(palestra proferida dia 15 de maio, em evento da Luta Antimanicomial na FAMINAS, em Muriaé/MG)
A maior missão dos dispositivos inventados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira (os CAPS ou instâncias dessa natureza) sempre foi desconstruir o modelo manicomial. Mas quando falamos em desconstruir o manicômio, não falamos apenas em desconstruir os edifícios, mas, sobretudo, a mentalidade manicomial, ou o modo manicomial de compreender.
Isso quer dizer que, mais do que criar uma instituição em substituição à outra, o que se pretende é uma mudança de paradigma, uma mudança na maneira olhar as nossas loucuras ou doenças mentais, uma mudança na concepção de tratamento e cuidado, e a desconstrução de um princípio tradicional e clássico no tratamento das enfermidades mentais: de que é preciso isolar para tratar.Sendo assim, podemos pensar no melhor hospital psiquiátrico do mundo, com os profissionais mais especializados e experientes e um maravilhoso aparato de hotelaria. Ainda assim ficaremos limitados a uma clínica tradicional – aquela que isola para tratar e que chamaremos aqui de: clínica do leito
Clinicar é se debruçar sobre o leito de alguém doente, tarefa fundamental nos dispositivos de saúde e também de saúde mental, pois tem o sentido de se debruçar sobre a singularidade de cada sujeito, com seu sintoma, sua história e seu estilo de existência. A clínica é um dispositivo atento àquilo que, no sujeito, não pode ser universalizado ou generalizado. Quando utilizamos, no entanto, o termo, clínica do leito, para falar da clínica proposta pelo modelo manicomial, nos referimos a uma clínica que, para funcionar, demanda que o sujeito fique cerceado ou limitado no seu trânsito habitual, na sua lida familiar e social. A clínica do leito supõe que, para se tratar de alguém, seja necessário isolá-lo ou afastá-lo de seus afazeres e atividades cotidianas. Segundo tal clínica, somente depois de tratada ou curada a enfermidade, o sujeito poderá então retomar sua vida “normal”. Essa clínica dependeria, portanto, um lugar geograficamente delimitado, submetido a alguma espécie de isolamento do mundo real, capaz de circunscrever tudo aquilo que incomoda, adoece ou atormenta o doente, ao mesmo tempo em que também protege a sociedade do incômodo que é lidar com os sintomas daquele que adoeceu. Sendo assim, mesmo se tratando de um hospital que se utilize do dispositivo da clínica – preocupada com a subjetividade e singularidade o que apontaria por uma qualidade no tratamento dos seus pacientes - ainda sim a clínica possível para o modelo hospitalar é a clínica do leito.
Em geral, o modelo hospitalar se baseia nesse tipo de clínica tendo como justificativa a gravidade do caso. Quanto mais grave, maior a intensidade e o tempo de isolamento; de restrição à vida normal. E sabemos que, no caso do hospital psiquiátrico, tal suspensão no leito esperando que a doença mental fosse curada, poderia durar, via de regra, toda uma vida, se olharmos para um passado não muito distante da psiquiatria.
Sendo assim, o que a Reforma Psiquiátrica tem de inovador ou subversivo vai muito além da garantia de direitos e das novidades defendidas pela lei 10.216 de 2001, também chamada de lei Paulo Delgado. Trata-se da invenção de uma outra clínica que denominaremos aqui de clínica em rede. Para entendemos o que seria esta clínica em rede faremos menção à fala de uma usuária do CAPS Casaberta de Lima Duarte MG.
Estávamos em uma reunião de bom-dia (reunião que acontece no CAPS todas as manhãs, com os usuários e técnicos presentes na instituição naquele momento) conversando sobre assuntos diversos quando uma participante – que chamaremos de Rosa – começou a relatar detalhes de uma internação psiquiátrica, da qual havia retornado recentemente (internação de 30 dias indicada por nossa equipe). Ela nos dizia que, durante tal internação, era como se sua vida tivesse ficado parada do lado de fora do hospital, esperando ela sair. Afirmava também que tal internação para ela não significava tratamento nenhum, e em seguida disse o seguinte: “A loucura se cura andando”.
Com essa beleza de frase, começamos a compreender o que seria uma clínica em rede: uma clínica capaz de acompanhar o sujeito para onde ele vá, e, sobretudo, para onde ele deseje ir. Portanto, a clínica em rede é essa que aposta que “a loucura se cura andando” (sabemos da limitação de usarmos o termo cura, quando falamos de doença mental, nesse caso, o termo cura tem o sentido de possibilitar um tratamento possível). A clínica em rede entende que não é necessário deixar uma vida em suspenso ou interromper a caminhada do sujeito para que ele possa então se tratar. Andar e tratar faz-se tudo ao mesmo tempo e nos lugares mais distantes e improváveis. A clínica em rede, portanto é uma clínica que não demanda isolamento ou afastamento da vida familiar e social do sujeito, já que é uma clínica capaz de se movimentar até esses lugares.
Franco Rotelli, teórico militante da reforma psiquiátrica italiana, vai dizer em seu texto, A instituição inventada de 1988, que uma instituição para desinstitucionalizar a loucura deve ser uma instituição contaminada, liberta do higienismo médico tradicional. Essa clínica em rede que os CAPS propõem é, portanto, uma clínica essencialmente contaminada. Contaminada com as intempéries e dificuldades da vida cotidiana, contaminada pelas dificuldades inerentes ao laço social, pela tragicidade da existência e pelas crises sociais econômicas. É uma clínica que não pretende criar um espaço artificial, descontaminado, isolado do resto do mundo para então poder acontecer.
Sendo assim, um serviço de saúde mental que aposte na clínica em rede não pode ser uma instituição fixa, inerte, burocrática, que cumpre sua função pelo numero de pessoas (vagas) ou de intervenções (consultas) que consegue atender. Criar uma clínica em rede é inventar uma outra lógica, trata-se de criar pontos de ligação com vários outros sujeitos e dispositivos (de saúde ou não) para formar um tecido que consiga abarcar as singularidades e demandas que se apresentarem. A clínica em rede precisa de uma instituição plástica, móvel, flexível, que possa se mobilizar de modo a acolher todos e cada um.
As redes funcionam como pontes e elementos de ligação e devem substituir os muros do modelo manicomial. As redes, diferentemente dos muros, são sistemas abertos, que se abrem e se fecham, estendem-se e se recolhem, tomam a forma necessária a cada situação e singularidade. A força da rede não está na sua dureza e rigidez e sim nos seus pontos de união, que precisam ser muitos porque se um fio se rompe – e fios sempre se rompem – existem inúmeros outros para manter a rede funcionando.
Outro diferencial importante da clínica em rede é estar ciente de ser esburacada. É estar avisada de que apesar de todos os enlaçamentos que lhe permitem criar um tecido, um sistema, ainda sim os buracos estão lá e sempre estarão. Sendo assim, a clínica em rede não pretende ter soluções definitivas para todos os males, não pretende aplacar todos os enigmas, dar todas as respostas, silenciar todas as loucuras ou impedir todos os transtornos. Não podemos esquecer, essa era a pretensão do manicômio.
É importante ressaltar, no entanto, que superar os manicômios e inventar uma nova clínica, como é a proposta da Reforma Psiquiátrica, não implica necessariamente em prescindir da clínica do leito. Em situações extremas e especiais, a clínica do leito pode e deve ser utilizada, mas sempre durante o menor período necessário e em outros dispositivos que estejam mais abertos à lógica da clínica em rede, como os CAPS III (24 horas) e os leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Entendemos que o paradigma do leito é importante e às vezes precisará ser acionado, o problema é quando ele se torna a única maneira de intervir, como acontece no hospital psiquiátrico. Por isso dissemos que o problema essencial do modelo hospitalar não está apenas no fato dele ser bom ou ruim, de ser humanizado ou não, de prestar um bom atendimento ou não, de ter uma boa hotelaria ou não; apesar disso fazer toda diferença na qualidade do tratamento oferecido. O problema do modelo hospitalar é de trabalhar apenas com a clínica do leito e ter limitações para trabalhar nessa nova clínica inventada pela Reforma – a clínica em rede.
O dia 18 de Maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, nasceu no histórico Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru (SP), em 1987, e o lema escolhido para marcar e reafirmar o sentido de sua existência foi “Por uma sociedade sem manicômios”. O sentido dessa luta era, portanto, desconstruir o modelo manicomial: mais redes e menos muros. Desde esta data histórica, muita coisa mudou no campo das Políticas de Saúde Mental. Os grandes manicômios foram fechados e os que restaram tiveram que reduzir significativamente seus leitos, além de serem obrigados a cumprir normas de humanização, atendimento e funcionamento, até que sejam desinventados gradativamente. Desde esta época também começaram as restrições quanto ao tempo de internação, nenhum paciente pode mais ser condenado a morar no hospital psiquiátrico, deve permanecer nele o menor tempo necessário, apenas o suficiente para se recuperar de um período de crise, sendo, a continuidade do tratamento, feita em serviços extra-hospitalares, como os CAPS.
Mas a reforma psiquiátrica enfrenta ainda alguns novos desafios. Primeiramente precisamos citar o tema das drogas que tem tomado à cena e, nesse caso, novamente, o modelo de tratamento baseado no isolamento social, na restrição das liberdades e nos muros, tem sido pensado por alguns como saída. Sabemos que a solução para esta questão precisa ser pensada para além das intervenções em saúde, já que é muito complexa, mas sabemos também que não podemos repetir os erros do passado, acreditando que solucionar um problema é simplesmente isolá-lo, afastá-lo da nossa convivência. Mais uma vez temos sido tentados a criar novos muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também e principalmente, em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado redes e pontes. E afinal, concluímos que as redes e as pontes têm sido infinitamente mais eficazes para tratar que os muros. O sucesso dos CAPS e demais dispositivos da Reforma são a prova disso. Sendo assim, no caso das políticas sobre drogas, seria uma pena gastarmos tempo, material humano e recursos públicos com os muros que já sabemos, mais cedo ou mais tarde, demonstrarão seu fracasso (e na verdade, já estão demonstrando).
Precisamos apostar nas redes e nas pontes. Pontes que aproximam ao invés de afastar e redes que acolhem ao invés de espantar. Lembrando que acolher não é recolher, porque acolher leva em conta o querer de quem está sendo acolhido, ao passo que o recolher só leva em conta o querer de quem recolhe.
Outro grande desafio para os serviços de saúde mental na atualidade tem sido a demanda por psiquiatrização e medicalização do sofrimento cotidiano e dos nossos problemas relacionais. Vivemos na era da ditadura da felicidade, época em que qualquer mal-estar tem sido interpretado como doença, e em que qualquer sintoma precisa ser silenciado rapidamente. O excesso de diagnósticos psiquiátricos, o exagero e a pressa em medicar todos os mal-estares são os novos muros que estamos construindo para lidar com aquilo que nos incomoda. Diante desse imperativo de ter que ser feliz o tempo todo, esquecemos que a infelicidade cotidiana, manifesta em situações de perda, conflitos e angústia, é também parte da condição humana e não doença.
Num passado não muito distante a felicidade era uma utopia, uma busca, um enigma a ser decifrado. Hoje a felicidade é mesmo uma obrigação e a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de mal estar. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos... Hoje, todo tipo de mal estar cabe num diagnóstico, e para cada diagnóstico, temos um medicamento. A reforma psiquiátrica precisa se ater a esse novo desafio, afinal, precisamos escutar, acolher e compreender nossos mal estares, e não apenas criar muros químicos que nos separem deles. Precisamos ter cuidado para não medicalizar e anestesiar o que deveria ser a matéria prima para podermos fazer e refazer nossas escolhas, nos aperfeiçoar enquanto seres humanos e repensar nosso modo de vida em sociedade.
É importante dizer que os medicamentos, de quaisquer espécies, são ferramentas importantes da ciência médica em favor da nossa saúde e bem estar, o problema é quando o medicamento deixa de ser um recurso terapêutico para ser um produto comercial. Ao
entrar na categoria das mercadorias, a medicação perde bastante da sua potência ética e terapêutica, se torna apenas mais um objeto ávido por ser consumido, seja lá por quem e de que maneira for.
Se antes tínhamos que autorizar as pessoas a serem felizes, hoje precisamos enfrentar o desafio de autorizá-las a serem infelizes, a entenderem situações de angústia, tristeza e luto, como sentimentos que fazem parte da vida e não como um mal a ser curado e medicalizado. Temos um novo desafio ético, novos muros precisam ser derrubados, precisamos desconstruir diagnósticos a fim de despsiquiatrizar e rehumanizar nossa infelicidade cotidiana.
Para se ter uma idéia a que ponto chegamos, a edição do DSM V (manual psiquiátrico americano) será capaz de transformar a pirraça infantil em um transtorno mental. Será chamado de transtorno de humor desregulado e perturbador. Isso diz muito da sociedade que nos tornamos e precisamos pensar sobre isso. Precisaremos pensar, por exemplo, sobre o que fazer com as crises de pirraça de nossas crianças pequenas. Atenderemos prontamente a demanda delas para que não se frustrem e para fazer cessar a pirraça? Levaremos nossas crianças ao serviço de saúde mental para que sejam devidamente diagnosticadas e medicadas? Ou permitiremos que elas aprendam, desde cedo, que às vezes (ou quase sempre) as coisas não funcionam exatamente como gostaríamos, e que isso certamente vai aborrecê-la, mas que, afinal, não é o fim do mundo?
Precisamos pensar se queremos uma sociedade que transforma todo tipo de desvio ou comportamento fora do padrão em doença passível de cura, tratamento e medicalização, ou seja, normatização. Precisamos pensar se queremos silenciar, anestesiar e criar muros químicos que contenham todos os conflitos, angústias, medos, dores e tristezas que sentiremos ao longo da vida.
Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias dos quais não poderemos escapar completamente. Mas se por um lado não podemos erradicar completamente esse desamparo, Freud dirá que podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, pelas redes e pontes que somos capazes de criar, manter e fortalecer. Em última análise, para usar os termos de Freud, precisamos amar para não adoecer.
Portanto, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima: queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Nesse de 18 de maio, mais uma vez, escolha é nossa.
Já me tornei uma fã de seu trabalho, ainda que distante em nossos espaços físicos. " “A loucura se cura andando”. Quanto deve custar a consciência humana pelos julgamentos de um mundo ao redor que o trata como um "louco"? Ainda vemos fantasmas de nós mesmos e não os admitimos para ninguém para que não sejamos também julgados. Mas haverá uma "saída", contanto que estejam engajados, aptos e sensíveis assim, como você, porque em todas as profissões devemos separar o joio do trigo. Você certamente faz a diferença na vida de muitas pessoas, e na minha, particularmente, tem sido de grande valia poder absorver tamanha lucidez em seus textos. um forte abraço.
ResponderExcluirMarcia Abrahim