quarta-feira, 27 de abril de 2011

Bullying e judicialização das relações pessoais

por Rita de Cássia de A Almeida
psicanalista

Bullying é o tema do momento. A palavra é inglesa e originária da palavra bully cuja tradução é valentão. Naturalmente que valentões e valentonas sempre existiram. E acredito que todos nós pelo menos em algum momento na vida fomos vítimas de algum valentão e/ou já nos comportamos como um. Mas porque será que o bullying se tornou um problema com tanto destaque nos últimos tempos, a ponto de parecer que ele só surgiu recentemente? Não tenho respostas formuladas para esta questão, mas acredito que haja um caldeirão favorável que faz com que o bullying esteja tão em voga.

Freud dizia que a fonte de maior sofrimento para nós é resultante de nossas relações com os outros já que, inevitavelmente e invariavelmente elas produzem alguma espécie de fracasso ou mal-estar. Vivemos, no entanto, numa era onde fracassos e mal-estares são completamente abominados. Então, se não há espaço para os mal-entendidos tudo precisa ficar sempre bem-entendido e, uma das formas que encontramos para aplacar os mal-entendidos da atualidade tem sido convocar rotineiramente o discurso judiciário para mediar nossas relações. A isso chamamos judicialização das relações pessoais. Mas, o perigo de sempre recorrer a este tipo de discurso para solucionar nossos problemas interpessoais é o de nos colocarmos sempre em lugares estanques e cristalizados; ou somos as vítimas ou somos seus algozes.

Permeado por um discurso fortemente judicializado torna-se preocupante a maneira como tem sido tratada a questão do que aprendemos a chamar de bullying. A exploração do tema tem se ocupado em dar voz a um exército infindável de pessoas que afirmam sofrerem ou terem sofrido esta forma de violência e que não se cansam de reafirmarem o lugar que foi definido para elas; o de vítimas. Os algozes por sua vez são os demônios do momento, execrados em suas condutas violentas e opressoras, mas que, afinal, apenas reproduzem as relações de poder que nossa sociedade semeia e reforça.

Tenho um filho adolescente. Certa vez, quando ele contava com uns 8 anos de idade, me relatou que havia um garoto em sua sala que o intimidava constantemente, com palavras e pequenas agressões. A meu pedido, ele me apontou o garoto na saída da escola que, como eu já suspeitava, tinha o dobro seu do tamanho. Me lembro que na hora em que vi o garoto, tive ímpetos de abordá-lo e tirar satisfações ou procurar os pais dele ou ainda me reportar à direção da escola. Ao contrário do que a grande maioria das pessoas pensa, mães psicólogas ou psicanalistas não pautam suas intervenções em teorias e fórmulas científicas. Educam como a maioria dos pais, baseados em seus saberes inconscientes, ou seja, saberes não teorizáveis e que foram adquiridos ao longo da vida. Sendo assim, com meu coração apertado e sem saber se estava tomando a melhor decisão, apenas disse ao meu filho algo mais ou menos assim: – Sei que este garoto tem o dobro do seu tamanho e sei que você está com medo dele, eu também teria se estivesse no seu lugar, mas também sei que você é muito mais inteligente que ele e vai saber resolver este problema. Passaram-se os dias e meu filho não se queixou mais do valentão. Certo dia, perguntei a ele se o garoto ainda o importunava e ele me disse: - Tudo bem, mãe. Eu já resolvi. Agora somos amigos. Perguntei como isso tinha acontecido e ele me disse com simplicidade: - Eu perguntei se ele queria ser meu amigo e ele aceitou.

Obviamente que ao fazer esta intervenção com meu filho eu jamais poderia imaginar o seu desdobramento, ainda mais um tão inusitado. Minha fantasia de solução transitava entre o final do filme Karatê-kid (onde o menino franzino finalmente dá uma surra no valentão) e uma revolução coletiva dos magrelos contra os fortões, liderada pelo meu filho, é claro. Hoje eu sei que a maneira que ele encontrou para resolver sua diferença com o valentão da sala foi invenção dele, mas também sei que ela só pôde acontecer porque eu, mesmo sem saber, permiti com minha maneira de intervir, que ele deixasse de ser apenas uma vítima dessa cena para também protagonizá-la. Se eu tivesse abordado o tal valentão, por exemplo, poderia até conseguir que ele deixasse de ser o algoz do meu filho, mas este jamais deixaria de ser a vítima.

Este é o problema das intervenções baseadas no discurso judicializado, elas apenas reforçam os papéis que já foram estabelecidos, sendo assim, as mudanças só ocorrem numa provável inversão de posições – como aconteceu no caso de Casey Haynes o menino gordinho que se tornou febre na internet depois de cansar de ser saco de pancadas e revidar em seu agressor – o que não modifica em nada o produto da relação, neste caso, violência.

Não pretendo de maneira nenhuma fazer deste relato uma receita para lidar com o bullying, pois, não acredito em receitas para educar e muito menos em receitas para resolver nossos mal-estares quotidianos. Mas, creio que devemos evitar intervenções que sirvam apenas para cristalizar e reforçar as pessoas em determinados lugares, dando a falsa impressão de que estamos tratando do problema. Sendo assim, coibir e punir os agressores pode até inibi-los em determinadas situações, mas não os fará questionar suas atitudes e sua posição perante o outro. Da mesma maneira, ter piedade e proteger as vítimas, não as fará experimentar posições subjetivas mais potentes e proativas.

Meu filho me ensinou muito em nossa experiência com o tal bullying, que na época nem tinha esse nome. Aprendi que muito além de agressores e agredidos, de vítimas e algozes, esta forma de mal-estar pode produzir algo muito mais interessante e positivo: amigos. E porque não? Sem esquecer que mesmo os amigos às vezes se desentendem.

4 comentários:

  1. Encantada com a sua sensibilidade e a maneira gostosa que apresenta essa reflexão tão importante...
    Aline

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  2. Parabéns pelo texto. E parabéns ao teu filho. Ele deveria discursar na ONU sobre como se resolvem conflitos internacionais.

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  3. RITA, ACHAVA QUE NÃO TE CONHECIA ATÉ VER SUA FOTO, TEMOS NOS ESBARRADO NO RETORNO A JF NAS SEXTAS-FEIRAS.
    ÓTIMO SEU ARTIGO, OU MELHOR ARTIGOS...VC TA PRECISANDO FAZER MAIS "BARULHO" EM LD.OBRIGADA PELA LEITURA...ABRAÇOS
    FABIANY

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  4. Rita,


    Vc está certíssima na relação "um pra um". A abordagem, no meu modo de apreender a coisa, não se dá na equação do "muitos contra um" e, no caso, o olhar adulto tem de estar mais atento às variáveis que propiciam tal "formatação do abuso".


    Não sou a favor da "judialização", mas ela levantou a lebre sobre coisas que "poderiam ser vistas", como o estilo de bullying [enfiar a cara da vítima na privada, etc e tal] que "muitos contra um" realizavam com o rapaz de Realengo, aquele que perpetrou sua "vingança vicária à posteriori". Ter a cabeça enfiada na privada, na abase da coerção coletiva, é ser vítima, sim. Não justifico o desfecho encontrado pelo jovem [os desfechos não precisam ser trágicos], mas me espanto com a "cegueira" [seletiva] de "tantos que não puderam/quiseram ver a tempo" tamanha aberração nas relações que ali se davam, sempre vistas na fórmula: "muitos contra um".


    Eu restrinjo o termo bullying, na minha releitura pessoal, só nessa modalidade. O valentão que ameaça um colega mais fraco é diferente do valentão que comanda uma gangue [que agrega um séquito para si] para aterrorizar um ou vários mais fracos. Considero o bullying somente nessa perspectiva: um fenômeno grupal, com a anuência de muitos. E o dedo crítico precisa ser apontado para este anuência específica: "a covardia institucional media". Que indivíduo isolado pode fazer frente a uma gangue organizada? E, pasme vc [ou não pasme], elas existem, nos mesmos moldes dos grupelhos que, mais tarde, em quatro ou seis, agridem homossexuais nas ruas ou mendigos. Exatamente nos mesmos moldes. Análogos às gangues de skinheads ou torcidas organizadas dispostas a arrebentar. Os machinhos-alfa reunindo prosélitos e mostrando domínio territorial na lógica do "mamífero dominante", na visão clássica darwiniana de "o mundo é dos mais fortes" [ou "espertos"].


    Muita gente não via o tema nessa clave, e eu suspeito que não visse porque "preferia não ver": professores [alguns até intimidados, ou evitando diálogos com os pais dos agressores] e, sobretudo, os próprios pais de agressores e "líderes negativos júniores". Um dia eu te traço um perfil bastante detalhado desses líderes de gangues em escolas.




    Um beijo.

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