sempre. No entanto, assistimos o fenômeno do uso de drogas atingindo contornos nunca antes vistos, especialmente na sociedade capitalista ocidental, onde ser tornou mais uma mercadoria a ser consumida. Sem falar que vivemos numa era que acredita ser possível tratar qualquer conflito, angústia, medo, dor e tristeza, com alguma droga prescrita pelo médico. E a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de mal estar. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos... Não é curioso? Estimulamos como nunca o uso de drogas farmacêuticas para anestesiar nossas dores e mal-estares e nos enchemos de arrogância e preconceito quando vamos lidar com aqueles que, foram capturados pela dependência de outras drogas, só porque não estão na prateleira da farmácia.
Mas, é importante saber que existe outra saída para lidar com nossos mal-estares existenciais. Freud dirá que apesar de não podermos erradicar completamente nosso desamparo, podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão desse desamparo e desse mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, pelas redes e pontes que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Portanto, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima: queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Nesse de 18 de maio, mais uma vez, escolha é nossa.
Tratamento com Ibogaína , sua última tentativa!!!!
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