sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
A ditadura da felicidade
Por Rita de Cássia de A. Almeida
Psicóloga/psicanalista da Rede de Saúde Mental do SUS
Há mais de 15 anos que o meu trabalho cotidiano tem sido - para resumir em algumas poucas palavras - escutar o sofrimento alheio e, por opção, atuando na saúde pública. E durante esse percurso profissional testemunhei uma mudança muito interessante na minha prática clínica. Sofremos por diversos motivos e de diferentes formas e, pela minha experiência, o motivo do sofrimento não mudou muito, no entanto, a demanda que as pessoas tem feito quando estão em sofrimento mudou significativamente.
Estudos da psicanálise atual têm tratado nossa época como a era do direito ao gozo. Ou seja, vivemos em uma época que não trata a felicidade como algo a ser construído ou conquistado, mas sim como um direito. Numa caricatura, diríamos que toda criança que nasce, especialmente no ocidente capitalista, recebe em sua certidão de nascimento um carimbo que outorga a ela o direito de ser feliz, de gozar sem restrições, sem qualquer porém.
Me lembrei agora dos versos de uma música do saudoso Tim Maia.
“Essa tal felicidade, hei de encontrar.
Mesmo se eu tiver que aguardar.
Se eu tiver que esperar.”
Nos tempos do Tim Maia a felicidade ainda era uma contingência, quase uma utopia, uma busca na qual poderíamos ou não ter sucesso. Mas hoje a coisa é bem diferente, como a felicidade passou a ser um direito de todos, acabou alcançando também o patamar de uma certa obrigação do sujeito. É como se você tivesse ganhado o direito de, sem nenhum ônus, acessar mais 90 canais de TV e dissesse não. As pessoas te perguntariam: - Como assim, você não quer mais 90 canais de TV? Entendo que essa seja a grande pergunta que permeia o discurso ocidental capitalista: - Como assim, você não é feliz?
Esse modo de entender a felicidade implicou numa mudança radical, como eu disse, no tipo de demanda que as pessoas fazem a nós, trabalhadores da saúde mental. Para os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da atenção à saúde do SUS, preciso fazer um parêntese para que compreendam melhor o que vou dizer adiante.
O sistema funciona, ou pelo menos deve funcionar, em rede. A atenção primária é a extremidade da rede mais próxima do usuário, portanto a primeira que ele procura quando apresenta qualquer problema de saúde. A atenção primária - o posto de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família – deve atender e oferecer resolutividade para a maior parte dos casos, cerca de 80% deles. O desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das especialidades médicas, mas, intervir no sujeito como um todo, tendo como diretriz a promoção e a prevenção em saúde. Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais específicos nos quais a intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar outros parceiros da rede que possam oferecer suporte e parceria. Os CAPS, modalidade de serviço que trabalho, compõem exatamente este trançado da rede, eles oferecem uma escuta especializada no campo da saúde mental. Sendo assim, quase sempre recebemos encaminhamentos e demandas dos demais parceiros da rede, em especial da atenção primária, apesar de também recebermos demanda espontânea.
Ao chegar no CAPS o sujeito passará por um dispositivo chamado: acolhimento. Como o próprio nome diz, este é o momento que o sujeito será acolhido em sua demanda, será escutado com cuidado por um ou mais profissionais do serviço, não necessariamente o médico, para que se possa, a partir de então, construir uma estratégia de intervenção. E o que temos notado nesses acolhimentos é que as pessoas simplesmente não suportam ficarem infelizes, tristes, frustradas ou enlutadas (e também não suportam ver outras pessoas nesse estado). É como se elas agregassem um plus ao próprio sofrimento, sofrem pelo que as fazem sofrer e sofrem porque estão sofrendo, como se não tivessem mais o direito de ficarem infelizes.
Somos procurados para fazer intervenção de saúde mental de alguém que está vivendo uma situação de luto ou perda, por exemplo, e quer ser medicado porque está chorando muito. Como assim? Então o sujeito perdeu um ente amado e precisa estar de bom humor para ir ao cinema depois do enterro?
Mães nos procuram com suas filhas adolescentes por chorarem trancadas no quarto depois de uma desilusão amorosa. Então a famosa “dor de cotovelo” tornou-se um grande mal a ser tratado com antidepressivos?
Certa vez, recebemos o encaminhamento de uma senhora via atenção primária, cuja queixa era insônia persistente e delírios persecutórios. Avaliando o caso com cuidado no acolhimento, entendemos que a tal senhora não dormia porque estava sendo ameaçada pelo marido há meses (ameaça real, não delírio de perseguição). Ele dizia que jogaria água fervente no seu ouvido enquanto ela estivesse dormindo. Alguém, por favor, me diga: como essa mulher poderia dormir? Não dormir, nesse caso, é sinal de saúde e não de doença.
Esses são alguns dos muitos exemplos que têm nos convocado a fazer intervenções muito peculiares, diferentes daquelas que fazíamos há alguns anos atrás. Se, num passado não muito distante, grande parte da nossa intervenção era feita no sentido de autorizar as pessoas a serem felizes, hoje, temos precisado lançar mão de intervenções que autorizem as pessoas a serem infelizes, a chorarem, a sofrerem por um fracasso, uma perda, a mergulharem numa boa “dor de cotovelo”, sem que com isso precisem ser medicadas ou enquadradas em algum diagnóstico de transtorno mental.
Muitas vezes precisamos dizer a essas pessoas que não precisam se envergonhar de chorar a morte de alguém. Que é normal não dormirmos quando estamos endividados, desempregados ou sendo ameaçados. Invariavelmente precisamos lembrar às mães que elas também já choraram uma dor de amor e que sobreviveram. Precisamos dizer que, num acesso de raiva, não é uma insanidade irreparável quebrar algumas louças e a coleção de CDs. Às vezes precisamos dizer que (quase) todo mundo já pensou em suicídio pelo menos uma vez na vida, e que a imensa maioria nunca chegou a concretizá-lo.
Por isso, a bandeira que levanto aqui é a seguinte: Se a felicidade é um direito a infelicidade é uma necessidade. Um brinde a infelicidade nossa de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade.
Então, que todos tenham um 2013 feliz, mas quando a infelicidade vier, que possamos mergulhar nela em paz...sem pudor.
Muito bom! Entretanto, vale a pena corrigir o "um plus a mais".
ResponderExcluirMuito obrigada pelo texto, Rita. A ser muito compartilhado. Tim-tim!
ResponderExcluirCheguei ao texto pela Renata Lins e adorei, você tocou num ponto importantíssimo. Muito obrigada!
ResponderExcluirE feliz 2013 também, com tudo o que vier!
Muito bom o texto, Rita! Tenho chamado esta situação, cada vez mais comum, de psicologização ou psiquiatrização da dor. Não consegue dormir por causa da cirurgia do filho? Tome Rovotril. Esta triste porque sua mãe morreu? Fluoxetina resolve. Preocupado com o futuro, com a aposentadoria? Procure um terapeuta.
ResponderExcluirUm gande mestre, Roberto Crema, quando alguém espirra, deseja: "saúde! E plenitude", e tempestades, e trovoadas, e raios de sol, e água de chuva, e amores, e dissabores. Porque é disso que a vida é feita! Então, desejo um pouco de tudo para todos nós em 2013.
Muito pertinente o texto. E estas demandas, além de atravancarem o sistema de saúde, podem, se mal escutadas e mal direcionadas, se tornarem mesmo um problema para o sujeito, com diagnósticos errôneos, medicalização, internações, preconceito. Uma bola de neve!
ResponderExcluirMuito pertinente o texto. E estas demandas, além de atravancarem o sistema de saúde, podem, se mal escutadas e mal direcionadas, se tornarem mesmo um problema para o sujeito, com diagnósticos errôneos, medicalização, internações, preconceito. Uma bola de neve!
ResponderExcluirObrigada pelos comentários e correções, o retorno de vocês é muito importante pra mim. um abraço a todos
ResponderExcluirMuito bom Rita! Lembrei-me do artigo da Eliane Brum: Filho, você não merece nada!
ResponderExcluirParabéns!
Sempre penso na maxima que diz: "Nada acontece por acaso" e encontrar teu texto foi importante neste momento.então: Um brinde a infelicidade nossa de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNão podemos esquecer q por trás disso paira a sede da industria farmacêutica, à postos para enriquecer as custas da ignorância do povo!!!!
ResponderExcluirSeu texto é incrível, parabéns. Corresponde ao que eu: estudante universitário de 19 anos,que viaja, mora sozinho e tem uma renda razoável brigo para reafirmar. A felicidade não é uma obrigação, muito menos uma condição que deve ser imposta pelo sucesso financeiro ou profissional. Temos direito à tristeza, amargura, melancolia e todo o resto para então quem sabe encontrar a plenitude.
ResponderExcluirExcelente reflexão!
ResponderExcluirExcelente seu artigo e vou divulga-lo. Suas constatações, calcadas em sua experiência laboral nos esclarecem e educam. Obrigado por compartilhar, através do twitter via Eliane Brum. @lutiano7
ResponderExcluirlutiano.7@hotmail.com
Parabéns!!!
ResponderExcluirExcelente visão e trabalho.
A dor faz parte de toda trajetória que se preze!
Parabéns! Adorei a forma com que me fez refletir. Afinal, "o doce não seria doce sem o amargo", é preciso ser infeliz para gozar alguma felicidade verdadeira.
ResponderExcluirParabéns!!!
ResponderExcluirExcelente visão e trabalho.
A dor faz parte de toda trajetória que se preze!
Parabéns!!!
ResponderExcluirExcelente visão e trabalho.
A dor faz parte de toda trajetória que se preze!
Em busca do equilíbrio em nossa existência vamos compreendendo (os orientais já buscavam isso) que precisamos ter doses iguais de cada sentimento, tanto o bom como o ruim, caso contrário vamos nos empolgar demais com a felicidade ou nos deprimir muito na tristeza, vamos ser muito bondosos e passar por bobos ou maus demais e prejudicar outros e assim por diante...equilíbrio em tudo é uma boa receita... difícil conseguir, mas vale muito a pena tentar!
ResponderExcluirAchei o texto muito interessante, me lembrou uma palestra do Alain de Botton sobre sucesso profissional. Assim como a felicidade, o sucesso tambem se transforou em algo que se espera que aconteca e quem nao tem sucesso fica muito decepcionado e é chamado de "perdedor" (Loser) enquanto antigamente alguém sem sucesso era chamado de um "infeliz". Vivemos em uma sociedade falsamente meritocrática, onde qualquer um pensa que pode ser um Bill Gates se tiver uma garagem. Esse texto me acrescentou muito, aprendi muito e a partir de agora irei aproveitar mais meus momentos infelizes... pois, afinal, sou humano!
ResponderExcluirhttp://www.ted.com/talks/lang/pt-br/alain_de_botton_a_kinder_gentler_philosophy_of_success.html
Vc ja viu isso? http://webinsider.uol.com.br/2011/10/05/social-media-e-a-ditadura-da-felicidade/
ResponderExcluirOLá pessoal!! Desde o início do blog esse é o texto mais comentado, o que me fez pensar que ele tocou as pessoas e fique muito feliz com isso. Esse retorno de vcs sempre é muito importante porque percebo aquilo e tocou as pessoas e o que é mais interessante, vcs percebem coisas que eu não tinha pensado quando escrevi. Escutar o que vcs entenderam me faz rever o texto uma maneira nova. Agradeço a todos. um grande abraço
ResponderExcluirExcelente artigo Rita, essa tirania da felicidade é desumanizante, impede as pessoas de aceitarem sua condição e de se aceitarem. Gosto da frase do Guimarães Rosa "Felicidade só em raros momentos de distração". Abraços.
ResponderExcluirRita!
ResponderExcluirA medicalização da infelicidade tb é uma forma forma "rápida e fácil" de se livrar da dor do outro!
Uma pergunta que sempre indago aos meus pacientes: Qual problema sofrer? Não faz parte da vida?
Abraço, @MarcioBelo
Rita
ResponderExcluirQuero expressar mais uma vez ao seu texto,já expressei no Humanizasus e a única coisa,que tem que ler e reles e dizer é tudo isso numa visão,que é somente seguir ao texto que teremos mais humanização e acolhimento melhor.
Muito bom seu texto: há uma conexão direta com algumas convicções pessoais relativas à subjetividade e o aprender. Quem não aprende como se deve, está doente. Quem está doente vai para o especialista que trata. Nomeia-se então a medicalização da vida, processo de empoderamento do bios. Ou, se preferir, o biopoder tão estudado por Foucault. O poder sobre o corpo e sua força reguladora, biopotência. Além do direito ao gozo, ele tem forma (pode/não pode) e agendamento (preferencialmente no ócio, afinal, sexo é diversão !!!). Como diria Vinícius de Moraes, "Todos os maridos estão funcionando regularmente, porque hoje é sábado". Está aí o TDA/H que mostra esta realidade perversa. Em dez anos, o consumo de ritalina passou de 70 mil caixas/ano para 2 milhões de caixas/ano. Alguma coisa está errada e vai piorar: O DSM V já tem a faixa etária para esse diagnóstico: era dos 7 aos 12 para inacreditáveis 4 aos 15. Conseguem imaginar uma criança com quatro anos hiperativa? Li na NET um protocolo de um pediatra para identificação precoce do TDAH, onde dizia haver alguns indícios no bebê hiperativo: "...insaciável ao comer, agitado ao dormir, solicita demais a mãe..." entre outros descrições sem sentido.Parabéns pelo texto. Abs.
ResponderExcluirGostei bastante de seu texto. Trabalho na saúde mental num CAPSad. Vou recomendar e coloquei seu blog nos favoritos. Grata.
ResponderExcluirAdorei o texto. Pior que estão fazendo isso com as crianças também. Hoje a infância é uma doença a ser tratada.
ResponderExcluirSou história. Sou o que foi dito. Sou, quando entendo minha condição humana.
ResponderExcluirÓtimo!
ResponderExcluirUma pergunta que me faço hoje em dia: onde se situa a linha que delimita um deprimido de um não deprimido? Onde aquilo que sinto se configura como uma depressão que deve ser tratada com medicamentos ou como uma angústia a ser tratada numa análise? Sofri de episódios depressivos ao longo de toda minha vida, e somente a psicanálise me deu real melhora. Os remédios na maioria das vezes foram inócuos, e em algumas poucas me ajudaram me livrar de pensamentos suicidas repetitivos. Quando parei com os remédios ouvi de todos que não era para parar. Minha analista acompanhou e assim estou há uns 8 meses sem medicação, as vezes melhor, as vezes pior. Mas a pressão do mundo para que a gente se medique é grande. outro dia comentava com uma amiga psicóloga que estava angustiado com algo e ela prontamente me disse: Não fique sofrendo, volte a tomar o antidepressivo.
ResponderExcluirGostei muito da entrevista que li na coluna da Eliane Brum.
ResponderExcluirsou psicanalista e concordo totalmente com o seu pensamento.
A tecnologia está nos mal acostumando, ou seja, do mesmo jeito que tenha a facilidade de me comunicar com as pessoas na velocidade da luz, desejo que todos os processos lentos (porem importantes) que temos que passar, sejam resolvidos na mesma velocidade da luz.
Abraço!
Paulo Jacob - Campinas/SP
Olá, não conhecia vc até uma amiga postar seu texto no facebook. Muito bom, ganhou uma leitura para o blog. Abraços
ResponderExcluirGostei muito.
ResponderExcluirExcelente o artigo...Compartilhando da visão, fui Enfermeira do SUS, viamos na práticaos efeitos danosos da tal ditadura, poucos gostavem de atender pacientes quando adentravam no SUS SEJA ATRAVÉS DE QUALQUER PROGRAMA QUANDO A PESSOA ESTAVA DEPRIMIDA, INFELIZ.SENDO CENSURADA, ESTIGMATIZADA. TRABALHAMOS ESTA TAL SITUAÇÃO COMO PARTE DA CONDIÇÃO HUMANA.TIVE DEPRESSÃO E VI QUE OS COLEGAS NÃO SABIAM ACEITAR ISTO EM MIM, INICIAMOS SEMINÁRIOS INTERNOS, COM O PROPOSITO DE DAR ESTA VISÃO TÃO BEM EXPLICADA NO SEU BLOG. PARABÉNS, HOJE ESTOU APOSENTADA, BLOGANDO NOS BLOGS QUE TENHO, BUSCANDO ARTIGOS COMO O SEU PARA ESCLARECER E MUDAR PARADIGMAS.. ESTOU AGORA SEGUIDO SEU BLOG.SONIA
ResponderExcluirPrecisamos da dor, do luto, da perda e da morte...pq nos dá outras dimensões do viver e nos faz trilhar caminhos as vezes inesperados. Gostei muito do seu post...
ResponderExcluirRita,
ResponderExcluirSim: há contingências diante das quais rir seria delírio ou afetação. Além disso, há certa ânsia por prazer "exponenciado ao infinito" que é absolutamente inalcançável. Por isso, há rapazes usando viagra aos vinte e poucos anos, dentre outros aditivos, para usufruírem de um "sexo otimizado" [sic], na leitura quantificável do tempo-performance, que, no entanto, nunca tenderá ao infinito [o sempre-mais] aspirado, a não ser pela inépcia cega do desejo. O infinito é gêmeo do deserto.
No mais, estes mesmos rapazes precisarão de um rivotril ao chegar em casa pela manhã, para "desacelerarem na marra" da hiper-estimulação aditivada resultante dessa "aspiração" [eu diria: febre]. Eis a montanha russa químico-sensorial que visa anular, por mascaramento, todo limite inescapável do "demasiado humano".
Há a fuga química da dor legítima, como há [e vc sabe bem disso] a adicção ao prazer como "adrenalização da vida", numa perspectiva ávida [e viscosa!] que não tolera o gráfico dos platôs e vales do existir, mas que aspira só aos picos mais altos.
Insaciabilidade é o corolário das adicções. E o labirinto é a formulação rebuscada do deserto.
Um beijo.
Parabéns pelo artigo. Foi sucinto e realista, vou compartilhar com alguns colegas.
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