O Brasil viveu nesta semana um episódio inacreditável. Uma passeata em São Paulo que carregava, dentre outras bandeiras, o pedido de intervenção e golpe militar, ou seja, a reedição de um dos períodos mais sombrios da nossa história.
Pasma com a tal passeata, postei algo no feicebuque sobre a necessidade dos professores brasileiros pararem tudo que programaram durante a semana para se dedicarem a discutir em suas salas de aula os anos de ditadura militar no Brasil, a fim de conscientizar e alertar nossos jovens. Pois mais pasma ainda fiquei com um comentário ao meu post que pedia para que os professores trabalhassem o tema de forma neutra, a fim de que os alunos tirassem suas próprias conclusões sobre o episódio, além de salientar a importância das obras públicas feitas na época da ditadura e destacar que as organizações de esquerda também tiveram sua parcela de responsabilidade no episódio. E o mais triste: o comentário tem, até o momento, uma defesa e 22 curtidas.
Esse tipo de passeata que ocorreu em São Paulo, assim como o comentário que apareceu no meu post - e que ouvimos por aí toda hora - é um sintoma da falta que fez não termos acertado as contas com esse pedaço da nossa história, tal como souberam fazer nossos vizinhos Argentinos e Uruguaios, por exemplo. Precisamos urgentemente rasgar essas cicatrizes que ainda não se fecharam a fim de fazer com que a ditadura militar brasileira seja, irremediavelmente, tratada como aquilo que realmente foi: um crime bárbaro.
Não há nenhuma obra construída, nenhuma justificativa, nenhuma versão, nenhum romantismo, nenhuma suposta neutralidade que seja capaz de fazer com que tiremos outra conclusão sobre esse período que não seja: crime e barbárie. Se existe uma versão dos militares para o que ocorreu nos porões da ditadura ela é criminosa e, assim sendo, não pode ser considerada como possível ou plausível. Assim como, se existe uma versão dos brancos sobre a escravidão imposta aos negros ela é criminosa; se existe uma versão nazista para o genocídio dos judeus, ela é criminosa; se existe uma versão europeia para o que se fez com os povos que viviam nas Américas, ela é criminosa; e ponto final, nada mais.
Mas o fato de não termos passado a limpo esse nosso passado sombrio é que exatamente abre a possibilidade de que alguém diga: "A ditadura militar também não foi tão ruim assim como dizem!" Este tipo de discurso sustenta argumentos do tipo: “A ditadura militar foi terrível, mas, e as obras que foram feitas nesta época, não valeram?” Isso seria o mesmo que dizer: “A escravidão a que foram submetidos os negros no Brasil foi terrível sim, mas e a nossa produção de cana-de-açúcar e café no século XVII, não conta?” Ou: “Os povos nativos nas Américas foram dizimados sim, mas e os países Americanos que daí surgiram, não fizeram tudo valer a pena?”
Este tipo de desmemoria, misturada com ignorância histórica ou até má fé, também produz argumentos desse tipo: “Eu concordo que os militares foram horríveis, mas os militantes de esquerda também não eram flor-que-se-cheira não é?”. Isso seria o mesmo que dizer: “As torturas e castigos a que foram submetidos os negros na escravidão foram um horror, mas os negros também não colaboravam: fugiam, resistiam, desobedeciam...” Ou: “Tá certo que os nazistas perseguiam e matavam os judeus, mas esses também não facilitavam não é? Mudavam de nomes, se escondiam, escondiam seus bens...”
Outra forma de tentar camuflar a realidade terrível do que foi o período de ditadura no Brasil, também é utilizada para justificar outras atrocidades ao longo da história. É a velha justificativa: “Fizemos o mal, mas foi para o bem”. Esta é a forma mais perversa de impingir mal ao outro, tentando convencê-lo de que foi o melhor que se pôde fazer por ele. Assim, os portugueses dizimaram os índios que aqui viviam para lhes salvar a alma. Assim os EUA matam milhares em guerras estúpidas e desumanas com a desculpa de que estão promovendo a paz. No caso do golpe militar, a justificativa era nos salvar do comunismo.
Desarquivar a ditadura brasileira é urgente!
Não podemos mais aceitar que ela seja romantizada pelo efeito, supostamente positivo, das obras feitas na época. Se não podemos demolir o que foi construído tendo como matéria prima a humilhação, o sangue e a dor de muitos brasileiros, então que, pelo menos, nada do que foi construído na ocasião nos seja motivo de orgulho.
Não podemos mais aceitar que os que bravamente lutaram - muitos deles com suas vidas - para tentar resistir a essa barbárie, sejam responsabilizados por não se curvarem ao desmando e a opressão. E sabemos que não era preciso uma bomba ou um revólver para ser considerado um subversivo. A arma poderia ser apenas uma caneta e o território de ocupação uma folha de papel.
Não podemos mais aceitar que se justifique todo o horror que foi produzido nesta época como um bem para o Brasil e os brasileiros, ou como algo inevitável.
Sendo assim, os anos de ditadura do Brasil não podem estar sujeitos a uma espécie de interpretação pessoal de quem lê a história. Alguém teria, hoje, coragem de dar outra interpretação para o genocídio dos judeus que não a de um crime bárbaro? Alguém teria coragem de dar outra interpretação para a escravidão dos povos africanos, que não a de um crime bárbaro? Do mesmo modo, a ditadura brasileira, precisa se tornar urgentemente aquilo que realmente foi: um crime bárbaro, sem possibilidade de outra interpretação. Foi humilhação, cerceamento, censura, prisão, desespero, dor, silêncio imposto, abandono, exclusão, perda, desumanidade, desamor, ignorância, tristeza, depressão, alienação, emburrecimento, embrutecimento, doença, tortura e morte. Nada que tenha acontecido de bom nesta época pode mudar ou romantizar isso. Nenhuma opinião pessoal que se tenha sobre esta passagem da nossa história pode mudar tal realidade! E nenhuma estupidez ou alienação pode permitir que alguém possa desejar ou clamar por ela novamente!
O genocídio do povo judeu foi um crime, portanto, clamar pelo seu retorno não é uma questão de opinião é crime também.
A escravidão dos negros foi um crime, portanto, clamar pela sua volta não é uma questão de opinião, é crime também.
Então é preciso que fique muito bem claro: A ditadura militar no Brasil foi criminosa, portanto, clamar por ela não é uma questão de opinião, é crime também. Simples assim.