“Japoneses perdem esposas e encontram o amor em bonecas de silicone. Elas vêm com cabeça e vagina desmontáveis.” Esta manchete de uma matéria publicada no G1 ontem, 01 de julho, emenda bem com outra do El País, do último dia 20, que também trata da realidade das relações afetivas no Japão. Esta última afirma que, mesmo os jovens, evitam contato físico e preferem os relacionamentos virtuais ou com máquinas. Fala-se de uma geração que não sabe se relacionar afetivamente. Tais publicações me lembraram ainda, um documentário que assisti há algum tempo, também sobre a sociedade japonesa, chamado: O império dos sem sexo – o nome já diz muito por si mesmo.
Entretanto, penso eu, isso que se apresenta para os japoneses numa dimensão de radicalidade, é uma realidade muito presente também no ocidente atual; um crescente desencontro das relações afetivas. Se em algum momento do passado homens e mulheres tinham suas posições e funções claramente definidas e os homossexuais estavam condenados a viver nas sombras ou “dentro do armário”, tais desencontros não eram tão evidentes. Numa relação de poder totalmente demarcada pelo domínio dos homens, os mal-estares eram mais “silenciosos”, já que suportados em submissão por mulheres e homossexuais, obviamente.
Mas a chamada revolução sexual garantiu a desestabilização do poderio masculino, tanto fazendo com que as posições e funções vinculadas aos gêneros se relativizassem, quanto garantindo que mulheres e homossexuais não se mantivessem mais tão calados diante do mal-estar das relações. E se, como diria Freud, o mal-estar é elemento intrínseco e inevitável ao laço, o que aconteceu é que tal mal-estar transbordou e, hoje, aparece escancarado e atinge a todos. Assim sendo, tal desencontro comparece tanto nas relações hetero quanto nas homossexuais. Entretanto, talvez possamos dizer que nas relações heterossexuais este mal-estar se aprofunda na medida em que o sujeito “escolhe” se relacionar com o outro sexo, o diferente, e não com o semelhante.
Vejamos então que, especialmente no campo das relações heterossexuais, uma coisa se mantem e comparece nas matérias e no documentário citado: muitos homens ainda esperam por mulheres mortificadas, que não os ameace, que não os castre em sua posição de poder. Isso faz das bonecas de silicone as mulheres ideais, em especial para os homens que temem o poderio e o desejo femininos. Mulheres de plástico não demandam, não se queixam, não enlouquecem, não falam, não gozam e estão sempre disponíveis, ou seja, ocupam sem constrangimento ou incômodo a posição de objeto para eles. O fato de uma das matérias destacar, já no título, que nas bonecas do amor a cabeça e vagina são desmontáveis, diz muito sobre o tipo de mulher que esses homens procuram. A mulher ideal para o homem que se sente fragilizado diante do outro sexo é aquela que só comparece quando ele assim o desejar e do modo que ele desejar, aquela que é capaz de separar a cabeça ou o corpo da própria vagina.
Por outro lado, as mulheres reais de hoje em dia, em geral, não aceitam mais renunciar ao próprio desejo. Como resultado, temos homens infantilizados ou fóbicos para o afeto. Com muita prevalência, quanto mais nós mulheres colocamos em jogo nosso próprio desejo, mais os homens se sentem ameaçados e recuam, sendo possível numa situação extrema como na do Japão, se sentirem muito mais à vontade com mulheres de plástico. Mas afinal, como sair desse impasse sem perder nossa disposição para o romance?
Penso que a via de escape só pode acontecer pela construção conjunta e pela disposição para o encontro vindo dos dois lados. Obviamente que era muito mais fácil para o sustento de uma relação quando as mulheres se dispunham a renunciarem ao próprio desejo. Eu disse melhor para a relação, mas não para as mulheres, é claro. Hoje, com homens e mulheres numa relação de poder mais horizontalizada e com papéis e atribuições não tão definidos, há de se dedicar esforço e investimento muito maiores para que um relativo equilíbrio se estabeleça. E trata-se de uma construção diária e contínua, por vezes dispendiosa e cansativa. Mas, se não queremos apelar para a recusa do sexual, tal como tem acontecido com os japoneses num nível extremo, ou recuar dos avanços que o movimento feminista trouxe para as mulheres, como defendem alguns movimentos religiosos e/ou políticos reacionários, temos que continuar no esforço dessa construção cotidiana, que cada par fará a seu próprio modo e a cada vez.
Primeiramente, suponho que seja necessário que o casal se desarme; os dois. Talvez hoje, mais do que nunca, o verbo amar só se conjugue para os que estão desarmados. Nós mulheres sempre estivemos mais dispostas para assumir uma posição desarmada, mas agora os homens também estão sendo convidados a isso. A boa notícia é que, se o feminismo produziu, juntamente com mulheres desejantes e vívidas, homens inseguros e fóbicos para a relação, também produziu outros, especialmente os da nova geração, que entenderam que se desarmar, se livrar da necessidade de controlar e ter poder, pode ser um alívio e não uma perda. Os homens que estão se dispondo a aprender com o movimento desejante das mulheres (e eles existem sim garotas!) são homens mais leves, mais abertos, mais flexíveis e, portanto, mais livres. Percebo uma geração de homens que já chegou num mundo de mulheres ativas e atuantes, e que não se sentem perdendo ou competindo com elas, mas em parceria, construindo junto.
Nesse sentido, no meu entender, não cabe às mulheres se armarem do lado de cá. Trocar de posição com o homem não resolve a questão e não nos fará mais libertas, ao contrário. Se o feminismo pôde nos ensinar uma coisa foi que se fixar em um papel e uma posição de poder cristalizada não é interessante pra ninguém. O lugar da vítima pode ser tão aprisionador quanto o do algoz, ainda que este último, a princípio, sofra menos.
Voltando às bonecas de silicone é lamentável que o desencontro entre os sexos, que será sempre irreparável (não existe a metade da sua laranja), tenha chegado ao ponto de inventarmos um amor de prótese. Imaginamos que esse seria um último recurso para os solitários que não tiveram outra opção, tal como o personagem de Tom Hanks, no filme Naufrago, ao criar Wilson a partir de uma bola de voleibol.
Por fim, é isso: o mal-estar é inerente às nossas tentativas de laço amoroso, seja de que natureza for. Por outro lado, sem ele, a maioria de nós se sente manco, triste e solitário, as bonecas japonesas estão aí para provar isso. E como diria minha xará Rita Lee: “ai de mim que sou romântica”, então, ainda sou partidária por sofrer de amor se a outra opção é amar um ser de plástico ou mortificado no seu desejo.
Amém!
Rita Almeida
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