Por Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicóloga/psicanalista
Trabalhadora da rede de saúde mental do SUS
Ainda estou sob o impacto do livro Holocausto Brasileiro, da premiada jornalista do Tribuna de Minas, Daniela Arbex. A realidade contada no livro não era desconhecida para mim, já que sou trabalhadora da Saúde Mental do SUS e militante do Movimento Antimanicomial há 17 anos, mas a riqueza de detalhes, com fotos e documentos e a forma sensível como Daniela tratou tamanha tragédia, me tocaram profundamente.
Há momentos da história da humanidade que todos nós preferiríamos esquecer. Momentos que nos fazem sentir vergonha de pertencer à espécie humana. Ao testemunhar através dos olhos da autora o horror imposto aos “doentes mentais” do Hospital Colônia de Barbacena no século passado, não há como não sentir revolta pela nossa espécie. Porque permitimos tanto descaso, desrespeito e horror? Como pudemos estar tão cegos para aquela realidade, e por tanto tempo?
Dizem que os índios não foram capazes de enxergar as primeiras caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil, simplesmente porque nunca tinham visto nada parecido, sendo assim não tiveram parâmetros para enxergar, mesmo podendo ver. Sendo assim, a única explicação que encontrei para compreender porque tamanha barbárie se sustentou por décadas foi exatamente essa: a de que muitas das testemunhas desse holocausto viam, mas não enxergavam. Afinal, o olhar também precisa aprender a enxergar.
Mas depois que aprendemos a enxergar, fomos capazes de gradativamente desmontar aquela realidade dantesca, apesar de lamentavelmente, alguns daqueles horrores ainda assombrarem nosso presente, aqui e acolá. Através da sua obra, a autora nos convida a enxergar essa tragédia mais uma vez e com mais profundidade, e esse aprendizado não pode ser perdido para que não cometamos os mesmos erros novamente, em outras situações e com novas vítimas. Por isso, mesmo desejando esquecer esse período sombrio da nossa história recente, é muito bom que Daniela refresque nossa memória.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
sábado, 13 de julho de 2013
Entre Maria Louca e Maria Maluquinha tem um Bolsa Família.
Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicanalista
Trabalhadora de CAPS da Rede de Saúde Mental do SUS
Este texto tem uma personagem: Maria. Maria é um nome fictício, mas tudo mais é real, tão real que muitos leitores vão pensar que é ficção.
No início da nossa história Maria é pobre, muito pobre, na verdade, Maria é miserável. Sem nenhuma renda, ela e sua única filha vivem da caridade e da boa vontade de pessoas e instituições. Maria também tem pouquíssima escolaridade, parece uma personagem tirada daquele programa de humor que é a cara da pobreza da nossa TV. Maria fala “pobrema” (problema), “risistente social” (assistente social), “conselho titular” (conselho tutelar), “presentivo” (preventivo), “elétrico” (eletroencefalograma) dentre outras pérolas. Além de tudo Maria é louca, e ela geralmente, concordava com este rótulo que lhe davam. Com algumas passagens por hospícios da região, confessava: “nunca tive cabeça boa pra trabalhar”.
Mas atualmente, Maria não aceita mais ser chamada de louca, se considera uma “maluquinha”. Mas para fazer a travessia de louca para maluquinha, passaram-se quase 10 anos, e muita coisa aconteceu nesse caminho, incluindo um abençoado Bolsa Família. Eu sempre tive vontade de escrever um texto sobre o Bolsa Família e achei apropriado usar a história de Maria para fazê-lo.
Em 17 anos de trabalho em serviços de Saúde Mental do SUS (CAPS), lidando diariamente com pessoas, em geral, pobres, muito pobres ou miseráveis, aprendi uma coisa que só a experiência ensina. Existe uma diferença descomunal, abissal, entre ser pobre e ser miserável. Quem não lida cotidianamente com a população mais humilde, talvez conheça os pobres, mas não conhece os miseráveis, já que eles são “invisíveis a olho nu”. E esse seria o mesmo destino de Maria, ser invisível, mas afinal, sua loucura incomodou e obrigou que a enxergássemos. Foi assim que tomamos conhecimento de Maria, a louca, sem pai nem mãe, rejeitada pela família, em sua miséria absoluta, dependendo do que encontrava no lixo, de favores ou da caridade alheia para sobreviver com sua filha.
Quando ouço pessoas que criticam o Bolsa Família ou outro programa de transferência de renda, dizendo que ele acostuma mal as pessoas, estimula a preguiça e desvirtua o caráter, sinto vontade de vomitar. Quem diz isso, definitivamente, não sabe o que é miséria. Quem faz esse tipo de afirmação tosca e preconceituosa, para usar palavras publicáveis, nunca passou pela situação de encontrar em R$ 70,00 algum alento. Com pouquíssima probabilidade de errar, ninguém que está lendo agora este texto sabe, na carne, o real valor de R$ 70,00. Maria sabe. Muitos aqui vão duvidar, mas R$ 70,00 ou R$ 130,00 (média nacional do valor repassado para cada família com o Bolsa Família), é capaz de reduzir o enorme abismo entre a miséria e a pobreza, e com isso, viabilizar um status inicial necessário para acessar qualquer outro tipo possível de justiça social: ser visto.
E R$ 70,00 fez muita diferença na vida de Maria, não só pelo valor, mas porque em mais de 30 anos de vida, esse foi o primeiro dinheiro que ela conseguiu que não fosse por caridade ou proveniente de algum dos homens com os quais, eventualmente, se aventurava a morar. Isso porque o Bolsa Família não é tratado pelos profissionais, não pelos sérios e éticos, como um mero benefício assistencial ou uma esmola do prefeito ou do governo, mas como um direito. Sendo assim, o cartão do Bolsa Família foi o primeiro direito que Maria conquistou, depois dele, como veremos, muitos outros vieram.
Um segundo direito que Maria teve voz e força para exigir depois do primeiro, foi uma pensão alimentícia para filha. O ex-companheiro de Maria era alcoolista, raramente tinha trabalho fixo, e mesmo quando conseguia algum trabalho, não pagava pensão, regularmente. Mas Maria tinha aprendido a exigir seus direitos, e foi até às últimas conseqüências para conseguir que o pai da menina pagasse a pensão, achou até justo quando ele quase foi preso por não cumprir com a obrigação. Hoje ele paga a pensão de R$ 90,00 assiduamente, e ela assina o recibo na nossa frente (como ficou combinado na justiça), com a postura de quem aprendeu a lutar pelo seu lugar no mundo.
A loucura de Maria, que se instalou desde o nascimento da filha, continuava a lhe imputar uma incapacidade real para o trabalho formal. Sua irritabilidade e instabilidade emocionais faziam de qualquer relação possível com o outro, um inferno. Mesmo dentro do CAPS, eram comuns suas agressões verbais e até físicas a técnicos e outros usuários.
Maria, eventualmente, se envolvia com homens com os quais imaginava conquistar alguma segurança, mas em geral, eles obedeciam a um mesmo padrão: alcoolistas ou usuários de drogas, também pobres, com ligações familiares empobrecidas e sem trabalho fixo. Com esses homens, Maria vive relações muito conturbadas e violentas. Assim também vinha caminhando a relação com seu atual companheiro, e com o qual Maria teve um filho, hoje com 3 anos.
Inúmeras vezes tentamos conseguir para Maria o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que assegura um salário mínimo para idosos, ou pessoas com alguma deficiência grave, que não contribuíram com a previdência social, desde que a renda familiar per capta não ultrapasse ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente. Mas, apesar de inúmeras tentativas, Maria não passava na perícia médica, não era considerada suficientemente incapaz para fazer juz ao benefício.
O fato é que, após muita insistência, no final do ano passado, Maria finalmente conseguiu o BPC e assim que teve certeza de que o benefício chegaria, avisou com satisfação, que agora poderia devolver o cartão do Bolsa Família para que ele pudesse ajudar outra pessoa. Era justo que tivesse recebido o benefício por um tempo e agora, com sua nova condição assegurada, era justo que o passasse adiante. Apesar de louca e ignorante, como a maioria a considerava, Maria sabia o exato significado da palavra justiça, mesmo tendo tão pouco acesso a ela.
Com alguns meses recebendo salário mínimo, além de poder atender suas necessidades básicas e a dos dois filhos, Maria teve melhorias subjetivas ainda mais notórias. A vaidade consigo mesma e com seu pequeno barraco (herança dos pais), que mesmo nos tempos de miséria insistiam em manter nela um pouco de orgulho, hoje se destacam e evidenciam cada vez mais seu estilo. Maria sempre gostou de bijuteria, maquiagem, sapato, bolsa e roupas e, tal como antes, ainda depende de doações para atender a esses seus caprichos. Mas hoje ela parece feliz em apenas poder se aventurar em entrar numa loja e perguntar o preço das coisas. Ontem me abordou dizendo que viu uma calça igual a que eu vestia por R$ 90,00, achou muito cara e, por isso, não comprou. Semana passada Maria compartilhou numa reunião com outros usuários do CAPS, com lágrimas nos olhos, que mês que vem irá realizar o sonho da sua vida: comprar um jogo de panelas na loja. “Meu sonho é comprar um jogo de panelas novo e colocar tudo em cima da mesa”. O projeto seguinte é colocar piso na casa, toda de chão batido.
Também existem os preconceituosos de plantão que vão criticar os que, depois de saírem do abismo da miséria, se rendem ao consumo. Então nós vivemos numa sociedade capitalista e consumista, que propagandeia o tempo todo que podemos alcançar felicidade comprando coisas e acusamos de consumistas os que estão tendo a primeira oportunidade de testar se essa teoria é verdadeira? Ah, tá!
Mas, quem acredita que uma renda mensal mínima tem apenas efeito de consumo, também se engana. Cerca de dois meses depois de Maria ter recebido seu primeiro salário mínimo questionei a ela como estava sua relação com o companheiro, perguntei se ainda se estapeavam. E ela me respondeu: “Não, agora eu não deixo mais ele me bater”. Sendo eu uma psicanalista, poderia ter interpretado a frase dela dizendo: “Mas, então, antes você deixava?” Mas não foi necessário, eu sabia exatamente porque Maria aceitava apanhar. Ao contrário do que muitos podem supor essa Maria, e muitas outras, não apanham por gosto ou costume, tampouco são fãs dos “50 tons”. Nossas Marias aceitam a violência porque acreditam que esse é o preço que têm que pagar para manter em casa seu homem e com ele algum respeito, amor próprio ou possibilidade de sustento para si mesma e para os seus filhos, ainda que esses sejam ganhos totalmente ilusórios.
Já concluindo, preciso contar o que aconteceu no último mês de maio, por ocasião da festa do nosso CAPS em comemoração ao dia Nacional de Luta Antimanicomial. Durante os eventos, Maria nos surpreendeu ao pegar o microfone e recitar uma longa poesia feita por ela, na qual tecia, com muito humor, sua trajetória de louca à maluquinha. No seu poema, meio cantado meio falado, “louca” tinha a conotação pejorativa que lhe davam no passado e “maluquinha” falava de como ela se via hoje, do seu jeitinho diferente, meio maluquinho sim, mas também capaz de declarar seu amor pela vida e pelas pessoas que ali estavam. Era o outro com o qual ela “nunca se dava” transformando-se, finalmente, em objeto de seu amor.
Sim, passado o período em que só podia viver no campo da necessidade imediata e urgente de sobreviver junto com seus filhos, Maria alcança o campo da arte. Maria produz cultura. Atualmente está empolgadíssima com a possibilidade de ser atriz em uma peça de teatro produzida pelo CAPS e cuja história poderá ser a sua própria, aquela tecida em seu poema.
Ainda há quem chame Maria de louca. Para mim, louco é quem critica benefícios sociais e programas de transferência de renda sem saber o que é ser invisível. Muitos dirão que Maria é uma analfabeta ignorante. Para mim, ignorante é quem não consegue olhar em torno, é quem só consegue ver o mundo a partir do próprio umbigo.
Para você que insiste em criticar programas sociais, eu deixo Maria no seu encalço. Mas se sua intenção for apenas criticar, com os amigos ou nas redes sociais, algum tipo de benefício pago com recurso público e que você não recebe, tenho algumas sugestões. Numa pesquisa rápida no Google, descobri alguns auxílios concedidos a ministros, vereadores, deputados, senadores, desembargadores, policiais federais, diplomatas, altas patentes do exército, marinha ou aeronáutica e/ou juízes. São eles: Bolsa Moradia, Bolsa Paletó, Bolsa Passagens Aéreas, Bolsa Combustível, Bolsa Telefone, Bolsa Gabinete, Bolsa Alimentação, Bolsa Despesas, Bolsa Creche, Bolsa Indenizatória, Bolsa Estudo, Bolsa Funeral e Bolsa Assistência Médica. Obviamente, que nem todas as categorias citadas recebem todos esses benefícios, mas cada uma delas recebe pelo menos duas ou três “Bolsas” citadas. E, na verdade, esses benefícios não são chamados de “Bolsa”, fui eu quem, propositalmente, os batizei com esse nome. Mas bem que poderiam chamar, não é? (Eu não pesquisei o valor de tais “Bolsas”, se você quiser fazê-lo fique à vontade. Sugiro apenas que tome um antiácido antes)
Então, alguém aí pra tentar me convencer que o Bolsa Família não é um direito justo?
Psicanalista
Trabalhadora de CAPS da Rede de Saúde Mental do SUS
Este texto tem uma personagem: Maria. Maria é um nome fictício, mas tudo mais é real, tão real que muitos leitores vão pensar que é ficção.
No início da nossa história Maria é pobre, muito pobre, na verdade, Maria é miserável. Sem nenhuma renda, ela e sua única filha vivem da caridade e da boa vontade de pessoas e instituições. Maria também tem pouquíssima escolaridade, parece uma personagem tirada daquele programa de humor que é a cara da pobreza da nossa TV. Maria fala “pobrema” (problema), “risistente social” (assistente social), “conselho titular” (conselho tutelar), “presentivo” (preventivo), “elétrico” (eletroencefalograma) dentre outras pérolas. Além de tudo Maria é louca, e ela geralmente, concordava com este rótulo que lhe davam. Com algumas passagens por hospícios da região, confessava: “nunca tive cabeça boa pra trabalhar”.
Mas atualmente, Maria não aceita mais ser chamada de louca, se considera uma “maluquinha”. Mas para fazer a travessia de louca para maluquinha, passaram-se quase 10 anos, e muita coisa aconteceu nesse caminho, incluindo um abençoado Bolsa Família. Eu sempre tive vontade de escrever um texto sobre o Bolsa Família e achei apropriado usar a história de Maria para fazê-lo.
Em 17 anos de trabalho em serviços de Saúde Mental do SUS (CAPS), lidando diariamente com pessoas, em geral, pobres, muito pobres ou miseráveis, aprendi uma coisa que só a experiência ensina. Existe uma diferença descomunal, abissal, entre ser pobre e ser miserável. Quem não lida cotidianamente com a população mais humilde, talvez conheça os pobres, mas não conhece os miseráveis, já que eles são “invisíveis a olho nu”. E esse seria o mesmo destino de Maria, ser invisível, mas afinal, sua loucura incomodou e obrigou que a enxergássemos. Foi assim que tomamos conhecimento de Maria, a louca, sem pai nem mãe, rejeitada pela família, em sua miséria absoluta, dependendo do que encontrava no lixo, de favores ou da caridade alheia para sobreviver com sua filha.
Quando ouço pessoas que criticam o Bolsa Família ou outro programa de transferência de renda, dizendo que ele acostuma mal as pessoas, estimula a preguiça e desvirtua o caráter, sinto vontade de vomitar. Quem diz isso, definitivamente, não sabe o que é miséria. Quem faz esse tipo de afirmação tosca e preconceituosa, para usar palavras publicáveis, nunca passou pela situação de encontrar em R$ 70,00 algum alento. Com pouquíssima probabilidade de errar, ninguém que está lendo agora este texto sabe, na carne, o real valor de R$ 70,00. Maria sabe. Muitos aqui vão duvidar, mas R$ 70,00 ou R$ 130,00 (média nacional do valor repassado para cada família com o Bolsa Família), é capaz de reduzir o enorme abismo entre a miséria e a pobreza, e com isso, viabilizar um status inicial necessário para acessar qualquer outro tipo possível de justiça social: ser visto.
E R$ 70,00 fez muita diferença na vida de Maria, não só pelo valor, mas porque em mais de 30 anos de vida, esse foi o primeiro dinheiro que ela conseguiu que não fosse por caridade ou proveniente de algum dos homens com os quais, eventualmente, se aventurava a morar. Isso porque o Bolsa Família não é tratado pelos profissionais, não pelos sérios e éticos, como um mero benefício assistencial ou uma esmola do prefeito ou do governo, mas como um direito. Sendo assim, o cartão do Bolsa Família foi o primeiro direito que Maria conquistou, depois dele, como veremos, muitos outros vieram.
Um segundo direito que Maria teve voz e força para exigir depois do primeiro, foi uma pensão alimentícia para filha. O ex-companheiro de Maria era alcoolista, raramente tinha trabalho fixo, e mesmo quando conseguia algum trabalho, não pagava pensão, regularmente. Mas Maria tinha aprendido a exigir seus direitos, e foi até às últimas conseqüências para conseguir que o pai da menina pagasse a pensão, achou até justo quando ele quase foi preso por não cumprir com a obrigação. Hoje ele paga a pensão de R$ 90,00 assiduamente, e ela assina o recibo na nossa frente (como ficou combinado na justiça), com a postura de quem aprendeu a lutar pelo seu lugar no mundo.
A loucura de Maria, que se instalou desde o nascimento da filha, continuava a lhe imputar uma incapacidade real para o trabalho formal. Sua irritabilidade e instabilidade emocionais faziam de qualquer relação possível com o outro, um inferno. Mesmo dentro do CAPS, eram comuns suas agressões verbais e até físicas a técnicos e outros usuários.
Maria, eventualmente, se envolvia com homens com os quais imaginava conquistar alguma segurança, mas em geral, eles obedeciam a um mesmo padrão: alcoolistas ou usuários de drogas, também pobres, com ligações familiares empobrecidas e sem trabalho fixo. Com esses homens, Maria vive relações muito conturbadas e violentas. Assim também vinha caminhando a relação com seu atual companheiro, e com o qual Maria teve um filho, hoje com 3 anos.
Inúmeras vezes tentamos conseguir para Maria o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que assegura um salário mínimo para idosos, ou pessoas com alguma deficiência grave, que não contribuíram com a previdência social, desde que a renda familiar per capta não ultrapasse ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente. Mas, apesar de inúmeras tentativas, Maria não passava na perícia médica, não era considerada suficientemente incapaz para fazer juz ao benefício.
O fato é que, após muita insistência, no final do ano passado, Maria finalmente conseguiu o BPC e assim que teve certeza de que o benefício chegaria, avisou com satisfação, que agora poderia devolver o cartão do Bolsa Família para que ele pudesse ajudar outra pessoa. Era justo que tivesse recebido o benefício por um tempo e agora, com sua nova condição assegurada, era justo que o passasse adiante. Apesar de louca e ignorante, como a maioria a considerava, Maria sabia o exato significado da palavra justiça, mesmo tendo tão pouco acesso a ela.
Com alguns meses recebendo salário mínimo, além de poder atender suas necessidades básicas e a dos dois filhos, Maria teve melhorias subjetivas ainda mais notórias. A vaidade consigo mesma e com seu pequeno barraco (herança dos pais), que mesmo nos tempos de miséria insistiam em manter nela um pouco de orgulho, hoje se destacam e evidenciam cada vez mais seu estilo. Maria sempre gostou de bijuteria, maquiagem, sapato, bolsa e roupas e, tal como antes, ainda depende de doações para atender a esses seus caprichos. Mas hoje ela parece feliz em apenas poder se aventurar em entrar numa loja e perguntar o preço das coisas. Ontem me abordou dizendo que viu uma calça igual a que eu vestia por R$ 90,00, achou muito cara e, por isso, não comprou. Semana passada Maria compartilhou numa reunião com outros usuários do CAPS, com lágrimas nos olhos, que mês que vem irá realizar o sonho da sua vida: comprar um jogo de panelas na loja. “Meu sonho é comprar um jogo de panelas novo e colocar tudo em cima da mesa”. O projeto seguinte é colocar piso na casa, toda de chão batido.
Também existem os preconceituosos de plantão que vão criticar os que, depois de saírem do abismo da miséria, se rendem ao consumo. Então nós vivemos numa sociedade capitalista e consumista, que propagandeia o tempo todo que podemos alcançar felicidade comprando coisas e acusamos de consumistas os que estão tendo a primeira oportunidade de testar se essa teoria é verdadeira? Ah, tá!
Mas, quem acredita que uma renda mensal mínima tem apenas efeito de consumo, também se engana. Cerca de dois meses depois de Maria ter recebido seu primeiro salário mínimo questionei a ela como estava sua relação com o companheiro, perguntei se ainda se estapeavam. E ela me respondeu: “Não, agora eu não deixo mais ele me bater”. Sendo eu uma psicanalista, poderia ter interpretado a frase dela dizendo: “Mas, então, antes você deixava?” Mas não foi necessário, eu sabia exatamente porque Maria aceitava apanhar. Ao contrário do que muitos podem supor essa Maria, e muitas outras, não apanham por gosto ou costume, tampouco são fãs dos “50 tons”. Nossas Marias aceitam a violência porque acreditam que esse é o preço que têm que pagar para manter em casa seu homem e com ele algum respeito, amor próprio ou possibilidade de sustento para si mesma e para os seus filhos, ainda que esses sejam ganhos totalmente ilusórios.
Já concluindo, preciso contar o que aconteceu no último mês de maio, por ocasião da festa do nosso CAPS em comemoração ao dia Nacional de Luta Antimanicomial. Durante os eventos, Maria nos surpreendeu ao pegar o microfone e recitar uma longa poesia feita por ela, na qual tecia, com muito humor, sua trajetória de louca à maluquinha. No seu poema, meio cantado meio falado, “louca” tinha a conotação pejorativa que lhe davam no passado e “maluquinha” falava de como ela se via hoje, do seu jeitinho diferente, meio maluquinho sim, mas também capaz de declarar seu amor pela vida e pelas pessoas que ali estavam. Era o outro com o qual ela “nunca se dava” transformando-se, finalmente, em objeto de seu amor.
Sim, passado o período em que só podia viver no campo da necessidade imediata e urgente de sobreviver junto com seus filhos, Maria alcança o campo da arte. Maria produz cultura. Atualmente está empolgadíssima com a possibilidade de ser atriz em uma peça de teatro produzida pelo CAPS e cuja história poderá ser a sua própria, aquela tecida em seu poema.
Ainda há quem chame Maria de louca. Para mim, louco é quem critica benefícios sociais e programas de transferência de renda sem saber o que é ser invisível. Muitos dirão que Maria é uma analfabeta ignorante. Para mim, ignorante é quem não consegue olhar em torno, é quem só consegue ver o mundo a partir do próprio umbigo.
Para você que insiste em criticar programas sociais, eu deixo Maria no seu encalço. Mas se sua intenção for apenas criticar, com os amigos ou nas redes sociais, algum tipo de benefício pago com recurso público e que você não recebe, tenho algumas sugestões. Numa pesquisa rápida no Google, descobri alguns auxílios concedidos a ministros, vereadores, deputados, senadores, desembargadores, policiais federais, diplomatas, altas patentes do exército, marinha ou aeronáutica e/ou juízes. São eles: Bolsa Moradia, Bolsa Paletó, Bolsa Passagens Aéreas, Bolsa Combustível, Bolsa Telefone, Bolsa Gabinete, Bolsa Alimentação, Bolsa Despesas, Bolsa Creche, Bolsa Indenizatória, Bolsa Estudo, Bolsa Funeral e Bolsa Assistência Médica. Obviamente, que nem todas as categorias citadas recebem todos esses benefícios, mas cada uma delas recebe pelo menos duas ou três “Bolsas” citadas. E, na verdade, esses benefícios não são chamados de “Bolsa”, fui eu quem, propositalmente, os batizei com esse nome. Mas bem que poderiam chamar, não é? (Eu não pesquisei o valor de tais “Bolsas”, se você quiser fazê-lo fique à vontade. Sugiro apenas que tome um antiácido antes)
Então, alguém aí pra tentar me convencer que o Bolsa Família não é um direito justo?